Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação...

156

Transcript of Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação...

Page 1: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família
Page 2: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ARISTOTELESPARATodos

UMAINTRODUÇÃOSIMPLESAUMPENSAMENTOCOMPLEXO

Page 3: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Copyright©1978byMortimerJ.Adler

Publicadopormeiodeacordocomaeditoraoriginal,Scribner,umadivisãodaSimon&Schuster,Inc.PublicadooriginalmentenosEstadosUnidos,em1978,pelaScribnerPublishing,NewYork,sobotítuloAristotleforEverybory:DifficultThoughtMadeEasy.Estaediçãofoitraduzidadaediçãode1997,da

Simon&Schuster,NewYork,EstadosUnidos.Copyright©2010ÉRealizações

Títulooriginal:AristotleforEveryboryDifficultThoughtMadeEasy

EditorEdsonManoeldeOliveiraFilho

Produçãoeditorial,capaeprojetográficoÉRealizaçõesEditoraPreparaçãodetextoNelsonLuisBarbosa

RevisãoCamilaWernereAlyneAzuma

Reservadostodososdireitosdestaobra.Proibidatodaequalquerreproduçãodestaediçãoporqualquer

meioouforma,sejaelaeletrônicaoumecânica,fotocópia,gravaçãoouqualqueroutromeiodereprodução,sempermissãoexpressadoeditor.

DADOSINTERNACIONAISDECATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO(CIP)(CÂMARABRASILEIRADOLIVRO,SBBRASIL)Adler,MortimerJ.,1902-2001.Aristóteles para todos: uma introdução simples a umpensamento complexo/Mortimer J.Adler, traduçãoPedroSette-Câmara.-SãoPaulo:ÉRealizações,2010.Títulooriginal:Aristotleforeverybody.ISBN978-85-8033-003-81.AristótelesI.Título.10-08558CDD-185

Índicesparacatálogosistemático:1.Aristóteles:Obrasfilosóficas185

ÉRealizaçõesEditora,LivrariaeDistribuidoraLtda.

RuaFrançaPinto,498SãoPauloSP04016-002CaixaPostal:4532104010-970Telefax:(5511)55725363

[email protected]

Este livro foi impresso pelaPaymGráfica eEditora, em junhode 2016.Os tipos usados são da famíliaWeissBT,PerpetuaTitlingeBernhardModBT.OpapeldomioloéoLuxCream70g,eodacapaNingboGloss300g.

Page 4: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ARISTÓTELESPARATodos

Umaintroduçãosimplesaumpensamentocomplexo

MORTIMERJ.ADLER

TraduçãoPEDROSETTE-CÂMARA

3aimpressão

ÉRealizaçõesEditora

Page 5: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

SUMÁRIOPrefácioIntroduçãoPARTEI-OCOMOANIMALFILOSÓFICO1.Jogosfilosóficos2.Agrandedivisória3.AstrêsdimensõesdohomemPARTEII-OHOMEMCOMOFAZEDOR4.CrusoésegundoAristóteles5.Mudançaepermanência6.Asquatrocausas7.Serenãoser8.IdeiasprodutivasesaberpráticoPARTEIII-OHOMEMCOMOATOR9.Pensandosobrefinsemeios10.Vivereviverbem11.Bom,melhor,omelhor12.Comobuscarafelicidade13.Bonshábitoseboasorte14.Oqueosoutrostêmodireitodeesperardenós15.OquetemosodireitodeesperardosoutrosedoEstadoPARTEIV-OHOMEMCOMOCONHECEDOR16.Oqueentranamenteeoquesaidela17.Ostermospeculiaresdalógica18.Dizeraverdadeepensá-la

Page 6: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

19.AlémdedúvidarazoávelPARTEV-QUESTÕESFILOSÓFICASDIFÍCEIS20.Ainfinitude21.Aeternidade22.Aimaterialidadedamente23.DeusEPÍLOGOParaaquelesqueleramouqueremlerAristóteles

Page 7: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Orelhas

PorqueAristóteles?Porqueparatodos?Essasperguntas terão respostasmelhoresdepoisque se responderaoutra

pergunta. Por que a filosofia? Por que todos deveriam aprender a pensarfilosoficamente—afazerasquestõespungentesqueascriançaseos filósofosfazem,eaqueosfilósofosàsvezesrespondem?

Hámuitotempocreioquetodosdeveriamocupar-sedafilosofia—masnãopara obtermais informações sobre omundo, sobre a sociedade ou sobre nósmesmos. Para isso, o melhor é voltar-se para as ciências sociais e para ahistória.

A filosofianoséútildeoutro jeito—elanosajudaacompreendercoisasque jásabemos,acompreendê-lasmelhordoqueagora.Épor issoque todosdeveriamaprenderapensarfilosoficamente.

Paraserviraessepropósito,nãoháprofessormelhordoqueAristóteles.Nãohesitoemrecomendá-locomooprimeiroprofessor.Platão,talvez,fosse

o único outro professor a recomendar,mas creio que ele é o segundomelhor.Platãopropôsquasetodasasquestõescomquehavemosdedeparar;Aristótelestambém as propôs, e ainda ofereceu respostas claras a elas. Platão ensinouAristótelesapensar filosoficamente,maseleaprendeu tãobema liçãoque setornouomelhorprofessorparatodosnós.

Como nosso interesse é aprender a pensar como Aristóteles, aquilo queAristótelespensouémaisimportantedoquequemelefoiouquandoecomoeleviveu. Os séculos e as mudanças que o separam de nós podem fazer que ascondiçõesdesuavidaedasociedadeemqueeleviveunospareçamestranhas;mas,como tentareiexplicar,elasnão fazemqueoestiloouoconteúdodeseupensamentonospareçaestranho.

Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J.Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família judia.Abandonouaescolaaosquatorzeanose foi trabalharcomocontínuonoNewYork Sun. Alguns anos depois, pretendendo tornar-se um jornalista, decidiufrequentar aulas na Columbia University para melhorar a escrita. EmColumbia, teve contato com as obras de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino,

Page 8: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

JohnLocke,JohnStuartMill e outros.Dedicou-se tanto aos estudos que nãoconseguiu cumprir os requisitos mínimos para completar sua graduação. Noentanto,logoauniversidade0recompensoucomumdoutoradohonoráriopelaqualidadedesuaescrita.

Assim, na década de 1920, Adler tornou-se professor de psicologia,escrevendovários livrossobrea filosofiaeareligiãoocidentais,alémdesuasprópriasobras filosóficas.Nelas, ele evitavaa linguagemacadêmicaa fimdefazer comque seuspensamentos fossemacessíveisaqualquer tipode leitor, enãoapenasaespecialistaseacadêmicos.Autordemaisdecinquentalivros,nadécadade193o tornou-se professor daUniversidade deChicago, ajudando afundaro Institute forPhilosophicalResearchdaUniversidadedaCarolina doNorte,oAspenInstituteeoCenterfortheStudyoftheGreatIdeas.

Page 9: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Contracapa

Apesar de Aristóteles ter sido um grego que viveu há25 séculos, eleconheciaaslinhasgeraisdomundoemquevivemosbemosuficienteparafalarsobreelecomoseestivessevivohoje.Noquedizrespeitoasuacapacidadedenosajudarapensar filosoficamente,Aristótelesnão seriamelhorprofessor seconhecesse tudo que os cientistas modernos conhecem. Em seu projeto deentender a natureza, Aristóteles começou onde todos deveriam começar —naquilo que já sabia, graças à sua experiência comum, cotidiana. Por partirdela, seupensamentovaleu-sede ideiasque todosnóspossuímos, nãoporquenosforamensinadasnaescola,masporqueconstituemopatrimôniocomumdopensamento humano a respeito de tudo. Às vezes dizemos que essas ideiascompõem o nosso senso comum. São as ideias que formamos a partir daexperiência comumdenossas vidas cotidianas—experiências que temos semnenhum esforço investigativo, experiências que temos simplesmente porqueestamosdespertoseconscientes.Alémdisso,essasideiascomunssãoideiasqueconseguimos expressar comaspalavras comunsqueusamosna linguagemdetodos os dias. A humanidade aprendeu muito desde a época de Aristóteles,graças,sobretudo,àsdescobertasdaciênciamoderna.Aciênciaaplicadacriouummundoeummododevidamuitodiferentesdeseumundoedeseumododevida.Elenãotinhacarro,nãopodiafalaraotelefone,nuncaviuoquesepodevernummicroscópioounumtelescópio,nãopôdeenxergarasuperfíciedalua,enuncaouviudabocadehomensqueestavamandandonelaumadescriçãodesua superfície. Mas Aristóteles teve as mesmas experiências comuns em suaépocaquetemosnanossa.Seumododerefletirarespeitodelaspermitiuqueeleascompreendessemelhordoqueamaioriadenós.

Page 10: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

PREFÁCIO

Assimquetiveaideiadefazerestelivro,penseiemchamá-loAristótelesdasCrianças ou Aristóteles para Crianças. Mas esses títulos não representariamcom exatidão a plateia a que essa exposição simples e fácil da obra deAristóteles sedestina.Aplateia, acreditava, eram todos - de qualquer idade, apartir dos doze ou quatorze anos. Por isso o título escolhido, bem como osubtítulo"Uma introduçãosimplesaumpensamentocomplexo"eaafirmaçãodequeestelivroéumaintroduçãoaosensocomum.

Quandodigo"todos",querodizertodosmenososfilósofosprofissionais,-emoutraspalavras,todasaspessoasdeexperiênciaeinteligênciacomuns,quenãoforam maculadas pela sofisticação e pela especialização do pensamentoacadêmico.Aindaassim,acrescenteiumepílogoquepodeserútilaosestudantesdefilosofiaqueleremestelivro,equepodeserusadocomoguiadeleituradasobrasdeAristótelessobreosassuntostratadosnolivro.

Meusdoisfilhos,DouglasePhilip(comtrezeeonzeanos,respectivamente),leram omanuscrito àmedida que ele saía daminhamáquina de escrever emAspen no verão passado. Agradeço-lhes por seu entusiasmo e por suassugestões.

DesejoaindamanifestarminhagratidãoaRosemaryBarnes,quenamesmaépocaleuecriticouomanuscritoemsuaíntegra,etambémameuscolegasdoInstituteforPhilosophicalResearch,quecontribuíramcomsugestões:JohnVanDoren,OttoBirdeCharlesVanDoren.Posteriormente,poucoantesdeo livroser composto, Caroline, minha esposa, leu-o inteiro e fez sugestões paramelhorá-lo,pelasquaissougrato.

Como sempre, devomuito aMarlys Allen, minha secretária editorial, porseusesforçosincansáveisemtodasasfasesdaproduçãodestelivro.

MortimerJ.AdlerChicago,28dedezembrode1977

Page 11: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

INTRODUÇÃO

PorqueAristóteles?Porqueparatodos?E por que uma exposição do pensamento aristotélico para o público leigo

equivale a uma introdução ao senso comum? (Adler fala em common sense, que tem osentidohabitualde"bomsenso",enãode"sensocomum".Emportuguês,o"sensocomum"énormalmenteentendidocomooconjuntodasopiniõescorrentes.Eminglês,comtnonsenseéprimariamenteacapacidadede ser razoável, sensato, mas também pode ter sentido equivalente ao "senso comum". Como Adlerdiscutiráapalavracommon,optamosportraduziraexpressãocomo"sensocomum",masoleitordeveficaradvertidodequeseuusoeminglêsnãotemequivalenteemportuguês)

Essas três perguntas terão respostas melhores depois que eu responder aoutrapergunta.Porquea filosofia?Porque todosdeveriamaprenderapensarfilosoficamente - a fazer as questões pungentes que as crianças e os filósofosfazem,eaqueosfilósofosàsvezesrespondem?

Hámuito tempocreioque todosdeveriamocupar-sedafilosofia-masnãopara obter mais informações sobre o mundo, sobre a sociedade ou sobre nósmesmos.Paraisso,omelhorévoltar-separaasciênciassociaiseparaahistória.Afilosofianoséútildeoutrojeito—elanosajudaacompreendercoisasquejásabemos,acompreendê-lasmelhordoqueagora.Eporissoquetodosdeveriamaprenderapensarfilosoficamente.

Paraserviraessepropósito,nãoháprofessormelhordoqueAristóteles.Nãohesitoemrecomendá-locomooprimeiroprofessor.Platão,talvez,seriaoúnicooutro professor a recomendar, mas creio que ele é o segundo melhor. Platãopropôs quase todas as questões com que havemos de deparar, Aristótelestambém as propôs, e ainda ofereceu respostas claras a elas. Platão ensinouAristóteles a pensar filosoficamente,mas ele aprendeu tão bem a lição que setornouomelhorprofessorparatodosnós.

Como nosso interesse é aprender a pensar como Aristóteles, aquilo queAristótelespensouémaisimportantedoquequemelefoiouquandoecomoeleviveu. Os séculos e as mudanças que o separam de nós podem fazer que ascondiçõesdesuavidaedasociedadeemqueeleviveunospareçamestranhas,mas,como tentareiexplicar,elasnão fazemqueoestiloouoconteúdodeseupensamentonospareçaestranho.

Aristótelesnasceuem384a.C.,nacidademacedônicadeEstagira,nacostanortedomarEgeu.SeupaieramédiconacortedoreidaMacedônia.Onetodoreitornou-seAlexandreMagno,dequemAristótelesveioasertutoreamigo.

Page 12: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Aosdezoitoanos,AristótelesfoimoraremAtenaseentrounaAcademiadePlatão para estudar filosofia. Não demorou para que Platão achasse queAristóteles era um aluno problemático, que questionava seus ensinamentos ediscordava dele abertamente. Quando Platão morreu, e Alexandre passou adominaraGrécia,Aristótelesabriusuaprópriaescola,oLiceu.Issofoiem335a.C.

O Liceu tinha uma boa biblioteca, uma extensa coleção de mapas e umzoológico, no qualAristóteles colecionava espécimes de vida animal.Diz- -seque alguns deles foram enviados por Alexandre das terras que conquistava.QuandoAlexandremorreu,em323a.C.,AristótelesdeixouAtenaseexilou-senumadasilhasdomarEgeu,ondeveioafalecerumanodepois,aos63anos.

Aristótelesviveunumasociedadeemqueoscidadãosdispunhamdetempolivre para dedicar-se aos passatempos do ócio porque tinham escravos paracuidardesuaspropriedadeseparafazerostrabalhosbraçais.Naquelasociedade,asmulherestambémocupavamumaposiçãodeinferioridade.Platão,aoprojetaras instituições do Estado ideal, propôs que todos os cargos políticos, com aexceçãodechefedasForçasArmadas,estivessemabertosàsmulheres,porqueele considerava os homens e asmulheres essencialmente iguais, jáAristótelesaceitava a visão convencional de sua época a respeito da inferioridade dasmulheres.

Falarei mais, num capítulo posterior, a respeito das ideias de Aristótelessobreaescravidãoeasmulheres.Aquiquerodeixarclaroqueofatodeeuusarpalavras como "homem", "homens" e "humanidade" (Em inglês, mankind["humanidade"] mantém o "machismo".) em seu sentido genérico para designar sereshumanos dos dois gêneros, e não apenas a partemasculina da população, nãodevesertomadocomosinaldequecompartilhoavisãodeAristótelessobreasmulheres.Pelocontrário:nesseponto,souplatonista.

Algumas pessoas talvez considerem a antiguidade de Aristóteles umadesvantagem. Talvez achem que seria melhor ter como professor alguém queestivessevivohoje—alguémqueconhecesseomundoemquevivemos,alguémqueconhecesseaquiloqueaciênciamodernadescobriusobreestemundo.Nãoconcordocomessaspessoas.

Apesar de Aristóteles ter sido um grego que viveu há 25 séculos, eleconheciaaslinhasgeraisdomundoemquevivemosbemosuficienteparafalarsobreelecomoseestivessevivohoje.Noquedizrespeitoasuacapacidadedenos ajudar a pensar filosoficamente,Aristóteles não seriamelhor professor seconhecessetudoqueoscientistasmodernosconhecem.

Em seu projeto de entender a natureza, Aristóteles começou onde todosdeveriam começar— naquilo que já sabia, graças à sua experiência comum,

Page 13: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

cotidiana. Por partir dela, seu pensamento valeu-se de ideias que todos nóspossuímos,nãoporquenosforamensinadasnaescola,masporqueconstituemopatrimôniocomumdopensamentohumanoarespeitodetudo.

Àsvezesdizemosqueessasideiascompõemonossosensocomum.Sãoasideiasqueformamosapartirdaexperiênciacomumdenossasvidascotidianas—experiênciasquetemossemnenhumesforçoinvestigativo,experiênciasquetemossimplesmenteporqueestamosdespertoseconscientes.Alémdisso,essasideias comuns são ideias que conseguimos expressar com as palavras comunsqueusamosnalinguagemdetodososdias.

Perdoe-meserepitodemaisapalavra"comum".Nãotenhocomoevitarisso,etenhodedestacaressapalavraporqueseusignificadoestánocoraçãodemeuraciocínio.Nemtudoécomum.Hámuitascoisasquechamamosnossas,masháoutras que admitimos não ser exclusivamente nossas. Nós as compartilhamoscomoutros,comoumlivroquenossosamigostenhamlido,ouumfilmedequealgunsdenósgostamos,ouumacasaqueécompartilhadaportodososmembrosdeumafamíliaquandovivemjuntosnela.

