AUTONOMIA E EDUCAÇÃO EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE

76
1 AUTONOMIA E EDUCAÇÃO EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE 1 VICENTE ZATTI PORTO ALEGRE, 2007 INTRODUÇÃO O interesse em pesquisar o tema autonomia e educação tomando como referência Immanuel Kant 1 e Paulo Freire 2 surgiu a partir da constatação de situações do meio escolar e social atual que levam a ou se caracterizam como situações de heteronomia. Destaco dentre essas situações a forma como grande parte dos alunos desenvolvem uma capacidade de compreensão insuficiente, se mostram arredios à leitura, seguem a moda irrefletidamente, apresentam dificuldade em pensar por conta própria e discutir criticamente os assuntos que envolvem, inclusive, seu cotidiano. A nível social destaco a estetização do mundo da vida que leva ao individualismo, à indiferença com o humano, à irresponsabilidade, à massificação e a consequentes formas de pensar e agir homogeneizados, não autênticos e autônomos. Além disso, a razão instrumental promove hoje a colonização de diversas esferas do mundo da vida, gerando uma sociedade em muitos aspectos desumanizante e irracional, que prioriza o econômico em detrimento do humano. A realidade social permeada pela estetização, pela racionalidade instrumental, e que se caracteriza como sociedade de massa, ecoa diretamente sobre a educação. Os modelos educacionais elaborados a partir de um pensamento tecnicista-instrumental não abordam a educação em sua totalidade formativa, se mostrando, portanto, insuficientes na formação do educando enquanto homem e cidadão. Dessa forma, sociedade e escola acabam gerando um ser humano incapaz de formular juízos próprios e autônomos, incapaz de pensar certo 3 , como diz Paulo Freire, tanto no nível de conhecimento como em nível moral. Permanecem as pessoas, então, dependentes e determinadas por pensamentos, normas de conduta, ideais, projetos que não são seus, normalmente "impostos" pelos meios de 1 http://www.pucrs.br/edipucrs/online/autonomia/autonomia/autonomia.html

description

Análisis sobre las ideas de educación y autonomía en Freire y Kant.

Transcript of AUTONOMIA E EDUCAÇÃO EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE

AUTONOMIA E EDUCAO EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE[footnoteRef:1]

VICENTE ZATTI

PORTO ALEGRE, 2007 [1: http://www.pucrs.br/edipucrs/online/autonomia/autonomia/autonomia.html]

INTRODUO

O interesse em pesquisar o tema autonomia e educao tomando como referncia Immanuel Kant1e Paulo Freire2surgiu a partir da constatao de situaes do meio escolar e social atual que levam a ou se caracterizam como situaes de heteronomia. Destaco dentre essas situaes a forma como grande parte dos alunos desenvolvem uma capacidade de compreenso insuficiente, se mostram arredios leitura, seguem a moda irrefletidamente, apresentam dificuldade em pensar por conta prpria e discutir criticamente os assuntos que envolvem, inclusive, seu cotidiano. A nvel social destaco a estetizao do mundo da vida que leva ao individualismo, indiferena com o humano, irresponsabilidade, massificao e a consequentes formas de pensar e agir homogeneizados, no autnticos e autnomos. Alm disso, a razo instrumental promove hoje a colonizao de diversas esferas do mundo da vida, gerando uma sociedade em muitos aspectos desumanizante e irracional, que prioriza o econmico em detrimento do humano.A realidade social permeada pela estetizao, pela racionalidade instrumental, e que se caracteriza como sociedade de massa, ecoa diretamente sobre a educao. Os modelos educacionais elaborados a partir de um pensamento tecnicista-instrumental no abordam a educao em sua totalidade formativa, se mostrando, portanto, insuficientes na formao do educando enquanto homem e cidado. Dessa forma, sociedade e escola acabam gerando um ser humano incapaz de formular juzos prprios e autnomos, incapaz de pensar certo3, como diz Paulo Freire, tanto no nvel de conhecimento como em nvel moral. Permanecem as pessoas, ento, dependentes e determinadas por pensamentos, normas de conduta, ideais, projetos que no so seus, normalmente "impostos" pelos meios de comunicao ou pelo senso comum vigente. E a determinao passiva do sujeito pelo que lhe externo heteronomia. A autonomia supe que o sujeito seja capaz de fazer uso de sua liberdade e determinar-se4.Alm do acima exposto, as condies sociais desfavorveis como pobreza, misria, favelamento, em que grande parte da populao brasileira vive, so elementos que dificultam e at impossibilitam a autonomia. Em geral a pobreza econmica condiciona a uma situao de pobreza cultural, o que dificulta e limita o exerccio autnomo da cidadania, pois, privados de boa formao, no conseguem estabelecer-se como sujeitos no contexto social por no terem condies iguais de intercomunicao e no terem condies iguais para disputar as oportunidades, inclusive de emprego. As condies sociais desfavorveis limitam o poder ser autnomo, tendo em vista que a autonomia engloba tanto a liberdade de dar a si os prprios princpios, quanto a capacidade de realizar os prprios projetos. Por isso, pensamos que papel da escola promover uma educao que leve o educando a pensar livremente e, tambm, capacit-lo para realizar os projetos que estabelece para si.Mas por que estudar Kant e Paulo Freire para iluminar essa problemtica?Quem definiu o conceito de autonomia na modernidade e fez dele um conceito central em sua teoria foi Kant. Nesse ideal viu o fundamento da dignidade humana e do respeito, o que foi central para o desenvolvimento dos sistemas legais, dos sistemas educacionais e da sociedade moderna como um todo. A concepo kantiana de liberdade como autodeterminao influenciou muito a educao e o modelo escolar criado a partir da modernidade. Mas para entendermos melhor a concepo de autonomia de Kant, veremos tambm a concepo de autonomia defendida pela filosofia de sua poca, o iluminismo.Paulo Freire traz uma contribuio extremamente importante para a educao, especialmente de pases em que situaes de opresso so caractersticas marcantes, como o caso do Brasil. Ele formulou uma proposta educacional que procura transformar o educando em sujeito, o que implica na promoo da autonomia. Seu mtodo prope uma alfabetizao, uma educao, que leve tomada de conscincia da prpria condio social. A conscientizao possibilitaria a transformao social, pela prxis que se faz na ao e reflexo. Teramos, ento, um sujeito emancipado de uma condio social opressora. Em Freire, a libertao das heteronomias, normalmente impostas pela ordem scio-economica-educacional injusta e/ou autoritria, condio necessria para a autonomia.As propostas de Kant e Freire possuem em comum uma aposta esperanosa na humanidade, no potencial humano de fazer-se melhor e construir um mundo melhor. A questo que se coloca nessa obra refletir sobre as possibilidades de as concepes de educao para a autonomia de Immanuel Kant e Paulo Freire iluminarem uma educao que vise formar para a autonomia hoje, uma educao capaz de formar para a superao das heteronomias do nosso tempo.No primeiro captulo, fao a definio do conceito de autonomia e uma exposio da compreenso de autonomia de alguns pensadores ao longo da histria. No segundo captulo, procuro demonstrar o contexto filosfico do iluminismo no qual o pensamento kantiano se desenvolveu, definir a concepo de autonomia dos iluministas e demonstrar contra quais heteronomias se colocam, demonstrar que a concepo de autonomia dos iluministas considerada heteronomia por Kant, demonstrar porque no pensamento de Kant h a centralidade dos conceitos de autonomia e razo prtica, identificar contra quais heteronomias Kant se coloca. Ainda no segundo captulo, analiso os aspectos da pedagogia kantiana relacionados com o problema da educao para a autonomia.O terceiro captulo procura analisar contra que heteronomias Paulo Freire se ope, o que ser feito partindo de temas como opresso, massificao, medo da liberdade, colonialismo, invaso cultural, prescrio, sectarizao, irracionalismo, ao antidialgica, concepo bancria de ensino, neoliberalismo, tica de mercado. Tambm coloco aspectos da atualidade da questo heteronomia. O quarto captulo se debrua sobre a concepo de educao para a autonomia em Paulo Freire procurando analisar como devem ser as relaes professor/aluno e as relaes sociais para a promoo da autonomia, analisar a concepo antropolgica e social freireana bem como suas implicaes em uma educao para a autonomia, demonstrar a conscientizao e a educao dialgica como necessrias para a libertao e gestao da autonomia. O quinto captulo procura comparar Freire e Kant estabelecendo confluncias e dissonncias, destacar aspectos de ambos que auxiliam na problemtica atual e, a partir de ambos os autores, analisar a educao enquanto formao poltica, tica e esttica e suas implicaes com a autonomia.Essa obra no pretende ser um manual prtico que oriente procedimentos para a educao que vise autonomia, pretende ser um trabalho terico que pensa aspectos de uma educao que forme para a autonomia hoje a partir de Kant e Freire. Ao tratarmos do tema autonomia, sabemos que uma autonomia absoluta da forma como foi pensada na modernidade no possvel. As estruturas sociais, o contexto no qual estamos imersos, a debilidade da razo que possui seus limites, a nossa constituio racional intersubjetiva impedem uma autonomia absoluta5. Mas defendemos a possibilidade da emancipao do homem para a vivncia da condio humana e liberdade, a fim de poder determinar sua prpria vida autonomamente. E a educao possui papel central na formao desse homem capaz de desvencilhar-se das heteronomias e fazer a si e ao mundo com autonomia.

