AS MOSCAS DOMÉSTICAS E SUA IMPORTÂNCIA NA...
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Rev. Higiene Alimentar, v. 14, n. 73, p. 28-38, Junho de 2000.
AS MOSCAS DOMÉSTICAS E SUA IMPORTÂNCIA NA TRANSMISSÃO DE
INTOXICAÇÕES E INFECÇÕES ALIMENTARES.
RESUMO
As intoxicações de origem alimentar atingem milhões de pessoas em todo o mundo anualmente. Os microrganismos
responsáveis por estas patogenias são transmitidos ao homem em razão de deficiências de higiene, maus hábitos dos
manipuladores, processos de produção ineficientes, dentre outras causas. Alguns insetos podem desempenhar relevante
papel na transmissão e dispersão destes patógenos. Esta revisão bibliográfica busca reunir informações referentes as
intoxicações alimentares em relação à presença de moscas sinantrópicas no ambiente urbano. Inicialmente, foi feita uma
descrição da biologia e ecologia das principais espécies de moscas sinantrópicas mais comumente descritas nas
investigações analisadas, considerando todas as possibilidades de transmissão e dispersão de patógenos ao meio ambiente
e aos alimentos e fármacos. Foram avaliados uma série de trabalhos publicados nas últimas três décadas relativos ao tema
e analisados do ponto de vista de busca de novos indícios que enfatizassem esta relação hipoteticamente existente entre as
moscas sinantrópicas e as gastroenterites. Concluiu-se que inúmeros patógenos implicados nas intoxicações alimentares
estão presentes em diversas partes do corpo destes insetos e podem ser facilmente disperses no ambiente urbano, estando
inclusive diretamente relacionados com surtos de diarréia frequentes, especialmente entre crianças. Assim, faz-se
necessária a adoção de medidas de cunho educacional para conscientizar inicialmente as pessoas desta importância. É
fundamental investir em obras de saneamento básico para reduzir os berços de proliferação destes insetos, tanto a nível
municipal quanto a nível domestico e industrial.
SUMMARY
Fooborne diseases affect millions of people all over the world every year. Deficient hygiene habits, improper product
handling, innefective processing procedures, among other reasons, make it easier for pathogens to spread and contaminate
food products. Some insects can be a major cause in the transmission and dispersion of these pathogens in the urban
environment. This bibliographic review gathers information about foodborne diseases related to the presence of filth flies
in the urban environment. The most important and depicted filth flies are described as to their biology and ecology
considering every possibility they may naturally have for pathogens dispersal or transmission. Three decades were
investigated for papers focusing the relationship between filth flies and gastroenterites. It has been concluded that many
foodborne disease pathogens can be carried by filth flies and be easily spread in the environment. Children are the main
victims in the diarrhea outbreaks. It is most necessary to implement educational efforts to make people aware of the
problem. It is also of the utmost importance to improve sanitary conditions of the cities, food industries and residences.
INTRODUÇÃO
A palavra de ordem no que se refere a alimento ao final desta década é food security. Profissionais de todo o mundo
pesquisam as técnicas que vão possibilitar a produção de alimentos mais seguros, adequando-os à demanda atual
inclusive de exportação para o globo. Esta preocupação tem origem nas pesquisas feitas por diversos organismos
internacionais a respeito das toxinfecções ligadas ao consumo de alimentos. Recente trabalho nos Estados Unidos estimou
que as intoxicações de origem alimentar atingem cerca de 76 milhões de pessoas, causam 325 mil hospitalizações e 5 mil
mortes nos Estados Unidos a cada ano. Os microrganismos patogênicos conhecidos são responsáveis por 14 milhões de
casos de toxinfecção, 60 mil hospitalizações e 1.800 mortes a cada ano. Três patógenos - Salmonella, Listeria e
Toxoplasma - são responsáveis por 1.500 mortes a cada ano (MEAD, 1999).
A maioria das questões tratadas por pesquisadores está ligada às condições da matéria prima, aos maus hábitos dos
manipuladores, à higienização, controle ambiental, dentre outras. Existe uma preocupação maior com situações, tais
como, o binômio tempo - temperatura na elaboração dos programas de HACCP, porém, poucos autores se detém a
discorrer a respeito de outros agentes, igualmente importantes, que fazem parte do ecossistema urbano e que podem trazer
sérios riscos à produção de alimentos seguros para o homem e animais domésticos - os insetos. Em conversa pessoal com
o Dr Frank L Bryan por ocasião de recente visita ao Brasil para ministrar curso de HACCP, foi questionada a sua posição
em relação ao papel das moscas bem como de outros insetos e roedores na transmissão de organismos patogênicos tanto
aos alimentos preparados quanto aos utensílios e superfícies, já que sua preocupação maior tem sido sempre a questão da
temperatura, a armazenagem adequada dos alimentos e, principalmente, a "performance" dos manipuladores. Sua resposta
foi de que ele não considerava tão relevante este papel e que era necessário existirem mais pesquisas para avaliar melhor
esta questão. Também não foram freqüentemente observadas referências à importância das pragas como elo de
transmissão mecânica de organismos patogênicos em outras publicações. O próprio CDC - Center for Disease Control de
Atlanta, Georgia, Estados Unidos, ao citar os principais microrganismos patogênicos e sua forma de transmissão, não cita
insetos e roedores como agentes de dispersão destes patógenos (CDC, 1999). É possível que esta postura seja indicativo
de que os Estados Unidos seja um pais onde as cidades são servidas por água potável, rede de esgotos, estações de
tratamento de resíduos, destino adequado do lixo, em contraste com os países do 32 mundo, em que se inclue o Brasil, em
que há muito por resolver ainda em termos de saneamento ambiental. Nesta pesquisa bibliográfica foi encontrada nas
últimas décadas, uma série de trabalhos importantes relacionando as toxinfecções e os principais microrganismos
patogênicos, às infestações de moscas de diversas espécies (IMBIRIBA, 1979; WRIGHT, 1983; ADEYFM e DIPEOLU,
1984; FURLANETO et al., 1984; GIUGLIANO et al., 1986; OKAEME, 1986; KHIN NWE 00, SEBASTIAN e AYE,
1989; COHEN et al., 1991; LEVINE e LEVINE, 1991; FOTEDAR et al., 1992; CHAVASSE, 1996; PARALUPPI et al.,
1996 ).