Ascoisasquedividimossãocomuns.Hámuitascoisasquesãodivididasporgruposdiferentesdepessoas.Outras,emmenornúmero,sãodivididasportodosnós, e compartilhadas por todos nós, simplesmente porque somos todoshumanos. É este último sentido da palavra "comum", o sentido de abarcar atodos, que tenho em mente quando falo de experiências comuns e de ideiascomuns,ouquandodigoqueosensocomumécomum.

Asideiasdosensocomumsãoexpressasporpalavrascomo"coisa","corpo", "mente" , "mudança" , "causa" , "parte" , "todo" , "um" , "muitos",etc. Amaioria de nós vem usando essas palavras e ideias hámuito tempo - desde ainfância.Começamosausá-lasparafalardeexperiênciasquetodostivemos—decoisasemmovimentoouemrepouso,deplantasquecrescem,deanimaisquenascememorrem,desentarelevantar,dedoresesofrimentos,dedormir,sonhareacordar,denutrireexercitarnossoscorpos,edetomardecisões.

Eupoderia ampliar essa listade experiências comuns, assimcomopoderiaampliar a lista das palavras comuns que usamos e das ideias comuns quepossuímos.Masmesmosemosacréscimosquepoderíamosfazer,éprecisoquefique claro que as palavras, experiências e ideias que mencionei são todascomuns—nãopertencemexclusivamenteavocê,nemamim,nemaninguém.

Emcontrapartida,ascoisasqueoscientistasobservamemseuslaboratórios,ou que os exploradores observamem suas expedições, são experiênciasmuitoespeciais.Podemos conhecê-laspormeiode seus relatórios,masnormalmentenósmesmosnãoastestemunhamos.

A humanidade aprendeu muito desde a época de Aristóteles, graças,

Page 14: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

sobretudo, às descobertas da ciência moderna. A ciência aplicada criou ummundo e ummodo de vidamuito diferentes de seumundo e de seumodo devida.Elenãotinhacarro,nãopodiafalarao telefone,nuncaviuoquesepodevernummicroscópioounumtelescópio,nãopôdeenxergarasuperfíciedalua,enunca ouviu da boca de homens que andaram nela uma descrição de suasuperfície.MasAristóteles teveasmesmasexperiênciascomunsemsuaépocaque temos na nossa. Seumodode refletir a respeito delas permitiu que ele ascompreendessemelhordoqueamaioriadenós.

Épor isso, e sópor isso, que elepodenos ajudar a entendermelhor essasexperiências comuns, e ajudar-nos a compreendernósmesmosenossavida, etambémomundoeasociedadeemquevivemos,aindaquenossoestilodevida,nossomundoenossasociedadesejamdiferentesdosdele.

OpensamentodeAristótelescomeçoucomosensocomum,masnãoparounele. Foi muito além, acrescentando ao senso comum percepções eentendimentosquenadatêmdecomuns,ecercando-odesses.Suacompreensãodascoisasémaisprofundadoqueanossa,eàsvezesvoamaisalto.Trata-se,numapalavra,deumsensocomumincomum.

Essa é sua grande contribuição para todos nós. O que tentarei fazer nestelivroétornarseusensocomumincomummaisfácildeentender.Seelesetornarmaisfácildeentender,talvezsetorneatémenosincomum.

Page 15: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ParteI

OHomemcomoAnimalFilosófico

Page 16: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

1.JOGOSFILOSÓFICOS

Muitos de nós jogamos dois jogos sem perceber que eles nos faziam umpouco filósofos. Um se chama "Animal, Vegetal, Mineral",- o outro, "VintePerguntas".

Osdoisjogosconsistememfazerperguntas.Todavia,nãoéissoqueostornafilosóficos,masoqueestáportrásdeles:umgrupodecategorias,umesquemaclassificatório. Todos nós conhecemos o processo de classificar coisas, decolocá-lasnestaounaquelacategoria.Todos fazemos issoemalgummomento— os comerciantes, quando inventariam os itens em suas prateleiras,- osbibliotecários,quandocatalogamlivros,-ossecretários,quandoarquivamcartasoudocumentos.Masquandoosobjetosaseremclassificadossãoosconteúdosdomundo físico, ou o universo cada vezmaior que inclui omundo físico, afilosofiaentraemcena.

Osdoisjogos—"Animal,Vegetal,Mineral"e"VintePerguntas"-àsvezessãojogadoscomosefossemidênticos.Issoacontecequandoaprimeiraperguntadasériedevinteé"Animal,vegetaloumineral?",tendoporobjetivodeterminarse o objeto em que se está pensando faz parte de uma dessas três grandescategoriasouclassesdecoisas físicas.Se,porexemplo,oobjetoescolhidoforumafigurageométrica,comoumcírculo,ouumnúmero,comoaraizquadradade menos 1, ou se for um dos deuses gregos, como Zeus, Apoio ou Atena,perguntar se o objeto em questão é animal, vegetal oumineral não vai— aomenosnãodeveria—levaraqualquerresposta.

Opropósitodojogodevinteperguntas,quandonãocomeçacomapergunta"Animal,vegetaloumineral?",édescobrirumobjetoquepodeserpensadoporqualquerpessoa.Elenãose limitaaobjetosquesejamcoisasfísicas.Dosdoisjogos, é o que temmais chance de nos fazer pensar filosoficamente sem nosdarmos conta disso. Para nos darmos conta disso, precisamos da ajuda deAristóteles.

Aristótelestinhaumagrandecapacidadedeclassificação,etambémdefazerperguntas.Opensamentofilosóficocomeçavacomperguntas—perguntasquepode ser respondidas a partir de nossa experiência comum, cotidiana, e dealguma reflexão sobre essa experiência que leva a um aguçamento e a umrefinamentodenossosensocomum.

Animal,vegetalemineraléumadivisãopronta,tripla,decoisasquesepodeencontrar no mundo físico. Mas usamos a palavra "mineral" de modo vago

Page 17: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

quandoausamosparareferirtodasascoisasfísicasqueficamdeumdosladosdalinhadivisóriaentreosorganismosvivoseascoisasinanimadas-entrepésderoseirasouratosepausoupedras.Nemtodasascoisasinanimadassãominerais,como o ouro ou a prata que cavamos de depósitos no solo. Algumas sãoformações rochosas da superfície ou do interior da Terra; outras são formasmateriaisemestadolíquidoougasoso.

Dentrodacategoriadecorposnãovivosouinanimadosvagamenteabrangidapelo termo "mineral", Aristóteles nos faria distinguir entre corpos simples ecompostos.Umcorpoelementar,segundoAristóteles,écompostoporumúnicotipodematéria—porexemplo,ouro,cobreouzinco.Jáumcorpocompostoéfeitopordoisoumais tiposdematéria, comoobronze,queéumamisturadecobreezinco.Mas,paraAristóteles,adistinçãomaisimportanteéaqueseparaascoisasvivasdasnãovivas.

Oquediferencia todos os organismosvivos dos corpos inertes, sejamelescorpos elementares ou compostos? A partir de nossa experiência comum dosorganismos vivos, sabemos que todos eles têm certas características comuns.Elessenutrem,-crescem,-sereproduzem.

Entre os organismos vivos, o que diferencia as plantas dos animais?Maisuma vez, a partir de nossa experiência comum, sabemos que os animais têmcertascaracterísticascomunsqueasplantasnãotêm.Elesnãotêmraízesnaterracomo as plantas,- eles têm a capacidade de ir de um lugar a outro por seusprópriosmeiosdelocomoção.Suanutriçãonãovemdoaredosolo,comoadasplantas.Alémdisso,amaioriadosanimaistemórgãosdossentidos.

Alinhadivisóriaentreoscorposinerteseosorganismosvivosàsvezesnosleva a perguntar de que lado ficariam determinadas coisas. Isso também valepara a linha divisória entre as plantas e os animais. Por exemplo, algumasplantas parecem ter sensibilidade, ainda que não tenham órgãos de sentidos,comoolhosououvidos.Algunsanimais,comoosmoluscosdeconcha,parecemnãoteracapacidadedelocomoção,-assimcomoasplantas,elesparecemestarenraizadosemalgumlugar.

Aoclassificarascoisas físicascomocorpos inanimados,plantaseanimais,Aristóteles sabiaque suadivisãode todas as coisas físicasnessas trêsgrandesclassesnãoexcluíacasoslimítrofes—coisasquesobumcertoaspectoparecemestardeumladodalinhadivisóriaeque,soboutro,parecemestardooutrolado.Ele sabia que, nomundo dos corpos, a transição das coisas sem vida para ascoisasvivasedavidavegetalparaavidaanimalégradual,enãolímpida,umaquestãodetudoounada.

Ainda assim, Aristóteles continuou achando que as diferenças entre oscorposvivoseosnãovivoseentreasplantaseosanimaisfaziamdelestiposde

Page 18: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

coisasbemdiferentes.Suarazãoparapensarassimeraaseguinte.Se, para começar, não reconhecêssemos nem compreendêssemos a nítida

distinção entre uma pedra e um rato, jamais ficaríamos perplexos diante dealgumacoisaquefossedifícildeclassificarcomovivaounãoviva.Domesmomodo, senão reconhecêssemosanítidadistinçãoentreumpéde roseira eumcavalo, jamais nos perguntaríamos se um certo espécime de organismo vivo évegetalouanimal.

Assim como os animais são um tipo peculiar de organismo vivo pordesempenhar funçõesqueasplantasnãodesempenham,ossereshumanos,poruma razão análoga, são um tipopeculiar de animal.Eles desempenhamcertasfunçõesqueoutrosanimaisnãodesempenham,comofazerperguntasgenéricasebuscarrespostasparaelaspormeiodaobservaçãoedareflexão.ÉporissoqueAristóteles chamou os seres humanos de animais racionais - animais quequestionamequepensam,quesãocapazesdepensarfilosoficamente.

Podehaver animais queparecem ter umpé emcada ladoda divisória queseparaoshumanosdosnãohumanos.Recentementedescobriu-sequeosbotoseos chimpanzés têm inteligência suficiente para comunicar-se de formarudimentar. Mas eles não parecem propor a si próprios, ou uns aos outros,questões sobre a natureza das coisas, nem parecem tentar, de jeito nenhum,descobrir as respostas por conta própria. Podemos até dizer que esses animaissãoquasehumanos,masnãoosincluímosentreosmembrosdaraçahumana.

Aristótelesacreditavaquecadatipodistintodecoisatinhaumanaturezaqueadistinguiadetodasasoutras.Oquediferenciaumaclassedecoisasdetudoomais define a natureza de cada ente individual que pertence àquela classe.Quando falamos de natureza humana, por exemplo, estamos simplesmentedizendo que todos os seres humanos têm certas características, e que essascaracterísticas os diferenciam dos outros animais, dos vegetais e das coisasinanimadas.

Oesquemadeclassificaçãoaristotélicoorganizouascincoprincipaisclassesde coisas físicas em ordem ascendente. Ele colocou os corpos elementares ecompostosnabasedaescala.Cadaumadasclassessuperioresésuperioraoutraporque possui as características da classe inferior e, além delas, possui certascaracterísticasdistintivasqueaclasseinferiornãopossui.

Naescaladascoisasnaturais,oanimadoéumaformadeexistênciasuperiorao inanimado -osanimais sãouma formadevida superioràsplantas - avidahumanaéamaiselevadaformadevidanaTerra.

Todososorganismosvivos,assimcomotodososcorposinanimadosocupamespaçoetêmpeso,mas,alémdisso,comoobservamos,elescomem,crescemesereproduzem.Porseremorganismosvivos,osanimais,assimcomoasplantas,

Page 19: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

desenvolvem essas funções vitais, mas também desempenham certas funçõesqueasplantasnãodesempenham.Notopodaescalaestãoossereshumanos,queexercemtodasasfunçõesvitaisexercidasporoutrosanimaise,alémdisso,têmacapacidadedebuscarconhecimentopropondoerespondendoperguntasetêmacapacidadedepensarfilosoficamente.

Claroquesepodedizerquemuitosdosanimaissuperiorespensam,eatéqueoscomputadorespensam.Tambémnãoéverdadequesóossereshumanostêminteligência. Em graus diversos, a inteligência pode ser encontrada em todo omundoanimal,assimcomopodeserencontradaemdiversosgrausemmembrosda raça humana. Todavia, o tipo peculiar de pensamento que permite que seproponhaequeserespondaquestõesfilosóficasdistingueossereshumanosdosoutrosanimais.Nãoháoutroanimalquejoguejogosfilosóficos.

NomundodecoisasfísicasqueAristótelesdivideemcincograndesclasses,apalavra"corpo"dánomeàclassequeabrangetudo.Nãoexisteumasubclassedaqualoscorpossejamumasubclasse.Todacoisanomundofísicoéumcorpodealgumtipo.

Seráque,sepassarmosaoextremooposto,encontraremosumasubclassedecorpos que nos obrigará a parar, porque não podemos dividi-la em subclassesmenores?Seráqueaespéciehumanaéumasubclassedeanimaisdessaordem?

Diante dessa questão, a maioria de nós provavelmente pensa logo emdiferentes raçasouvariedadesdehomens -diferenciadospelacordapele,porcaracterísticasfaciais,peloformatodacabeçaetc.Porqueessascaracterísticasnãodividemossereshumanosemdiferentestiposousubclasses?

Aristóteles fez uma importante distinção quanto a isso. Nem todas ascaracterísticasdeumacoisa,disseele,definemsuanaturezaouessência.Comojá vimos, Aristóteles julgava que o homem deveria ser definido como animalracional—oufilosófico.Éacapacidadedefazerperguntasarespeitodoquê,doporquêedoparaquêdascoisasquefazdequalquerpessoaumserhumano,nãoacordapele,onarizarrebitado,ocabelolisoouoformatodacabeça.

Podemos, é claro, dividir os seres humanos numa variedade sem fim desubclasses—altosebaixos,gordosemagros,brancosenegros,fortesefracosetc.Masaindaqueessasdiferençaspossamserusadasparadistinguirumsubgrupode seres humanos de outro, não podem ser usadas, segundo Aristóteles, paraexcluirqualquerumdessessubgruposdaraçahumana.Mais importanteainda,nãosepodedizerqueosmembrosdeumdeterminadosubgruposejammaisoumenoshumanosdoqueosmembrosdeoutro.

Emoutras palavras, as diferenças entre uma subclasse de seres humanos eoutrasãosuperficiaisoumenoresquandocomparadascomasdiferençasbásicas

Page 20: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ou maiores que separam os seres humanos de outros animais. Aristóteleschamava as diferenças superficiais ou menores de acidentais,- as básicas oumaioreseleconsideravaessenciais.

Os seres humanos e as bestas são essencialmente diferentes,- os sereshumanos altos e os baixos, ou os gordos e os magros, são acidentalmentediferentes.Somostodosanimaisdomesmotipo,masumindivíduopodetermaise outro, menos dessa ou daquela característica humana. Essas diferençasindividuaissãomuitomenosimportantesdoqueaquiloqueunetodososhomensemulheres—suahumanidadecomum,queéoúnicoaspectoemquetodosossereshumanossãoiguais.

Page 21: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

2.AGRANDEDIVISÓRIA

A divisão de Aristóteles das coisas físicas em corpos inanimados eorganismosvivosesuadivisãodosorganismosvivosemplantas,animaisesereshumanosnãoesgotamseuesquemaclassificatórioouseuconjuntodecategorias.

Pensemos,porexemplo,nocavalodeWellingtonnaBatalhadeWaterloo,ouem Júlio César ao cruzar o Rubicão. Pensemos emHamlet, o personagem deShakespeare, no monstro do Lago Ness ou no anjo Gabriel. Pensemos nafragrância das rosas quando desabrocham, na cor de um tomate maduro, nateoriadagravidadedeNewtonouemDeus.

Nenhum desses objetos é uma coisa física que exista agora como animal,vegetaloumineral.OcavalodeWellingtoneJúlioCésarexistiramnopassado,mas não existem mais. Hamlet, o personagem shakespeariano, é uma pessoafictícia, não real. A existência do monstro do Lago Ness é altamentequestionável. Quanto à fragrância das rosas quando desabrocham, ao anjoGabriel,àteoriadagravidadedeNewtoneaDeus,nenhumdessesobjetospodesercatalogadoemqualquerumadasseçõesqueenglobamoscorposqueexistemouqueexistiramnomundofísico.

O universo dos objetos que podem ser pensados é muito maior do que omundo físico— o mundo dos corpos, tanto aqueles que ora existem quantoaquelesqueexistiramnopassado.Eleincluiomundodoscorpos,mastambéminclui muitas outras coisas. A linha que separa os corpos de tudo omais é agrandedivisória.

