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Assunto para Criança: como o desenho animado Steven Universe subverte normas sociais de gênero e identidade sexual1
Carina Schröder WASCHBURGER2
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS
RESUMO Este artigo faz uma breve análise de como Steven Universe, um desenho animado exibido pelo canal Cartoon Network, apresenta em sua narrativa diferentes identidades de gênero e sexualidade, subvertendo as normas sociais que são consideradas padrão. A partir de como as personagens e seus relacionamentos são retratados no desenho, podemos enxergar uma forma de representar positivamente as identidades de jovens LGBTQ+. O objetivo deste trabalho é analisar as narrativas apresentadas no desenho, abordando como ele encontrou novas maneiras de dialogar com o seu público, crianças, a fim de criar uma identificação com personagens e histórias que vão além dos padrões tradicionais de uma sociedade heterossexual e masculina.
PALAVRAS-CHAVE: estudos de gênero e sexualidade; desenhos animados; Steven Universe; infância; identidade. Introdução
Desde pequenos, somos introduzidos ao mundo da animação - nossos primeiros
contatos com o mundo audiovisual vêm em forma de histórias lúdicas de princesas,
monstros e embates entre o bem e o mal. À medida que crescemos, os desenhos que
assistimos se tornam mais complexos, com ideias mais envolventes e personagens
melhores desenvolvidos.
Em algum momento da nossa vida, a participação dos mundos lúdicos e
fantásticos dos cartoons perde uma posição que antes era principal no nosso dia a dia.
Se assistimos desenhos quando adultos, eles devem ser direcionados para nós -
precisam ser sérios ou falar sobre “assuntos de adulto”. No seu artigo, A infância e seus
destinos no contemporâneo, Lucia Rabello de Castro discute a ideia da morte da
infância e a sua construção perante a sociedade que vivemos hoje. A autora pontua que
é necessário reavaliar a narrativa da inocência e fragilidade infantil, construída para que
1 Trabalho apresentado no GP Estéticas, Políticas do Corpo e Gêneros XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2 Mestranda do Curso de Comunicação Social da PUCRS, e-mail: [email protected].
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as crianças não tivessem acesso à “idade da razão” e, consequentemente, a capacidade
de compreender assuntos que por muitas vezes também dizem respeito a elas.
A mídia por muitas vezes é criticada por sua falta de representação de pessoas
reais - diferentes gêneros, nacionalidades, sexualidades, tipos de corpos, etc. Os
desenhos animados, com seus recursos disponíveis para criação de estórias e a liberdade
de criarem o mundo que desejarem, muitas vezes deixam a desejar quando precisam
representar pessoas na variedade em que elas existem. O que acabamos encontrando
nesses desenhos é apenas mais do mesmo que já é propagado em todos os outros
lugares: personagens limitados pelos padrões normatizados na nossa sociedade
ocidental. Um estudo realizado por Shumaila Ahmed e Juliana Abdul Wahab em 2013
para a Asian Social Science, Animation and Socialization Process: Gender Role
Portrayal on Cartoon Network, mostrou que 67,4% dos personagens dos desenhos mais
populares da grade da emissora eram do gênero masculino, enquanto apenas 32,6%
eram do gênero feminino.
Em contrapartida às representações que a mídia nos habituou a conceber como
padrão, encontramos a série de desenho animado Steven Universe, que, como será
analisado neste trabalho, apresenta personagens de diferentes gêneros com
personalidades que divergem do senso comum esperado pela mídia e seu público – em
geral, homens fortes, corajosos e inteligentes, e mulheres frágeis, emocionais e
atraentes. A série, lançada em maio de 2013 pelo Cartoon Network e criada por
Rebecca Sugar, primeira mulher a criar independentemente uma série para a emissora,
conta a história de Steven, um menino que vive com as Crystal Gems Pearl, Garnet e
Amethyst, formas humanóides alienígenas de pedras preciosas (Gems). Steven é meio
humano e meio Gem e vive aventuras com as Crystal Gems, ajudando-as a proteger a
Terra de outras Gems que desejam destruir o planeta,
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FIG. 1 – As Crystal Gems da esquerda para direita: Pearl, Lion, Connie, Bismuth, Steven, Amethyst, Lapis, Peridot e Garnet
Fonte: Steven Universe Wiki
Apesar das Gems utilizarem pronomes femininos ao referirem a si mesmas, elas
não possuem um gênero definido, fluindo entre padrões femininos, masculinos ou
nenhum dos dois (não-binários). Em um AMA (Ask Me Anything) no Reddit, a criadora
Rebecca Sugar afirma que “Steven é a primeira e única Gem do gênero masculino,
porque ele é meio humano! Tecnicamente, não existem Gems do gênero feminino!