Este trabalho está voltado para analisar e fornecer informações disponíveis a respeito do que foi pesquisado nestas últimas
décadas em relação ao papel de dípteros, conhecidos como moscas domésticas, no transporte e distribuição de agentes
patogênicos responsáveis por toxinfecções e intoxicações alimentares.
O Brasil, país de grandes dimensões, situado na região tropical do globo, é também rico em vida e biodiversidade,
abrigando também uma incrível variedade de espécies de insetos.
Os insetos desempenham importantes papéis tanto no que diz respeito à manutenção e ampliação da biodiversidade,
quanto do ponto de vista industrial e comercial. Somente uma pequena parcela das espécies é considerada vetor de
patogenias (BORROR, 1989). Estimam-se os serviços de polinização prestados pelos insetos em torno de 19 bilhões de
dólares anuais, e as perdas de alimentos resultantes de seus estragos em torno de 5 bilhões de dólares anuais o que confere
a vantagem aos insetos, demonstrando o seu importante papel no desenvolvimento da sociedade humana (BORROR,
1989). Os insetos são fundamentais agentes de polinização. Sem os serviços de abelhas e outros insetos teríamos poucos
vegetais, frutas, poucas flores, e muitos produtos que fazem parte da dieta do homem seriam limitados, o que certamente
iria influenciar, dentro da cadeia alimentar, sobre a presença de animais ruminantes de grande porte que fornecem as
fontes de proteínas necessárias para a manutenção da civilização humana (BORROR, 1989). Os insetos produzem mel,
cera, seda e são utilizados na produção de matérias primas importantes tais como laca e corantes, sendo estes últimos
muito usados na indústria de alimentos (BORROR, 1989). Em algumas sociedades do mundo os artrópodes são
componentes da dieta da população. Dentre os países que utilizam estes animais estão a Austrália, a China, a Venezuela,
o México, o Japão, o Cambodja, a Indonésia, a Tailândia, os Estados Unidos. Uma publicação bastante curiosa de um
fotógrafo americano mostra que, dentre os hábitos alimentares destes países citados, existem pratos consumidos pela
população que utilizam diversos ti os de artrópodes na sua preparação, tais como grilos, aranhas, várias espécies de
coleópteros, larvas de coleópteros, escorpiões, libélulas e outras iguarias (MENZEL, 1998). Além disso, os insetos são
fundamentais na dieta de pássaros, peixes, pequenos mamíferos, sendo, portanto, importante elo na cadeia alimentar
(STORER, 1991). Os insetos podem também servir como coadjuvantes no tratamento de enfermidades. Durante a Guerra
de Secessão dos Estados Unidos, um cirurgião do Exército Confederado, Dr J. F. Zacharias, utilizou larvas de moscas
varejeiras para remover tecido gangrenado e ele afirma haver salvo muitas vidas e evitado septicemia em inúmeros
pacientes com este método inusitado. Durante a primeira guerra mundial esta terapêutica foi utilizada por Baer e
permaneceu até a década de 30, quando foi substituída pelo uso de sulfa e antibióticos (GREENBERG, 1973). A partir
destes estudos experimentais, foi desenvolvida uma técnica médica que consistia em utilizar larvas de moscas varejeiras,
criadas em condições de laboratório, no tratamento de osteomielite. Descobriu-se mais tarde que as larvas liberam uma
substância chamada alantoina, que é usada nos dias de hoje para a recuperação de tecidos profundamente lesados
(BORROR, 1989).
Os insetos foram os primeiros seres a habitarem o ambiente terrestre e, sem eles, a biodiversidade provavelmente não
teria alcançado os patamares atuais. Acredita-se que as baratas e as libélulas tenham habitado o planeta há cerca de 350
milhões de anos atrás, no período Carbonífero da Era Paleozóica e que a partir deste momento os insetos passaram a
ocupar o espaço terrestre com grande facilidade e rapidez, já que não possuíam muitos predadores. Foram os primeiros
seres com asas a ocupar a terra (SOLOMON et al., 1993). Estima-se que, de 1 milhão de espécies animais conhecidas,
80% delas sejam artrópodes, o filo de animais com pernas articuladas ao qual pertence à classe dos insetos (KETTLE,
1990). Uma pequena parcela desta classe, no entanto, passou a representar um ônus para o homem primitivo até os dias
atuais.
O gênero humano Homo emergiu durante o período Plioceno, cerca de 4 milhões de anos atrás e evoluiu até ao Homo
sapiens, que surgiu por volta de 45.000 anos atrás. As preocupações básicas do homem primitivo eram coletar alimentos,
buscar abrigo e proteção para todos do bando. Coletava principalmente frutos, raízes, sementes, bem como insetos e ovos
de pássaros (ROBINSON, 1996). A divisão do trabalho dos bandos dos humanos, em que a caça ficava a cargo dos
homens, e a coleta das mulheres e crianças, estimulou a necessidade da criação de recipientes para transporte e, mais
tarde, de armazenagem do excesso de alimento coletado. Este foi um ganho na evolução do homem que diferenciou o
gênero Homo de seus ancestrais e um importante pilar na evolução (ROBINSON, 1996).
Acredita-se que neste período de evolução do homem, ocasião em que ele aprende a transportar e armazenar alimentos,
surgem as pragas como agentes comensais, aproveitando-se tanto do que estava armazenado, quanto do que era
descartado. Escavações arqueológicas em Terra Amata, um acampamento de humanos de 300.000 anos atrás, mostram
evidências de que os homens mantinham as habitações limpas e possuíam um local específico de descarte de lixo
(ROBINSON, 1996).
Dentre as diversas pragas que adaptaram-se perfeitamente ao habitat e ao convívio humano, as moscas sinantrópicas
foram escolhidas como tema preferencial deste trabalho, por diversas razões.