Oque sobraquandocolocamosomundo físico inteirodeum lado?Oquepertenceàoutrametadedouniversototaldeobjetosquepodemserpensados?Nãovoutentarlistarexaustivamenteostiposdeobjetosquenãosãocorpos,maseisaquiaomenosalgunstipospossíveis:

•objetosmatemáticos,comotriânguloseraízesquadradas,• personagens imaginários ou fictícios, como Hamlet, de Shakespeare,ouHuckleberryFinn,deMarkTwain,• espíritos desencarnados ou sem corpos de todos os tipos, incluindo

fantasmaseanjos,•deusesouDeus,quandoosseresdivinossãopensadossemcorpos;•seresmitológicos,comocentaurosesereias,•mentescapazesdepensarotipodequestõesquetemoslevantado,

Page 22: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

•ideiaseteoriaspensadaspelasmentes.

Tenho plena consciência de que essa listagem de objetos possíveis depensamentolevantamuitasquestões.Seráqueessesobjetosexistem,emalgumsentido da palavra? Se sim, em que sua existência difere da existência doscorpos? O que significa chamá-los de possibilidades? Haverá objetos depensamento que são impossibilidades? Se asmentes não são corpos, qual suarelaçãocomoscorpos?

Tentarei responder essas perguntas— com a ajuda de Aristóteles— nosúltimoscapítulosdestelivro.Algumasdelassãoquestõesfilosóficascomplexas,queadiareiatéofinal.Porora,levantá-lasserveaopropósitodechamaratençãoparaograndeuniversodoqualomundofísicoéapenasumaparte,aindaqueomundodoscorpospossaseroúnicoquerealmenteexiste.

Ficando neste mundo, cabe-nos considerar outra distinção feita porAristóteles.Elaénecessáriaparaquepossamosdiscutiraperguntaarespeitodafragrânciadas rosasquandodesabrochamoudacordeumtomatemaduro.Asrosaseostomatessãocorpos,sãovegetais,masnãosuafragrâncianemsuacor.Ao considerar o mundo físico, Aristóteles traçou uma linha que dividiu seusconstituintesemdoisgrandes tipos.Deumlado,pôsoscorpos; deoutro, suascaracterísticasouatributos,comosuasfragrânciasoucores.

Emnossafalacotidiana,costumamosfazeramesmadistinção.Nãofalamosdotamanhonemdopesodeumapedracomosefossemcorpos.Nuncavoupedirquevocêmeentregueo tamanhoouopesodapedra,porqueseiqueéprecisoquevocêmeentregueaprópriapedraparaqueeupossasentirseupesoouverseutamanho.

Podemospensarnotamanhoounopesodapedrasempensarnapedra,masnão podemos alterar o tamanho ou o peso da pedra sem alterar a pedra. Se apedraestánumapilhadepedras,podemostirá-ladaliedeixarasoutraspedrascomo estão,mas não podemos tirar o tamanho ou o peso da pedra e deixá-lacomoestá.

Aquiloquepertenceaumcorpodomodocomootamanhoouopesodeumapedra lhepertencemé, segundoAristóteles, algoque temsuaexistêncianumacoisa(assimcomoopesodapedraexistenapedra),masquenãoexisteemsieporsimesmo(comoapedraexiste).

Uma coisa física, um corpo, pode pertencer a umgrupo de coisas do qualpodeserremovida—assimcomoumapedrapodeserremovidadeumapilhadepedras.Mascadaumadaspedrasnapilhaexisteemsieporsimesma,mesmoquandoexistedentrodeumgrupodepedras.Issonãovaleparaotamanhoouo

Page 23: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

pesodapedra.Ostamanhoseospesosnãoexistememsieporsimesmos.Elessãosempreotamanhoeopesodascoisasfísicas,edeixamdeexistirquandooscorposemqueelesexistemdeixamdeexistir.

Outramaneira de apreender essa distinção básica entre as coisas físicas eseusatributoséconsideraromodocomoascoisasmudam.Umapedracomumasuperfícieásperapodeserpolidaeficarlisa.Umapedraquetenhaumformatoquase redondo pode ser perfeitamente arredondada. Enquanto mudamos osatributosdapedra,estamos lidandocomamesmapedra.Nãose tratadeoutrapedra,masdamesmapedra,alterada.

Seelanãopermanecesseamesmapedraao tornar-sediferente sobesteouaquele aspecto, não se poderia dizer que ela passou de áspera para lisa ou demaiorparamenor.Seentendemosisso,entendemosporqueAristótelesdissequeuma coisa física é aquilo que permanece aquilo que é (essa pedra particular)enquanto está simultaneamente sujeito a mudar em algum aspecto (tamanho,peso,formato,coroutextura).

Aocontráriodoscorposemsi,osatributosdoscorposnuncaestãosujeitosamudança.Aasperezanuncasetornalisura,-overdenuncasetornavermelho.Éapedra áspera que se torna lisa, é o tomate verde que fica vermelho quandoamadurece.As coisas físicas, em suma, sãomutáveis.Os atributos físicosnãosãomutáveis,-sãoosaspectosemqueascoisasfísicasmudam.

Aristótelestentoufazerumalistagemcompletadosatributospossuídospelascoisas físicas. Podemos questionar se a listagem foi completa ou não,mas osatributos citados são aqueles que todos conhecemos na experiência comum,particularmenteaquelesquesãoosaspectosprincipaisemqueascoisasmudam:

•emquantidade,quandoaumentamoudiminuemdepesooutamanho,•emqualidade,quandomudamdeformato,coroutextura,•emlugarouposição,quandopassamdeumlocalaoutro.

Uma coisa tem outros atributos, tais como as relações que mantém com

outrascoisas,asaçõesquerealiza,osresultadosdasaçõesquesofre,omomentoemquepassaaexistir,aduraçãodesuaexistênciaeomomentoemquedeixadeexistir.

De todososatributosqueumacoisa físicapossui,osmais importantessãoaqueles que ela mantém durante toda a sua existência e que não se alteramenquanto a coisa existir. Esses atributos permanentes fazem com que elapertençaaumtipoparticulardecoisas.Porexemplo,umatributopermanentedosalédissolver-senaágua,-umatributopermanentedecertosmetaiséconduzireletricidade,- um atributo permanente dos mamíferos é parir filhos vivos e

Page 24: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

amamentá-los.Esses atributos não apenas fazem com que uma coisa pertença a um tipo

particular de coisas, mas também diferenciam um tipo de coisa de outro. Acapacidade de levantar questões como aquelas que estamos levantando é umatributo permanente dos animais racionais, que nos diferencia de outrosmamíferos.Osanimaisracionaissãocorpos,éclaro.Sãocoisasfísicas,masnãoapenascoisasfísicas.

Reconhecemos isso ao usarmos a palavra "pessoa". Chamamos os sereshumanosde"pessoas".Nãochamamosasaranhas,ascobras,ostubarõesouospássarosdepessoas.Quandotratamosnossocãoougatodeestimaçãocomosefosse uma pessoa, nós o tratamos como se fosse humano - ou quase humano.Nãotratamosdomesmojeitoosobjetosqueconsideramosmerascoisas.

Atéesseponto,apalavra"coisa"forausadaparareferir-seàscoisasfísicas— os corpos. Agora a palavra "coisa" foi usada em contraste com a palavra"pessoa".Trata-sedeumapalavraproblemática.Seusignificadoàsvezesé tãoamploquese refereaqualquerobjetopassíveldepensamento -nãoapenasàscoisasfísicasexistentes,mastambémaseusatributos,etambémaosobjetosquenãoexistem,aosobjetosquepodemnuncaterexistidoeatémesmoaosobjetosquenãopodemexistir.Asvezesapalavra"coisa"aplica-seapenasacorposqueexistemnestemomentonomundofísico,acorposqueexistiramnelenopassadoouacorposquepodemexistirnelenofuturo.

Muitas vezes, é inevitável usar amesmapalavra em sentidos diversos.Nocaso das palavras mais importantes que usamos, sobretudo as palavras queusamosemnossalinguagemcomumcotidiana,équaseimpossívelnãofazê-lo.Aristótelescomfrequênciachamavaaatençãoparaossentidosdistintosemqueachava necessário usar uma mesma palavra. Quando refletimos sobre nossaexperiência assim como ele refletiu, temos também de prestar atenção aosdiferentessentidosdaspalavrasqueutilizamos.

Os seres humanos são coisas físicas num certo sentido dessa palavra,masnãoosãoquandooschamamosdepessoas,nãodecoisas.Comocoisasfísicas,comocorpos,elestêmastrêsdimensõesquetodosconhecemos.Comopessoas,tambémtêmtrêsdimensões,quesãobemdiferentes.

Page 25: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

3.ASTRÊSDIMENSÕESDOHOMEM

Considerando-nossimplesmentecorpos—ousimplesmentecoisasfísicas—eudiriaquenossas trêsdimensões,assimcomoas trêsdimensõesdequalqueroutro corpo, são comprimento, largura e altura.É dessamaneira que qualquercorpoocupaespaço.

Se,comocorpos,somoscoisasfísicascomotodososoutroscorpos,somos,comoacabamosdever,umtipoespecialdecoisa-oúnicotipodecoisa—queéchamado de pessoa. Quais são nossas três dimensões como pessoas, e nãoapenascomocorpos?

No espaço, uma dimensão é uma direção na qual possomover-me. Possomoverminhamãodaesquerdaparaadireita,de frentepara trás,decimaparabaixo. Como as dimensões espaciais, as dimensões pessoais também sãodireções— direções em que eu, como pessoa, posso agir como ser humano.Tenhocertezadequetemosapenastrêsdimensõescomocorposfísicos,masnãotenhocomotercertezadequetemosapenastrêsdimensõescomosereshumanosativos—apenastrêsdireçõesemquenossasatividadespodemlevar-nos.

Creio, todavia, que as três dimensões que citarei representam três direçõesmuitoimportantesqueaatividadehumanapodetomar.Talvezhajaoutras,masduvidoquesejamtãoimportantesquantoessas.Sãoelas:fazer,agireconhecer.

Na primeira dessas três dimensões, fazer, temos o homemcomo artista ouartesão — o produtor de toda sorte de coisas: sapatos, navios, casas, livros,música e pinturas. Não é só quando os seres humanos produzem estátuas oupinturas que devemos chamá-los artistas. Esse uso da palavra arte é restritodemais.Tudonomundoqueéartificialenãonaturaléumaobradearte-algofeitopelohomem.

Nasegundadessasdimensões,agir,temosohomemcomosermoralesocial- alguémcapazde agirdemodocertoouerrado,- alguémque,por aquiloquerealizaouquedeixaderealizar,obtémafelicidadeoudeixadeobtê-la,-alguémque,comoserhumano,julgasernecessárioassociar-seaoutrossereshumanospararealizaraquiloquesesenteimpelidoarealizar.

Naterceiradimensão,conhecer,temosohomemcomoserqueaprende,queadquiretodasortedeconhecimentos-nãoapenassobreanatureza,nãoapenassobre a sociedade da qual os seres humanos fazem parte, não apenas sobre anaturezahumana,mastambémsobreopróprioconhecimento.

Em todas essas três dimensões, o homem é um pensador, mas o tipo de

Page 26: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

pensamentoquetemparafazercoisasédiferentedotipodepensamentoquetemparaagirmoralesocialmente.Osdoistiposdepensamentodiferemdotipodepensamento que um ser humano tem a fim de simplesmente conhecer —conhecerapenasporcausadoconhecimento.

Aristótelestinhagrandeinteressepelasdiferençasquedistinguemessestrêstiposdepensamento.Eleusavaotermo"pensamentoprodutivo"paradescrevero tipo de pensamento que o homem elabora como fazedor,- "pensamentoprático",paradescreverotipodepensamentoqueohomemelaboracomoator,-e"pensamentoespeculativo"ou"teórico"paradescreverotipoqueeleelaboracomoconhecedor.

EssadivisãotripladostiposdepensamentopodeserencontradanoslivrosdeAristóteles.Algunsdeles,comooslivrosdefilosofiamoralepolítica,tratamdopensamento prático e do homem como ator — como indivíduo que vive aprópria vida e tenta fazê-lo da melhor maneira possível, e também comomembrodasociedade,associadoaoutrossereshumanosecooperandocomeles.Algunsdesseslivros,comoosdefilosofianatural,tratamdopensamentoteóricosobre omundo físico inteiro, incluindo o homem como parte dessemundo, etambémamenteeoconhecimentodohomem.

Eleescreveuumtratadosobreohomemcomofazedor,masesselivrotrataapenasdohomemcomofazedordepoesia,demúsicaedepinturas.Deu-lheotítulodePoéticaporqueapalavragregadaqualvemapalavra"poesia"significafazer-fazerqualquercoisa,nãoapenasaquelesobjetosquenosentretêmenosdãoprazerquandofruímosdeles.Oshomenseasmulheresproduzemumavastagama de coisas úteis, coisas que usamos em nossa vida cotidiana, como asroupas que vestimos, as casas em que vivemos, a mobília dessas casas e osinstrumentosnecessáriosparaproduziressascoisas.

O tratamento mais geral do homem como fazedor, particularmente dohomem como fazedor de coisas úteis, encontra-se nos livros que Aristótelesescreveusobreanatureza-emseus livrosdefilosofianatural.Emseuesforçopara entender os fenômenos naturais, Aristóteles frequentemente recorria acomparações entre a maneira como os homens produzem coisas e a maneiracomoanaturezafunciona.Suacompreensãodoselementosdofazerhumanooajudou-evainosajudar-acompreenderofuncionamentodanatureza.

Éporissoquevoucomeçarpordiscutir,naParteIIdestelivro,ofazercomodimensãodaatividadehumana.Depoisdisso,naParteIII,tratareidadimensãodaatividadehumanaemqueohomeméumsermoralesocial.Porfim,naParteIVfalareidohomemcomoconhecedor,deixandoparaofinalasquestõesmaisdifíceisquetemosaconsiderar—asquestõessobreamentehumanaesobreoconhecimentoemsi.

Page 27: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Aspalavrasmaisdesafiadorasdovocabuláriodequalquerpessoasãoastrêsque dão nome aos valores universais que despertam respeito e causamadmiração:verdade,bondadeebeleza,ouoverdadeiro,obomeobelo.Essestrêsvaloresestãorelacionadosàstrêsdimensõesdaatividadehumana.

Naesferadofazer,estamosinteressadosnabelezaou,paradizeromínimo,em tentar produzir coisas que sejam bem feitas. Na esfera do agir, comoindivíduos e comomembros da sociedade, estamos interessados no bem e nomal, no certo e no errado. Na esfera do conhecer, estamos interessados naverdade.

Page 28: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ParteII

OHomemcomoFazedor

Page 29: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

4.CRUSOÉSEGUNDOARISTÓTELES

Tivesse Aristóteles escrito o romance de Robinson Crusoé, a moral dahistóriateriasidodiferente.

AhistóriaqueamaioriadenósleucelebraaengenhosidadecomqueCrusoéresolveoproblemadecomoviverdemodoseguroeconfortávelnailhaaquefoilevadoapósumnaufrágio.Elatambémcelebrasuasvirtudes-suacoragemesuaprevidência. Trata-se ainda de uma história da conquista da natureza pelohomem,deseudomínioedeseucontrolesobreela.

Para Aristóteles, a ilha teria representado a Natureza, a natureza com Nmaiúsculo,anaturezaintocadapelossereshumanos.Asobrasdanatureza—osemear de árvores e plantas, o crescimento vegetal, o nascer e o morrer dosanimais, o mover-se das areias, o desgastar-se das rochas, o formar-se dascavernas—jáaconteciammuitoantesdachegadadeCrusoé.Aristóteles teriaconsideradoasmudançasproduzidasporCrusoéummodode compreender asmudançasquetinhamacontecidosemele.Paraele,ahistórianãoteriamostradoohomemcontraanatureza,massimohomemtrabalhandocomanatureza.

Quandotentamosentenderalgodifícildeentender,obomsensonossugerecomeçarcomalgomaisfácilparaverseissonosajudaasuperarasdificuldades.Oqueémaiscompreensívelpodeesclareceraquiloqueémenoscompreensível.Ossereshumanosdeveriamsercapazesdeentenderaquiloqueacontecequandofazemalgooumudamalgo.Issoémenosdifícildeentenderdoqueaquiloqueacontecenanaturezasemapresençadoshomens.Assim,entenderasobrasdeartepodenosajudaraentenderofuncionamentodanatureza.

Sugeri no capítulo anterior que, em seu sentido mais amplo, a expressão"obradearte"abrangetudooqueéfeitopelohomem.Vamosreconsiderarisso.Seráquetudooqueéproduzidopelossereshumanoséartificialenãonatural?Será que são obras de arte? Quando os pais produzem filhos, os filhos sãoartificiais? Se você disser que não, como acho que deve, então ainda nãoconseguimosestabelecerclaramentealinhaquedivideoartificialdonatural.

Suponha que um raio caia numa árvore numa floresta densa. A árvore épartidaaomeio,osgalhossãocortados.Algunspegamfogo,eassimcomeçaumincêndionafloresta.Oincêndionaflorestaetodasasmudançasqueresultamdoraiosãonaturais,não?

Masumapessoa,aoandarpelafloresta,jogafora,semnenhumcuidado,umcigarro aceso que faz as folhas secas da vegetação rasteira pegarem fogo, e aflorestaacabaconsumidapelaschamas.Oincêndionaflorestafoicausadopor

Page 30: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

umserhumano,assimcomooprimeiro incêndio foracausadoporumraio.Oprimeirofoiobradanatureza.Eosegundofoiobradohomem—algoartificial,nãonatural?