Existem apenas Gems!”3. Independentemente se as Gems são lidas pelo público como
“agênero” ou do gênero feminino, é importante notar que um dos desenhos mais
proeminentes da grade de um canal como Cartoon Network apresenta uma maioria de
personagens que não são masculinos. E, além disso, essas personagens são
representadas em formas distintas dos padrões aos quais estamos acostumados tanto em
sua forma quanto em sua maneira de agir. Em Steven Universe, não vemos apenas
personagens femininas com corpos de ampulheta, frágeis e indefesas, as personagens
que vemos representadas na série são diversas não somente em suas personalidades,
mas também na forma como são representadas fisicamente - baixas, altas, magras,
gordas, femininas ou não.
Além disso, a animação ainda apresenta o conceito de “fusão”, quando duas (ou
às vezes mais) Gems se unem para criar um outro ser maior e mais poderoso. A partir
desse conceito, será realizada uma análise da fusão Garnet, composta por Ruby e
Sapphire e da importância da forma como este relacionamento é representado na série,
buscando compreender como a diversidade de gênero e sexualidade é apresentada para
o público. Além disso, serão levadas em consideração as informações da Wiki oficial
do desenho, alimentada diariamente por fãs e pelos próprios criadores, a fim de levantar
como assuntos que por muito tempo não eram considerados “adequados” para crianças,
são apresentados no desenho. Tomando como base conceitos da teórica feminista Judith 3 Steven is the first and only male Gem, because he is half human! Technically, there are no female Gems! There are only Gems!
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Butler a respeito da construção e desconstrução de gênero, sexualidade e seus padrões
na nossa sociedade, a questão da identidade de Stuart Hall, a fim de compreendermos a
importância de narrativas que provoquem a identificação do público com um produto da
mídia e os conceitos de infância explorados por Lucia Rabello de Castro, realizaremos
uma análise da narrativa de Steven Universe e seus personagens.
Sexo, gênero e identidade
Por muito tempo entendido como algo binário com o qual você nasce e é
diretamente associado ao seu sexo biológico, gênero na verdade é um conceito muito
mais complexo e fluído. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, “sexo”, se
refere a características biológicas e psicológicas, que definem homens e mulheres,
enquanto que “gênero” se refere a papéis, comportamentos, atividades e atributos
construídos socialmente de acordo com o que uma sociedade considera “apropriado”
para determinado gênero. Apesar de por muitos anos termos sido educados por um
padrão binário das sociedades contemporâneas ocidentais, a existência de mais de dois
gêneros não é algo novo em outras culturas, como os Hijras, grupo religioso do sul da
Índia, onde pessoas do sexo masculino se vestem como mulheres e adoram a deusa
Bahuchara Mata, uma de muitas versões da Deusa-mãe.
O surgimento dos campos de estudo de gênero e teorias queer e feminista nos
auxiliaram em uma melhor compreensão dos papéis de gênero na nossa vida em
sociedade, questionando os padrões binários já conhecidos e buscando um maior
aprofundamento a respeito de conceitos que estão fora dos padrões estabelecidos. A
teórica feminista Judith Butler levanta em seu livro Problemas de Gênero a ideia de que
um sistema binário encerra nossa crença numa relação mimética entre gênero e sexo,
onde gênero reflete o sexo, ou é restrito por ele. Quando a construção do gênero é
trazida independente do sexo, o gênero se torna um “artifício flutuante”, onde homem e
masculino, e mulher e feminino, podem significar tanto um corpo feminino como um
masculino. A partir dessa hipótese, ela discorre sobre como gênero é, não somente
construído, como performativo, uma identidade construída pelas próprias expressões do
indivíduo.