Primeiramente pelo fato destes insetos ocuparem um lugar de destaque na bibliografia mundial, no que diz respeito ao seu
papel na transmissão de diversas patogenias ao homem e aos animais domésticos. Em segundo lugar, por terem sido
publicados, em língua portuguesa, poucos trabalhos enfocando esta temática, considerando que o Brasil é um país de
condições climáticas extremamente favoráveis ao desenvolvimento deste dípteros além de apresentar sérias deficiências
no aspecto de saneamento básico, considerado por muitos autores como um dos fatores importantes ao aparecimento de
moscas sinantrópicas (BIDAWID et al., 1978; IMBIRIBA, 1979; WRIGHT, 1983; ADEYEMI e DIPEOLU, 1984;
FURLANETTO et al., 1984; OKAEME, 1986; KHIN NWE 00 et al., 1989; COHEN et al., 1991; LEVINE e LEVINE,
1991). Durante esta pesquisa bibliográfica foi encontrado somente um trabalho na década 70 e outro na década de 80
como temática moscas sinantrópica e microrganismo patogênicos, seguindo-se um lapso de cerca de 10 anos, até a
publicação de PARALUPPI et al. e BIZANI (tese) em 1996. Uma terceira razão está ligada à observação de profissionais
ligados ao comércio e produção de alimentos e ao público em geral, que desconhecem na maioria das vezes o potencial
de contaminação que estes insetos possuem, já amplamente estudado, e que, frequentemente, demonstram uma certa
tolerância à presença destes insetos. Um último motivo, não menos importante, é a dificuldade controle destes insetos por
meios ditos tradicionais, ou seja, através utilização de produtos químicos inseticidas. O controle destes insetos está muito
mais ligado às práticas mecânicas de mudança do ambiente urbano, práticas adequadas de armazenagem de lixo, criação
de barreiras, conscientização de usuários do que propriamente ao uso substâncias tóxicas. O controle moscas
sinantrópicas está intimamente correlacionado com as Práticas de Fabricação, normas fundamentais para a produção de
alimentos e medicamentos de qualidade e pré-requisito para a introdução do método HACCP.
DISCUSSÃO
Os Dípteros compõem uma das maiores ordens de insetos, estimando-se em cerca de 150.000 as espécies conhecidas e
não conhecidas a nível mundial (CSIRO, 1991). Os insetos que pertencem a esta ordem distinguem-se de outros insetos
alados por possuírem somente um par de asas anteriores funcionais. As asas posteriores são reduzidas e formam uma
estrutura chamada de halteres, utilizada para dar equilíbrio ao vôo (BORROR, 1989).
Os animais que são objetos deste estudo pertencem à Ordem dos Dípteros, Sub ordem Brachycera, Divisão
Cyclorrhapha, Super família Muscoidea, famílias Muscídae e Calliphírídae e tem sido objeto de estudos na busca de
respostas da correlação entre organismos patogênicos e seu papel como agentes contaminantes. Assim as espécies mais
comumente citadas no Brasil e que acredita-se terem sido importadas de outras regiões do planeta são a Musca domestica
(Linnaeus), a Chrysomya megacephala (Fabricius), C. chloropyga (Wiedemann) e a C. albíceps (Wiedemann), sendo que
as três últimas espécies foram introduzidas no Brasil em 1975 (MARICONI et al., 1998). Estas espécies são também
citadas na maioria dos trabalhos feitos em outras partes do mundo.
Atribui-se a estes dípteros a atuação de agente vetor mecânico de uma série de microrganismos patogênicos
(GREENBERG, 1973; KETTLE, 1990; BURGESS, 1993; MALLIS, 1990, MARICONI et al, 1998).
Acredita-se que o transporte de microrganismos possa ser concretizado através da aderência ao exoesqueleto, nos pelos
que recobrem o corpo e pernas destes insetos e no aparelho digestivo e posterior transferência para superfícies, alimentos
e pessoas (GREENBERG, 1973). Uma pesquisa feita na Nigéria na década de 80 encontrou patógenos em diversas partes
do corpo das moscas, a saber, nas pernas, nas asas, nas partes bucais e no trato digestivo. Observou-se que 42% dos
microrganismos foram encontrados nas pernas, 23% no trato digestivo, 19% nas asas e 15% nas partes bucais. Isto leva a
concluir que a contaminação do alimento humano por estes insetos deve ser através de alimentos já preparados, prontos
para servir, o que coloca em risco duas categorias de pessoas: crianças, que consomem alimentos expostos no período
escolar e clientes de restaurantes em que o alimento fica exposto e sujeito aos ataques destes insetos, ao ser servido na
mesa ou no balcão de serviço encontrado em restaurantes do tipo "self service" (ADEYEMI, 1984). O hábito no Brasil de
se consumir churrasco e complementos ao ar livre traz a presença constante de moscas sinantrópicas o que significam, de
acordo com as pesquisas apresentadas, um alto risco de contaminação também em domicílios.
As moscas domésticas de que trata este trabalho, possuem um aparelho bucal do tipo sugador labial que consiste de uma
probóscida que se distende e em cuja extremidade estão localizadas estruturas denominadas labelas. A probóscida é
dividida em 3 partes: um rostro cônico (basal) onde ficam os palpos maxilares; uma estrutura intermediária, o haustelo,
por onde passa internamente o canal alimentar; e na extremidade estão as lamelas cuja função é provar e filtrar o
alimento. Em descanso, o haustelo se dobra na direção do rostro dentro de uma cavidade na cabeça e somente as labelas
e os palpos ficam expostos. Durante a alimentação, o haustelo se distende sob a ação muscular, da pressão sanguínea e
dos sacos aéreos na cabeça (GREENBERG, 1973; MARICONI et al, 1998). Os alimentos destes muscídeos são líquidos.
As moscas domésticas podem também "amolecer" o alimento de sua preferência, regorgitando o conteúdo estomacal que
contém enzimas que vão permitir a mudança de textura do alimento, para depois ingeri-lo normalmente (MARICONI et
al., 1998).