Suponha, porém, que o indivíduo na floresta não tivesse jogado o cigarroaceso.Suponhaqueeletivessecoletadogalhosefolhassecasefeitoumapilhacercadadepedrinhasedepois,acendendoumfósforo,tivessefeitoumafogueiraparacozinharseualmoço.Diríamos -não?—queelepreparou uma fogueira.Será que a fogueira que ele preparou é uma obra de arte, ao contrário doincêndiocausadopelocigarroacesoquefoidescuidadamentejogadofora?

Antesquevocêrespondarápidodemaisaessapergunta,lembre-sedequeofogo, em si, é algo natural. Ele não precisa de um ser humano para serproduzido.Naverdade,quandoohomemfazfogo,oqueéqueelefaz?-ofogomesmo,ouseráqueelesóproduzfogonummomentoenumlocaldeterminados,exatamentecomoohomemquecaminhavapelaflorestaoproduziunolugaremquedecidiucozinharseualmoço?

Outroexemploaconsiderar.Oraiopartiuaárvoreecortoualgunsdeseusgalhos.Oshomenstambémpodemfazerissocommachadoseserras,eofazemquandovãocortarmadeira,a fimdeobtê-laparaconstruircasasoupara fazermesasecadeiras.Vocêsabequeascasasconstruídaspelohomemsãoprodutosdaarte,nãodanatureza-quesãoartificiais,nãonaturais.Construirumacasa,portanto, não é a mesma coisa que fazer fogo, pois não é possível ter tantacertezadequeofogofeitopelohomeméartificialenãonatural.

Qual adiferença entre a casa, amesaou a cadeira feitaspelohomem, eoincêndiocausadopelohomem?Ouentreosgalhosdaárvorecortadospeloraioeosgalhosdaárvorecortadospelosmadeireiros?Ouentreofogoproduzidopelapessoaquefazumpiqueniqueequercozinharsuacomida,eofogocausadopelohomemquecaminhapela florestaedescuidadamente joganochãoumcigarroaceso?

Vamoscomeçarpelaquestãomaisfácil.Ofogocausadopelocigarroacesofoi acidental, não intencional. Não seguiu um propósito que alguma pessoativesse emmente.Resultou do descuido— aliás, do descaso— e não de umplanejamento cuidadoso e da previdência. A ausência de qualquer propósito,planejamentoeprevidênciahumanoscolocaoincêndiodoladonaturaldalinhaqueseparaonaturaldoartificial.

O incêndio foi causado pelo homem, mas não produzido pelo homem.Resultoudealgoqueumserhumanofez,masohomemétãopartedanaturezaquantooraio.Nemtudoqueresultadasaçõeshumanaséumaproduçãohumanaouumaobradearte.

Agora,equantoaofogoproduzidopelohomem,feitodeliberadamentenuma

Page 31: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

fogueira com o fim de cozinhar uma refeição, e a casa feita pelo homem,construídadeliberadamentecomopropósitodeservirdeabrigo?Neles,nenhumdos dois resultados produzidos pelo homem é acidental. O propósito e oplanejamento certamente fazemparte de ambos.Até agora, aomenos, os doisestãodoladoartificialdalinhaqueseparaonaturaldoartificial.Qualé,então,ediferençaentreeles?

Uma diferença é imediatamente clara. Há incêndios na natureza quando ohomemestáausente,masnãohácasas.Oshomenspodemajudaranaturezaaproduzirfogoacendendofósforosefazendofogueirascomgalhosefolhassecas.Masquandoossereshumanosfazemcasas,enãofogueiras,nãoestãoajudandoanatureza aproduzi-las.Noprimeiro caso, como jádissemos,oshomensnãofazemofogoemsi,mascausamofogoemmomentoselocaisdeterminados.Nosegundocaso,oshomensproduzemcasas.

AcasaqueRobinsonCrusoéconstruiuapósrecuperaralgumasferramentasdonaufrágiofoialgoqueelefeztotalmentesozinho,nãoalgoqueelefezsurgirnummomentoenumlocaldeterminados.Seelenãoestivessenailha,nãoteriamsurgidocasas,maspoderiamtersurgidoincêndios,causadosporraios.

Resta umaquestão.Até agora julgamosque a casadeCrusoé, planejada eproduzidacomumcertofim,éumaobradearte,nãodanatureza,algoartificial,não algo natural. Mas será que ela é totalmente artificial - uma criaçãototalmentehumana?ABíblianosdizqueantesdeDeuscriaromundonãohavianada, equea criaçãodomundoporDeus fezcomquealgo surgissedonada.SeráqueCrusoéfezalgosurgirdonadaquandoconstruiusuacasa?

Não.Ele a construiu com amadeira que obteve cortando árvores com seumachado,cortandogalhoscomsuaserraealisandoamadeiracomsuaplaina.Amadeirausadana construçãoda casaveiodanatureza. Já estava lá.OmesmovaleparaoferrodospregosrecuperadosporCrusoéjuntocomasferramentasnobaú do carpinteiro que veio dar na praia apos o naufrágio. A casa, feita demadeira e pregos, realmente foi feita porCrusoé e não pela natureza,mas foifeitademateriaisdanatureza. Isso tambémvalepara todasas ferramentasqueCrusoéteveaboasortedepoderusar.

Tambémnãoesqueçamososfilhosqueospaisproduzem.Jáconcluímosquefilhossãoprodutosnaturais,nãoartificiais-quenãosãoobrasdearte.Seráqueéassimporqueàsvezeselessãoprodutosacidentaisenãointencionais?

Às vezes, como sabemos, os filhos são o resultado do descuido ou dadesatenção,tãoinesperadosquantonãoplanejados.Masmesmoquandoosfilhossão desejados e planejados, mesmo quando sua concepção é premeditada, emesmoquando,comumpoucode sorte,ospaisajudamanaturezaaproduzirfilhosnum local enummomentodeterminados, elesnão sãocomoo incêndio

Page 32: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

queapessoaquequeriafazerumpiqueniqueajudouanaturezaaproduzir,nemcomoacasaqueCrusoéconstruiucomosmateriaisqueencontrounanatureza.

Por que não? Por ora, contentemo-nos com a resposta sugerida antes. Osfilhos,assimcomoascriasdeoutrosanimais,certamentepodemserfeitossemnenhumapremeditação,planejamentooupropósito.Issonãovaleparanadaquepossa ser chamado de obra de arte ou de artificial.Mas, assim como os sereshumanospodemproduzir incêndiospor teralgumaideiadecomoosincêndiossãoproduzidospelanatureza,tambémossereshumanospodemproduzirfilhosporterideiadecomoaprocriaçãoacontecenanatureza.

Quando eles não têm nenhuma ideia disso, seus filhos são completamenteacidentais.Masquandotêmideia,terfilhosé,aomenosemparte,resultadodeplanejamentoedepropósito.

Já consideramos diversos acontecimentos e produções, e comparamos asdiferençasentreelesafimdeversepodemoscolocarcadaumdelesdeumdosdoisladosdalinhaqueseparaonaturaleoartificial.Antesdecontinuar,podeserboaideiaresumiraquiloqueaprendemos.

Primeiro, concluímos que o fogo, em si, é algo inteiramente natural. Afogueiraqueumhomemfaznummomentoenumlocaldeterminadoséartificial—algoquenãoteriasurgidosemquealgumserhumanoativesseproduzidoemcircunstânciasespecíficas.

Segundo, a artificialidade da fogueira feita pela pessoa que faz umpiqueniquecomofimdecozinharumarefeiçãoédiferentedaartificialidadedacasa que Crusoé construiu a fim de abrigar-se. Ainda que ambos resultem depropósitoshumanos, as casas, aocontráriodo fogo,nunca surgemnanaturezasemquesereshumanosasproduzam.Digamosqueofogodafogueiradapessoaque ia fazer um piquenique foi um acontecimento artificial e que a casa deCrusoéfoiumprodutoartificial.

Terceiro, a casa de Crusoé, ainda que seja um produto artificial, não éinteiramenteartificial.Elafoifeitacommateriaisnaturais,nãoapartirdonada.Assim,elanãoécomoomundoque,segundoaBíblia,Deuscriouapartirdonada.Chamemostodasascoisasqueoshomensproduzemapartirdemateriaisnaturaisdeproduções,enãodecriações.

Quarto, consideramos os filhos dos seres humanos e as crias dos outrosanimais.Costumamoschamá-losdeproduçõesoudecriações?Nemumacoisanem outra. O vocabulário que usamos para descrever sua geração envolvepalavrascomo"reprodução"e"procriação".

Vamos pensar na importância disso. Os resultados da reprodução ou daprocriação biológica não são como o incêndio causado pelo raio — um

Page 33: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

acontecimentonatural;nãosãocomoofogonafogueirapreparadapelohomem—umacontecimentoartificial;nãosãocomoacasaconstruídaporCrusoé—umprodutoartificial;etambémnãosãocomoomundocriadoporDeusapartirdonada.

Mesmoassim,acompreensãodecomooshomensconstroemcasasvainosajudaraentendercomooshomenssereproduzemouprocriam,gerandofilhos.Acompreensão de como os homens preparam uma fogueira vai nos ajudar aentender o surgimento dos incêndios como acontecimentos naturais. Acompreensão da diferença entre preparar fogueiras e construir casas vai nosajudaraentenderadiferençaentreincêndiosquesurgemnanaturezaeanimaisqueperpetuamsuaespécie.

Nãopergunteseacompreensãodisso tudo tambémvaiajudá-loaentendercomoDeuscriouomundo.EssaquestãoprecisaesperaratéqueverifiquemossenossacompreensãodasobrasdanaturezaedaartenoslevaatéahistóriabíblicadaCriação-históriaessaqueAristótelesnuncaleu.

Page 34: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

5.MUDANÇAEPERMANÊNCIA

Aristóteles teve uma atitude sensata em relação aos pensadores que oprecederam.Dissequeeraboaideiadaratençãoaoqueelesdisseramafimdedescobrir quais de suas opiniões eram corretas e quais eram incorretas. Aosepararoverdadeirodofalso,pode-sefazeralgumprogresso.

Dois pensadores anteriores — Heráclito e Parmênides — tinham visõesmuito extremadas do mundo. Heráclito dizia que tudo, absolutamente tudo,estavaemconstantemudança.Nada,absolutamentenada,permanecia idêntico.Crátilo,umdeseusseguidores,chegouatéaafirmarqueissoimpossibilitavaouso da linguagem para a comunicação, porque as palavras mudamconstantementedesignificado.Aúnicamaneiradesecomunicarseriamexendoodedo.

No outro extremo, Parmênides dizia que a permanência reinava absoluta.Aquiloqueéé;aquiloquenãoénãoé;nadapassaaexistirnemdeixadeexistir,-nadanuncamuda,-nadasemove.Aaparênciademudançaedemovimento,queParmênides admitia ser parte de nossa experiência cotidiana, é uma ilusão.Estamos sendo enganados por nossos sentidos. Na verdade, tudo semprecontinuaigual.

Você pode se perguntar como Parmênides conseguiu convencer alguém aaceitar uma perspectiva tão extremada e tão contrária à experiência cotidiana.Umdeseusseguidores,conhecidocomoZenão,tentouelaborarargumentosquenosconvenceriamdeque,quandopercebemosomovimentodascoisas,estamosnosenganando.Somosvítimasdeumailusão.

Umdessesargumentoseramaisoumenosassim:vocêquersacarumaboladeumladoaooutrodaquadradetênis.Parachegarlá,primeiroabolatemdepercorrermetadedadistância.Elatemdechegaràrede.Parachegarlá,primeiroela tem de percorrermetade da distância - pelomenos até a linha de serviço.Para chegar lá, primeiro ela tem de percorrer metade da distância - e assimindefinidamente, sempre dividindo ao meio as distâncias restantes. A partirdisso,seseguíssemosoraciocíniodeZenão,chegaríamosàconclusãodequeabolanuncasairiadolugar—nuncadeixariaasuaraquete.

Aristótelesconheciabemessasopiniõeseessesargumentos.Seubomsensoe sua experiência comum diziam-lhe que estavam errados. Se as palavrasestavam sempre mudando de significado, corno é que Heráclito e seusseguidores podiam ficar repetindo que tudo fica mudando e supor, comoobviamentesupunham,que todavezdiziamamesmacoisa,enãoocontrário?Seomovimentodoscorposcelesteséumailusão,amudançadodiaparaanoite

Page 35: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

é tambémumailusão.Senadacomeçaaexistirnemdeixadeexistir,ninguémmorre,masondeéqueforampararParmênideseseuamigoZenão?

Heráclito e Parmênides estavam errados,mas não totalmente.Na verdade,cada um deles estava parcialmente correto e a verdade inteira, como pensavaAristóteles,consistiaemcombinarduasverdadesparciais.

Deumlado,omovimentoeamudança,ageraçãoeacorrupçãoocorrememtodoomundonaturale jáocorriammuitoantesdeossereshumanosentrarememcena.Longedeestarrepletadeilusão,nossaexperiênciacomumdanaturezaapreendearealidadedamudança.Ascoisassãooqueparecemser—mutáveis.

De outro lado, nem tudo está sempremudando sob todos os aspectos.Emtodamudança algo deve permanecer— algo que persiste, ou que continua omesmo, enquanto fica diferente sob algum aspecto. Aquela bola de tênis quevocê tentousacarparaooutro ladodaquadramoveu-sedeumlugaraooutro,mas,quandochegouàlinhadebasedoseuadversário,aindaeraamesmaboladetênisquevocêhaviajogado.Fosseelaoutraboladetênis,queummágiconalateral tivessefeitoaparecercomoqueporencanto, isso teriasidoconsideradoumafalta.

Omovimentodaquiatéali(queAristóteleschamavademovimentolocaloudemudançade lugar)éamaisóbviadasmudançasemquealgopermaneceomesmo. A coisa emmovimento é o sujeito inalterado da mudança em que omovimento local consiste.Se ela era "a suabolade tênis"quando saiude suaraquete,aindaé"asuaboladetênis"quandoseuadversárioajogadevolta-amesmíssimaidênticabola,enãooutrabola.

Enquanto falamos demovimento local, voumencionar uma distinção feitapor Aristóteles entre dois tipos de movimento local. Quando você deixaacidentalmenteumaboladetêniscair,elacainochãoporqueépesada(vocêeeudiríamosqueéporcausadagravidade,queéumnomediferentedopeso).Vocênãoajogouparabaixo.Elacaiunaturalmente.Essemovimentofoinatural,nãoartificial.

Masquandovocê joga abolade tênis comsua raquete, essemovimento écausadopelohomem,nãoéummovimentonatural.Aforçadasuajogadasuperaatendêncianaturalqueabolatemdecairporcausadeseupeso,eessaforçaacolocanumadireçãoqueelanãoteriaseguidosenãotivessesidopostanelaporsuajogada.OmesmovaleparaquandoenviamosumfogueteàLua.Semaforçapropulsoraquelhedamos,elenãodeixarianaturalmenteocampodegravidadedaterra.

Dasbolasdetênisaosfoguetes,doselevadoresàsbalasdecanhão,háumaamplavariedadedecorposemmovimentolocalquenãosemoveriamcomosemovem se não fosse pela interferência do homemna natureza.Como não são

Page 36: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

naturais, devemos chamar esses movimentos de artificiais? Pode-se usar essapalavra,poissãomovimentoscausadospelohomem.Aristótelesoschamavademovimentosviolentos—violentosnosentidodequeviolamatendêncianaturaldoscorposemquestão.

Quais outras mudanças que ocorrem naturalmente também ocorremartificialmente,oupormeiodainterferênciadohomem?OcalordoSolfazumtomateamadurecerefazcomqueelepassedeverdeavermelho.Essamudançanãoédelugar,masdecor.Nãoéummovimentolocal,masumaalteraçãoemumatributodotomate.

O tomate, que num momento era verde, em outro momento passou avermelho,assimcomoaboladetênis,quenummomentoestavaaqui,emoutroestáali.Oqueessasmudanças têmemcomuméo tempo,nãooespaço.Nãohouve mudança de lugar no amadurecimento do tomate, só umamudança dequalidade,masnenhumadessasmudanças—amudançadelugareamudançadequalidade—aconteceusemmudançadetempo.

Aspessoaspintamcoisasverdesdevermelho,oucoisasvermelhasdeverde— casas, mesas, cadeiras etc. O amadurecimento do tomate é uma alteraçãonatural;apinturadascoisaséumaalteraçãoartificialdelas.Acasa,amesaouacadeira,quenummomentoeramverdes,nãopassaramaservermelhasemoutromomentosemaintervençãohumana.

Alémdomovimentolocal(oumudançadelugar)edaalteração(oumudançade qualidade), há ainda um terceiro tipo de mudança que é simultaneamentenaturaleartificial.Dessavez,comecemospelaformaartificial.

Pegue um balão de borracha e encha-o. Ao fazer isso, o balão muda detamanhoedefigura.Eleficamaiorevaificandomaioràmedidaquevocêsopraar para dentro dele. E quando você deixa o ar sair, ele diminui de tamanho evoltaàsuafiguraoriginal.