Butler entra também nas questões relacionadas à sexualidade, e como uma
estrutura binária para gênero também o impõe para o sexo, em uma tentativa de regular,
consolidar e naturalizar regimes de opressão masculina e heterossexual. Ora, se há a
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possibilidade de performarmos um gênero de acordo com identidades contidas dentro
de nós, por que o mesmo não aconteceria em relação a nossa sexualidade? Se gênero e
sexo não são apenas “verdades”, na qual algo é “porque sim” pura e simplesmente, há,
portanto, a possibilidade de subverter e refletir sobre outras formas de expressão de
gênero e sexualidade para além das normas impostas pela sociedade.
Em seu livro A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, Stuart Hall levanta
que não devemos falar sobre nossa identidade como algo acabado e definido, e sim
como um processo em andamento. Nossa identidade, portanto, não existe de forma
plena dentro de nós mesmos, mas sim de uma falta que preenchemos a partir do nosso
exterior, através de como imaginamos sermos vistos pelos outros. Buscamos nossa
identidade a partir de “diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque
procuramos recapturar esse prazer fantasiado de plenitude”.
As diferentes formas de identidade de gênero e sexualidade são pontos tão
importantes para a reflexão da nossa sociedade contemporânea, retratados através de um
estudo publicado por Jack Harrison, Jaime Grant, e Jody L. Herman, chamado A
Gender Not Listed Here: Genderqueers, Gender Rebels, and OtherWise in the National
Transgender Discrimination Survey, para o LGBTQ Policy Journal at the Harvard
Kennedy School. O estudo aponta que pessoas que se identificam com alguma variante
de gênero sofrem com impactos significativos de um viés anti-transgênero e, em alguns
casos, correm um risco ainda maior de discriminação e violência que seus colegas que
se identificaram como transgênero. Uma sociedade condicionada a pensar que gênero e
sexualidade como conceitos binários são a forma correta de se expressar, dificilmente
terá uma primeira reação positiva às pessoas que não se identificam da maneira que
acreditam ser convencional. É importante questionar como essas novas formas de
identificação serão vistas e entendidas pelo grande público, se elas não são
representadas. Mais do que isso, como as próprias pessoas que se identificam dessa
forma enxergam suas identidades se elas são invisíveis para a mídia e para a sociedade?
Quando um grupo, seja ele definido por raça, gênero, sexualidade ou classe
social, é representado na mídia apenas através de estereótipos, ou nem ao menos é
representado, isso cria duas situações: a criação de um preconceito ou medo do Outro,
aquele que é apresentado como “diferente” ou considerado “fora dos padrões”, e a
ausência de uma identificação positiva naqueles que fazem parte dos grupos de
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minorias, colocando-os cada vez mais à margem da mídia mainstream. Se um grupo é
estereotipado ou invisível para a mídia, ele acaba por ser estereotipado e invisível
também para o grande público. Cada indivíduo possui dentro de si inúmeras
identidades, mas se essas identidades não são representadas adequadamente, elas não
poderão ser desenvolvidas de uma forma saudável, e não apenas para adultos – crianças
desses diferentes grupos também existem, e elas não podem crescer sem saberem que
sua existência é válida.
Lucia Rabello de Castro expõe a ideia que, em especial na nossa sociedade
ocidental moderna, aplicamos para as crianças práticas socioculturais que impõem uma
inocência e fragilidade que nada mais é do que uma narrativa para construir certos
marcos etários rígidos para se acessar a tal da “idade da razão”. De Castro defende que a
infância tal qual como conhecíamos, deve morrer para que possamos redefinir a relação
entre adultos e crianças no mundo contemporâneo. A autora ainda defende que as
crianças são, e devem ser, parte estruturante da nossa sociedade, na qual elas possuem
não uma posição passiva, e sim “estruturante nas relações sociais onde a permanência e
a mudança social se dão”. O que compreendíamos sobre a infância há algumas décadas
– que crianças deveriam ser fragilizadas e “protegidas” de certos assuntos que eram
considerados “adultos” deve hoje ser repensado, a fim de trazer para o papel das
crianças um poder não somente transformador como também inclusivo.