As moscas sinantrópicas são consideradas vetores mecânicos de diversos microrganismos patogênicos e elas os podem
carregar em todo o exoesqueleto, inclusive nas pernas, asas e peças bucais (MARICONI et al. 1998). Internamente, os
microrganismos podem se alojar no aparelho digestivo, sendo eliminados através dos excretas ou de partículas
regorgitadas constantemente (GREENBERG, 1973). As moscas podem liberar uma variada quantidade de gotas de
vômito, dependendo do tipo de alimento que estão ingerindo. De acordo com Graham Smith (1931) citado por Greenberg
(1973, p. 107) um ensaio demonstrou que a espécie Musca domestica, depois de se alimentar com leite, pode liberar cerca
de 30 gotas de vômito em até 24 horas. As moscas também têm a capacidade de permitir que os organismos patogênicos
passem por seu trato digestivo sem serem alterados, podendo assim serem depositados nos alimentos durante a
regorgitação (ADEYEMI, 1984).
A espécie Musca domestica é distribuída universalmente e é logo reconhecida pela presença de 4 listras escuras
longitudinais situadas no tórax dorsal. O ciclo de vida desta espécie é de metamorfose completa, ou seja, ovo, larva, pupa
e adulto (KETTLE, 1990). Os ovos são depositados pela fêmea em locais de matéria orgânica em fermentação ou em
fezes, numa profundidade de 8 a 10 mm e cada fêmea pode ovipositar de 400 a 900 ovos durante a sua vida, divididos em
6 posturas em média (MARICONI et al., 1998). As larvas emergem após 8 a 20 horas da ovipostura e imediatamente se
alimentam. As larvas passam por 3 instares e completam o ciclo larval em até 7 dias, na temperatura de 32ºC (MALLIS,
1990). Este período vai determinar o tamanho que terá o adulto; a natureza da matéria orgânica também vai influenciar
no seu desenvolvimento; larvas mal nutridas geram adultos pequenos. Quando a larva está pronta para pupar, ela migra
para longe do substrato em fermentação e busca locais mais secos e com temperaturas mais amenas (MALLIS,1990).
Segue-se então o período pupal, em que a larva enrijece o seu tegumento e forma o pupário, onde permanece de 3 a 6 dias
até a sua eclosão na forma adulta. Nesta ocasião, a mosca já formada força a saída na extremidade da pupa com o auxílio
de uma estrutura - o ptilino (MARICONI et al., 1998). Com o auxílio da mesma estrutura, a mosca já adulta vai abrindo
caminho até chegar à superfície. Uma mosca pode surgir de uma profundidade de 1,20 m de barro ou areia, o que torna a
técnica de enterrar matéria orgânica infestada de larvas ineficiente para eliminar estes animais (KETTLE, 1990). O ciclo
de ovo até adulto pode completar-se em 7 a 14 dias, dependendo da temperatura ambiente. De acordo com Metcalf et al.
(1951) citado por Mallis (1990, p 625) durante o verão o ciclo pode durar 6 dias e podem ocorrer de 10 a 12 gerações em
uma única estação. Após emergir da pupa, a fêmea pode acasalar imediatamente ou em até 20 horas e iniciar a deposição
de ovos de 2,5 até 20 dias. Uma fêmea adulta pode viver até 12 semanas (MARICONI et al., 1998).
As espécies do gênero Chrysomya citadas neste trabalho possuem o mesmo ciclo biológico e são influenciadas também
por umidade e temperatura ambiental (MARICONI et al., 1998; GREENBERG, 1973). Do ponto de vista morfológico,
apresentam tórax e abdômen na coloração verde a azul escuro metálico (KETTLE, 1990).
A diferença principal entre as espécies do gênero Musca e do Chrysomya está na escolha dos locais para a oviposição. A
espécie Musca domestica busca, como substrato para a oviposição, fezes de herbívoros, esterco de aves, lixo orgânico,
excremento humano (KETTLE, 1990). Já as espécies do gênero Chrysomya buscam como substrato fezes humanas, lixo
orgânico, tecidos em decomposição, incluindo animais mortos, tecidos cárneos frescos em geral, sendo uma praga de
importância em abatedouros, frigoríficos, mercados de peixe, feiras livres (GREENBERG, 1973; IMBIRIBA, 1979;
FURLANETTO et al., 1984; OKAEME, 1986).
Sabe-se que as moscas sinantrópicas podem albergar cerca de 100 patógenos diferentes e podem transmitir cerca de 65.
Os mais comumente encontrados são o vírus da poliomielite, os vírus da hepatite infecciosa, o do cólera; bactérias que
causam infecções entéricas tais como Salmonella spp, Shigella spp e Escherichia coli; ainda transmitem Staphylococcus
aureus, agentes de tracoma, conjuntivite bacteriana, difteria, tuberculose, lepra e framboesia. As moscas podem também
transportar cistos de protozoários, tais como os de Entamoeba histolytica (KETTLE, 1990).
Considerando o escopo principal deste trabalho, o enfoque e discussão serão direcionados para os microrganismos
patogênicos responsáveis pelas toxinfecções e que representam situação de risco para os serviços de alimentação, para as
indústrias de alimentos e fármacos e para o comércio e manipulação de alimentos de uma forma geral.
Existe uma constante em nossa cultura que é a de optar por atividades de comércio de alimentos como alternativa para o
desemprego, para a aplicação de economias, na busca de uma melhoria nos ganhos de aposentadoria e outras razões. O
trabalho com alimentos é uma atividade de alto risco no Brasil, já que na cultura brasileira não existe um padrão de
higiene que é ensinado de forma geral, no âmbito familiar. O Brasil é um país de grandes proporções e de grandes
contrastes onde reina uma disparidade cultural e educacional. Nas regiões de maior concentração populacional observa-se
que o conhecimento dos padrões de higiene é melhor disseminado entre os cidadãos pertencentes às classes mais
favorecidas, com maior acesso à informação. A grande massa de imigrantes de outras regiões, mais pobres e menos
favorecidas, que chegam aos grandes centros em busca de uma vida melhor e que compõem uma grande parte da
população que vive nas grandes cidades, vem de locais onde esta cultura da higiene não existe, devido às condições de
extrema pobreza. Estas pessoas vão, muitas vezes, trabalhar em empresas que fornecem ou produzem alimentos e
medicamentos e tem extrema dificuldade de entender as normas e padrões de higiene exigidos e necessários às boas
práticas de fabricação. Se o treinamento e a conscientização nas técnicas de preservação de alimentos e de medicamentos
são tarefas que demandam um grande esforço por parte das empresas, mais difícil ainda é a tarefa de informar e
conscientizar as pessoas no sentido de acautelar-se quanto à presença de insetos nestes ambientes, já que a extrema
importância que possuem estes vetores no carreamento de patógenos para os ambientes e alimentos não é citada com a
devida veemência na maioria das publicações ligadas à segurança de alimentos.