Largadosozinhonamesa,obalãonãoteriaaumentadodetamanho.Sopradoecomsuapontaamarrada,obalãonãovaidiminuirdetamanho.Amudançadetamanho, acompanhada de umamudança de formato, é obra sua.Você fez asduas mudanças artificiais acontecerem aomesmo tempo— umamudança dequalidade (a alteração do formato do balão) e umamudança de quantidade (oaumentoouadiminuiçãodotamanhodobalão).

Asmudançasdequantidadeocorremtantonaturalquantoartificialmente.Porexemplo, as rochas na costa marítima desgastam-se por serem continuamenteaçoitadas pelas ondas. Elas ficam menores. A ação das ondas também podeampliarascavernasdacosta.Outrasexperiênciasmaisfamiliaresdecrescimentonatural—emtamanhoeemformato-acontecemnomundodascoisasvivas.Asplantaseosanimaiscrescem.Seucrescimentoenvolvemuitasmudanças,claro,

Page 37: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

mas entre elas estão asmudanças de quantidade -mudanças de tamanho e depeso.

Aindaqueumaspectodocrescimentodeumcorpovivocertamentesejaumaumentoouumamudançadequantidade,eletemumacaracterísticapeculiarquenão encontramos no aumento dos corpos inanimados. Você pode fazer umafogueiraepodeaumentá-lacolocandomaislenha.Sehouvesseumaquantidadeindefinida de lenha disponível, o tamanho de sua fogueira aparentemente nãoteria limites. Se você der cenouras a um coelho, o coelho vai aumentar detamanho,mas,pormaiscenourasquevocêlhedê,háumlimiteparaoaumentodetamanhodocoelho.

Vocêpodeconstruirpirâmidesmenoresoumaiorese,dispondodepedrasede trabalho humano suficientes, pode construir uma pirâmide maior do quequalquer outra que já tenha sido construída.Mas, não importando o que vocêfaçapara alimentaros animais, nãopode fazer comqueultrapassemumcertotamanho.Nãoépossívelquevocêfaçaumgatodomésticoficardotamanhodeumtigre.

Ocontráriotambéméverdade.Obalãoquevocêencheudiminuidetamanhoàmedida que você deixa o ar sair dele, e essa diminuição pode chegar até opontoemqueobalãoatingeotamanhomínimo.Mas,quandoosanimaisparamdecrescer, elespodemdeixardeaumentarde tamanho,masnãodiminuemdetamanhoatédesaparecer—nãosecontinuaremvivos.

Masos animais e as plantasmorrem.Analogamente, osbalões estouramedeixamdeserbalõesquandovocêcolocaardemaisneles.Issonosconduzaumquartotipodemudança—tantonaturalquantoartificial—queétãodiferentedosoutrostrêsqueAristótelesodistinguenitidamentedoresto.

Todososdemais,comovimos,levamtempoparaacontecer.Otempopassaenquantooscorposvãodeumlugaraoutro,mudamdecoroudeformato,ficammaioresoumenores.Masquandoobalãoestoura, eledeixa imediatamentedeserumbalão.Essamudançaparecenão levar temponenhum-certamentenãouma quantidade perceptível de tempo. Ela ocorre num instante, ou talvezdevêssemos dizer que num instante o balão existe, e no instante queimediatamente se segue ele não existe mais. Tudo o que temos são tiras oufragmentosdeborracha,nãoumbalãoquesepossaencher.

O mesmo vale para o coelho que morre. Num instante ele está vivo,- nooutro, já não está. Tudo o que sobra é a carcaça, que, àmedida que o tempopassar,vaidecompor-seesedesintegrar.

Esse tipo especial de mudança (que Aristóteles chama de geração ecorrupção)éespecialtambémporoutrasrazões,nãosóporserinstantânea.Elaétãoespecialquelevantaquestõessériasparanós.

Page 38: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Emtodamudança,comodissemosatéagora,algocontinuaaserpermanentee imutável. O corpo ou a coisa que muda de lugar, de cor ou de tamanhocontinua a ser omesmo corpo quando semove de um lugar a outro, quandomuda de cor, quando aumenta de tamanho. Mas o que permanece o mesmoquandoobalãoestoura?Oquepermaneceomesmoquandoocoelhomorre?Acarcaçaemdecomposição,quesevaidesintegrando,nãoéocoelhoaquedemoscenouras.Astirasdeborrachanãosãoobalãoqueestouramos.

Ainda assim, há algo permanente nesse tipo especial demudança. Émaisfácilveremqueconsisteessealgonaproduçãoounadestruiçãodecoisaspeloshomensdoquenonascimentoenamortedosvegetaisedosanimais.

Pedaçosdemadeira,pregosecolanãosejuntamnaturalmenteparacomporumacadeira.Oshomenséqueproduzemcadeiras,dispondoessesmateriaisdeum certo modo. Os materiais são os mesmos antes de ter sido reunidos erecebido o formato de cadeira, e são osmesmosdepois de isso acontecer, nomomentoemqueacadeirapassaaexistircomoalgoemqueépossívelsentar-se.

Vocêachaacadeiradesconfortável,outemoutrascadeiras,equerumamesaem vez dessa cadeira. Provavelmente não há como reutilizar todos os pregos,nemacola,masépossíveldestruiracadeirae,usandoospedaçosdemadeiraealgunsdospregos,fazerumamesinhacomamaiorpartedosmesmosmateriais.Sevocênãousoucolaeconseguiuextrairtodosospregosdeformareutilizável,osmateriaisdacadeiraquedeixoudeexistiredamesaquepassouaexistirsãoidênticos.Sódiferemnamaneiracomoestãodispostos.

Assim, nas produções e destruições artificiais, aquilo que permanece oucontinua o mesmo na mudança não seria a coisa produzida e destruída, massomenteosmateriaisusadosparafazê-laeosmateriaisquerestamquandoelaédesfeita.

Algo semelhante também acontece namorte do coelho. Por ser um corpovivo,ocoelhoé,emsuma,umacoisamaterial,assimcomoamesaouacadeirasãocoisasmateriais.Hámatériaemsuacomposição.Eessamatériapermanece,nãonamesmaforma,éclaro,masmesmoassimpermanece,quandoocoelhosedesfaz - quandomorre, se decompõe e se desintegra.E assim comoamatériainorgânicadeumacadeirapodevira fazerpartedacomposiçãodeumamesa,tambémamatéria orgânicadeumcoelhopode entrar na composiçãodeoutracoisaviva.

Ocoelhopode ter sidomortoporumchacaledevoradoparasuanutrição.Namedidaemqueochacalécapazdeassimilaraquiloquecome,osmateriaisorgânicosdocoelhoentramnosossos,nacarneenosmúsculosdochacal.

Aciênciamodernadeunomeaoqueacontecenessecaso—umnomequeAristóteles não usou. Chamamos isso de conservação de matéria.

Page 39: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Independentementedecomochamemosisso,oimportanteéquealgopermanecenotipopeculiardemudançaqueéageraçãoecorrupção.Essealgo,nocasodecoisasartificiaiscomomesasecadeiras,consistenosmateriaisdequesãofeitas.

Nas produções humanas, frequentemente conseguimos identificar essesmateriais— esses pedaços particulares de madeira, esses pregos particulares.Nem sempre é tão fácil identificar a unidade ou as unidades particulares dematéria que permanecem quando um animal come outro ou quando as coisasvivas morrem.Mas não pode haver dúvida de que em todas as instâncias degeraçãoedecorrupção, tantonaturaisquantoartificiais,ouamatériaemsioumateriaisdeumcertotipopassamporalgumatransformação.

Oquesequerdizercom"amatériaemsi",emconstrastecom"materiaisdeum certo tipo"? Os seres humanos, ao produzir ou destruir coisas artificiais,nuncalidamcomamatériaemsi,sócommateriaisdeumcertotipo.Seráqueanatureza,aocontráriodohomem,lidacomamatériaemsi?Sesim,entãoaquiloque permanece ou que continua a ser sujeito de mudança na produção e nadestruição artificiais não é a mesma coisa que aquilo que permanece ou quecontinuaasersujeitodemudançanageraçãoenacorrupçãonaturais.

É uma coisa similar, mas não a mesma. A transformação de materiaisidentificáveis na produção e na destruição humanas é apenas semelhante,masnão idêntica, à transformação da matéria na geração e na corrupção naturais.Ainda assim, a similaridade ou semelhança pode nos ajudar a entender o queacontece quando, na natureza, as coisas são geradas e corrompidas.Examinaremosissocommaiscuidadonospróximoscapítulos.

Page 40: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

6.ASQUATROCAUSAS

As"quatrocausas"sãoasrespostasqueAristótelesdáaquatroquestõesquepodem e devem ser feitas a respeito das mudanças que conhecemos naexperiência comum. São questões de senso comum, assim como as respostas.Comecemos por considerar sua relação com asmudanças efetuadas por sereshumanos,eparticularmentecomascoisasqueelesproduzemoufazem.Issonosajudaráaconsideraraoperaçãodasquatrocausasnasoperaçõesdanatureza.

A primeira questão a respeito de qualquer produção humana é: ela vai serfeita de quê? Se você fizer essa pergunta a um sapateiro ocupado com seutrabalho,arespostaserá"couro".Seafizeraumjoalheiro,quecriapulseirasouanéiscommetaispreciosos,arespostapodeser"ouro"ou"prata".Seafizeraumarmeiroenquantoeleproduzumaespingarda,arespostaprovavelmenteserá"madeiraeferro".Otipodematerialnomeadoemcadaumdoscasos,noqualoartesão trabalha edoqual ele produzumcertoproduto, é a causamaterial daprodução.Trata-sedeumfator indispensávelentrequatrofatoressemosquaisseriaimpossívelqueaproduçãoacontecesse.

A segunda questão é: quem fez? Essa parece a questão mais simples detodas,aomenosquandodiscutimosasproduçõeshumanas.Elapodenãosertãosimplesquandofalarmosdasmudançasqueocorremnanaturezaedascoisasporelaproduzidas,enãopelohomem.Noquedizrespeitoàsproduçõeshumanas,arespostaestánarespostaàprimeirapergunta:foiosapateiroquemfezosapato,ojoalheiroquemfezaspulseiraseosanéis,oarmeiroquemfezaarma.Emcadaumdessescasos,ofazedoréacausaeficientedaprodução.

A terceira questão é: o que está sendo feito?Aparentemente, essa questãoparecetãofácilqueterdeconsiderá-lapodeatécausarimpaciência.Talvezvocêdigaqueéóbvioqueaquiloqueestásendofeitopelosapateiroéumsapato,queaquilo que está sendo feito pelo joalheiro é um anel etc. Mas, se digo queAristóteleschamavaa respostadessaperguntadecausa formaldamudançaouprodução,oaparecimentodapalavra"formal"podedeixá-loconfuso,aindaque,comovocêlogoverá,essasejaapalavraexataparafazerparcom"material",aprimeira das quatro causas. Retornarei à explicação de "formal" apósconsiderarmosaúltimadasquatrocausas.

Aquartaquestãoé:issoestásendofeitoparaquê?Quepropósitoseesperaqueissoatenda?Queobjetivoouusoofazedorconsideravaofimaquesedeviaservir?Emsuaformamaissimples,aperguntaé:porqueseestáfazendoisso?Ea resposta, noquediz respeito àsproduçõesque estamosdiscutindo, é rápida.

Page 41: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Todos sabemos qual a finalidade dos sapatos, dos anéis e das armas - qual afunçãoqueelesdesempenham,ouaquaispropósitosservem.

Aristóteleschamouessequartofatornasproduçõeshumanasdecausafinal,e lhe deu esse nome porque o fator referido é um fim que se tem em vista.Quandovocêoueufazemosqualquercoisa,ofimquetemosemvistaéalgoqueobtemos por último ou ao final. Precisamos terminar o que estamos fazendoantesquepossamosusaroobjetoparaopropósitoquetínhamosemmente.

Eu disse antes que as quatro causas são fatores indispensáveis que têmdeestarpresenteseoperantes semprequeohomemproduzqualquercoisa.Dizerque são indispensáveis é dizer que, em conjunto, são aquilo sem o que aprodução não poderia ter acontecido. Cada um desses quatro fatores é por simesmonecessário,masnenhumdelesésuficienteporsimesmo.

Todososquatrotêmdeestarpresentesemconjuntoeoperarumemrelaçãoao outro de uma certa maneira. O trabalhador tem de ter material em quetrabalhar e tem de efetivamente trabalhar nele. Ao fazer isso, ele tem detransformá-loemalgoqueomaterialpodetornar-se.Eoquefoifeitotemdeteralgumusoparaapessoaquefez.Emoutraspalavras,éprecisoqueeletenhatidoumarazãoparafazeraquilo,poissemelaeleprovavelmentenãoteriasedadoaotrabalhodefazê-lo.

Você pode questionar essa última afirmativa. Você pode se perguntar se acausafinal-arazãoparafazeralgo-sempretemdeestarpresenteeoperante.Nãoserápossívelquealguémproduzaalgosemterumarazãoparaisso,semteremmente,deantemão,umpropósitodeliberadoquepretendaatender?

Nãoéfácilresponderaessaperguntacomcerteza,aindaquesedevaadmitirque,namaiorpartedasvezes,ossereshumanossedãoaotrabalhodeproduzircoisasporqueprecisamouporquequeremascoisasdecujaproduçãoseocupam.Noentanto,elestambémpodem,ocasionalmente,ficarmexendonosmateriaise,como resultado, produzir algo inesperado — sem ter almejado nada, ou,digamos,comoquebrincando.

Quando isso acontece, aparentemente não haveria causa final, nenhumresultadoúltimoaquesevisava.Pode-seconceberumpropósitoparaoobjetoproduzido,umafunçãoparaeledesempenhar,apósotérminodesuaprodução,mas seuprodutornãooconceberadeantemão.Assim,édifícilque isso tenhasidoumfatorindispensávelouumacausadaquiloqueaconteceu.

Quando passamos das produções humanas para as operações naturais, apergunta sobre a presença e sobre a operação de causas finais fica maisinsistente.Eimpossívelfugirdeenfrentá-ladiretamente, jáquecertamentenosseria desconfortável dizer que a natureza tem isso ou aquilo emmente comoresultado final almejado. Talvez, quando eu conseguir explicar por que

Page 42: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Aristóteleschamaaterceiradasquatrocausasdecausaformal,tambémconsigaresponder a pergunta sobre a operação das causas finais nas operações danatureza.

Antesdisso,vamosresumirasquatrocausasdescrevendo-asnostermosmaissimples possíveis. Como essas afirmativas sobre as quatro causas sãosimplíssimas,talveztambémsejamdifíceisdeentender.Temosdeprestarmuitaatençãoàspalavras-chavequeestãoemitálicoemcadaafirmativa.

Oquequeremosdizerquandofalamos"aquilonoquealgumacoisaéfeita"?Ocouroqueosapateirousouparafazerosapatonãoeraumsapatoantesdeosapateiro começar a trabalhar nele. Ele se tornou um sapato, ou foi feito emsapatopelotrabalhodosapateiro,que,demeropedaçodecouro,transformou-oem sapato feito de couro. Isso, que nummomento anterior era couro, sem terformadesapato,passaaserterformadesapato.ÉporissoqueAristótelesdizquea"sapatidade"éacausaformaldaproduçãodossapatos.

Aintroduçãodapalavra"sapatidade"vainosajudaraevitaropiorerroquepodemos cometer ao tratar das causas formais. Émuito natural que fiquemostentadosapensarqueaformadeumacoisaéseuformato—algoquepodemosdesenhar numa folha de papel.Mas os sapatos existem emdiversos formatos,tamanhosecoresdiferentes.Sevocêficassenafrentedavitrinadeumalojadesapatos com um bloco de rascunho na mão acharia difícil ou impossíveldesenharaquiloqueécomumatodososformatosdesapatosaliexpostos.

Vocêconsegueconceberaquiloqueelestêmemcomum,masnãoconseguedesenhar.Quandovocêtiverumaideiadoqueécomumatodosossapatos,detodos os formatos, tamanhos e cores, aí terá percebido aquilo que Aristóteleschama de sapatidade. Se essa forma não existisse, não seria possível fazersapatos, as matérias-primas de que os sapatos são feitos jamais poderiam sertransformadasemsapatos.

Preste atenção na palavra "transformar". Ela contém a palavra "forma".Quandovocê transformamatérias-primasemalgoqueelasnãosão—ocouroemsapatos, oouro empulseiras etc.—estádandoa elasuma formaquenãopossuíamanteriormente.Quandoumsapateirotrabalhaemsuasmatérias-primas,eleastransformaemalgoqueelaspodemtornar-se,masquenãoeramantesdeeletrabalharnelas.

Podemosnosdistanciaraindamaisdoerrodepensarqueacausaformaléoformato que um objeto adquire considerando os outros tipos demudança quediscutimosanteriormente—outrasmudançasalémdaproduçãodecoisascomosapatos,anéisearmas.