Crianças que fazem parte da comunidade LGBTQ+ não são uma novidade
criada pela modernidade. Elas sempre existiram, porém apenas nas últimas décadas, a
partir do momento em que a homossexualidade foi descriminalizada, essas identidades
puderam ser mais exploradas por pessoas que se identificavam com a comunidade.
Apesar dos avanços na aceitação dessas pessoas pela sociedade, a representação na
mídia, em especial para crianças, ainda é muito escassa. Gênero e sexualidade se
continuam intocáveis como assuntos do “mundo dos adultos” e falar sobre isso não é
apropriado e nem “coisa de criança”. Há uma constante polêmica se o assunto deve ou
não ser debatido em sala de aula, e a resistência da sociedade em aceitar representações
na mídia dificulta a criação de mais estórias sobre estas identidades. Para jovens que
não se identificam com essas representações binárias e convencionais, há pouco espaço
para criar uma relação com narrativas que apresentem com naturalidade suas
identidades.
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Steven Universe: as Gems e suas fusões
Desenhos animados são um meio que permitem explorar narrativas que vão
além do convencional. Apesar disso, o estudo publicado por Ahmed e Wahab (2014)
mostrou que as narrativas dos desenhos animados mais populares do Cartoon Network
não iam muito além do que já era pré-estabelecido em uma sociedade binária com
papéis de gêneros definidos e estereotipados – a maioria dos personagens não somente
era masculino, como estes também apresentavam características como força e poder,
enquanto as poucas personagens femininas apresentavam inteligência, mas também
maior fragilidade. O estudo também apresenta as diferenças a respeito das
representações visuais dos personagens, destacando que personagens femininas eram
quase sempre representadas de forma mais atraente e sexualizada.
Em um primeiro olhar, Steven Universe é um desenho animado que se destaca
pela sua estética - encontramos nas personagens principais uma diversidade de formas e
representações físicas. Algumas Gems são altas e esbeltas, outras são baixas e gordas,
umas mais femininas e outras mais masculinas. Mas olhando mais a fundo, o desenho
ganhou notoriedade especialmente pela forma como apresenta gêneros e sexualidades
que são dissidentes da norma encontrada na mídia mainstream, em especial naquela
direcionada para crianças.
Retomando o conceito de Butler (2003), de que masculinidade e feminilidade
podem ser representados, ou melhor, performados em corpos tanto femininos quanto
masculinos, vemos em Steven Universe personagens que constroem suas identidades
através de suas expressões como indivíduos. Além disso, o desenho também apresenta
os relacionamentos de suas personagens de uma forma que se destaca em comparação à
norma heterossexual com a qual estamos habituados.
Na animação, somos apresentados ao conceito de fusões - o resultado da união
de duas ou mais Gems (ou, no caso de Steven, meias-Gems, que podem se fundir
também com humanos), transformando-se em seres maiores e mais poderosos do que
elas sozinhas. As Gems vêm de um lugar da galáxia chamado Homeworld, onde
somente são aceitas fusões de Gems do mesmo tipo, que ocorrem através de contato
físico, onde várias se tornam uma única Gem de tamanho maior. Essa prática é aceita
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por considerar que as fusões têm uma função prática e lógica. Elas se fundem porque
precisam ficar mais fortes e maiores.
FIG 2. – Giant Ruby, a fusão de quatro Rubys
Fonte: Steven Universe Wiki
Contudo, Gems diferentes também têm a capacidade de se fundirem, apesar de
serem vistas pelos habitantes de Homeworld como uma aberração, por não serem
resultado de uma solução prática, e sim de um vínculo emocional. As fusões de Gems
diferentes são alcançadas através de uma dança sincronizada, uma vez que para que elas
possam criar uma fusão estável, é necessário estarem em perfeita harmonia. Antes de
completar a fusão, as Gems se tornam corpos de luz por alguns segundos, antes de
formarem esse novo ser.