O corpo humano está em contínuo contato com microrganismos. Bilhões de células estão presentes na superfície e dentro
do corpo, a maioria delas benéficas e essenciais para a manutenção da homeostase e da defesa do organismo, sendo por
isso chamados de flora normal (MADIGAN et al., 1996). Cada região do corpo humano possui uma flora bacteriana
específica, já que cada órgão oferece um habitat químico e morfologicamente específico para a sobrevivência destes
microrganismos (MADICAN et al., 1996). A flora intestinal é considerada a principal flora do organismo humano e
possui um papel muito importante na defesa contra certas infecções (TRABULSI e TOLEDO, 1991). O trato
gastrointestinal de um recém nascido é estéril; após um ano ele já contem cerca de 100 trilhões de bactérias de 400
espécies diferentes que ajudam também na digestão dos alimentos além de seu papel de defesa (SATIN, 1999). A tabela
1 mostra os principais microrganismos que compõem a flora bacteriana humana.
Tabela 1 - Flora normal do corpo humano
Local Bactérias mais frequentes
Pele e ouvido externo Staphylococcus, Corynebacterium, Propionibacterium, Streptococcus
Conjuntiva Corynebacterium, Staphylococcus
Cavidade oral e laringe Staphylococcus, Streptococcus, Neissería, Bacteroides, Actinomyces,
Treponema, Mycopiasma
Fossas nasais Staphylococcus, Corynebacterium
Aparelho digestivo Staphylococcus, Lactobacillus, Peptococcus, Peptostreptococcus,
Bacteroides, Bífidobacterium, Clostridium, Eubacterium, Streptococcus,
enterobactérias, etc.
Vagina Lactobacillus, Staphylococeus, Corynebacterium, Streptococcus
Uretra anterior Staphylococcus, Corynebacterium, Streptococcus
Fonte: TRABULSI e TOLEDO, 1991
Uma bactéria, para adquirir a condição de patogenia, necessita ser capaz de sobreviver e multiplicar nos tecidos do
hospedeiro, atravessando todas as barreiras e sistemas de defesa que o organismo interpõe (TRABULSI e TOLEDO,
1991).
Em relação aos alimentos, um microrganismo pode simplesmente estragá-lo, causando mau cheiro ou modificando a sua
aparência, sem ser necessariamente patogênico; a preocupação maior deve ser com outro tipo de microrganismo, aquele
que é ingerido e o indivíduo não percebe nem a sua presença nem a de suas toxinas. A este grupo seleto pertencem alguns
tipos e bactérias, fungos, vírus e também parasitas (SILVA JR, 1999).
A toxinfecção alimentar é um termo geral que se aplica a todas as gastrenterites de origem alimentar e refere-se à
irritação e inflamação do trato digestivo. A gastroenterite é resultado da ingestão de alimentos que contem cargas
virulentas de microrganismos patogênicos ou de suas toxinas (SATIN, 1999).
Os autores divergem quanto à classificação das toxinfecções. Satin considera três categorias: as infecções alimentares, as
intoxicações e as toxinfecções alimentares. A primeira refere-se aos casos em que a vítima ingere uma quantidade de
microrganismos suficiente para sua multiplicação dentro do organismo, ou seja, uma dose infectiva. Organismos
exemplares são Salmonella spp, Shigella spp e Campylobacter spp. A segunda refere-se aos casos em que o paciente
ingere as toxinas produzidas pelo microrganismo, tais como, por Staphyloccus ou Clostridium botulinum. As toxinfecções
são uma terceira modalidade que é o resultado da interação das duas anteriores, isto é, o paciente ingere um alimento
contendo uma dose infectiva de microrganismos patogênicos e uma vez a infecção instalada, estes começam a
multiplicar-se rapidamente e a produzir toxinas. O autor cita como exemplos o Clostridium perfringens, a Escherichia
coli e o Vibrio cholerae (SATIN, 1999).
Silva Jr. considera dois quadros somente de gastrenterite: a intoxicação alimentar e a infecção alimentar. No primeiro
caso ocorre devido à ingestão das toxinas produzidas pelos microrganismos nos alimentos; no segundo, o quadro decorre
da multiplicação ou esporulação dos microrganismos no intestino com a utilização dos nutrientes da luz intestinal, em que
ocorre agressão ao tecido epitelial, com ou sem produção de toxinas.
A literatura atual classifica os microrganismos patogênicos em alimentos em três categorias: os clássicos, os emergentes e
os reemergentes (Tabela 11).
TABELA II - MICRORGANISMOS PATOGÊNICOS EM ALIMENTOS -CLASSIFICAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA
Patógenos Bactérias Vírus Parasitas
Clássicos Staphylococcus aureus, Bacillus cereus, Hepatite A, Giardia lamblia, Entamoeba histolytica,
Clostridium perfringens, Salmonella enteritidis, Rotavírus Cryptosporidium parvum, Diphyilobothrium ssp.,
Salmonella typhi, Shigella spp, Ascaris lumbricoides, Trichuris trichiura,
Yersínia enterocolitica, Escherichia coli Eustrongylides sp, Toxoplasma gondii,.Cyclospora
enteropatogênica (EPEC), Escherichia coli cayetanensis,Anisakis sp.
enterotoxigênica (ETEC), Vibrio cholerae 01 e não –01, Nanophyetus spp. Acanthamoeba
Vibrio parahaemolyticus
Emergentes Escheríchia coli enteroin -vasíva (eiec); E. colo Hepatite E
entero Hemorrágica(ehec), Campyiobacter jejuni; Norwalk
Listeria monocytogenes; Vibrio vuLnificus;
Aeromonas hydrophila; Plesiomonas shigelloides;
Pseudomonas aerugInosa; Streptococcus sp.