CAPTULO I - A AUTONOMIA

Etimologicamente autonomia significa o poder de dar a si a prpria lei,auts(por si mesmo) enomos(lei). No se entende este poder como algo absoluto e ilimitado, tambm no se entende como sinnimo de auto-suficincia. Indica uma esfera particular cuja existncia garantida dentro dos prprios limites que a distinguem do poder dos outros e do poder em geral, mas apesar de ser distinta, no incompatvel com as outras leis. Autonomia oposta a heteronomia, que em termos gerais toda lei que procede de outro,hetero(outro) enomos(lei). Ferrater Mora (1965) define autonomia como uma realidade que regida por uma lei prpria. Ainda sugere dois sentidos para o termo autonomia: o sentido ontolgico se refere a certas esferas da realidade que so autnomas em relao s outras, por exemplo, a realidade orgnica distinta da inorgnica, o sentido tico se refere a uma lei moral que tem em si seu fundamento e a razo da prpria lei. O ltimo sentido de autonomia foi desenvolvido por Kant. Segundo Abbagnano (1962, p. 93), bastante usada a expresso "princpio autnomo" no sentido de que o princpio tenha em si, ou coloque por si mesmo, a sua validez ou a regra de sua ao.Mas a definio que nos parece mais apropriada por designar melhor o sentido de autonomia a doVocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia:"Etimologicamente autonomia a condio de uma pessoa ou de uma coletividade cultural, que determina ela mesma a lei qual se submete".(LALANDE, 1999, p. 115). Como a autonomia "condio", como ela se d no mundo e no apenas na conscincia dos sujeitos, sua construo envolve dois aspectos: o poder de determinar a prpria lei e tambm o poder ou capacidade de realizar. O primeiro aspecto est ligado liberdade e ao poder de conceber, fantasiar, imaginar, decidir, e o segundo ao poder ou capacidade de fazer. Para que haja autonomia os dois aspectos devem estar presentes, e o pensar autnomo precisa ser tambm fazer autnomo. O fazer no acontece fora do mundo, portanto est cerceado pelas leis naturais, pelas leis civis, pelas convenes sociais, pelos outros, etc, ou seja, a autonomia limitada por condicionamentos, no absoluta. Dessa forma, autonomia jamais pode ser confundida com auto-suficincia.Se autonomia a condio de quem determina a prpria lei, a condio de quem determinado por algo estranho a si heteronomia. Segundo Lalande (idem), heteronomia "Condio de uma pessoa ou de uma coletividade que recebe do exterior a lei qual se submete". Situaes como ignorncia, escassez de recursos materiais, m ndole moral, etc, impe determinaes que limitam ou anulam a autonomia, sendo caracterizadas, portanto, como heteronomia. A autonomia exige uma existncia que no de antemo determinada, a fim de que o sujeito possa exercer o poder de determinar-se.Apesar de o conceito de autonomia ter sido definido e adquirido centralidade na modernidade, especialmente com Kant, j no pensamento grego era desenvolvida uma noo de autonomia. Ao longo da histria essa noo vai adquirindo significados diferentes e, assim, vai sendo elaborada. Por isso, para entendermos a concepo de autonomia de um autor, precisamos olhar a qual heteronomia ele se ops e o contexto histrico e terico que o envolvia.Na Grcia antiga, historiadores como Tucdides e Xenofonte citam povos que se rebelavam e buscavam sua independncia (cf. BOURRICAUD, 1985, p. 52), o que mostra a presena da idia de autodeterminao poltica das cidades. Mas a noo de autonomia dos historiadores gregos fica restringida idia de autodeterminao das unidades polticas, as cidades. Ela distinta da noo de soberania, de autarquia, de poder absoluto. aproximada do conceito de autarcia, suficincia, de no ter necessidade de ningum (cf. idem).Plato (428/427 a.C. - 347 a.C.) desenvolve uma concepo pouco mais elaborada. Ao definir uma comunidade perfeita, a define como autarcia, acrescentando o aspecto da suficincia econmica. (cf. ibid). Em Plato a noo de autonomia ainda no possui carter moral, mas ele, indiretamente, contribui para o desenvolvimento do carter moral do conceito moderno de autonomia por ter pensado o autodomnio, somos bons quando a razo governa e maus quando dominados por nossos desejos (cf. TAYLOR, 1997, p. 155). Plato distingue entre partes superiores e inferiores da alma, dominar a si mesmo fazer com que a parte superior da alma controle a inferior, ou seja, fazer com que a razo controle os desejos. O governo da razo instaura a ordem, enquanto os desejos representam o reino do caos. Somos bons quando a razo passa a governar e no somos mais dominados por nossos desejos (cf. idem, p. 156). "Ser governado pela razo era estar voltado para as Idias6e, portanto, ser movido pelo amor a elas" (ibid, p. 189). Enfim, para Plato ser governado pela razo, ser racional, ser senhor de si mesmo (cf. ibid, p. 157), pensamento que inclui uma noo de autonomia. Em Aristteles (384/383 a.C. - 322 a.C.) a noo de autarcia recebe uma dimenso moral. Agora se refere ao indivduo humano e o que ele visa na busca da felicidade. O Bem se basta por si mesmo, o seu prprio fim, livre de toda necessidade. Assim a felicidade e a autonomia se do ao sujeito que possui tal Bem7.(cf. BOURRICAUD, 1985, p. 52).Os esticos8, embora ainda no usassem o termo autonomia, trouxeram idias que contriburam muito para a evoluo da noo, como independncia de toda regulao e de todo constrangimento vindo do exterior, satisfao das prprias necessidades sem que a cidade ou o indivduo precise estar em dependncia de outro. (cf. idem). Para eles, h uma Razo divina (Natureza) que rege o mundo segundo uma ordem necessria e perfeita, da mesma forma que o animal guiado pelo instinto, o homem guiado, infalivelmente, pela razo (cf. ABBAGNANO, 1962, p. 356). Frente a isso, resta ao homem escolher entre duas atitudes, uma de passividade e ignorncia e outra de consentimento reflexivo ou recusa. A autonomia do sujeito se situa ao nvel de julgamento, que compreende a capacidade de prever e escolher. (cf. BOURRICAUD, 1985, p. 52). A partir dessa dupla capacidade, qualquer um pode construir sua prpria personalidade, pode se guiar pela prpria razo, saindo da dependncia das emoes. A contribuio mais original do estoicismo para a noo de autonomia a identificao entre liberdade e obedincia Razo. No entanto, os pensadores esticos estavam ainda distantes do sentido que a autonomia tem hoje, o qual foi definido a partir da modernidade.Na modernidade, Maquiavel (1469-1527) desenvolveu seu conceito pioneiro de autonomia poltica, na obraDiscursos(cf. CAYGILL, 2000, p. 42), combinando dois sentidos de autonomia. Um primeiro como liberdade de dependncia, e o segundo como poder de autolegislar. Em Martinho Lutero (1483-1546) a autonomia como liberdade de dependncia passa a ser liberdade espiritual, interior, em relao ao corpo e suas inclinaes. Assim, o sujeito seria autnomo na medida em que estivesse livre das inclinaes do corpo e poderia obedecer a Deus (cf. idem).Os iluministas apresentam uma noo de autonomia que anttese Escolstica9, religio, tradio10, ao Antigo Regime11(Ancien Rgime). Sua concepo de autonomia se refere razo que se dobra a evidncias empricas e matemticas, libertando o homem da superstio e da ignorncia. Defendiam a razo natural como uma espcie de tribunal contra o qual se despedaaria toda e qualquer forma de conhecimento sem credenciais construdas pela associao entre racionalidade dedutiva e empirismo indutivo. Assim o homem, revelia da tradio, da religio, deve ousar pensar por si mesmo e no admitir nada, exceto o que discerne a partir da razo e da experincia. A busca pela felicidade passou a ter importncia central, por isso a sensualidade passa a ser exaltada. Concebem o homem como mnada, ou seja, apenas sua existncia fsica considerada. A autonomia aqui est ligada possibilidade de viver uma vida feliz, o que incluiria a vivncia da sensualidade e a reduo do sofrimento que seria possibilitado pela razo com eficcia instrumental. A caracterizao do homem como mnada faz com que os iluministas percam o sentido de autonomia como um todo, o tornando um conceito reduzido. em Kant que o problema da autonomia ganha maior fora e centralidade, ele faz uma transposio filosfica e crtica da autonomia religiosa de Lutero para a autonomia moral. Ainda, Kant combina os dois sentidos usados por Maquiavel numa explicao de determinao da vontade12. Autonomia, para ele, designa a independncia da vontade em relao a todo objeto de desejo (liberdade negativa) e sua capacidade de determinar-se em conformidade com sua prpria lei, que a da razo (liberdade positiva). Na obraSobre a Pedagogia, ele vai propor a disciplina como a parte negativa e a instruo como a parte positiva de uma educao formadora de sujeitos autnomos.Kant busca recuperar o sentido de autonomia considerando a totalidade do ser humano, considerando a racionalidade em sentido mais amplo que o instrumental, o que havia sido perdido pelos iluministas. No entanto, acaba perdendo o sentido emprico da autonomia, no considerando devidamente o homem sensvel em sua corporeidade, o homem em sua busca pela felicidade. Kant recupera, em certo sentido, a concepo de dignidade humana fundada por Descartes (1596-1650), o qual liga a concepo de dignidade ao seu modelo de domnio racional. "Para Descartes, a hegemonia da razo uma questo de controle instrumental" (TAYLOR, 1997, p. 198). Essa nova definio do domnio da razo traz consigo uma internalizao das fontes morais. Segundo Taylor (idem, p.200), quando a hegemonia da razo passa a ser entendida como controle racional, como capacidade de objetificar o corpo, o mundo e as paixes, ou seja, assumindo uma postura instrumental em relao a eles, a fonte da fora moral no pode mais ser vista como exterior a ns. "Se o controle racional uma questo de a mente dominar um mundo desencantado de matria, ento o senso de superioridade do bem viver, e a inspirao para chegar a ele, devem vir da percepo que o agente tem de sua prpria dignidade como ser racional" (ibid). Em Kant, a natureza racional existe como fim em si mesma, dessa forma, os seres racionais possuem dignidade particular, e diferentemente do restante da natureza, so livres e autodeterminantes. Kant retomou de Descartes a idia da natureza racional como fonte de dignidade, e a idia de dignidade est inseparavelmente ligada idia de autonomia.Kant formulou sua posio a partir da crtica de certas posies de sua poca que denominou heternomas por dependerem da vontade, de causas e/ou interesses externos. Tais princpios heternomos podem ser empricos quando advindos do princpio de felicidade e baseados no sentimento fsico ou moral, ou racionais quando advindos do princpio de perfeio e baseados em um conceito racional de perfeio como um possvel efeito de nossa vontade ou no conceito de uma vontade independente (Deus) determinante de nossa vontade.(cf. CAYGILL, p. 170). Nesses casos, teramos uma vontade heternoma, pois a lei dada pelo objeto e, os princpios da produzidos seriam imperativos hipotticos13. Nesse sentido, Kant se contrape a tradio filosfica aristotlica14, cuja tica estabelecia a felicidade como o fim ltimo do homem, e as correntes filosficas ligadas s religies que situavam a fonte de preceitos para o homem em um Deus ou outros seres exteriores ao homem.NaFundamentao da Metafsica dos Costumes(1974a) a vontade autnoma concebe para si a prpria lei, por isso distinta da vontade heternoma cuja lei dada pelo objeto. A vontade autnoma na medida em que no simplesmente submetida a leis, j que tambm sua autora. O princpio da autonomia o imperativo categrico, sua formulao geral15: "Age apenas segundo uma mxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1974a, p. 223). Tal princpio s possvel na pressuposio da liberdade da vontade; a vontade deve querer a prpria autonomia e sua liberdade consiste em ser lei para si mesma. A formulao do imperativo categrico que se refere autonomia "a idia da vontade de todo ser racional concebida como vontade legisladora universal" (idem, p.231). Segundo tal princpio, a vontade absolutamente boa no simplesmente submetida lei moral universal, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser considerada tambm como legisladora ela mesma, por isso submetida lei que ela mesma autora (ibid). Da este ser o "princpio da autonomia". Mas para que haja autonomia, a lei promulgada pela vontade ter de ser uma lei universal vlida para todo ser racional, em caso contrrio, a lei estar condicionada a algum interesse subjetivo, e a vontade ser dependente do objeto de interesse, e, portanto, heternoma. "A autonomia da vontade para Kant a caracterstica da vontade pura enquanto ela apenas se determina em virtude da prpria essncia, quer dizer, unicamente pela forma universal da lei moral, com excluso de todo motivo sensvel" (LALANDE, 1999, p. 115). Quando a vontade autnoma, promulga leis universais isentas de todo interesse, que reclamam a obedincia por puro dever, que a prpria idia do imperativo categrico. Dessa forma Kant considera a autonomia da vontade o princpio supremo da moralidade (cf. KANT, 1974a, p.238). A esta idia de autonomia se prende a idia de dignidade da pessoa. O ser racional ao participar da legislao universal, ao se submeter lei que ele prprio se confere, fim em si, no possui valor relativo, mas uma dignidade, um valor intrnseco. "A autonomia pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional".(idem, p. 235).Kant no foi um estudioso de educao, foi um filsofo, professor universitrio que se interessou pelos problemas da educao. Em seus textos encontramos muitos pensamentos referentes educao. Ele possui uma obra que trata especificamente desse tema, traduzida para o portugus com o ttuloSobre a Pedagogiae publicada originalmente por Theodor Rink, seu discpulo. No entanto, essa obra no um tratado sobre educao, um conjunto de artigos resultantes dos cursos de Pedagogia ministrados pelo filsofo entre 1776 e 1787. No sabemos se Rink as publicou integralmente e na ordem como foram escritas, mas sabemos que o prprio Kant autorizou sua publicao. A idia que perpassa toda a obra acima citada a de uma educao pelo exerccio racional que leva autonomia. "O homem no pode tornar-se verdadeiro homem seno pela educao" (KANT, 1996b, p. 15). Esta afirmao de Kant revela que a educao tem o papel de formar o homem. pelo fato dos seres humanos nascerem um nada, por no terem instintos que lhes determinem, que precisam ser formados pela educao, precisam de sua prpria razo para se tornarem homens. Nesse sentido, o objetivo principal da educao ser educar para a autonomia, para que se possa fazer o uso livre da prpria razo. Se objetivarmos uma educao para a autonomia, temos que entend-la como formao, como processo percorrido, realizado pelo prprio homem.Poderamos objetar "contra" Kant que a educao no deve visar apenas autonomia tico-moral, mas tambm s condies para uma vida feliz. Para Kant, somos autnomos na medida em que obedecemos a lei que damos a ns mesmos16, independente de qualquer causa alheia e de qualquer objeto. Essa concepo de autonomia "absoluta", pois submete o homem ao formalismo da lei moral, no deixando espao devido para a vivncia de suas tendncias sensveis. Defendemos que a autonomia tambm envolve a prpria realizao e felicidade. Discpulos de Kant como Schiller (1759-1805) e Herder (1744-1803) perceberam isso e procuraram pensar um homem mais inteiro, em sua totalidade. Atentos a isso, "Definamos o indivduo autnomo (em oposio autonomia absoluta de Kant) como aquele que se determina, no apenas pela sua razo, mas ao mesmo tempo pela sua razo e por aquelas suas tendncias que concordam com ela" (JACOB apud LALANDE, 1999, p. 115).O projeto pedaggico de Kant, de certa forma, continuador do projeto pedaggico de Rousseau (1712-1778). "A educao para a razo e a liberdade transforma-se no objetivo positivo do projeto pedaggico de Rousseau" (FREITAG, 1991, p. 17). Em Rousseau, educar para a razo e a liberdade implica em educar para a autonomia. Para ele, "o impulso do puro apetite escravido, e a obedincia lei que se estatuiu a si mesma liberdade" (ROUSSEAU, 1973, p. 43). No contrato social a vontade geral constrange a vontade particular a abrir mo de seus desejos inserindo a noo de dever. Na passagem do estado de natureza para o estado civil, o homem adquire moralidade, pode consultar sua razo antes de ouvir suas inclinaes (cf. idem, p. 42). Mas como submeter indivduos a leis comuns e assegurar autonomia? Rousseau postula uma identidade entre os indivduos e faz dessa identidade um ideal a ser realizado pela vontade de cada um, os quais reconhecem a liberdade dos outros como condio para a prpria liberdade. Assim a autonomia um ideal que deve ser regra de todos (cf. BOURRICAUD, 1985, p. 53).Outro pensador, herdeiro da temtica educacional desenvolvida por Rousseau e Kant, que, portanto, faz da autonomia um dos principais objetivos da educao, Piaget (1896-1980). Segundo Kamii (1988, p.68), a partir da teoria de Piaget podemos dividir a autonomia em dois aspectos, o moral e o intelectual. Para a autonomia moral, importante que as crianas tornem-se capazes de tomar decises por conta prpria, que sejam capazes de considerar os aspectos relevantes para decidir o melhor caminho a seguir. Isso implica aprender a levar em conta os pontos de vista das outras pessoas, j que para este autor, a autonomia moral se alcana a partir da inter-relao com as demais pessoas. Autonomia intelectual a capacidade de seguir a prpria opinio, enquanto a heteronomia seguir a opinio de outra pessoa. Nessa obra no discutiremos as contribuies de Piaget quanto ao tema autonomia e educao devido delimitao necessria.

CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT

2.1 - O ILUMINISMO E SUA NOO DE AUTONOMIA

2.1.1 - Razo iluminista

Em termos gerais podemos dizer que iluminismo "A linha filosfica caracterizada pelo empenho de estender a crtica e o guia da razo em todos os campos17da experincia humana" (ABBAGNANO, 1962, p. 509). O prprio Kant noPrefcio primeira edio da Crtica da razo pura, define a sua poca como de crtica:A nossa poca por excelncia uma poca de crtica qual tudo deve submeter-se. De ordinrio, a religio, por sua santidade, e a legislao, por sua majestade, querem subtrair-se a ela. Mas neste caso provocam contra si uma justa suspeio e no podem fazer jus a uma reverncia sincera, reverncia esta que a razo atribui exclusivamente quilo que pode sustentar-lhe o exame crtico e pblico. (KANT, 2005a, p. 15).A filosofia iluminista possui uma confiana decidida na razo humana, prope um despreconceituoso uso crtico da razo voltada para a libertao em relao aos dogmas metafsicos, aos preconceitos morais, s supersties religiosas, s relaes desumanas e tiranas polticas, os quais representam para os iluministas heteronomia. A libertao dessas heteronomias por meio do uso crtico da razo possibilitaria experincias de autonomia.A definio dada por Kant ao iluminismo18talvez seja a mais conhecida e para esse trabalho com certeza a mais elucidativa:Esclarecimento [Aufklrung] a sada do homem de sua menoridade, da qual ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. O homem o prprio culpado dessa menoridade se a causa dela no se encontra na falta de entendimento, mas na falta de deciso e coragem de servir-se de si mesmo sem a direo de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu prprio entendimento, tal o lema do esclarecimento [Aufklrung]" (KANT, 2005c, p. 63-64). bom lembrar que embora Kant seja um iluminista, ele se afasta do iluminismo em aspectos essenciais, que sero esclarecidos ao longo do captulo. Fica claro a partir da citao acima, que em Kant oAufklrung, significa mais que conhecer simplesmente, acima de tudo, significa a realizao de sua filosofia prtica, que busca a moralizao da ao humana atravs de um processo racional. Segundo Rouanet (1987, p. 209) o lemaSapere aude(ouse saber) refere-se razo em seu sentido mais amplo, no exclusivamente razo cientfica. OAufklrungimplica na superao da menoridade, que uma condio de heteronomia, requer a deciso e a coragem de servir-se de si mesmo, ou seja, de servir-se de sua prpria razo para pensar por conta prpria, e guiar-se sem a direo de outro indivduo. Segundo Mhl (2005, p. 309), o princpio fundamental da pedagogia kantiana est relacionado palavraAufklrung, o esclarecimento, dado pelas luzes da razo, "possibilita o indivduo abandonar a ignorncia, permitindo sua ascenso a um nvel superior de cultura, educao e formao" (idem). Kant alerta que difcil para um homem desvencilhar-se da menoridade quando ela se tornou para ele quase uma natureza (cf. KANT, 2005c, p. 64). Mesmo assim, para que tal ocorra, nada mais se exige a no ser liberdade de fazer uso pblico da razo em todas as questes (cf. idem, p. 65). Kant (ibid, p.66) entende como uso pblico da razo aquele que qualquer homem, enquanto sbio, faz dela diante do grande pblico letrado, todavia, entende como uso privado aquele que qualquer homem pode fazer de sua razo em um cargo pblico ou funo a ele confiado. A liberdade de fazer uso pblico da razo necessria para que possa haver autonomia de pensamento (pensar por conta prpria), autonomia da ao e tambm autonomia da palavra.A filosofia iluminista otimista porque acredita no progresso por meio do uso crtico e construtivo da razo. No entanto, a razo no mais um complexo de idias inatas dadas antes da experincia nas quais se manifesta a essncia absoluta das coisas. A razo no um contedo fixo, mas muito mais uma faculdade que s se pode compreender plenamente em seu exerccio e explicao.Em suma, os iluministas tm confiana na razo - e, nisso, so herdeiros de Descartes, Spinoza ou Leibniz -, mas, diversamente das concepes desses filsofos, a razo dos iluministas aquela do empirista Locke, que analisa as idias e as reduz todas experincia. Trata-se, portanto, de uma razo limitada: limitada experincia e fiscalizada pela experincia. A razo dos iluministas a razo que encontra o seu paradigma na fsica de Newton, que no aponta para as essncias, no se perguntando, por exemplo, qual a causa ou a essncia da gravidade, no formulando hipteses nem se perdendo em conjecturas sobre a natureza ltima das coisas, mas sim, partindo da experincia e em contnuo contato com a experincia, procura as leis do seu funcionamento e as submete prova. (REALE, 1990, p. 672).Portanto, a razo iluminista uma razo independente das verdades religiosas e das verdades inatas dos racionalistas. Assim, a noo de autonomia iluminista se refere a uma razo que se dobra a evidncias empricas e matemticas.O iluminismo proclama tanto para a natureza quanto para o conhecimento o princpio da imanncia. A natureza e o esprito so concebidos como plenamente acessveis, no como algo obscuro e misterioso.Para descobrir essa lei devemos abster-nos de projetar na natureza as nossas representaes e os nossos devaneios subjetivos; devemos, pelo contrrio, acompanhar o seu prprio curso e fix-lo pela observao, experimentao, medida e clculo. Mas os nossos elementos de mediao no devem basear-se somente em dados sensveis, devem decorrer igualmente a essas funes universais de comparao e de contagem, de associao e distino, que constituem a essncia do intelecto. Assim, autonomia da natureza corresponde a autonomia do entendimento. Num s e mesmo processo de emancipao intelectual, a filosofia iluminista procura mostrar a independncia da natureza ao mesmo tempo que a independncia do entendimento. (CASSIRER, 1997, p. 74-75).No discurso dos iluministas, natureza e razo aparecem em relao constante. Segundo Hazard (sd, p. 95), "a natureza era racional, a razo era natural, acordo perfeito". Dessa forma, para os iluministas, o conhecimento fsico tinha potncia quase ilimitada, inclusive como possibilitador de autonomia para o homem. Para eles, o homem no se reduz razo, mas tudo pode ser investigado por meio da razo: princpios do conhecimento, a tica, as instituies polticas, os sistemas filosficos, as crenas religiosas, sistemas educacionais. O homem autnomo para o iluminismo, diferentemente do que para Kant, esse homem imanente, que por meio de sua razo pode a tudo submeter investigao cientfica.