Aboladetênisquevocêpôsemmovimentovaidasuaraqueteatéalinhade

Page 43: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

base do adversário, do outro lado da quadra. Você é a causa eficiente dessemovimento,impulsionandoabolacomaforçadesuajogada.Abolaéacausamaterial—aquilosobreoqueseestáagindo.Masqualacausaformal?Elatemde estar em algum lugar que não o lugar de onde a bola saiu quando você aacertou. Imaginemos que a bola vá parar do outro lado da rede, que seuadversárionãoaacerteequeelavápararnamuretadetrás.Olugaremqueelaenfimparouéacausaformaldomovimentoparticularqueterminouali.Tendoestadoaqui,doseuladodarede,suaposiçãooulugarfoitransformadoemali,contraamuretadetrás.

Analogamente,acadeiraverdequevocêpintoudevermelhopassaporumatransformação de cor, assim como o balão que você estourou, ele sofreu umatransformação de tamanho.A vermelhidade é a causa formal damudança quevocêefetuouaopintaracadeira,assimcomoestar-ali-dadeéacausaformaldamudançaquevocê efetuou ao acertar a bola.Nessasduasmudanças, você é acausaeficiente.Emumadelas,acadeiraverdeéacausamaterial,sobreaqualvocêagiuaopintá-ladevermelho.Naoutra,obalãorasgadoéacausamaterial,aquilosobreoquevocêagiuaoestourá-lo.

Os três tipos demudança que acabamos de considerar também acontecemnaturalmente, sem que o homem entre como causa eficiente. Quandoexaminamossuaocorrêncianatural,ficamaisdifícilidentificarasquatrocausas,e surgemnovosproblemas.Todavia, aquiloque já sedisse sobreasmudançascausadaspelohomemvainosajudar.

AluzdoSolfazotomateamadureceredeverdepassaravermelho.OsraiosdoSolsãoacausaeficientedessaalteração,eotomateemsi,osujeitoquesofreamudança,éacausamaterialdela.Aqui,comonaaçãodepintarumacadeiraverdedevermelho,avermelhidadeéacausaformal.Tendosidodecorverde,éissoqueo tomate se torna.Masaquinãoháumacausa finaldistintadacausaformalqueacabamosdemencionar.

Apessoaquepintouacadeiraverdedevermelhopodeterfeitoissoparaqueelacombinassecomascadeirasdeumasala.Opropósitooufimqueoindivíduotinha em mente era distinto da vermelhidade que era a causa formal datransformaçãodacordacadeira.MasnãodiríamosqueoSol,aobrilharsobreotomate,queriadeixá-lovermelho,comosinaldequeelefinalmentepassouasercomível.Oresultadofinaldoamadurecimentodotomate,noquedizrespeitoàcor de sua superfície, consiste em ser vermelho.Ser vermelho é tanto a causaformalquantoacausafinaldamudança.

Pode-sedizerbasicamenteamesmacoisadarochaquesedesgastacomosgolpesdasondasequevaificandomenorcomoresultadodesseprocesso.Esseprocesso pode se estender por muito tempo, mas, em qualquer momento, o

Page 44: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

tamanhodarochanaquelemomentoétantoacausaformalquantoacausafinaldamudança-adiminuiçãodetamanhoocorridaatéentão.

Asdescriçõesqueacabamosde fazerdeumaalteraçãonaturalnacoredeumareduçãonaturalno tamanho tambémvalemparaumamudançanaturaldelugar.A bola de tênis que se deixa cair por acidente cai no chão e acaba porrepousarnele.Essemovimentolocalterminanolugaremqueabolarepousa,eaquelelugarétantoacausaformalquantoacausafinaldomovimento.

Se, nesse caso, fôssemos indagar a respeito da causa eficiente, a força dagravidade provavelmente seria mencionada — uma resposta que muitosaprenderamnaescola,masqueteriaconfundidoAristóteles.Essefatonãoafetanossa compreensão da diferença entre uma causa eficiente, de um lado, e ascausasmaterial,formalefinal,deoutro.Nãoimportacomosechameoucomosejadesignada,elaésempreaquiloque,noprocessodequalquermudança,agesobre um sujeito alterável ou exerce uma influência sobre ele que resulta emaquele sujeito alterável tornar-se diferente sob um certo aspecto— de verde,passaavermelho,demaior,passaamenor,deestaraqui,passaaestarali.

Consideremosoutrotipodemudança-ocrescimentodeumacoisavivaque,ainda que envolva um aumento de tamanho, envolvemuitomais do que isso.Aristótelesusaoconhecidoexemplodabolotadecarvalhoquecainochão,criaraízes,énutridapelaluzdoSol,pelachuvaepelosnutrientesdosolo,eacabaportornar-semaisumcarvalhoplenamentedesenvolvido.

Abolota,comoelediz,éumcarvalhoemprocessodeformar-se.Aquiloqueé ser carvalho é simultaneamente a causa final e a causa formal de a bolotatornar-se carvalho. A forma que a bolota assume quando, por meio docrescimento, chega a desenvolver-se totalmente é o fim que a bolota estavadestinadaacumprirsimplesmenteporserumabolota.

Se, em vez de bolota, a semente tivesse sido um grão de uma espiga demilho,plantá-laenutri-lateriaresultadoemumprodutofinaldiferente-umpédemilhocomespigas.SegundoAristóteles,ofimaseratingidoeaformaaserdesenvolvidanoprocessodecrescimentoestãodealgummodopresentesdesdeo primeiro momento - na semente que, devidamente cuidada, crescerá e setornaráaplantaplenamentedesenvolvida.

Aristótelesadmitiriaqueelesnãoestãopresentesemato,pois,seestivessem,a bolota já seria um carvalho e o grão seria um pé demilho.Mas eles estãopresentesempotência,oqueésimplesmenteoopostodeestarpresenteemato.É a diferença entre a potência que está presente na bolota, de um lado, e apotênciapresentenogrãodemilho,quelevaumasementeadesenvolver-sedeumjeitoeoutrasementeadesenvolver-sedeoutro.

Hojetemosumjeitodiferentededizeramesmacoisa.Aristótelesdiziaquea

Page 45: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

"enteléquia"deumasementeeradiferenteda"enteléquia"deoutra.Aousaressapalavragrega,elequeriadizerquecadasementetinhaemsiumapotênciaqueadestinavaaalcançar,pormeiodocrescimentoedodesenvolvimento,umaformafinal ou resultado final diferentes. Quando usamos o linguajar da ciênciamoderna,dizemosqueocódigogenéticodeumasementedáaelaumasériedeinstruçõesparacresceredesenvolver-sequedifereda sériede instruçõesdadapelocódigogenéticodeoutrasemente.

Enxergamosocódigogenéticocomoalgoqueprogramaocrescimentoeodesenvolvimento de um ser vivo desde o instante em que o processo inicia.Aristóteles julgava que as potências intrínsecas de um ser vivo guiavam econtrolavam aquilo que ele se torna em seu processo de crescimento e dedesenvolvimento.Atécertoponto,asduasdescriçõesdaquiloqueacontecesãoquase intercambiáveis. Os fatos observáveis a serem explicados continuam osmesmos.Asbolotasnuncasetornampésdemilho.

Para que seja assim, é preciso que, de um lado, haja algo inicialmentediferentenamatériaqueconstituiabolota,e,deoutro,namatériaqueconstituiogrão demilho.Chamar esse algo de genes que programamo crescimento e odesenvolvimento ou chamá-lo de potências que orientam e controlam ocrescimento e o desenvolvimento não faz muita diferença para nossacompreensãodaquiloqueestáacontecendo.Mas,comoamaioriadenóssabe,fazdiferençaparaaquiloqueossereshumanospodemfazerparainterferirnosprocessosnaturais.

Nosso conhecimento científico do DNA (uma sigla para um termo debioquímica) nos permite fazer experiências com o código genético de umorganismoe,talvez,operarmudançassignificativasnasinstruçõesqueeledá.Oentendimento filosóficodeAristóteles dopapel desempenhadopelas potênciasnãoo capacitava, nemnos capacita, para interferir damenormaneiraque sejanasoperaçõesdanatureza.

Falarei mais no próximo capítulo sobre potências e atos, e também sobrematéria e forma, como fatores fundamentais em todos os tipos de mudanças,tantoasnaturaisquantoasartificiais.Essesquatrofatores,aindaquenãosejamidênticosàsquatrocausas,guardamumarelaçãopróximacomelas.

A fim de atiçar seu apetite para o que vem por aí, vou pedir que vocêconsidere mais uma vez umamudança que já foi mencionada— aquele tipoespecial de mudança que Aristóteles chamava de geração e corrupção. Comoexemplo daquele tipo especial de mudança, vou tomar uma ocorrência bemconhecidadavidacotidiana.

Sentamo-nos para jantar e comemos uma fruta.Amaçã emnosso prato játinhaacabadodeamadurecerquandofoitiradadaárvore.Maselaaindaéuma

Page 46: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

coisa viva, com sementes que podem ser plantadas para dar origem a novasmacieiras. Ela não mostra nenhum sinal de estar se decompondo ouapodrecendo.Nós a comemos inteira,menos omeio.O que aconteceu com amaçã?

Nãoapenasacomemos,mastigamosedigerimos,mastambémnosnutrimosdela,oquesignificaquedealgummodoamaçãsetornoupartedenós.Antesdecomeçarmosacomê-la,amatériaorgânicadaquela fruta tinha formademaçã.Depois que a comemos,mastigamos, digerimos e nutrimo-nos dela, amatériaquenummomentoteveformademaçãdealgummodofundiu-seoumesclou-secomnossaprópriamatéria,quetemformadeserhumano.

A maçã não se tornou ser humano. Antes, como parece, a matéria em sitransformou-se, deixandode ter formademaçã e passando a ter formade serhumano.Eladeixoudesermatériademaçãetornou-sematériahumana.

Oque se quer dizer com "amatéria em si", algo diverso de "amatéria damaçã"oude"amatériadoserhumano"?Seráquepodemosdizerqueamatériaemsiéaquelacoisasubjacentequepersistenessetiponotáveldemudançaqueacontecetododiaquandocomemososalimentosquenosnutrem?

Esperopoderesclareceressas"matérias"nopróximocapítulo.

Page 47: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

7.SERENÃOSER

Costumamospensarqueonascimentodeumorganismovivoéageraçãodealgoquenãoexistiaantes.Ecomfrequênciareferimosamortedeumapessoacomoseupassamento(Eminglês,passingaway.AdlerfazumtrocadilhointraduzívelcomotítuloinglêsdeSobreaGeraçãoeaCorrupção,queéOnComingtoBeandPassingAway).

NopensamentodeAristótelessobreasmudançasqueocorremnomundodanaturezaesobreasmudançasqueossereshumanosproduzemporcontaprópria,aquelamudançaespecialqueelechamadegeraçãoecorrupçãoédistinguidadetodos os outros tipos de mudança, como a mudança de lugar, a alteração dequalidade,eoaumentoouadiminuiçãodequantidade.

Essetipoespecialdemudançadenaturezaémaisdifícildeentenderdoqueoutrostiposdemudança.Porquê?Paradescobrir,comecemoscomaquiloqueémais fácil de entender — a produção ou a destruição de coisas por sereshumanos.

Quandoaspessoasmovemascoisasdeumlugarparaoutro,quandoelasasalteramouasampliam,acoisaindividualqueelasmovem,alteramouampliamcontinuaaseramesmacoisa.Elasómudanoquedizrespeitoaosatributos-seulugar,suacor,seutamanho.Nãoapenaselacontinuaaseramesmacoisaqueeraantes de mudar, ela também continua a ser essa coisa particular, única,individual.

A"mesmidade"persistenteouapermanênciadacoisa individualquepassapor essasmudanças fica clara a partir do fato de que sua identidade pode sernomeadadomesmojeitoantesedepoisdeamudançaocorrer:essabola,aquelacadeira. Não se trata de outra bola nem de outra cadeira, mas dessa aqui edaquelalá.

Quando alguém pega matérias-primas como pedaços de madeira etransformaessasmatérias-primasnumacadeira,umacoisaartificial - algoquenão existia antes - passa a existir.Aquilo que antes eramdiversos pedaços demadeiraagorasetornouessacadeiraparticular.Pedaçosdemadeiratornarem-seumacadeira certamentenão é amesma coisa que essa cadeira verde tornar-severmelha.Arazãoéque,quandoacadeirapassaaexistir,osdiversospedaçosdistintos de madeira não subsistem, ao menos não como diversos pedaçosdistintos demadeira, ainda que essa cadeira continue a ser precisamente essacadeiraquandomudadecor.

Antes de passarmos da produção artificial à geração natural (que é apenasoutro nome para o processo de vir a ser), será bom considerarmos mais

Page 48: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

atentamenteaquiloqueacontecenoprocessodeproduçãoartificial,queémaisfácil de entender. Tudo ficará mais fácil se entendermos o sentido de quatropalavras usadas no capítulo anterior. Essas palavras são "matéria", "forma","potência"e"ato".Aindaqueaquiloqueelassignificampossaserentendidoàluzdaexperiênciacomum,eemtermosdosensocomum,aspalavrasemsinãosãotermosqueusamoscomfrequênciaemnossafalacotidiana.

Pedaçosdemadeiraquenãosãoumacadeiratornam-sepedaçosdemadeiraquesãoumacadeira.Quandoospedaçosdemadeiranãosãoumacadeira,ofatode não serem uma cadeira é uma falta de "cadeiridade" da parte deles. Elescarecem — estão privados — da forma de cadeira. Vamos usar a palavra"privação"paraessacarênciadeumacertaforma.

Nessespedaçosdemadeiraháalgoalémdaprivaçãodacadeiridade.Seissofosse tudo, esses pedaços de madeira jamais poderiam ser transformados emcadeira.Alémdecarecerdecadeiridade,essespedaçosdemadeiratambémtêmde ter a capacidade de adquirir cadeiridade. Essa capacidade estáinseparavelmente relacionada à sua privação. Afinal, se esses pedaços demadeira não carecessem da forma de cadeira, não teriam a capacidade deadquiriressa forma.Senãocarecessemdela, jáapossuiriam.Somentequandocertosmateriais, como pedaços demadeira, carecem de uma certa forma elespodempossuiracapacidadedeadquiri-la.

Vamoschamaressacapacidadedepotênciadosmateriaisemquestão.Outramaneiradedizerpotênciaé"podeser".Émuitodiferentedizerquealgoéumacadeiraouquepodeser uma cadeira. Esses pedaços demadeiranãosão umacadeira,maspodemserumacadeira.Comodissehápouco,seelesfossemumacadeira,nãopoderiamtornar-seumacadeira.

Nãoéverdade,todavia,que,quandocertosmateriaiscarecemdeumacertaforma,sempretêmapotênciadeadquiri-la.Porexemplo,aáguaeoarcarecemdaformadecadeira,mas,aocontráriodamadeira,aáguaeoarsãomateriaisquecarecemdapotênciadeadquirirformadecadeira.Aindaqueapotênciadeadquirirumacertaformasóestejapresentenosmateriaisseaquelaformaestiverausente,ameraausênciadaforma-acarênciaouaprivaçãodela-nãosignificanecessariamente que os materiais tenham a potência de adquiri-la. O homempodefazercadeirasdemadeira,masnãodearoudeágua.

Quando os pedaços de madeira que carecem da forma de cadeira e quetambém têm a potencialidade de adquirir essa forma assumem essa forma emrazãodascapacidadesedoesforçodeumcarpinteiro,dizemosqueospedaçosdemadeiraqueerampotencialmenteumacadeiraagorasãoumacadeiraemato.Durantetodooprocessodetornar-se,atéoexatomomentoemqueacadeiraestáfinalmenteterminada,ospedaçosdemadeiraqueestavamsendotransformados

Page 49: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

aindaeramumacadeiraapenasempotência.Esóquandosuatransformaçãosecompletaqueelestêmformadecadeiraemato.

Quando os pedaços de madeira são uma cadeira em ato, sua potência detornar-secadeirafoiatualizada,eassim,éclaro,deixadeexistircomopotência.Aformaadquiridapelospedaçosdemadeiraéoatoqueremoveapotênciaqueacompanhavaacarênciadaquelaformanamadeiramasquenãoacompanhavaafaltadelanaáguaounoar.

Agoraconseguimosvercomoessasquatroimportantespalavras—matéria,forma,atoepotência—serelacionam.Amatériapodeterumacertaforma,oucarecerdela.Secarecerdela,amatériapodetambémteracapacidadedeadquiri-la, e nisso consiste sua potência de ter aquela forma.Mas, carecendode certaforma,nemsempreelatemapotênciadeadquiri-la,comovimosnoexemplodaáguaedoaremcomparaçãocomamadeira.Quandoelaadquireaformaparaaqualtempotência,essapotênciaéatualizada.Possuiraformaadquiridafezamatériadeixardesercadeirapotencialepassarasercadeiraemato.

Tenho alternado o uso das palavras "matéria" e "material". Mas, quandofalamosdemadeira,deumlado,edeágua,deoutro,falamosdetiposdiferentesdematéria.Madeiranãoésómatéria,éumcertotipodematéria—matériaquetemformademadeira,diferentedematériaquetemformadeágua.