Reemergentes Zoonoses - Micobacterium bovis; Taenia solium; Brucelia abortus
Fonte: SILVA JR., 1999
Os dez principais microrganismos responsáveis pelos surtos de toxinfecções de acordo com o Serviço de Saúde Pública
dos Estados Unidos são: Campylobacter jejuni, Escherichia coli O 157:H7, Listeria monocytogenes, Clostridium
perfringens, Salmonella sp., Staphylococcus aureus, Vibrio vulnificus, Shigella sp., Toxoplasma gondii, Yersinia
enterocolitica (SILVA JR. , 1999).
De todos estes organismos, os que são mais citados em trabalhos nas últimas décadas, relacionando as moscas domésticas
como forma de transmissão do patógeno, são Shigella spp e Salmonella spp. Os trabalhos pesquisados apresentam uma
forte correlação entre a presença destes microrganismos e a ocorrência de diarréia nas populações, em especial naquelas
com idade até 5 anos. Acredita-se que as patologias que provocam diarréia matem mais crianças no mundo do que
qualquer outra patologia, estimando-se em cerca de 3,3 milhões de óbitos a cada ano (CHAVASSE et al.' 1996). Bidawid
et al. (1978) consideram justificável considerar as moscas como organismo indicador de problemas no aspecto sanitário
das comunidades, a exemplo do uso de organismos coliformes como indicadores de potabilidade da água.
Inicialmente as pesquisas feitas foram no sentido de coletar amostras da população de moscas, identificar as principais
espécies infestantes e a carga de patógenos existente nos grupos de insetos capturados. Um levantamento feito em
Beirute, no Líbano, identificou que a predominância dos insetos capturados era dos que pertenciam às famílias Muscidae,
que são geralmente encontradas pousando em excretas de animais e de humanos, e Calliphoridae, encontradas
principalmente em carnes em decomposição, animais e frutas (BIDAWID et al., 1978). As capturas foram feitas em 9
diferentes pontos da cidade, mediante a distribuição de armadilhas com iscas frescas. Os insetos capturados foram
identificados e distribuídos em lotes para cultura bacteriológica. De uma amostragem de 156 lotes das duas famílias de
moscas foram detectados cerca de 20 % com presença de Shigella spp e Salmonella spp (BIDAWID et al., 1978). A
presença destes microrganismos denotou exposição a fezes humanas, falta de tratamento de esgotos sanitários ou do uso
de excretas humanos como fertilizantes, o que coincide com as condições das áreas em que estas bactérias predominaram
(BIDAWID et al., 1978).
Um levantamento feito na cidade de Curitiba, no estado do Paraná, no Brasil, em 3 abatedouros da cidade procurou
verificar a carga de patogênicos em grupos de muscóideos. Observou-se a predominância da espécie Musca domestica L.
em todos os pontos coletados, porém somente foi encontrado um lote positivo para Salmonella spp; os microrganismos
mais presentes foram o Proteus spp. e Escherichia coli. A preponderância do Proteus spp sobre a Salmonella spp é
justificada pelo fato de haver uma competição entre as duas espécies e a presença de E. coli em todos os lotes era
indicativo de que as moscas haviam pousado em meio contaminado por fezes (IMBIRIBA, 1979).
Em Myamar, um estudo procurou determinar a relação existente entre as altas infestações de moscas e os casos de
diarréia que aumentam consideravelmente nos meses quentes e úmidos. O objetivo da pesquisa foi determinar qual a
carga patogênica que as moscas, capturadas em diversos pontos da comunidade , carregavam. A área estudada era
constituída de uma população pobre, sem condições sanitárias, com criação de diversos animais e durante a estação
úmida esta área era inundada. A predominância de espécies observada foi de Musca domestica L. (69 %) e de
representantes da família Calliphoridae (31 %). Foi detectada a presença de Escherichia coli enterotoxigenica (etec) em
76,3% dos pools de amostras analisados e Vibrio cholerae não - 01 em 45,7%; Salmonella spp foram encontradas em 11,8
% das amostras e Shigella spp, em 4,8%. Considerando que a coleta de lixo era precária na região, a oferta de matéria
orgânica existente foi uma das razões discutidas para justificar a presença de E. coli (KHIN NWE 00 et al., 1989).
Até então, as pesquisas divulgadas tinham como objetivo analisar os pools de moscas e verificar a carga patogênica
existente e, a partir daí estabelecer uma relação entre diarréia, condições climáticas e presença de bactérias
enteropatogênicas nas moscas. Foi somente na década que 90 que foi publicado um trabalho de uma pesquisa feita em
Israel em que foi realmente observada a importância das moscas na disseminação de organismos enteropatogênicos. A
pesquisa estava voltada unicamente ao estudo da Shigelose e partiu do princípio que os estudos até então forneciam
somente provas circunstanciais da importância das moscas como agentes disseminadores de patógenos (COHEN et al.,
1991). Era preciso ir mais além e determinar se existia realmente uma correlação entre os casos reportados de
gastroenterite e o incremento da população de moscas. Os estudos foram desenvolvidos em dois campos militares de
treinamento durante o verão. Apesar das melhorias existentes nas condições sócio econômicas, a shigelose é endêmica no
estado de Israel (COHEN et al. , 1991). Os dados epidemiológicos apontavam um grande percentual de recrutas afetados
por gastrenterites causadas por Shigella spp. nos últimos três anos. Assim, foi projetado um experimento com
intervenção de controle de moscas alternadamente entre os campos para verificar se com a redução dos insetos era
possível também diminuir a incidência dos casos de gastrenterite. Os resultados mostraram que no momento em que
houve intervenção com o uso de diversas armadilhas espalhadas pela área, também diminuíam sensivelmente os casos
reportados de shigelose em cerca de 85 % (COHEN et al. , 1991).
Há muitas evidências de que a Shiguelose ocorre quando as condições de higiene pessoal são primitivas e que o
saneamento básico e suprimento de água potável é insuficiente ou comprometido (LEVINE e LEV1NE, 1991). Os
trabalhos anteriores demonstrando a possibilidade das moscas carrearem Shigella spp. assim como a diminuição das
diarréias por Shigelia spp. quando ocorre redução na população de muscóideos, reforçam a necessidade de se obter um
controle efetivo destes insetos.