2.1.2 - Antropologia Iluminista

As antropologias do sculo XVIII tm em comum o objetivo de realizar o estudo positivo do homem. A pluralidade de dimenses epistemolgicas abre caminho fragmentao do saber em funo da especializao crescente das diversas disciplinas, tendo o homem como objeto comum. O iluminismo elevou a antropologia a fundamento de todos os saberes, deslocando a teologia que at ento realizava esse papel.A antropologia das "Luzes" expresso de uma crena profunda na inteligibilidade racional do domnio humano. Segundo Falcon (1986, p. 59), tendo como premissas gerais o primado da razo e o carter universal e eterno da natureza humana, os iluministas desenvolvem os temas da humanidade, da civilizao e do progresso. Tambm, os iluministas ligam sua concepo de autonomia a esses temas.A idia de humanidade representa para os iluministas a imanncia contra a transcendncia do homem, representa a afirmao do valor da realidade terrena em si mesma, a importncia das cincias do homem segundo princpios da cincia experimental. O homem transcendente para eles o homem heternomo, j o homem imanente, que possui verdades desse mundo fornecidas pelas cincias experimentais, o homem autnomo.O iluminismo, em geral, considera o homem apenas em sua existncia fsica. Segundo Holbach (1725-1789), o homem como tudo mais no universo um ser inteiramente fsico (cf. TAYLOR, 1997, p. 420). Para Helvtius (1715-1771) a dor e o prazer fsicos so os princpios ignorados de todas as aes humanas (cf. idem, p. 423), portanto no h distino de espcie alguma entre corpo e alma, e o homem visto como mnada, ou seja, apenas enquanto existncia fsica. Tanto a razo quanto uma viso moral no distorcida levariam o homem a lutar pela autopreservao e pela satisfao, a fim de aumentar a felicidade. Nesse contexto, a sensualidade adquire valor, e a vivncia dos desejos que emanam espontaneamente do homem representaria uma espcie de autonomia. O homem autnomo dos iluministas um homem sensualista, que busca satisfao na realizao dos seus desejos e na diminuio dos sofrimentos. Por isso, conforme Taylor (ibid, p. 415), a tica do iluminismo utilitarista, baseando o julgamento das aes em suas conseqncias.Nas concepes de homem e de civilizao iluminista, a pedagogia possui papel essencial, "S ela poderia propiciar a eliminao, no futuro, do abismo que separava os espritos bem-pensantes, moralmente bem-formados e socialmente bem-educados da plebe ignorante, supersticiosa, inclinada aos maus costumes e mal-educada" (FALCON, 1986, p. 62-63). No entanto, a pedagogia vista pelos iluministas como uma cincia to exata quanto a geometria, o que possibilitaria a ela produzir bons cidados, homens esclarecidos e autnomos.A noo de autonomia dos iluministas deriva de sua concepo antropolgica e pressupe a imanncia, a historicidade, o materialismo, a atividade do homem, que, por meio do poder quase irrestrito das cincias, suplanta os mitos, as supersties, medos, opresses, imoralidades e assim se constri rumo a um progresso certo em todos os campos de sua vida, garantido pela positividade, pela exatido das cincias. Ainda, um homem que encontra a autonomia na vivncia dos prprios desejos. Caberia educao formar esse homem "esclarecido", "autnomo".

2.1 - O ILUMINISMO E SUA NOO DE AUTONOMIA2.1.3 - O Iluminismo radical

O ideal da razo auto-responsvel como fonte de dignidade, herdado de Descartes, desempenhou um papel essencial na radicalizao do iluminismo. Sua realizao mais influente foi a postura de desprendimento radical, de suplantao da tradio, que para os iluministas era fonte de heteronomia. Essa postura contribui para a definio iluminista de filsofo como pensador autnomo. Vejamos como Diderot (1713-1784) apresenta no verbete sobre o ecletismo:Ecltico um filsofo que, calcando sob os ps o preconceito, a tradio, a respeitabilidade, a concordncia universal, a autoridade - numa palavra, tudo quanto intimida o povo -, ousa pensar por si mesmo, ascender aos mais claros princpios gerais, examin-los, discuti-los e no admitir nada exceto pelo testemunho de sua prpria razo e experincia. (DIDEROT apud TAYLOR, 1997, p. 418).O iluminismo trazia consigo o desejo de anular grilhes. Essa rejeio/libertao compreende a negao da religio e da metafsica e a afirmao da bondade e da importncia da natureza. Para o iluminismo, o pleno exerccio da razo auto-responsvel produz a maior clareza possvel sobre sua prpria natureza e seu significado (cf. TAYLOR, 1997, p. 451). O exerccio da razo desacorrentada leva ao desmascaramento do erro, liberta a dignidade da natureza e possibilita a autonomia. O resultado seria o progresso tanto do conhecimento quanto dos costumes. Para os iluministas o avano da racionalidade cientfica possibilitaria por si um "aumento" da autonomia. Mas segundo Foucault (1996, p. 107-108), a relao entre crescimento das capacidades cientficas e o crescimento da autonomia no so to simples quanto supunham os iluministas. Para ele, as tecnologias diversas transmitiam formas de relaes de poder com fins econmicos ou de regulao social, o que em vez de possibilitar a autonomia gerava uma nova forma de heteronomia.Os iluministas radicais aderiram ao materialismo e ao atesmo, no somente como resultado final da razo auto-responsvel, mas tambm como forma de serem fiis s exigncias de sua concepo de natureza (cf. TAYLOR, 1997, p. 420). Para Holbach, por exemplo, o homem um ser inteiramente fsico, e a dimenso moral sua existncia fsica considerada relativamente a algumas de suas formas de agir (cf. idem). Assim, o homem teria um impulso inerente de se autopreservar que corresponde ao amor por si, que uma tendncia a buscar a felicidade, o bem-estar, o prazer. O homem lutando por necessidade para preservar e aumentar sua felicidade para ele, a verdadeira base da vida moral e da autonomia.O utilitarismo de Bentham (1748-1832) e Helvtius reconhecia apenas um bem: o prazer (cf. ibid, p. 428). Queriam acabar com a distino entre bens morais e no-morais e tornar todos os desejos humanos dignos de considerao. Na sua teoria moral, dor e prazer so os critrios da ao correta, mas no da forma como afetam um indivduo e sim da forma como afetam a todos. Devemos procurar a maior felicidade para o maior nmero possvel de pessoas. Essas concepes aparecem como uma reivindicao de autonomia como auto-responsabilizao e busca do aumento da felicidade por meio do progresso racional. O ideal de auto-responsabilidade influenciou Kant embora ele no o conceba exatamente como os iluministas. J o utilitarismo para ele, no atende a reivindicao de autonomia e , portanto, heteronomia.Hume (1711-1776) tambm pode ser considerado um iluminista radical. Defendia que o mtodo do raciocnio experimental preconizado por Bacon (1561-1626) e Newton (1642-1747), o qual j havia construdo slida viso da natureza fsica, deveria ser aplicado tambm natureza humana, ou seja, no apenas aos objetos, mas tambm aos sujeitos. Ele reduz a origem das idias a impresses, a hbitos, o que contrapunha as idias de cincia e metafsica dos filsofos racionalistas. NosProlegmenos(KANT, 1959, p. 28), Kant afirma que foi Hume que o despertou do "sono dogmtico". Mas para Kant sua contribuio no vai muito alm disso, todo sistema filosfico kantiano vai ter como um dos objetivos contrapor-se ao empirismo ctico de Hume.Para Hume as paixes so algo original e prprio da natureza humana, independente da razo. A prpria vontade pode ser redutvel s paixes, ou ainda, redutvel a uma impresso que deriva do prazer e da dor. "Para ele, livre-arbtrio seria sinnimo de no-necessidade, vale dizer, causalidade, constituindo assim, um absurdo. Segundo Hume, aquilo que habitualmente se chama liberdade nada mais seria que a simples espontaneidade, ou seja, a no coao externa" (REALE, 1990, p. 572). Ao no considerar a determinao interna, Hume proclama a vitria do jogo das paixes, e assim, nega a razo prtica, nega que a razo possa guiar a vontade. Essa noo de autonomia de Hume como simples ausncia de coao externa para que as paixes possam ser vivenciadas, oposto ao defendido por Kant, e representa muito bem o que este filsofo designou como heteronomia.

CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT

2.2 - ROUSSEAU E A AUTONOMIA

O utilitarismo simplificava a vontade humana ao dedic-la apenas a felicidade, promovendo uma espcie de nivelamento. Bem e mal se tornaram uma questo de instruo, conhecimento e esclarecimento. A autonomia, para esses iluministas, era uma questo que se referia racionalidade cientfica e vivncia da prpria felicidade. Rousseau formulou uma nova concepo de autonomia, de um homem que no apenas corpo, mas tambm esprito, se distanciando, assim, dos iluministas.Rousseau comeou como amigo dos enciclopedistas, em especial de Diderot, e acabou como inimigo, por haver um ncleo de discordncia filosfica em seus pensamentos (cf. TAYLOR, 1997, p. 456). Para Rousseau o mal humano no poderia ser compensado pelo aumento do conhecimento ou do esclarecimento. Ele resgata a noo fundamentalmente agostiniana de que o homem pode ter "dois amores", ou seja, duas orientaes bsicas da vontade. O amor de si mesmo o sentimento naturalmente bom que nasce com o ser humano, o amor-prprio o sentimento de paixes "repulsivas" que surgem com a socializao. A socializao e o conseqente aumento do amor-prprio levam o homem alienao, pois passa a comparar-se com os demais e perde a busca de viver bem consigo mesmo19. Para Rousseau, ambas as orientaes de vontade, se permanecerem fechadas em si mesmas, sero vontades heternomas."Rousseau no pode aceitar a noo naturalista do Iluminismo de que o que precisamos para nos tornar melhores de mais razo, mais cultura, mais lumires" (idem, p. 459). O progresso no necessariamente nos torna melhores, nem autnomos, pelo contrrio, muito freqentemente acompanhado pela decadncia moral. Para ele, o progresso da razo calculista um dos indcios da corrupo. Essa oposio entre moralidade e progresso no deve ser interpretada no sentido primitivista. Rousseau no propunha a volta ao estgio pr-social20. A idia de recuperar o contato com a natureza uma forma de escape da dependncia calculista do outro, por meio da fuso entre razo e natureza. A conscincia a voz da natureza que se manifesta em um ser social que dispe de linguagem e razo.Ora, do sistema moral formado por essa dupla relao consigo mesmo e com suas relaes com seus semelhantes que nasce o impulso da conscincia. Conhecer o bem no am-lo: o homem no tem o conhecimento inato dele. Mas logo que sua razo o faz conhecer, sua conscincia o leva a am-lo: este sentimento que inato. (ROUSSEAU, 1995, p. 337-338).Libertadas todas distores devido dependncia do outro ou da opinio, a vontade geral representa as exigncias da natureza por meio da lei publicamente reconhecida.Para Rousseau, no somos individualmente autnomos, apenas o somos como membros de um tipo especial de sociedade. Segundo Schneewind (2001, p. 559), quando o contrato social cria uma nova idia de bem comum o pensamento ativa em cada indivduo um amor inato que permite controlar os desejos privados e agir como membros de um todo moral. Passamos a ser livres e autnomos porque podemos romper com a escravido dos nossos desejos e viver sob uma lei que proporcionamos a ns mesmos21. No estado natural o homem desfruta de uma liberdade natural que fsica e no vai alm de suas foras. No contrato social o homem renuncia a liberdade natural em favor da liberdade civil, que circunscrita pela vontade geral. No estado civil o homem adquire liberdade moral, j que ele passa a obedecer lei que ele instituiu a si prprio em vez de seguir o impulso (cf. ROUSSEAU, 1973, p. 43). O papel da educao seria de elevar a natureza do homem para alm da animalidade, numa esfera onde existem leis. Em outras palavras, tambm podemos dizer que o papel da educao tornar socivel a insociabilidade contida no amor de si mesmo e no amor-prprio. Assim, o filsofo est na origem de concepes morais que fazem da liberdade autodeterminante a chave para a virtude. Dentre elas, a de moralidade como autonomia desenvolvida por Kant. Mas a concepo de autonomia de Rousseau para Kant heternoma. Para este, a lei moral no pode ser definida por qualquer ordem externa, nem pelo impulso da natureza em mim. Para que haja autonomia, a moralidade no pode estar fora da vontade racional do homem.CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT

2.3 - KANT: HERANA E SUPERAO DA NOO DE AUTONOMIA ILUMINISTA

Kant com sua concepo de autonomia refuta, principalmente, o desmo, o utilitarismo, o naturalismo, o voluntarismo, portanto, nesse sentido, se ope tambm aos iluministas. Esses, no deixam espao para a dimenso moral e, dessa forma, para a liberdade, pois a liberdade precisa de uma dimenso moral. Para Kant, a moralidade no deve ser definida segundo qualquer resultado, mas sim segundo o motivo que a conformidade da ao com a lei moral.Isso liberdade, porque agir moralmente agir de acordo com o que realmente somos, agentes morais/racionais. A lei da moralidade, em outras palavras, no imposta de fora. ditada pela prpria natureza da razo. Ser um agente racional agir por razes. Por sua prpria natureza, as razes so de aplicao geral. Uma coisa no pode ser uma razo para mim agora sem ser uma razo para todos os agentes numa situao relevantemente semelhante. Assim, o agente de fato racional age com base em princpios, razes que so entendidas como gerais em sua aplicao. isso que Kant quer dizer por agir de acordo com a lei. (TAYLOR, 1997, p. 465).A lei moral no deve ser definida de acordo com resultados especficos. Dessa forma a deciso de agir moralmente a deciso de agir com o propsito de conformar a minha ao com a lei universal. Isso corresponde a agir segundo minha verdadeira natureza raciona, e agir de acordo com as exigncias de minha razo ser livre. Para Kant, a vontade dos seres racionais capaz de promulgar a legislao universal a que se submetem, e esse o princpio da autonomia. Seguir apenas os ditames do desejo cair na heteronomia. Kant discorda da noo do humanismo iluminista segundo a qual os desejos emanam de ns e a vivncia deles representaria uma espcie de autonomia. "A viso kantiana encontra sua segunda dimenso na idia de uma autonomia radical dos agentes racionais. A vida da mera satisfao dos desejos no apenas rasa, mas tambm heternoma. A vida plenamente significativa aquela escolhida pelo prprio sujeito" (idem, p. 491). Segundo Vincenti (1994, p. 8), existir como sujeito significa no precisar referir-se a outro ser ou existncia para definir, compreender ou justificar o que se , sujeito aquele que se sustenta ele mesmo na existncia, por isso a idia de sujeito est ligada autonomia. Para Kant, o que realmente "emana de mim" produzido pela razo, e ela exige que se viva de acordo com princpios. Essa perspectiva se rebela contra as que afirmam que a ao determinada pelo fato dado, pelos fatos da natureza, em favor da prpria atividade como formuladora da lei racional.A partir do pensamento de Kant podemos afirmar que tudo que h na natureza se conforma com suas leis, exceto o homem. Isso porque o homem, na condio de ser racional, conforma-se s leis universais que ele prprio formula. Por isso os seres racionais so autnomos e tm uma dignidade particular22, se destacam da natureza por serem livres e autodeterminantes. (cf. TAYLOR, 1997, p. 467). Esse status racional nos impe a obrigao de viver como agente racional. A natureza racional a nica coisa que existe como um fim em si mesma. Esse carter racional confere ao homem dignidade, todas as outras coisas tm um preo, mas o homem possui dignidade. O homem, como ser racional, possui valor absoluto e no pode jamais ser tratado como meio, o que podemos ver em uma das formulaes de Kant ao imperativo categrico: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio" (KANT, 1974a, 229). Por isso, na viso kantiana, a pretenso do naturalismo iluminista em submeter tambm o homem s leis da natureza nada mais que heteronomia."O sentido da revoluo copernicana23consiste em ter ele acabado com o predomnio absoluto do pensamento fsico e da filosofia naturalista [...]". (MESSER, 1946, p. 342). A libertao do naturalismo iluminista que impunha uma necessidade natural onipotente e no deixava lugar genuno para a liberdade, consiste na descoberta de que o objeto considerado pela fsica, a natureza, no a realidade absoluta. Assim, a natureza no mais considerada coisa em si, mas sim o sistema regular daquilo que o eu se representa. O eu se torna o Sol em torno do qual os objetos giram. Ainda segundo Messer (idem, p. 343), Kant no teria realizado tal revoluo se seu pensamento no se achasse to profundamente enraizado na sua conscincia moral, se no tivesse levado em conta a vontade que se determina a si prpria e a lei que a vontade impe a si prpria, ou seja, se no estivesse enraizado em sua concepo de autonomia moral.O conhecimento das cincias deve ser estimulado dentro de seus limites, no pode ser a ltima instncia para a nossa concepo de mundo e da vida. Kant est certo de que o imperativo categrico da conscincia regulativo e que a vontade tem que ser independente das leis da natureza. Ainda, com isso Kant pensa o homem como cidado de dois mundos, o mundo sensvel do conhecimento natural e o mundo supra-sensvel da liberdade; assunto que retomaremos em seguida e central para entendermos a concepo de autonomia desse autor."Kant segue Rousseau em sua condenao do utilitarismo. O controle instrumental-racional do mundo a servio de nossos desejos e necessidades s pode degenerar num egosmo organizado [...]" (TAYLOR, 1997, p. 466). Kant parte das fontes morais da internalizao ou subjetivao, inauguradas por Rousseau, mas fornece uma nova base. Para ambos, a lei moral vem de dentro e no pode ser definida por qualquer ordem externa. No entanto, para Kant, ela no pode ser definida pelo impulso da natureza "em mim", mas apenas pela razo prtica que exige uma ao de acordo com princpios gerais. Qualquer concepo moral que derive seus propsitos normativos de uma ordem csmica ou de uma ordem dos fins da natureza humana acarreta a abdicao da responsabilidade de gerar a lei por ns mesmos e cai na heteronomia. Assim, a exaltao da natureza como fonte , para Kant, to heternoma quanto o utilitarismo.A concepo de autonomia de Kant tambm se alia aos antivoluntaristas. Ele reprovava fortemente o pensamento de dependncia de um ser racional s ordens e aos desejos de outro, mesmo que este seja Deus, considerando essa concepo, de certa maneira, oposta nossa ao livre essencial. "A moralidade da autonomia kantiana decisivamente oposta ao voluntarismo, porque a racionalidade da lei moral que guia Deus e ns to evidente para ns quanto para ele" (SCHNEEWIND, 2001, p. 556).Kant no condena a razo instrumental voltada para o controle racional. Considera que o desenvolvimento da razo instrumental, necessrio para o homem superar obstculos da natureza e sobreviver, pode lev-lo racionalidade em sentido mais amplo (cf. TAYLOR, 1997, p. 468). Ele manteve-se um homem do Iluminismo, herda da filosofia de sua poca a problemtica da maioridade e autonomia, mas se ops em aspectos essenciais. Preservou a centralidade da razo, mas a pensou em sentido mais amplo que a razo instrumental. A diferena fundamental que a questo crucial quanto autonomia para Kant o crescimento em racionalidade, moralidade e liberdade, no em felicidade.O erro do naturalismo iluminista ter interpretado mal o esprito com o qual a vida deve ser vivida, o fim bsico que deve presidir tudo. No a felicidade, mas a racionalidade, a moralidade e a liberdade. O homem pode, de fato, atingir um alto grau de civilizao sem se tornar realmente moral. (idem).Enfim, Kant manteve a leitura emprica e matemtica da natureza que os iluministas haviam recebido de Galileu e Descartes, no entanto a restringiu natureza, no a aplicando ao homem, como haviam feito os iluministas. Quanto ao homem, Kant o pensou como dotado de alma espiritual com o poder de pensar o universal, vinculando a isso, sua liberdade e dignidade, sua autonomia.CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT

2.4 - KANT: RAZO PRTICA E AUTONOMIA

NaCrtica da Razo Pura, Kant demonstrou a possibilidade das cincias matemticas e naturais e acabou chegando negao de uma metafsica que se apia na mesma objetividade e universalidade dessas cincias. A razo terica ficaria limitada ao mbito da experincia. S podemos conhecer os fenmenos que nos so acessveis pelos sentidos; liberdade, imortalidade da alma e Deus, temas da metafsica, no so objetos de conhecimento. Rousseau j havia condenado a pretenso da filosofia iluminista de buscar o bem no acrscimo de conhecimento. O progresso humano no campo especulativo no significa o progresso moral do homem. A partir da impossibilidade da metafsica enquanto conhecimento, Kant precisa construir uma crtica para conhecer as possibilidades que a razo dispe para elaborar uma metafsica.NaCrtica da Razo Prtica, Kant demonstra que a razo pura prtica por si mesma, ou seja, ela d a lei que alicera a moralidade, a razo fornece as leis prticas que guiam a vontade. Leis prticas so princpios prticos objetivos, regras vlidas para todo ser racional. Elas se diferenciam das mximas que so princpios prticos subjetivos, regras que o sujeito considera como vlidas apenas para sua prpria vontade. "Admitindo-se que a razo pura possa encerrar em si um fundamento prtico, suficiente para a determinao da vontade, ento h leis prticas, mas se no se admite o mesmo, ento todos os princpios prticos sero meras mximas" (KANT, sd, p. 31).Para Kant, se os desejos, os impulsos, impresses, ou qualquer objeto da faculdade de desejar forem condies para o princpio da regra prtica, ento o princpio ser emprico, no ser lei prtica, no haver unidade nem incondicionalidade do agir, e assim, no garantir a autonomia. A lei moral deve independer da experincia. Uma vontade boa determina-se a si mesma, independentemente de qualquer causalidade emprica, sem preocupar-se com prazer ou dor que a ao possa provocar. Uma moral que se determina por causas empricas cai no egosmo. "Todos os princpios prticos materiais so, como tais, sem exceo, de uma mesma classe, pertencendo ao princpio universal do amor a si mesmo, ou seja, felicidade prpria" (idem, p. 33). Para Kant a busca da felicidade prpria concerne faculdade inferior de desejar, ela se relaciona s inclinaes da sensibilidade e no razo. O princpio do amor por si ou da felicidade jamais poderiam servir de fundamento para uma lei prtica, tendo em vista sua validade que apenas subjetiva. Cada um coloca o bem estar e a felicidade em uma coisa ou outra, de acordo com sua prpria opinio a respeito do prazer ou da dor. Se formulssemos uma lei subjetivamente necessria como lei natural, seu princpio prtico seria contingente e no garantiria a autonomia.Somente a razo, determinando por si mesma a vontade, uma verdadeira faculdade superior de desejar. "Um ser racional no deve conceber as suas mximas como leis prticas universais, podendo apenas conceb-las como princpios que determinam o fundamento da vontade, no segundo a matria, mas sim pela forma" (ibid, p.37). Um ser racional no pode conceber seus princpios subjetivos prticos, suas mximas, como leis universais. A vontade para ser moral no deve determinar-se pelo objeto, dever abstrair a matria da lei para reter-lhe apenas a forma, a universalidade.Em suma: ou um ser racional no pode conceber os seus princpios subjetivamente prticos, isto , as suas mximas como sendo ao mesmo tempo leis universais ou, de forma inversa, deve admitir que a simples forma dos mesmos, segundo a qual se capacitam eles para uma legislao universal, reveste esta de caracterstico conveniente e apropriado. (ibid).Para o filsofo de Knigsberg, a vontade s pode ser determinada pela simples forma legislativa das mximas. A mera forma da lei s pode ser representada pela razo e no pelas leis naturais que regem os fenmenos. A vontade deve ser independente da lei natural dos fenmenos, e essa independncia se denomina liberdade. Ento, a vontade que tem como lei a mera forma legisladora das mximas uma vontade livre. "A razo pura por si mesma prtica, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral" (ibid, p. 41). A fora da lei moral est em sua absoluta necessidade e em sua universalidade. Ora, a universalidade da lei moral, para Kant, significa que ela tem de valer no s para os homens, mas para todos os seres racionais em geral (cf. KANT, 1974a, p. 214). Em Kant, universalidade significa racionalidade, se o dever ordena universalmente porque racional. J a absoluta necessidade denota uma necessidade que no seja condicionada a nenhum outro fim, mas que seja necessria por si mesma. Por isso a lei moral deve ser um mandamento, um imperativo, que seja categrico e no hipottico. Em virtude de ser incondicional e universal, o imperativo categrico possui apenas contedo formal, sendo, portanto, uma frmula. A lei moral deve ser assim formulada, em termos de imperativo categrico24: "Age de tal forma que a mxima de tua vontade possa valer-te sempre como princpio de uma legislao universal" (KANT, sd, p. 40). Segundo Kant, ns temos conscincia imediata dessa lei, ela se impe como um fato, um fato da razo. Mas no um fato emprico, o nico fato da razo pura que se manifesta como originariamente legisladora, impe-se a ns de forma apriori.Todavia, no homem, a lei possui [...] a forma de um imperativo, porque, na qualidade de ser racional, pode-se supor nele uma vontade pura; mas, por outro lado, sendo afetado por necessidades e por causas motoras sensveis, no se pode supor nele uma vontade santa, isto , tal que no lhe fosse possvel esboar qualquer mxima em contraposio lei moral. Para aqueles seres a lei moral, portanto, um imperativo que manda categoricamente, porque a lei incondicionada. (idem, p. 42).A lei moral para ns um dever. a conscincia do dever que nos mostra que a razo legisladora em matria moral, que a razo prtica em si mesma e que o homem livre. A partir disso, Kant naCrtica da razo prticaformula o seguinte teorema: "A autonomia da vontade o nico princpio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes s mesmas" (ibid, p.43). O princpio da moralidade a independncia da vontade em relao a todo objeto desejado, ou seja, de toda matria da lei e, ao mesmo tempo, a possibilidade da mesma vontade determinar-se pela simples forma da lei. Assim, a liberdade possui o aspecto negativo e o positivo, os quais convergem na idia de autonomia. A lei moral apenas exprime a autonomia da razo pura prtica, ou seja, a liberdade.Fica demonstrada assim a possibilidade e a centralidade da razo prtica e da autonomia na teoria kantiana:Revela esta analtica que a razo pura pode ser prtica, isto , pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de todo elemento emprico; - e demonstra-o na verdade mediante um fato, no qual a razo pura se manifesta em ns como realmente prtica, ou seja, a autonomia, no princpio da moralidade, por meio do que determina a mesma a vontade do ato. - Por sua vez, a Analtica mostra que este fato est inseparavelmente ligado conscincia da liberdade da vontade, identificando-se, alm disso, com ela. (ibid, p. 49).A lei moral implica que a vontade possa ser livre na medida em que se determina por um motivo puramente racional. Mas o homem est sujeito s leis da causalidade enquanto pertencente ao mundo sensvel, e por outro lado tem conscincia que livre enquanto participante da ordem inteligvel.Pelo dever, o homem sabe, pois, que no somente o que aparenta a si mesmo, isto , uma parte do mundo sensvel, um fragmento do determinismo universal, mas tambm uma coisa em si, a fonte de suas prprias determinaes. A razo prtica justifica assim o que a razo terica tinha concebido como possvel no terceiro conflito da antinomia: a conciliao da liberdade que possumos como nomenos, com a necessidade de nossas aes como objetos da experincia no fenmeno25. (BRHIER, sd, p.205).Dessa forma, Kant confere ao homem dois mundos, o mundo da causalidade, no qual no possvel prever grau de liberdade para um fenmeno fsico e, o mundo da liberdade26, que o mbito da razo prtica no qual possvel autonomia. O homem considerado como fenmeno, sujeito necessidade natural, e comocoisa em si27, ou livre. A liberdade s possvel porque acoisa em sino est determinada e, portanto, no cognoscvel. A razo terica no atinge o "ser noumnico", j a razo prtica se refere ao "ser noumnico". Assim, os conhecimentos devem limitar-se sntese entre a sensibilidade e categorias do entendimento, ou seja, aos fenmenos. J no domnio prtico, "a razo se aplica a motivos determinantes da vontade, enquanto faculdade de produzir objetos correspondentes, podendo determinar-se a si mesma, engendrando sua prpria causalidade, na sua atuao em relao a si mesma" (MARTINI, 1993, p. 114). Assim, como participantes do mundo noumnico, somos livres, e como participante do mundo fenomnico, somos determinados. No entanto, segundo Brhier (sd, p. 199), o determinismo uma lei do nosso conhecimento, no uma lei do ser, se aplica realidade tal como a conhecemos, e no tal como ela .A distino kantiana entre dois mundos abre um espao legtimo para o livre-arbtrio, j que o mundo noumnico no determinado pelas leis da causalidade que determinam o mundo fenomnico. Se o livre-arbtrio no deixar fundamentar-se pelo dever, que dado na razo prtica, ou fundamentar-se em algo que contrrio a esse dever, a ao ser heternoma. Em resumo, ao autnoma aquela que se guia pela prpria lei, que lei da razo prtica, e ao heternoma aquela que se guia por algo que externo ou contrrio lei da razo prtica.Quando a vontade busca a lei, que deve determin-la, em qualquer outro ponto que no seja a aptido das suas mximas para a sua prpria legislao universal, quando, portanto, passando alm de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos objetos, o resultado ento sempre heteronomia. (KANT, 1974a, p. 239).Para Kant, a liberdade prtica , ento, a independncia da vontade em relao a toda lei que no seja a lei moral. O homem no determinado pela natureza, e, pelo livre-arbtrio, pode escolher agir por dever, e nisso consiste sua autonomia. Ainda, a distino kantiana entre o carter inteligvel e o sensvel, alm de negar o determinismo do homem pela natureza, nega o determinismo teolgico. O homem assume a reinvidicao de responsabilidade total.No entanto, penso que a concepo de autonomia de Kant mantm a questo esttica subjugada ao dever, seu formalismo restringe demasiadamente o sentido emprico, existencial da autonomia. Dessa forma, podemos dizer que Kant tambm promove um reducionismo28da autonomia, no entanto, no sentido inverso ao que os iluministas haviam feito. E, importante destacarmos que a dimenso esttica deve estar bem presente numa educao ou pensamento que vise formar para a autonomia, por ser de carter diretamente individuante, instncia que necessariamente integra o ser autnomo do homem.NaCrtica da razo purae naCrtica da razo prtica, Kant enfatiza a distino entre razo terica e razo prtica, naCrtica da faculdade do juzoele aponta a faculdade de julgar como possibilitadora da passagem de um domnio para outro, prope a tarefa de tentar uma mediao entre os dois mundos. Assim o entendimento a fonte dos conhecimentos, a razo o princpio de nossas aes e o juzo tem a funo de pensar o mundo sensvel em referncia ao mundo inteligvel (cf. PASCAL, 1999, p. 177). na faculdade do juzo29que Kant encontra o intermedirio procurado. Dessa forma, Kant procura na terceira crtica resgatar a dimenso esttica da autonomia que fica subjugada ao formalismo da lei moral na segunda crtica. No entanto, mesmo na terceira crtica, a idia de felicidade permanece submetida idia de dever e universalidade, e, portanto, em Kant, a dimenso esttica da autonomia no devidamente acionada. Segundo Suzuki (1989, p. 12), Schiller vai procurar acabar a tarefa iniciada por Kant naCrtica da faculdade do juzo, conseguindo dar maior nfase dimenso esttica da autonomia.CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT

2.5 - A PEDAGOGIA KANTIANA E A AUTONOMIA

Na obraSobre a Pedagogia, Kant (1996b, p. 30) fala sobre a importncia de a ao educativa seguir a experincia. A educao no deve ser puramente mecnica e nem se fundar no raciocnio puro, mas deve apoiar-se em princpios e guiar-se pela experincia (cf. idem, p. 29). A partir da pedagogia kantiana, podemos dizer que uma educao que vise formar sujeitos autnomos deve unir lies da experincia e os projetos da razo. Isso porque no caso de basear-se apenas no raciocnio puro, estar alheia realidade e no contribuir para a superao das condies de heteronomia e, no caso de guiar-se apenas pela experincia, no haver autonomia, pois para Kant a autonomia se d justamente quando o homem segue a lei universal que sua prpria razo proporciona.Mas essa imprescindibilidade da experincia como caminho para a educao possui segundo Philonenko (1966, p. 25-26) uma razo metafsica, a liberdade humana. Na condio de livre, o homem no pode ser objeto de cincia, de conhecimento, como pretendiam os iluministas. Apenas os fenmenos possuem uma essncia determinada pelas leis da natureza. As coisas podem ser conhecidas porque possuem uma essncia que o entendimento pode perceber a priori. No entanto, dizer que um ser livre dizer que ele no tem essncia que determine a sua existncia, ou ainda, no ter essncia determinada o que faz do homem livre. Por isso, no possuir a existncia de antemo determinada um fator sem o qual no se pode falar em autonomia.A tarefa central da educao orientar um ser que no pode ser conhecido por no ter essncia determinada, e que, por isso, pode tomar diferentes direes, o homem livre e por isso ele pode ser educado. Mas, a liberdade est inclinada para o bem ou para o mal? Kant no fala em uma natureza humana exatamente m, mas o homem no nasce isento de vcios. No entanto, ao mesmo tempo em que nasce com disposio para seguir impulsos, vcios, o homem nasce com a lei moral dentro de si. EmSobre a Pedagogiaafirma: "A nica causa do mal consiste em no submeter a natureza a normas. No homem no h germes seno para o bem" (KANT, 1996b, p. 24). Com isso quis dizer que no pode se afirmar no homem uma vontade, uma razo praticamente legisladora que desejasse o mal. Ento, considerando seu carter inteligvel, a humanidade integralmente boa. Cabe ao homem optar por guiar-se pela sua razo ou no. Mas ele ser autnomo na condio de guiar-se pela razo, por isso a educao deve objetivar a racionalidade, isso porque o ser racional pode promulgar para si a lei universal e assim, ser autnomo. J que o homem no nasce determinado para o bem ou para o mal, Kant prope uma educao como aprendizagem do exerccio das regras no plano terico e prtico.Como Kant pensa o homem enquanto participante do mundo sensvel e do inteligvel, prope que a educao deve disciplinar para impedir que a selvageria, a animalidade, prejudique o carter humano (cf. idem, p. 26). Se nada se ope na infncia e na juventude, o indivduo conservar uma selvageria a vida toda. Por isso a educao deve ter uma parte negativa que Kant chama de disciplina. A disciplina educa para a obedincia. No entanto, a obedincia possui dois aspectos: o primeiro deve ser obedincia absoluta das determinaes de um governante, e o segundo a obedincia vontade que o prprio sujeito reconhece como racional e boa (cf. ibid, p. 82). A criana sendo habituada a trabalhar por constrangimento na escola est submissa a uma obedincia passiva, o que no incio da educao bom, para que ela discipline sua vontade. Aos poucos a disciplina se interioriza e a criana passa a obedecer a si mesma, quando descobre a liberdade. Torna-se ento uma obedincia voluntria, no fundada na autoridade do outro, mas na obedincia razo30, a si mesmo, descobrindo assim a autonomia. Dessa forma a educao moral kantiana conjuga disciplina e liberdade. Por isso para Kant a disciplina no oposta autonomia, ao contrrio, a disciplina necessria para que o homem aprenda a guiar sua vontade pela razo e assim possa ser autnomo. A viso antropolgica kantiana dualista segundo a qual o homem , ao mesmo tempo, um ser animal (irracional) e racional auxilia o entendimento do papel da disciplina que converter a animalidade em humanidade. A disciplina, que negativa, coage os impulsos animais para que o homem se guie pela razo e assim, possa ser autnomo.Para Kant, a disciplina extremamente necessria para que a vontade no seja corrompida pelas inclinaes sensveis. No entanto, a disciplina no pode tratar as crianas como escravos, elas precisam sentir sua liberdade, mas de modo que no ofendam os demais (cf. ibid, p. 53). O respeito dignidade da criana sempre deve estar presente para que no se promova um simples adestramento. A vontade da criana no pode ser quebrada, o que acarretaria um modo de pensar escravo e, portanto, heternomo. Mas a vontade deve ser disciplinada para que possa se guiar pela razo e assim haja autonomia. Em outras palavras, educao para a autonomia em Kant no se funda na disciplina, embora ela seja necessria para "domar as paixes" e "abrir espao para a razo".Quanto ao desenvolvimento, Kant distingue trs perodos da educao: a educao do corpo ou fsica, a educao intelectual e a educao moral (cf. PHILONENKO, 1996, p. 43). A educao do corpo se refere aos cuidados materiais dispensados por quem cuida da criana. Os dois aspectos principais que devem ser observados quanto educao do corpo a fim de gestar nas crianas a autonomia, so: educ-las para que no sejam escravas das prprias inclinaes e assim possam seguir a prpria razo, e proporcionar uma educao ativa para que as prprias crianas por meio de suas atividades possam ir se desenvolvendo e desenvolvendo seus conhecimentos e habilidades.A partir da pedagogia de Kant, somos levados a pensar uma educao intelectual que busca desenvolver as diferentes potencialidades humanas, no apenas, por exemplo, a memorizao. Segundo Philonenko (1966, p. 55), Kant resgata o verdadeiro sentido de educao intelectual, ela deve ser antes de tudo um exerccio da inteligncia. A educao deve ter uma finalidade interna, e o exerccio de uma faculdade contribui para o aperfeioamento das demais. Est aqui contida uma crtica ao ensino tradicional, j que este sacrifica o entendimento, o juzo e a razo mesmo em funo de privilegiar a memorizao. "O entendimento conhecimento do geral. O juzo a aplicao do geral ao particular. A razo a faculdade de distinguir a ligao entre o geral e o particular" (KANT, 1996b, p. 67). Ele considera o cultivo da memria necessrio, j que o entendimento no acontece seno aps impresses sensveis, e cabe memria guard-las (cf. idem, p. 68). No entanto, uma cultura fundada exclusivamente na memria superficial, pois forma pessoas que no podem produzir por si mesmo algo razovel, constituindo-se como Kant fala, metaforicamente, "burros de carga do Parnaso" (ibid, p. 67), e deformada porque aniquila o julgamento. Penso que a memorizao dissociada das outras capacidades forma um indivduo sem capacidade de pensar por conta prpria, sem autonomia intelectual.O perigo que subjaz numa educao que prime pela memria que esta leve o homem a servilidade. Uma pessoa servil no capaz de dar as prprias regras, se restringe a imitar ou obedecer aos demais, caracterizando uma situao de heteronomia. Kant contrape o verbalismo da memorizao sistemtica em favor do realismo pedaggico. "A memria deve ser ocupada apenas com conhecimentos que precisam ser conservados e que tm pertinncia com a vida real" (ibid, p. 69). Kant na obraSobre a Pedagogia(ibid, p. 88-89) afirma que a criana no deve se tornar um imitador cego, sob a pena de que jamais seja um homem ilustrado e de mente serena. "Entretanto, no suficiente treinar as crianas; urge que aprendam a pensar" (ibid, p. 28).Para Kant "O homem pode ser, ou treinado, disciplinado, instrudo mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado" (ibid, p. 27). Os animais so treinados e o homem tambm pode ser, mas para este, o treinamento insuficiente. O treinamento no um fim e por isso no pode ser usado como conceito sinttico que mediatiza natureza e cultura, animalidade e humanidade, disciplina e liberdade. Como a educao consiste em exercer uma espcie de imposio de limites sobre o estado da natureza a fim de que a liberdade possa se expandir abrindo espao para a cultura, Kant busca um conceito sinttico que concilie essa passagem e os dois conceitos de liberdade subsumidos nela, liberdade como espontaneidade e liberdade como autonomia. Indica esse conceito sinttico no conceito de trabalho. " de suma importncia que as crianas aprendam a trabalhar. O homem o nico animal obrigado a trabalhar. Para que possa ter seu sustento, muitas coisas deve fazer necessariamente para tal" (ibid, p. 65). O trabalho traz consigo a necessidade, a submisso ao outro, o peso do mundo, mas ao mesmo tempo o trabalho liberdade, pois nele o homem se descobre obra de si mesmo. Assim, liberdade e obedincia so unidas sinteticamente na noo de trabalho, mediante a passagem da natureza cultura.Concluindo, podemos ver que as Reflexes sobre a Educao de Kant encontram na idia de trabalho, na sua acepo mais ampla, uma forma de integrar experincia de cada gerao humana ao operar o mundo com a questo metafsica da liberdade que permite a ligao dessas experincias a um ideal de humanidade esclarecida e emancipada. (MARTINI, 1993, p. 113).Kant nos inspira a pensar uma educao para a autonomia que busca desenvolver as capacidades dos educandos para que tenham condies de perseguir as metas as quais se prope livremente. Os conhecimentos aprendidos na escola so importantes por instrumentalizarem os sujeitos a realizar seus projetos aos quais se prope racional e livremente. Ou seja, o conhecimento, a razo terica, pode alargar as condies para que o homem seja autnomo. Conforme o pensamento de Kant, o conhecimento pode possibilitar autonomia, idia com a qual concordo, no entanto, penso que a razo terica no to inocente, to neutra, quanto ele a pensava, o conhecimento no est imune ao das ideologias, e isso deve ser levado em conta ao se pretender educar para a autonomia.No pensamento educacional kantiano, com a educao moral chegamos ao termo do desenvolvimento dos outros momentos da educao. A cultura moral deve fundar-se sobre mximas e no sobre a disciplina (cf. KANT, 1996b, p. 80). A disciplina no se justifica por si mesma, ela necessria na medida em que prepara a insero no universo da razo. O primeiro esforo da cultura moral lanar fundamentos para a formao do carter. "Carter consiste no hbito de agir segundo certas mximas" (idem, p. 81). Para Kant, a formao do carter possui trs traos essenciais: a obedincia, a verdade e a sociabilidade. A obedincia possui um duplo aspecto, ela pode ser obedincia absoluta ou obedincia reconhecida como boa e razovel (cf. ibid, p. 82). A primeira procede da autoridade e importante para que a criana aprenda o respeito s leis que dever seguir como cidado. Mas a mais importante o segundo tipo de obedincia que voluntria. Como j vimos, a obedincia deve interiorizar-se para ser obedincia a si mesmo, o que possibilitaria pensar por si mesmo, como ser racional e ser autnomo. O segundo trao que se deve ter em vista na formao da criana a veracidade. "Este o trao principal do carter. Uma pessoa que mente no tem carter e, se h nela algo de bom, deriva-se do temperamento" (ibid, p. 86). Verdade sempre pensar de acordo consigo prprio, e mentir entrar em desacordo consigo mesmo. Esse desacordo promove o rebaixamento da dignidade humana. Portanto em Kant, a idia de verdade est ligada idia de dignidade, e esta idia de autonomia. O terceiro trao da formao do carter a sociabilidade (cf. ibid, p. 87). Ela envolve a disposio de sempre entender e se colocar na posio do outro. bom lembrarmos que autonomia no auto-suficincia.A consolidao do carter consiste na resoluo firme de pensar algo e realmente coloc-lo em prtica (cf. ibid, p. 93). A melhor maneira de solidificar o carter moral atravs de deveres a cumprir. Estes podem ser deveres para consigo, se referem manuteno da dignidade humana em sua prpria pessoa, ou para os demais, se referem ao direito da humanidade. A educao deve fazer a criana perceber a dignidade que h na prpria pessoa e em toda humanidade (cf. ibid, p. 96). Ou seja, a consolidao do carter depende que a criana esteja impregnada no pelo sentimento, mas pela idia de dever. J vimos que o homem no bom nem mau por natureza, porque ele no moral por natureza. "Torna-se moral apenas quando eleva a sua razo at os conceitos de dever e da lei" (ibid, p. 102). Tambm vimos que as inclinaes e os instintos o impulsionam para os vcios, enquanto sua razo o impulsiona para a moralidade. A maior parte dos vcios provm do estado natural de barbrie animal, por isso nossa destinao sair desse estado, que de heteronomia. "[...] h uma lei do dever e esta no deve ser determinada pelo prazer, pelo til ou semelhante, mas por algo universal que no se guia conforme os caprichos humanos" (ibid, p. 105). Esse algo universal o imperativo categrico, lei universal que cada um d a si pela sua racionalidade e que o princpio da autonomia.A educao uma das formas de realizao da filosofia prtica de Kant, por meio da formao da criana, contribui para que na fase adulta possa agir de acordo com a lei moral e assim, possa ser autnomo. O homem deve ser formado para poder ser livre. A subordinao da educao moralidade, promovida por Kant, a insere no ncleo de sua filosofia prtica.Em Kant, a realizao do bem e da liberdade no dependem do mundo sensvel, elas so construes do homem. "O que o homem ou deve vir a ser moralmente, bom ou mau, deve faz-lo ou s-lo feito por si mesmo. Ambos devem ser um efeito de seu livre arbtrio" (KANT, 1974b, p. 384). Como no homem as disposies naturais no se desenvolvem por si mesmas, o homem precisa fazer-se, precisa educar e ser educado. a conseqncia da liberdade humana, a radical auto-responsabilizao que incute no homem a necessidade de fazer a si mesmo. E para Kant, na medida em que o homem se constri a si mesmo, guiado pela sua razo universal, que ele pode ser autnomo. "Da a importncia da educao: o homem resultado desse processo; uma construo. O progresso da sociedade vai depender do homem, especialmente no que se refere a sua ao reguladora" (PRESTES, 1993, p. 67). O intuito de toda educao no pensamento kantiano, tanto a fsica quanto a prtica, vai propondo o acompanhamento da criana para que ela possa tornar-se capaz de se guiar pela razo, o que a torna capaz de ser livre, a torna autnoma. Nesse sentido, refuta o espontanesmo, a criana precisa ser acompanhada, orientada, disciplinada, incentivada a agir por conta prpria, para que deixe de se guiar pela sua natureza, seus impulsos, e se guie pela razo e assim se construa como homem. Para tal, a ao imprescindvel, a criana deve correr, jogar, saltar, etc, exercitar seus sentidos para que suas potencialidades sejam desenvolvidas. "Aprende-se mais solidamente e se grava de modo mais estvel o que se aprende por si mesmo" (KANT, 1996b, p. 75). A educao tambm deve ser essencialmente raciocinada para que a criana possa aprender a servir-se do prprio entendimento e dar a prpria lei em vez de copiar mecanicamente regras, modelos, conhecimentos prontos. Na passividade ningum autnomo e no se torna o prprio construtor, para tal preciso ao racionalmente dirigida.A proposta kantiana que o homem aprenda a pensar por si mesmo. "Pensar por si mesmo significa procurar em si mesmo a suprema pedra de toque da verdade (isto , em sua prpria razo); e a mxima que manda pensar sempre por si mesmo o esclarecimento [Aufklrung]" (KANT, 2005b, p. 61). Isso no significa apenas ter muitos conhecimentos, pois, muitas vezes, pessoas com riqueza de conhecimentos mostram-se menos esclarecidas que outras desprovidas de tais. Servir-se da prpria razo perguntarmos em tudo que devemos admitir, se a nossa regra ou mxima pode se estabelecer como princpio universal (cf. idem). Qualquer indivduo pode realizar esse exame, e ele a garantia da libertao de supersties e devaneios. Por isso educao cabe habituar as crianas e jovens desde cedo a essa reflexo. Esse um trabalho penoso e demorado, pois h muitos obstculos que dificultam a realizao dessa educao. No entanto, em Kant, esse exame para ver se a prpria mxima pode ser um princpio universal que garante a autonomia. Fica claro a partir do pensamento kantiano, que pensar por si mesmo no se d apenas pelo conhecer, antes de tudo, implica na realizao da sua filosofia prtica que busca a moralizao da ao humana atravs de um processo racional. Ainda, segundo Caygill (2000, p. 184), Kant acreditava que a liberdade para pensar criava a capacidade para agir livremente, embora o contrrio no fosse necessariamente verdadeiro. Por isso a autonomia se d quando se pensa por si prprio.Segundo Kant (2005b, p. 59), a liberdade de pensar se ope coao civil que estabelece a submisso do sujeito a leis externas no reconhecidas como racionais e boas, o que consiste em heteronomia. A coao civil quando retira do homem a liberdade de falar, de escrever, tambm retira a liberdade de pensar, pois ns pensamos em conjunto com as outras pessoas na medida em que nos comunicamos. Portanto, a supresso da liberdade de comunicar tambm supresso da liberdade de pensar. Isso tambm pode acontecer quando algum no tem acesso educao formal e de qualidade. No ter acesso escola, normalmente faz com que o sujeito seja impossibilitado de manifestar-se ou no sinta necessidade de faz-lo. Isso suprime a autonomia de pensamento e a autonomia da palavra. Aqui se percebe a importncia de condies que possibilitem a concretizao da autonomia, dentre elas, a educao de qualidade.Para Kant, a liberdade de pensar tambm se ope coao conscincia moral (cf. idem), o que promovido normalmente pela f cega e irracional. Liberdade de pensamento implica que a razo no se submeta a qualquer outra lei seno aquela que d a si prpria (cf. ibid). Sem nenhuma lei nada pode exercer-se por muito tempo, portanto, se a razo no quer se submeter lei que ela d a si prpria, tem que se curvar ao jugo das leis que um outro lhe d e, nesse caso, a liberdade de pensar fica perdida. Se a liberdade de pensamento proceder de modo independente da razo, destri-se a si mesma, cai em heteronomia.No sistema filosfico kantiano h a primazia da razo prtica sobre a razo pura, tendo em vista que a conscincia moral vai permitir atingir verdades metafsicas, o mundo prprio do homem, que dotado de razo e liberdade (cf. PRESTES, 1993, p. 68). Por isso, a grande tarefa da educao para a autonomia a partir do pensamento de Kant educar o homem para uma vida racional.CAPTULO III - A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE OPE