Umtipodematéria,amadeira,dáaossereshumanososmateriaiscomqueelesfazemcadeiras,outrotipo,aágua,não.Aformaqueamatériapossui,equefazdelaumcertotipodematéria(madeira),tambémlhedáumacertapotência(detornar-secadeira).Amatérianaformadeáguanãotemessapotência.

Quandocompreendemosisso,queésimples,umsimplespassonoraciocínionoslevaaentenderoutracoisaimportante.

A madeira pode tornar-se cadeira, mas não pode tornar-se uma lâmpadaelétrica,aáguapodetornar-seumafonte,masnãopodetornar-secadeira.

A matéria que possui uma certa forma tem uma potência limitada paraadquiriroutrasformas.Issovaleparatodotipodematéria,paratodosostiposdemateriaiscomqueaspessoaspodemtrabalharparaproduzircoisas—cadeiras,lâmpadasefontes.

Suponhamos agora que houvesse uma matéria totalmente desprovida deforma-umamatériaabsolutamente informe.Elanãoserianaverdadenenhumtipodematéria,pois,carecendodealgumaforma,teriaacapacidadedeadquirirqualquerforma.Elateriaumapotênciailimitadaparaformas.

Vocêteria todarazãose,aopensarnisso,dissesse:"Espereaí,umamatériasemqualquerformapodeterumapotênciailimitada,umacapacidadeilimitadaparaadquirirformas,mas,comocarecedealgumaforma,elanãoserianadaemato.Aquiloqueénadanãoexiste.Portanto,falardematériainformeéfalarde

Page 50: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

algoquenãopodeexistir".Porque,então, talvezvocêpergunte,eumedeiaotrabalhodefalardisso?Qualosentidodepensarnisso?

Aristóteles diria que, olhando de um jeito, você tem razão ao dizer que amatériapura,disforme,nãoénadaemato,ou,emoutraspalavras,énada.Logo,você também tem razão ao pensar que a matéria informe não existe. MasAristótelesaindadiriaque,mesmoqueamatériainformenãosejanadaemato,elatambémépotencialmentetudo.Elaépotencialmentetodotipodecoisaquepodeexistir.

Você,noentanto,insiste,seamatériainformenãoexisteenãopodeexistir,qualosentidodefalardelaoudepensarnela?ArespostadeAristóteleséquenãohaverianecessidadedemencioná-laoudepensarnelasenoslimitássemosatentar entender as produções e destruições artificiais - o fazimento edesfazimentodecoisascomocadeiras.Masonascimentoeamortedosanimaisnãosãotãofáceisdeentender.

Consideremosprimeiro amorte deumanimal.Nosso coelhode estimaçãomorre-decompõe-se,desintegra-see,porfim,desaparece.Amatériaquetinhaforma de coelho não temmais aquela forma. Ela agora adquiriu outra forma,como aconteceria se o coelho tivesse sido morto e devorado por um lobo.Quando isso acontece, amatériaqueeramatériadeum tipode coisa (coelho)agorasetornoumatériadeoutrotipodecoisa(lobo).

Sevocêpensarnissoporuminstante,veráqueaquiloqueaconteceuaquiédiferente daquilo que acontece quando a madeira, que é um certo tipo dematéria,viraumacadeira.Aotornar-secadeira,elanãodeixadesermadeira.Elanãodeixadesermatériadeumcertotipo.Umcertotipodematériacontinuouaexistirnessamudança.Elapode ser identificadacomosujeitodamudança.Ospedaçosdemadeiraquenummomentonãoeramcadeiraematoagoratornaram-secadeiraemato.

Masnatransformaçãoqueocorreuquandoolobomatouedevorouocoelho,umcertotipodematérianãocontinuouaexistirnamudança.Amatériadeumcertotipodecoisa(amatériaquetemaformadeumcoelho)tornou-seamatériade outro tipo de coisa (matéria que tem forma de lobo). O único sujeitoidentificáveléamatéria—nãoamatériadeumcertotipo,jáqueamatériadeumtipoparticularnãocontinuaaexistirnamudança.

Passemos agora damorte ao nascimento.Aquele coelho de estimação quevocê tinha passou a existir como resultado da reprodução sexual. Aristótelesestavatãocientedosfatosdavidaquantovocêeeu.Oprocessoqueresultanonascimento de um coelho vivo começou quando o óvulo de uma coelha foifertilizadopeloespermadeumcoelho.

A partir do momento da fertilização, um novo organismo começou a

Page 51: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

desenvolver-se, ainda que, enquanto está no útero da coelha, não seja um servivo separado. O nascimento do coelho é apenas uma fase do processo dedesenvolvimento.Elevinhasedesenvolvendonoúterodamãecoelhaantesdenascerecontinuaadesenvolver-seapósonascimentoatéestarcompletamentecrescido.

Onascimentonadamaiséqueaseparaçãodeumcorpovivodeoutro—obebê coelho da mãe coelha. E essa separação é um movimento local, ummovimentodobebêcoelho,queestavaemumlugarepassouaestaremoutro—queestavadentrodamãecoelhaepassouaestarforadamãecoelha.

Voltemosagoraaocomeçodobebêcoelho—omomentoemqueelepassouaexistir.Antesdessemomento,haviaoóvulodacoelhaeoespermadocoelho.Nem o óvulo nem o esperma eram coelho em ato, ainda que os dois, juntos,tivessem a potência de tornar-se coelho. A atualização daquela potênciaaconteceu no momento da fertilização, quando a matéria do esperma foimescladaoufundidacomamatériadoóvulo.

Seráqueamatériadoóvuloeamatériadoesperma,separadasumadaoutra,têm com amatéria do bebê coelho após a fertilização amesma relação que amatériadocoelhotemcomamatériadolobodepoisdeocoelhotersidomortoedevoradopelolobo?Sesim,entãoalgosemelhanteàquiloqueAristótelestinhaemmentequandopediuqueconsiderássemosamatéria informeéo sujeitodamudançanageraçãoecorrupçãodosorganismosvivos.Éoque identificamoscomo aquilo que persiste ou que continua existindo nesse tipo especial demudança.

Isso é omáximo que posso dizer para explicar por queAristóteles julgounecessário mencionar a matéria informe. Você pode achar que ele foi longedemais - que a geração natural pode ser explicada do mesmo jeito que aproduçãoartificial.Sevocêachaisso,pedireiqueconsideremaisumexemplo.

Aristóteles mesmo considerou esse exemplo. Ele disse que a "naturezaprocedepoucoapoucodecoisassemvidaparacoisasvivasdeummodotalqueéimpossíveldeterminaralinhadedemarcação".Eleeraperfeitamentecapazdeimaginarquealinhaentreosseresnãovivoseosvivosfoicruzadaquandoosprimeiros organismos vivos da terra surgiram da matéria não viva. Será queconseguimos identificar, nessa geração dos primeiros organismos vivos, amatéria que é sujeito dessa notávelmudança comomatéria de um certo tipo?Seráqueelacontinuaaseromesmotipodematériatantoantesquantodepoisdeosprimeirosorganismosvivosteremsidogerados?

Vocêpodenãoquererchegaraopontodechamá-ladematériainforme.Maspode ver que é difícil identificá-la como matéria de um certo tipo, o quesignificaria que ela tinha e reteve uma certa forma. Se é essa sua inclinação,

Page 52: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

então você entende por queAristóteles achava que a geração natural eramaisdifícil de explicar do que a produção artificial e também entende por que eleachavaqueeranecessáriomencionaramatériapuraouinformeepedirquevocêaconsiderasse,mesmoque,éclaro,elanãoexista.

Page 53: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

8.IDEIASPRODUTIVASESABERPRÁTICO

Apessoaquepelaprimeiravez transformoumadeiraemcadeira—ouemcama,ouemcasa—devetertidoalgumaideiadaquiloqueiafazerouconstruirantesdecomeçara trabalhar.Esse indivíduo tinhadeentendera formaqueospedaços de madeira teriam de adquirir para tornar-se uma cadeira. Ele nãopoderia ter tirado essa ideia de uma experiência com cadeiras porque nãoexistiam cadeiras antes de ele fazer a sua. Talvez, pode-se supor, ele a tenhatirado de experiências com formações rochosas que serviramde suporte a seucorponahoradesentar-se.Assim,aprimeiracadeirafoiumaimitaçãodealgoqueseuinventoencontrarananatureza,assimcomoaprimeiracasafoi,talvez,umaimitaçãodeformaçõesnaturaisdecavernasqueserviamdeabrigo.

Nãoimportadeondeoucomooprimeirofazedordecadeirastirouaideiadecadeira:aideiamesmanãobastava.Comoobservamosnumcapítuloanterior,aforma da cadeira— a cadeiridade— é comum às cadeiras de todo tamanho,formatoeconfiguraçãodepartes.Se tudoqueoprimeirocarpinteiro tinhaemmenteerauma ideiadascadeirasemgeral, elenãopoderia terproduzidoumacadeira individual, particular em todos os aspectos em que uma cadeiraindividualpodediferirdeoutras.Afimdetransformarosmateriaisdemadeiraem que trabalhou, dando-lhes a forma de cadeira, ele também tinha de teralgumaideiadacadeiraespecíficaqueiaproduzir.

O pensamento produtivo envolve aquilo que podemos ficar tentados achamar de ideias criativas. Como não havia um equivalente grego da palavra"criativo"novocabuláriodeAristóteles,temosderesistiraessatentação,efalardeideiasprodutivas.Ideiasprodutivassebaseiamemalgumacompreensãodasformasqueamatériapodeassumir,suplementadaspelopensamentoimaginativoarespeitodedetalhescomotamanhos,formatoseconfigurações.Semumaideiaprodutivanessesentidocompleto,oartesãonãotemcomotransformarmatérias-primas nessa coisa individual, seja uma cadeira, uma cama, uma casa, sejaqualqueroutracoisaquepossaserfeitacommateriaisoferecidospelanatureza.

Háduasmaneirasdeexpressarumaideiaprodutiva.Oprimeirofazedordecadeirasouconstrutordecasasprovavelmentenãopreparouumplanoouumaplanta baixa da coisa que ia produzir. Tendo em mente uma ideia produtiva,simplesmente produziu a coisa. A materialização dessa ideia — suacorporificaçãonamatéria-expressavaa ideiaprodutivaqueele tinha.Sevocêtivesseperguntadoaelequeideiatinhaemmenteantesdefazeracadeiraoudeconstruir a casa, ele talveznão tivesse sido capazdedizer.Mas, umavezque

Page 54: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

tenhatrazidoacadeiraouacasaàexistência,elepoderiaterapontadoparaelaedito:"Eraissoqueeutinhaemmente".

Numaetapamuitoposteriordahistóriadahumanidade,artesãosdetodosostipos tornaram-se capazes de preparar planos para fazer coisas. Tornaram-secapazesdeexpressarsuasideiasprodutivasantesdeefetivamentematerializá-lastransformando a matéria. Contudo, mesmo nos estágios mais avançados dahistóriadaprodutividadehumana,osartesãosnemsemprecomeçamotrabalhocolocandodealgummodosuasideiasnopapel.Àsvezes,elesaindaficamcomaideianacabeçaedeixamqueelaosguieemtodasasfasesdaobra,atéqueoprodutofinalpasseaexistireexpresseaideiaquetiveraminicialmente.

Essadistinçãoentreduasmaneirasdeexpressaras ideiasprodutivaschamanossa atenção para duas fases da produção das coisas, fases que podem serseparadas.Umindivíduopodeteraideiadeumacasaparticularaserconstruídaepodeprepararosplanosparaconstruiressacasa.Outroindivíduoououtrosindivíduos podem executar ou realizar esse plano. Atualmente distinguimosentre esses dois diferentes contribuidores da produção de uma casa chamandoumdearquitetoeoutrodeconstrutor(ou,seoconstrutorempregaoutraspessoasparaconstruiracasa,chamamosoconstrutordeempreiteiro).

O indivíduo que prepara os planos é quem tem a ideia produtiva.Aquelesque executam os planos precisam ter saber prático. Para fazer qualquer coisa,sejaumacadeiraouumacasa,nãobastaterideiasprodutivas.Pararealizá--las,énecessáriosabercomousarasmatérias-primasafimqueapotênciadetornar-seumacadeiraouumacasasejaatualizada.Amenosqueoresultadofinalsejaatingido, a ideia produtiva não será expressada em matéria. Ela não serámaterializada.

É claro que umúnico emesmo indivíduo pode ter tanto a ideia produtivaquantoosaberpráticonecessárioparafazerumacadeiraouumacasa.Aúnicacoisa que temos de lembrar é que as ideias produtivas e o saber prático sãofatores distintos da produção das coisas. O que faz parte do saber prático doartesão?

Primeiro, ele precisa saber como escolher as matérias-primas apropriadaspara fazer o tipo de coisa que tem emmente, com quaisquer ferramentas quetenhaàsuadisposição,oucomnenhuma,usandoapenasasprópriasmãos.Se,por exemplo, suasúnicas ferramentas foremummartelo eumserrote, elenãopoderáfazerumacadeiradeferrooudeaço,nemumacasadepedra.Enãoéprecisodizerque,independentementedasferramentasdisponíveis,oartesãonãotemcomofazerumacasadearoudeágua.

Alémdesabercomoescolherosmateriaisapropriadosparatrabalharcomasferramentas de que dispõe, o artesão também precisa saber como usar essas

Page 55: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ferramentasdemodoeficienteecomoprocederemcadaetapadaconstruçãodacoisaquedeseja fazer.Naconstruçãodeumacasa,as fundaçõesvêmantesdaestrutura,que,porsuavez,vemantesdotelhado.

Amente,asmãoseasferramentasdoartesão,juntas,sãoacausaeficientedacoisa produzida. Elas agem sobre as matérias-primas a fim de atualizar aspotênciasqueessesmateriaistêmdesertransformadosnoprodutoqueofazedortinhaemmente.

Desses três fatores (que juntos constituem a causa eficiente), amente é oprincipal.Éamentedofazedorquetemaideiaprodutivaeosaberprático,semoquenemasmãosnemasferramentaspoderiamfazerqualquercoisa.Asmãoseasferramentasdofazedorsãomeramenteos instrumentosquesuamenteusaparacolocar sua ideiaprodutivae seusaberpráticonasaçõesnecessáriasparaagirsobreasmatérias-primaseatualizarsuaspotências.

Amente humana é o principal fator da produção humana. Tudo omais éinstrumental.

Saber como fazer algo é ter uma qualificação. Até nas produções maissimples, que às vezes chamamos de trabalho não qualificado, há algum saberpráticoe,portanto,algumaqualificação.Nasatividadesrealizadaspelaspessoas,dasmaissimplesàsmaiscomplexas—daconstruçãodemodelosdebrinquedopelas crianças à construção de pontes, represas e escolas — os níveis deconhecimentopráticosãoosníveisdequalificação.

Um sinônimo de "qualificação" é "técnica". A pessoa que possui o saberprático necessário para fazer alguma coisa possui a técnica para fazê-la.Digoissoporqueapalavra "técnica"vemdogrego technikos, queAristótelesusavaparafalardacapacidadeadquiridaquealgunshomenspossuemeoutrosnãoparaproduzir coisas. O prefixo tecno-, que significa arte ou qualificação, vem dogregotechné.Emlatim,issovirouarse,emportuguês,arte.Artistaéaquelequepossuiatécnica,aqualificaçãoouosaberpráticoparafazercoisas.Chamamosessaspessoasdeartistascriativosse,alémdepossuíremosaberprático,tambémpossuema ideiaprodutivaqueéa fonteprimária indispensáveldaqualvemacoisaaserfeita.

Asvezesusamosapalavra "arte"paranos referir àscoisasproduzidasporum artista, ou simplesmente "obras de arte".Mas como não se pode produzirobrasdeartesemquealguémadquiraosaberpráticonecessárioparaproduzi-las,aarte,nosentidodesaberprático,temdeprimeiroexistirnumserhumano,paradepoisaparecernumaobradearte.

Aindaquevocênãotenhaproblemasemconsiderarcozinheiros,costureiros,carpinteirosousapateiroscomoartistasouartesãosporreconhecerqueelestêma qualificação ou o saber prático necessários para fazer isso ou aquilo, você

Page 56: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

provavelmente não consideraria agricultores, médicos ou professores comoartistas.Aristóteles,porém,admitiaqueelespossuemumacertaqualificaçãoousaber prático que permite que sejam chamados de artistas. Mas ele tambémobservoudequemodoaartedelesdiferedaartedoscozinheiros,carpinteirosesapateiros.

Esses últimos produzem coisas— tortas, cadeiras e sapatos— que nuncaviriamaexistirsemideiasprodutivashumanas,semconhecimentopráticoesemesforço.Anaturezanãoproduzessascoisas.Elassãoinvariavelmenteobrasdearte. Mas, sem conhecimento prático e esforço humanos, a natureza produzfrutosegrãos.Porque,então,deveríamoschamarosagricultores,queplantamcoisascomomaçãoumilho,deartistas?Oquefoiqueelesproduziram?

Porsi,nada.Osagricultoressimplesmenteajudaramanaturezaaproduzirasmaçãs e omilho que a natureza teria produzido de qualquer jeito. Eles têm aqualificação ou o saber prático necessário para cooperar com a natureza naprodução de frutas ou de grãos e, ao fazer isso, podem obter uma quantidademaiordosprodutosdanaturezadoqueaquelhesteriachegadosenãotivessemcooperadocomanaturezaemsuaprodução.