Outros estudos tem sido desenvolvidos no sentido de verificar a responsabilidade das moscas sinantrópicas como agentes
de disseminação de diferentes microrganismos patogênicos.
A alta incidência de Escherichia coli em moscas já havia sido observada por Imbiriba (1979) que verificou que, em 145
lotes de moscas coletados em abatedouros em Curitiba, a maioria da espécie Musca domestica L., todos, sem exceção,
apresentavam a presença de E. coli, o que caracteriza que os insetos examinados haviam pousado em fezes, evidenciando
a importância das moscas na disseminação destes patógenos.
No Brasil, em S. Paulo, foram coletadas amostras de moscas do gênero Chrysomya em bancas de pescado de feiras livres
(FURLANETTO et al., 1984). Esta captura foi feita em seguida à constatação do ingresso destas espécies em território
brasileiro por Guimarães (MARICONI et al, 1998). Trata-se do primeiro estudo brasileiro publicado que demonstra a
presença de microrganismos patogênicos nestas espécies de moscas sinantrópicas (FURLANETTO et al., 1984). Foram
pesquisados somente o tórax e o abdomen dos insetos, tendo sido desprezadas as pernas, peças bucais e asas. Os
resultados mostraram a existência de Salmonella em somente uma das 16 amostras coletadas. A presença de Escherichia
coli foi positiva em 13 amostras e as 2 amostras restantes evidenciaram a presença do poliovirus tipo 1II (FURLANETTO
et al,, 1984). O fato de terem sido desprezadas outras estruturas das moscas no exame bacteriológico pode ter sido um
fator limitante para os resultados, já que é fato conhecido que as moscas abrigam microrganismos patogênicos em
diversas partes do corpo, além daquelas estudadas neste trabalho.
No estudo de Adeyemi e Dipeolu (1984) em Ibadan, na Nigéria, foram capturados 2.000 exemplares de moscas,
em sua maioria da espécie Musca domestica L., em diversas partes da cidade. Ibadan é um grande centro urbano com
cerca de 2,5 milhão de habitantes na época da pesquisa. Este estudo foi o mais completo e abrangente encontrado, já que,
além de incluir uma amostragem da população de muscídeos, identificou os microrganismos patogênicos transmitidos e
em que parte do corpo destes insetos estavam alojados, o que significou um avanço em termos de obtenção de dados em
relação a Furlanetto (1984). O estudo cruzou os dados referentes às espécies coletadas com os locais de coleta, os
microrganismos encontrados e as partes do corpo dos muscídeos onde as cargas de patógenos se concentravam. O
microrganismo predominante foi o Bacillus spp. (40%), seguido do Proteus spp. (24%) e Klebsíella spp. (16%). A
Escheríchia coli foi encontrada em 14% das amostras, recolhidas principalmente de mercados, residências de baixa renda
e fábrica de laticínios. Em relação às partes do corpo dos insetos, as pernas concentravam o maior número de patógenos
(42%), seguido do trato intestinal (23,15%) e das asas (19,11 %) (ADEYEMI e DIPEOLU, 1984).
Khim Nwe 00 et al. (1989) também isolaram E. coli em 76,3 %das amostras de muscídeos, na sua maioria Musca
domestica L. e Calliphora spp., e também concluíram que estes insetos são importantes agentes de disseminação de
patógenos de gastroenterites, especialmente nos climas quentes e úmidos. Os casos de diarréia infantil aumentam
consideravelmente em Myamar, local do estudo, na estação quente e úmida do ano bem como a população de moscas. A
pesquisa buscou demonstrar uma relação entre o aumento destes casos e a quantidade de patógenos encontrados nos
muscídeos capturados. Khim Nwe OO et al. (1989) constataram que, na estação quente úmida, 85% dos pools de moscas
abrigavam E. coli, o que os autores atribuíram aos atrasos na coleta de lixo doméstico que se constituíam em berço de
criação das moscas.
Paraluppi et al. em recente trabalho (1996) na cidade de Manaus, Amazonas, Brasil, relataram a presença de E. coli em
62.5 % dos pools de moscas da família Calliphoridae capturadas em 8 mercados de rua em diversos pontos da cidade
durante a estação seca. Foi também constatada a presença de Staphylococcus aureus em 100% das amostras na estação
chuvosa e de Proteus spp em 75% das amostras nas duas estações de coleta.
O mais recente trabalho encontrado relata a primeira vez em que foi isolado o microrganismo Escherichia coli
enterohemorrágica O 157:H 7 da espécie Musca domestica L. em 4 diferentes fazendas na região de Obihiro, Hokkaido,
no Japão (IWASA et al., 1999).
Muitos surtos e casos esporádicos tem acontecido no Japão desde 1984 causados por este microrganismo, que foi
inicialmente descrito em 1982, nos Estados Unidos (IWASA et al., 1999). Os Estados Unidos também registraram um
surto dos mais importantes em 1993 causado por ingestão de carne bovina preparada como hamburguer (SATIN, 1999). A
Escherichia coli 0157-H7 produz uma toxina cuja dose infectante não é conhecida, mas acredita-se ser bem pequena
(SILVA JR, 1999). A transmissão normalmente é feita através da ingestão de carne animal (bovina) contaminada, porém
pode ocorrer também o contágio pessoa - pessoa (SILVA JR, 1999). Há relatos de contaminação de vegetais cultivados
com esterco animal contaminado. Também foi narrada a contaminação de uma criança ocasionado pelo fato dela ter
tocado animais portadores (SATIN, 1999). No Japão ocorreu um dos mais importantes surtos com E. coli 0157-H7 do
século, em 1996, com 10.000 vítimas, a maioria crianças, de Osaka e Sakai; 11 pessoas morreram (SATIN, 1999).
O isolamento da E. coli 0157:H7 foi fato decorrente de uma pesquisa realizada na cidade de Okihiro em seguida a um
grande surto (160 vítimas) desta infecção entre crianças de jardim de infância no ano de 1996. As moscas foram coletadas
de 4 fazendas situadas próximas à cidade. Os insetos foram coletados próximo ao esterco de gado, porcos e galinhas e
examinados individualmente. O microrganismo foi encontrado em uma dentre 80 amostras da fazenda A (gado) e em 4
das 160 amostras da fazenda B (gado) em diferentes épocas do ano, sendo que a maior quantidade de E. coli 0157:H7 foi
isolado no outono. Este microrganismo já havia sido anteriormente isolado em esterco de gado bovino, porém esta foi a
primeira vez em que ele foi isolado e inseto, na espécie Musca domestica L.