FIG 3. – Garnet, líder das Crystal Gems, fusão entre uma Ruby e uma Saphire
Fonte: Steven Universe Wiki
No nono episódio da segunda temporada da série, We Need to Talk, Garnet
explica o processo de uma fusão, tanto no sentido literal do acontecimento quanto no
sentido emocional: “Primeiro, você precisa de uma Gem no centro do seu ser. Então
você precisa de um corpo que possa se transformar em luz. Então, você precisa de um
parceiro em quem confie com essa luz” 4. Essa descrição carrega uma carga emocional,
pois tanto os criadores da série como os fãs, afirmam que fusões são uma forma de
relacionamentos serem retratados no desenho. Entretanto, nem todas as fusões são
relacionamentos românticos, podendo existir fusões platônicas entre amigos ou até
mesmo fusões forçadas, não-consensuais, e, portanto, instáveis. Existem diferentes tipos 4 First, you need a gem at the core of your being. Then you need a body that can turn into light. Then you need a partner who you trust with that light
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de relacionamentos - românticos, platônicos, de amizade e até mesmo abusivos, e
Steven Universe retrata isso através das fusões.
Garnet, a líder das Crystal Gems, é na verdade uma fusão entre duas Gems,
Ruby e Sapphire. No episódio em que isso é revelado, Jail Break, vemos Ruby e
Sapphire separadas pela primeira vez. As duas Gems estão presas em celas diferentes de
uma nave que prendeu Steven e outras Gems para levá-las de volta a Homeworld. Ao
enxergar Ruby, Steven não a reconhece como uma das partes de Garnet, e oferece
ajuda, enquanto ela aparece frustrada por estar separada de Sapphire. Steven a liberta de
sua cela, e Ruby corre pela nave em busca de Sapphire. Após se separar de Ruby,
Steven encontra Sapphire, também a libertando, quando ela acaba o levando para o
encontro de Ruby. Quando as duas se encontram, há um momento de afeto e emoção,
quando elas se abraçam e demonstram preocupação em um momento de carinho. A
demonstração de afeto entre as duas fica evidente neste momento quando, em meio a
beijos e abraços, felizes por estarem reunidas, elas se fundem e se transformam
novamente em Garnet. FIG 4. – Ruby e Saphire se reencontram
Fonte: Steven Universe Wiki
Garnet então entra em uma batalha contra Jasper, uma Gem que a desdenha por
ser uma “aberração”, como ela se refere a fusões estáveis de duas Gems diferentes.
Muito marcado por suas canções originais, o desenho apresenta neste momento a
canção Stronger Than You, cantada por Garnet como uma forma de resposta às ideias
proferidas por Jasper, destacando sua relação e a força de sua fusão. A letra da música
mostra para o público não somente que Garnet é o produto de uma relação romântica
entre um casal de Gems, mas também dá a ele um exemplo positivo de como devem ser
vistas relações que por uma parte da sociedade sempre foi vista como algo fora do
padrão, que não é normal. Garnet canta que o amor pelo qual ela é formada a tornou
mais forte, e a mensagem que é passada pode ser interpretada como uma resposta às
inúmeras críticas e violência sofrida pela comunidade LGBTQ+, possibilitando que o
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seu público que se identifica dessa forma enxergue no desenho uma história parecida
com a sua. A música, na sua versão em português, tem a seguinte estrofe:
Eu tô sabendo que você não me respeita por achar que já viu do que sou feita. Mais do que duas, eu sou muito mais. Sou o que elas nunca deixarão pra trás, sou sua fúria, sua paciência. Eu sou uma conversa, sou feita de amor. 5
A música deixa claro o relacionamento de Ruby e Sapphire, que ao longo da
série continua se desenvolvendo, mostrando-se mais profundo e complexo.