Paulo Freire no livroPedagogia da autonomiaafirma que o educador que trabalha com crianas deve "estar atento difcil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia" (FREIRE, 2000a, p. 78). Este um dos grandes temas que atravessam o pensamento de Freire. Ele no diz textualmente o que entende por autonomia e heteronomia, mas a partir de seu pensamento scio-poltico-pedaggico podemos afirmar que autonomia a condio scio-histrica de um povo ou pessoa que tenha se libertado, se emancipado, das opresses que restringem ou anulam a liberdade de determinao. A autonomia tem a ver com o que Freire (1983, p. 108) chama de "ser para si" e no contexto histrico subdesenvolvido dos oprimidos para quem e com quem Freire escreve, autonomia est relacionada com a libertao. J heteronomia a condio de um indivduo ou grupo social que se encontra em situao de opresso, de alienao31, situao em que se "ser para outro" (idem, p. 38). Segundo o que defendemos a partir de Freire, as opresses, em geral, vo configurar uma situao de heteronomia, e uma educao voltada para a libertao pode conduzir as pessoas a serem autnomas. Tambm destacamos que os escritos de Freire so uma denncia aos sistemas social, poltico, econmico, educacional, que favorecem a perpetuao da heteronomia. Ele denuncia as realidades que levam a heteronomia e prope uma educao que busca construir uma realidade social que possibilite a autonomia, prope um processo de ensino que possibilite a construo de condies para todos poderem ser "seres para si".Freire cria um pensamento engajado, pensamento que prxis32com e para o povo oprimido. Sua opo pelos mais fracos, pelos esquecidos, em especial pelos povos chamados subdesenvolvidos, que historicamente mais foram oprimidos com o colonialismo, com os neocolonialismos, com as ditaduras militares e com o neoliberalismo. Sua opo de professor democrtico e progressista que busca a superao da heteronomia e construo da autonomia. Neste captulo vamos ver quais as heteronomias a que ele se ops com seu pensamento.CAPTULO III - A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE OPE

3.1 - A OPRESSO

A opresso, realidade histrica concreta da qual parte da humanidade vtima, a negao da vocao do homem de "ser mais" (FREIRE, 1983, p.35), a negao da liberdade, negao do homem como "ser para si" (idem, p. 189), portanto, a condio de opresso uma condio de heteronomia. Ao anular a vocao humana de ser mais, a opresso insere a dura realidade de ser menos. A opresso se verifica hoje em situaes concretas como a misria, a desigualdade social, a explorao do trabalho do homem, as relaes autoritrias, etc, situaes que fazem o homem viver em condio de heteronomia j que limitam ou anulam sua liberdade de optar e seu poder de realizar. A opresso uma realidade desumanizante "que atinge aos que oprimem e aos oprimidos"33(ibid, p. 35). A humanizao resultado da ao da prpria humanidade, o homem que se faz homem, e isso s possvel porque possui liberdade. Toda opresso, que em si mesma alienante, leva o homem a ser para outro e ser menos, negao da liberdade humana, negao de seu carter criativo e criador, heteronomia.Segundo Freire (ibid, p. 44-45), a proibio de ser mais estabelecida pela opresso em si mesma uma violncia34. A resposta dos oprimidos a essa violncia deve ser no sentido de buscar o direito de ser, sua luta no sentido de fazer-se homem. Nas nossas sociedades, o processo de violncia passa de gerao em gerao, o que vai formando uma conscincia possessiva do mundo e dos homens, tudo transformado em mercadoria, o dinheiro a medida para tudo e o lucro torna-se o objetivo principal. No momento em que por meio dessa ganncia desmedida dispe da vida de pessoas, tirando-lhes a dignidade e a liberdade, transformando-as em coisa, as legam a situao de heteronomia.Para Freire (ibid, p. 52), a conscincia do oprimido se encontra geralmente dentro de um mundo mgico e mtico, o que faz com que o destino, a sina, a vontade de Deus, sejam postos como causa da opresso. Nesse caso a causa vista com carter mtico, sendo assim, inacessvel, inatingvel, a mudana torna-se irrealizvel e a heteronomia no superada. Esse "fatalismo" (ibid) um dos principais perpetuadores de situaes de menoridade, de opresso, de heteronomia, pois leva ao imobilismo. Outra caracterstica dos oprimidos a "autodesvalia" (ibid, p. 55), ela ocorre quando o oprimido introjeta a viso que o opressor possui dele. Da consideram-se incapazes, enfermos, dizem no saber nada, etc. Para superar a autodesvalia necessrio superar a viso mtica do mundo e descobrir a verdadeira causa da opresso. Para Freire, na luta pela libertao que comeam a crer em si mesmos e criam condies para superar a condio de heteronomia.Um aspecto que contribui para a continuidade de situaes ou condies de heteronomia a adeso do oprimido ao opressor. O oprimido acaba adquirindo os valores dos opressores, e assim o modelo de humanidade que vai procurar realizar o do opressor. Passa a defender a viso individualista de liberdade, o que lhe impede de lutar pela prpria libertao. "Em sua alienao, os oprimidos querem a todo custo parecer-se com o opressor, imit-lo, segui-lo" (FREIRE, 1980, p. 60). No momento em que passam a desejar ser como o opressor, interiorizam suas opinies e passam a desprezar a si mesmos, a se ver como incompetentes, incapazes, etc. Isso representa uma espcie de "dependncia emocional" (FREIRE, 1983, p. 57), e constitui uma forma de heteronomia, j que o oprimido no busca ser ele mesmo e ser para si, mas busca ser como o opressor, e dessa forma, acaba sendo para o opressor. Muitas vezes, os oprimidos se reconhecem como tais e buscam sair da opresso, mas isso, no contexto de contradio e opresso em que vivem, significa ser opressor, por isso que libertao precisa implicar em superao da contradio opressor-oprimido. a superao da contradio que traz ao mundo o homem novo, no mais oprimido nem opressor (cf. idem, p.36), o homem que para si, o homem autnomo.CAPTULO III - A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE OPE

3.2 - MASSIFICAO E MEDO DA LIBERDADE

Paulo Freire (1983, p. 34) observou que em muitos oprimidos, o que impede a libertao o medo da liberdade35, medo que os conduz a manterem-se na situao de oprimidos, medo que impede a autonomia. O medo da liberdade surge a partir da prescrio. "Toda prescrio a imposio da opo de uma conscincia a outra" (idem). Por isso ela alienante, faz com que uma conscincia "hospedeira" (ibid, p. 35), a do oprimido, se guie por uma pauta estranha a si, a pauta dos opressores. Dessa forma, o homem oprimido se encontra em uma situao de heteronomia, j que sua conscincia pautada pelo outro (hetero) que o oprime. Os oprimidos "(...) introjetam a 'sombra' dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando na expulso desta sombra, exigiria deles que 'preenchessem' o 'vazio' deixado pela expulso, com outro 'contedo' - o de sua autonomia" (ibid). De acordo com Freire (ibid, p. 36), oprimidos vivem um trgico dilema entre querer ser e temer ser. Ao se descobrirem oprimidos, descobrem que no so livres. A luta se trava internamente, a vontade de serem autnticos, de expulsar o opressor, de sair da