Wright (1983) isolou Campylobacter jejuni em 2,4% de 210 moscas examinadas. O estudo foi desenvolvido na Inglaterra
e o autor relata que, apesar do índice de microrganismos encontrados nas moscas não ter chegado aos valores
equivalentes descritos por Rosef e Kapperud (1983), ele considera importante inclusão deste microrganismo na lista de
bactéria enteropatogênicas transportadas por muscídeos.
O Rotavirus é encontrado em fezes humanas e em água contaminada for fezes, e sua transmissão atribuída a
manipuladores ou por água contaminada em frutas, legumes e verduras (SILVA JR., 1999). Tan et al. (1997) descreveram
três experimentos para verificar se a Musca domestica L. adquiria o Rotavirus nas pernas mediante o contato com o meio
contaminado e se era capaz de espalhar o vírus nas superfícies. Um terceiro experimento verificou se o bater das asas das
moscas tinham influência e importância na dispersão do vírus no ambiente e superfícies. Os resultados mostraram que as
moscas adquiriram o vírus em 100% dos testes em que houve contato com meio de fezes contaminado com o Rotavirus.
Todas as moscas contaminadas espalharam o vírus nas superfícies, independentemente do tempo de contato ou da
natureza da superfície. Tan et al. (1997) também observaram que as moscas liberam os vírus que estão nas asas
rapidamente. Esta última informação é extremamente importante pois indica que quanto maior a distância entre o ponto
de origem da contaminação e as superfícies, menores as possibilidades de contaminação de vírus pelo bater de asas. Tan
et al. (1997) verificaram também que o meio de fezes contaminado com o Rotavirus aumenta a eficiência de transporte
destes microrganismos nas pernas das moscas, pois o vírus adere com facilidade às partículas de fezes e estas, por serem
maiores, aderem mais facilmente às pernas dos insetos.
Wallace (1971) investigou a provável participação de moscas sinantrópicas na transmissão natural do Toxoplasma gondii.
A hipótese surgiu a partir da descoberta de um oocisto de T gondii resistente em fezes de gatos infectados
experimentalmente. Era possível que insetos com hábitos coprofágicos tivessem participação no ciclo da transmissão
deste parasita. Wallace concluiu que isto é possível e que as moscas sinantrópicas devem ser consideradas como vetores
potenciais deste organismo para o homem, sendo necessária maior investigação a respeito.
Estes dípteros também foram pesquisados em outras ocasiões e considerados responsáveis portadores de Klebsiella spp.
(FOTEDAR et al, 1992). Mais recentemente diversos trabalhos foram publicados referentes à relação de transmissão de
Helicobacter pylori por estes insetos (GRUBEL et al., 1997; CAVE, 1997; GRUBER et al., 1998; OSATO et al., 1998).
CONCLUSÃO
Diante das evidências bibliográficas encontradas, é possível considerar este tema como importante e digno de futuras
investigações científicas. A participação das moscas sinantrópicas na distribuição de microrganismos patogênicos, em
especial daqueles responsáveis por gastroenterites, não pode ser negada nem desconsiderada. Com o crescente incremento
dos serviços de alimentação em nosso país, em atendimento às necessidades da população, que a cada dia consome mais
serviços desta natureza, faz-se necessário observar mais atentamente a presença destes insetos nestes ambientes e buscar
elementos que impeçam preferencialmente, a sua entrada e permanência junto aos alimentos preparados e prontos para o
consumo. É importante também evitar que estes insetos entrem em contato com pessoas enfermas, idosos, indivíduos com
baixa imunidade, crianças, especialmente recém-nascidos, pois pequenas cargas de alguns patógenos podem ser altamente
infectivas para estas pessoas.
Do ponto de vista preventivo, inúmeras atitudes devem ser tomadas no sentido de evitar a proliferação destes insetos no
meio urbano. Diante do atavismo das moscas sinantrópicas aos berços de matéria orgânica, intenso trabalho de manejo
destes locais deve ser empreendido a nível doméstico, comercial, industrial, com intensa participação das autoridades
governamentais. É necessário um trabalho de educação sanitária em todos os níveis escolares de tal forma a minimizar os
efeitos nocivos trazidos por estes insetos, a exemplo do trabalho já desenvolvido em relação às zoonoses. Os
investimentos devem ser direcionados no sentido de modificar o ambiente, através da implementação das estações de
tratamento de esgotos, de tal forma que os dejetos humanos das cidades não fiquem expostos a céu aberto, em meio aos
inúmeros córregos e rios que permeiam diversas cidades brasileiras. É igualmente fundamental investir em novas
tecnologias para manejo do lixo orgânico das cidades, com a introdução de coletas seletivas, permitindo que, com menor
carga de lixo, seja possível manejar de uma forma mais adequada o residuário das grandes cidades. Daí a importância de
se disseminar informações relativas ao papel das moscas sinantrópicas na dispersão de patógenos no ambiente, em todos
os níveis educacionais. Da mesma forma que diversos profissionais estão engajados em trabalhos de treinamento junto a
empresas de alimentos, de todos os tamanhos e capacidades produtivas, é importante que haja profissionais que informem
a respeito destes riscos potenciais aos alimentos e medicamentos, objetivando uma redução natural e gradativa das
infestações, em razão da implantação de uma nova cultura, com mudanças de hábitos e atitudes em relação à presença
destes dípteros no meio urbano. Mais conscientes os cidadãos estarão reivindicando melhoras a nível sanitário, não só
das autoridades governamentais, mas também de todos os que manipulam, fabricam, comercializam alimentos ou
fármacos.
Diante dos poucos relatos existentes a respeito da relação moscas sinantrópicas e os alimentos em língua portuguesa, é
necessário que sejam empreendidas pesquisas enquadradas dentro da realidade brasileira, que irão colaborar e muito no
esforço para a obtenção de uma alimentação mais segura.
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