Personificadas através da personagem Garnet, Ruby e Sapphire retratam um
relacionamento como muitos outros que sempre estivemos acostumados a ver na mídia,
com a única diferença de que as personagens envolvidas na relação são do mesmo sexo.
Chegando ao vigésimo primeiro episódio da quinta temporada, The Question, vemos
Ruby pedir Sapphire em casamento, para então se casarem no episódio Reunited.
Marcando Steven Universe como o primeiro desenho animado a mostrar uma união do
mesmo sexo6.
É importante notar que, na série, gênero não é apresentado como algo a ser
questionado. Assim como as Gems são apenas Gems, os personagens humanos da série
apenas são humanos. Isso não significa que todos são não-binários ou agênero, e sim
que os papéis tradicionais de gênero não são necessariamente reforçados na narrativa de
Steven Universe. Um exemplo disso é que, apesar de Ruby ter pedido Sapphire em
casamento, na cerimônia, quem é apresentada como noiva de vestido é Ruby, enquanto
Sapphire é colocada na “posição” de noivo e usando um termo. Ao mesmo tempo em
que gênero e sexualidade são temas que permeiam as narrativas do desenho, eles nunca
são abordados de forma direta ou questionadora.
A performatividade de gênero se dá de diferentes formas durante o
desenvolvimento da narrativa, de forma que permanece sempre aberta à interpretação,
auxiliando na identificação do público com as personagens. Vemos características que
podem ser consideradas femininas em personagens masculinos, como Steven, que
apesar de ser do gênero masculino, ainda assim apresenta características como
sensibilidade, franqueza e afetuosidade. Enquanto Connie, do gênero feminino, 5 I know you think I'm not something you're afraid of, 'Cause you think that you've seen what I'm made of. But I am even more than the two of them. Everything they care about is what I am. I am their fury. I am their patience. I am a conversation. I am made of love. 6 https://www.indiewire.com/2018/07/cartoon-network-steven-universe-sex-marriage-proposal-1201981487/
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apresenta características que poderiam ser convencionalmente associadas à personagens
masculinos, como sua força, determinação e habilidade em lutar com uma espada.
Porém, quando os dois se fundem, vemos surgir Stevonnie, uma personagem não-
binária que demonstra traços físicos e de personalidade que são associados tanto à
masculinidade quanto feminilidade – a personagem tem cabelos compridos e é dublada
por uma mulher, mas apresenta barba por fazer em episódios como Jungle Moon, onde
a personagem aparece aparando os pelos faciais com sua espada. FIG 5. – Stevonnie no episódio Jungle Moon
Fonte: Steven Universe Wiki
Apesar de termos a afirmação da criadora Rebecca Sugar que as Gems não
possuem gênero, todas são dubladas por mulheres e utilizam pronomes femininos, com
exceção a Stevonnie, que é referida com o pronome they, em inglês, que é comumente
utilizado para se referir a pessoas que não se identificam de forma binária. Dessa forma,
a audiência pode interpretar as personagens da forma que preferir – sendo elas do
gênero feminino ou agênero. As Gems, possuindo um gênero específico ou não, se
destacam pela maneira como performam gênero de diferentes formas através das
personagens e dependendo da narrativa na qual estão inseridas. Características físicas e
de personalidade não são associadas necessariamente a um gênero, e sim à própria
identidade da personagem e como ela a manifesta. Isso auxilia na criação de uma
identidade, conforme apresentada por Stuart Hall, que é formada por diferentes “eus”,
que preenchem seu significado a medida que vão encontrando sua identificação. O
desenho não necessariamente tem a intenção de educar as crianças a respeito das
diferentes identidades de gênero e sexualidade que possam existir, e sim de criar uma
identificação com a sua própria audiência, fornecendo visibilidade de estórias que,
apesar de serem dissidentes das normas sociais binárias com as quais estamos
acostumados, são igualmente reais e válidas.
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Considerações Finais
Apesar de a sociedade ter criado convenções em relação às nossas concepções
de gênero e sexualidade, a verdade é que todos performamos gênero de alguma forma.
Seja nos moldando conforme os padrões ou divergindo da norma de alguma maneira, de
forma sutil ou não. Porém, quando os produtos midiáticos reforçam essa “regra”,
reduzindo ou completamente excluindo qualquer representação que seja dissidente do
que é socialmente aceito, torna-se invisível uma parte da população que não se
identifica com essas convenções. No momento em que representar uma maior
diversidade de gênero e sexualidade não é “coisa para criança”, a sociedade adulta está
impondo os padrões binários e heterossexuais sobre as crianças, como se não existissem
jovens que se identificam de forma diferente.
Retomando os conceitos de Butler, nosso gênero é de uma complexidade que
permite múltiplas convergências e divergências, sem a obediência de um propósito
normativo e definidor. Dessa forma, não há razão para não retratarmos em nossas
narrativas – em especial as de animação e ficção, que permitem uma extrapolação maior
das convenções da nossa realidade – uma infinidade de gêneros e sexualidades. Os
nossos “eus”, como afirma Hall, são construídos através de múltiplas identidades, e,
portanto a representação de diferentes pontos de vista e formas de existir é
imprescindível para a construção plena do indivíduo.
Desenhos como Steven Universe mostram que é possível abordar narrativas
diversas e personagens fora do padrão de forma natural, com humor e sensibilidade. É
necessário romper com esses antigos padrões binários e pré-impostos que não levam em
consideração a existência de todo um grupo de pessoas que não se encaixam.
Relacionamentos existem de suas formas mais variadas, e relacionamentos
heterossexuais são há anos representados de forma extremamente natural, então por que
isso não poderia acontecer também com os relacionamentos do mesmo sexo? E pessoas
existem de todas as formas independentemente dos papeis impostos pelos seus gêneros,
então por que não os interpretar de uma forma diversa, sem prender-se a convenções
que limitam a construção de um personagem complexo?
A violência em relação aos jovens da comunidade LGBTQ+, em especial dos
que se identificam como trans ou não-binários é ainda extremamente presente,
principalmente em uma sociedade que, ou enxerga pessoas que se identificam dessa
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forma como aberrações, ou nem ao menos sabem que essas pessoas existem. Uma
grande parcela da mídia ignora completamente todo um grupo de pessoas apenas porque
elas não se encaixam no que foi determinado como “padrão”. Como exploramos aqui, o
padrão nada mais é do que uma convenção social, e por isso temos a possibilidade
através da mídia de extrapolar essa convenção, a fim de criar narrativas e personagens
cada vez mais inclusivas. É necessário também levar em conta a capacidade
transformadora que os jovens possuem em nossa sociedade, e apresentar na mídia para
eles direcionada diferentes narrativas para que eles possam desenvolver suas
identidades a partir disso, auxiliando na quebra de padrões binários e normativos.
Steven Universe e a forma como o desenho apresenta as identidades sexuais e de
gênero das Gems trazem uma nova esperança e para um grupo que até pouco tempo
tinha pouquíssima representação, quando tinha alguma que não fosse estereotipada. É
preciso sair para fora da caverna de Platão e parar de enxergar apenas aquilo que nos era
imposto através dos padrões construídos socialmente, permitindo que a nova geração
não somente esteja mais aberta e receptiva para quem faz parte da comunidade
LGBTQ+, mas que ela também se identifique com essas novas narrativas e
personagens. História de amor, relacionamentos e aventuras são universais,
independente da sexualidade ou do gênero que representa essas histórias. Assim como
as Gems são apenas Gems, pessoas também são apenas pessoas e têm suas qualidades e
defeitos que vão muito além do seu gênero. Steven Universe traz um novo conceito de
representação ao mostrar que personagens complexos e diversos, e narrativas
interessantes e reais (mesmo quando se tratam de seres alienígenas), são as
características que chamam a atenção para uma boa obra, e não necessariamente se o
seu protagonista masculino salva a princesa no final.
Referências BUTLER, Judith. Problema de gênero. Editora Civilização Brasileira, 2003 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernindade. DP&A Editora, 1992 HALL, Stuart. Representation: Cultural Representations and Signifying Practices. Editora Sage, 2002
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