Assim como os agricultores, por terem o conhecimento prático ou asqualificações que dizem respeito à agricultura, cooperam com a natureza naprodução de frutas, grãos e vegetais, também os médicos, que têm o saberprático ou as qualificações que dizem respeito à medicina, cooperam com anatureza na preservação ou na restauração da saúde de um organismo vivo.Comoasaúde,assimcomoasmaçãseomilho,éalgoqueexistiriamesmoquenão houvesse médicos, os médicos, assim como os agricultores, são apenasartistascooperadores,enãoartistasprodutivoscomoossapateirosecarpinteiros.

O mesmo vale para os professores. Os seres humanos podem adquirirconhecimento sem a ajuda de professores, assim como as maçãs e o milhopodemdesenvolver-se sema ajudade agricultores.Masos professores podemajudar os seres humanos a adquirir conhecimento, exatamente como osagricultores podem ajudar asmaçãs e omilho a chegar a certas qualidades equantidades. O ensino, assim como a agricultura ou a medicina, é uma artecooperativa,enãoprodutiva.

As artes produtivas diferem de muitas maneiras. A produção humana dáorigem a uma grande variedade de produtos—de cadeiras, sapatos e casas apinturas, estátuas, poemas e canções.As pinturas e as estátuas se assemelhamaossapatosnamedidaemquesãofeitasdemateriaisqueoprodutordealgummodo transforma. E, como os sapatos e as cadeiras, as pinturas e as estátuasexistemnumlocalenummomentodeterminados.

Por suavez,umamúsica -umacançãoquesejacantadadiversasvezes—

Page 57: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

nãoexisteapenasnumlocalenummomento.Elapodesercantadaemmuitoslugares diferentes, em muitos momentos diferentes. Além disso, cantar umacanção ou tocar umamúsica é algo que leva tempo, assim como leva temporecitarumpoemaoucontarumahistória.Acançãoeahistóriatêmumcomeço,ummeioeumfimnumasequênciadevezes,oquenãovaleparaaestátuaouparaapintura.

Háoutradiferençaentreumacançãoouumahistóriaeumapinturaouumaestátua. Podem-se escrever histórias compalavras, podem-se escrever cançõescomanotaçãomusical.Aspalavrasdalinguagemeasnotaçõesdamúsicasãosímbolosquepodemser lidos.Aquelequeécapazde lê-losconseguecaptarahistóriaqueelescontam,cantaramúsicaououvi-la.Para fruirdaobradeumpintoroudeumescultor,éprecisoquevocêváatéoprodutomaterialqueelefez.

Aindaqueapinturaeaestátuasejamumprodutomaterialcomoosapatoouacadeira,sãotambémcoisasafruir,comoahistóriaouacanção,nãocoisasausar, como o sapato ou a cadeira.Claro que é possível usar uma pintura parataparumburaconaparede,assimcomoépossívelfruirdeumacadeiraaoolharparaelaemvezdesentar-senela.

Aindaassim,usarefruirsãomaneirasdiferentesdeabordarasobrasdearte.Aspessoasasusamquandoasempregamparaatenderalgumpropósito.As pessoas fruem delas quando se satisfazem com o prazer que sentem aopercebê-lasdealgumjeito-sejaolhando,ouvindooulendo.

Oprazerquesentimosquandofruímosdeumaobradearte temalgoavercomofatodedizermosqueacoisadequefruímosébela.Masissonãoétudo.Também é possível dizer que uma cadeira, umamesa ou uma casa são belassimplesmenteporquesãobemfeitas.Serbemfeitoéalgoquefazpartedabelezadeumprodutohumano,sejaumacadeiraouumaestátua.Oprazerquesentimosaocontemplá-laséoutrofator.

Aristóteles sugere que esses dois fatores estão relacionados, o que parecefazersentido.Oprazerquesentimosaoolharparaaestátuaouparaacasa,ouaoouvirumahistóriaouumamúsica,estádealgummodorelacionadoaofatodeelas serem bem feitas. Uma estátua mal feita, uma casa mal construída, umahistóriamalcontadanãonosdariamtantoprazer.

Todos percebemos a diferença entre uma roupa feita por um alfaiatequalificado,ouumasopafeitaporumcozinheiroqualificado,ecamisasousopasfeitasporpessoascomquasenenhumaqualificação.Fruímosmaisdacamisaedasopabemfeitas—sentimosmaisprazercomelas—doquedasmalfeitas.

Alémdisso,aquelesquepossuemaartedecozinharoudecosturarpossuemosaberpráticocomquejulgarseumacamisaouumasopaforambemfeitas.E

Page 58: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

deesperarquecozinheirosealfaiatesqualificadosconcordememsuasopiniões.Ficaríamos surpresos se um cozinheiro qualificado achasse que uma sopa foibemfeitaeoutro,igualmentequalificado,achasse-amalfeita.

Nãoficaríamostãosurpresossesoubéssemosqueduaspessoasolharamumquadroconsideradobemfeitoporartistasqualificados,masumagostoudeleeaoutranão.Nãoesperamosqueaspessoasgostemdasmesmascoisas,nemquegostem delas igualmente. O que causa prazer a uma pessoa pode não causarprazeraoutra.

Assim como uma pessoa pode sermais qualificada ou possuirmais saberpráticodoqueoutra,tambémumapessoapodetermelhorgostodoqueoutra.Émais sensato perguntar a uma pessoa qualificada se uma determinada obra dearte foibemfeitadoque fazeressaperguntaaumapessoaquenãosabenadasobrecomoessasobrasdevemserfeitas.Porisso,provavelmenteémaissensatofalarcomumapessoademelhorgostosobreapossibilidadedeseapreciarumaobradearte.Acreditamosqueumapessoademelhorgostováapreciarmaisumaobradeartequesejamelhor -nãoapenasmaisbemfeita,como tambémmaisapreciável.

Aquestãodetodosdevermosounãoconseguirconcordar,oudeserrazoávelesperarquetodosconcordemosarespeitodabelezadeumaobradeartenuncafoi respondidasatisfatoriamente.Háalgumas razõespara responderquesim,eoutras para responder que não. Se a beleza de uma obra de arte dependesseapenasdeelaserbemfeita,seriamaisfácilresponderaquestão.Esperamosqueaquelesquepossuemosaberpráticonecessárioparaproduzirumaobradessaspossamconcordararespeitodofatodeelaserbemoumalfeita.

Deondevemtodoesseimportantesaberprático?Comoapessoaqualificadaoadquire?

As respostas são duas.Nas primeiras etapas da produção humana, o saberpráticonecessáriosebaseavanoconhecimentodesensocomumdanatureza—conhecimento das matérias-primas que a natureza oferecia ao trabalho doprodutorhumanoeconhecimentodomododeusarasferramentasdetrabalho.

Emetapasposteriores,eparticularmentenaépocamoderna,osaberpráticonecessário tem-se baseado no conhecimento científico da natureza, e hojeconsiste naquilo que viemos a chamar de tecnologia proporcionada peloconhecimento científico. "Tecnologia" não é nada além de outro nome para osaberpráticocientífico,distinguidodosaberpráticobaseadonosensocomum.

Será que o senso comum incomum de Aristóteles nos proporciona algumsaber prático útil? Será que o pensamento filosófico — a compreensão dosprocessos naturais que consideramos nos capítulos anteriores — nos ajuda aproduzircoisas?

Page 59: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Não, não ajuda. O conhecimento científico pode ser aplicadoprodutivamente.Pormeiodatecnologia,oconhecimentocientíficonosqualificaenoscapacitaparaproduzircoisas.Masareflexãoouacompreensãofilosóficaque amplia o alcance de nosso senso comum sobre o mundo físico em quevivemosnãonosqualificanemnoscapacitaaproduzirnada.

Lembre-se, por exemplo, de algo que foi dito num capítulo anterior. Acompreensão filosófica de Aristóteles da razão pela qual as bolotas setransformamemcarvalhosedeporqueosgrãosdemilhose transformamempés de milho não nos permite interferir de jeito nenhum nesses processosnaturais.MasnossoconhecimentocientíficodoDNAedocódigogenéticonospermitealterarseupadrãodedesenvolvimentopelamanipulaçãodosgenes.

Será então que, comparada com a ciência, a filosofia é totalmente inútil?Sim,é—senoslimitarmosaousodeconhecimentooudecompreensãoparaaproduçãodecoisas.Afilosofianãoassatortasnemconstróipontes.

Há, porém, um uso do conhecimento ou da compreensão diferente do usoque lhe damos quando produzimos coisas. O conhecimento e a compreensãopodemserusadosparadirigirnossasvidaseorientarnossassociedadesdemodoqueelassejamvidasesociedadesmelhoresenãopiores.

Esse é um uso mais prático do que produtivo do conhecimento e dacompreensão-umusovoltadoparaoagirenãoparaofazer.

Nessadimensãodavidahumana,afilosofiaémuitoútil—maisútildoqueaciência.

Page 60: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ParteIII

OHomemcomoAtor

Page 61: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

9.PENSANDOSOBREFINSEMEIOS

Nãotenhoumcarroequeroum.Ocarroqueeuquerocustamaisdinheirodoque tenho. Preciso obter o dinheiro necessário para comprar o carro. Parecehaverdiversasmaneirasdeobter aquiloque énecessário semviolar a lei.Porexemplo,possoeconomizar,deixandodegastaremoutrascoisasodinheiroquetenho, ou posso tentar ganhar mais dinheiro,- ou ainda, posso tomá-loemprestado.

Nesseexemplo—haveriainúmerosoutrossemelhantes-,obteroautomóveléofimemvista.Obterodinheironecessárioparacomprarocarroéummeioparaessefim;étambémumfimparaoqualhá,comovimos,diversosmeios.

Comoescolherumdeles?Umpodesermaisfácildoqueosoutros,-umpodemelevarameuobjetivomaisrapidamentedoqueosoutros.Dosmuitosmeios,todosservindoàconsecuçãodofimemvista,normalmenteseescolheriaomeioque parece melhor por ser mais fácil, mais rápido, por ter mais chances desucessoeassimpordiante.

Quando agimos assim, agimos com um propósito. Dizer que temos umpropósitonoque fazemosédizerqueagimosemrazãodealgumobjetivoquetemosemmente.

Àsvezesagimos semobjetivo - comoumnavio levadopelacorrente, semninguém no timão para guiá-lo. Quando agimos assim, também agimos sempensar. Não temos nada emmente que guie nossa ação numa direção ou emoutra.Agirsemobjetivonãoexigequepensemosemqualquercoisa.

Namaioriadasvezes,porém,agimoscomalgumpropósito,enessescasosnão podemos agir sem pensar primeiro. Temos de pensar no objetivo queestamosalmejando-nofimqueestamostentandorealizar.Temosdepensarnosdiversosmeiosquepodemosusarpararealizá-lo.Temosdepensaremqualéomelhordosdiversosmeios,eporqueumémelhordoqueoutro.Eseomeioespecíficoqueescolhemosutilizaréummeioquenãopodemosutilizaramenosqueantesfaçamosoutracoisa,entãoelemesmoéumfim,etemosdepensarnosmeiospararealizá-lo.

O tipo de pensamento que acabo de descrever é prático. Trata-se de umpensamento sobre fins emeios—de umpensamento sobre o objetivo que sedeseja atender e de um pensamento sobre aquilo que deve ser feito para sechegarlá.Trata-sedeumpensamentonecessárioparaagircompropósito.

Comovimos,opensamentoprodutivoéumpensamentosobrecoisasaseremfabricadas.Opensamentoprático,porsuavez,éumpensamentosobrecomose

Page 62: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

deveproceder.Afimdepensarbemparapoderfabricaralgo,éprecisoquevocêtenha aquilo que chamamos de ideias produtivas e de saber prático.A fim depensar bem para poder chegar a algum lugar fazendo algo, é preciso ter umaideia do objetivo a ser alcançado e ideias dasmaneiras de alcançá-lo. E vocêtambém tem de pensar nas razões por que um jeito de buscar esse objetivo émelhordoqueoutro.

O pensamento produtivo, ou o pensamento voltado para a produção dealgumacoisa,nãoaproduzdefato.Essepensamentopodelevaràproduçãoemsi, mas a produção não começa efetivamente até que o produtor comece atrabalhar e aja sobre as matérias-primas a fim de transformá-las de modo amaterializaraideiaprodutivaqueeletinhaemmente.

Demodoanálogo,tambémopensamentoprático,ouopensamentovoltadoparaaaçãopropositadaouparaagirdomodonecessárioparaatingiralgumfimou objetivo, não chega a ser efetivamente ação. A ação começa quando opensamento prático é colocado em prática. O pensamento produtivo podecontinuar enquanto a produção está efetivamente acontecendo. O pensamentopráticopodecontinuarduranteaaçãopropositada.Masatéqueofazereoagirefetivamentecomecem,opensamentopráticoeoprodutivonãodãofrutos.

Aristótelesnosdizque,comexceçãodosmomentosocasionaisdecondutadespropositada,ossereshumanossempreagemcomalgumfimemvista.Aquiloquepensamafimdeagirpropositadamentecomeçacomopensararespeitodoobjetivoaseratingido,masquandocomeçamafazerqualquercoisaparaatingiresseobjetivo,têmdecomeçarcomosmeiosparaatingi-lo.Ofimvemprimeironaquilo que as pessoaspensama fimde agir propositadamente,masosmeiosvêmprimeironaquiloquefazempararealizarseuspropósitos.

Ao dizer que os seres humanos sempre — ou normalmente - agem comalgumfimemvista,Aristóteles tambémdizqueelesagememrazãodealgumbemquedesejamobterepossuir.Eleidentificaumfimquesealmejecomumbemquesedeseje.

Navisãodele,nãofaznenhumsentidodizerqueestamosagindoemrazãodeum fimque consideramosmaupara nós. Isso equivale a dizer que aquilo quealmejamoséalgoquenãodesejamos.Dizerquealgoqueconsideramosruiméalgoquedesejamosevitarenãoalgoquedesejamospossuiréurnameraquestãodebomsenso.

E quanto aosmeios de que necessitamos para atingir o fim que temos emmente?Almejarumfimébuscarumbemquedesejamos.Seráqueosmeiosquedevemosusarparaatingirofimsãotambémbensquedesejamos?Simenão.Osmeiossãobons,masnãoporqueosdesejamosporsimesmos,massóporqueosdesejamosporcausadeoutracoisa.

Page 63: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Será que devemos sempre considerar os meios bons porque nosproporcionamumjeitodeatingirofimquepretendemosrealizar?Certamenteosmeiossósãobonssenosajudamatersucessonaconsecuçãodenossoobjetivo.Mas, se têm também outras consequências, então podem ser indesejáveis, porrazõesbemdistantesdaconsecuçãodofimquetemosemmente.

O roubo traria o dinheiro de que preciso para comprar o automóvel quequero,masoroubotambémpoderiamecolocaremsériasencrencas,queprefiroevitar.Osmeios que usamos para atingir o fim que buscamos não podem serbonssóporquenoslevamatéondequeremosir.Éprecisotambémqueelesnãonoscoloquemondenãoqueremosestar—nacadeia.

Resumindo: osmeios podem ser um fim que temos de realizar por outrosmeios, eum fim tambémpode serummeioparaalgumoutro fim.Essasduasobservaçõeslevamaduasquestõesque,segundoAristóteles,sãoinevitáveis.Aprimeiraé:seráquehámeiosquesãopuraoumeramentemeios,enuncafins?Asegundaé:seráqueháfinsquesãofinsenuncameios—aquiloqueAristóteleschama de fins últimos ou definitivos porque não sãomeios para nenhum fimalémdelesmesmos?

Outra maneira de fazer a primeira pergunta é perguntar se há quaisquercoisasquedesejamosapenasporcausadeoutracoisa,enuncaporcausadelasmesmas. E outra maneira de fazer a segunda pergunta é perguntar se háquaisquer coisas que desejamos apenas por causa delas mesmas e nunca porcausadeoutracoisa.

Aristóteles afirmava que hámeios que são pura oumeramentemeios, finsquetambémsãomeiosparaobjetivosalémdelesmesmos,efinsquebuscamosporcausadelesmesmos,enãoporcausadequalqueroutrobemqueesperemosobter.Eissuasrazõesparapensarassim.

Senãohouvessenenhumacoisaquedesejássemosporcausadelamesmaenãoporcausadeoutracoisa,nossopensamentopráticonãopoderiacomeçar.Jávimosqueopensamentopráticotemdecomeçarcomopensamentosobrealgumfimaserbuscado.Setodofimemquepensamosfosseummeioparaalgumfimulterior, e se esse fim ulterior ainda fosse ummeio para outro fim além delemesmo,eassiminfinitamente,opensamentopráticonuncapoderiaterinício.

Já vimos que quando o pensamento prático é posto em prática temos decomeçarcomalgummeioparaqualquerfimquetenhamosemmente.Seomeioemquestãoéelemesmoumfimqueexigequeencontremosmeiosdeatingi-lo,entãonãopodemoscomeçaraagir,nãopodemosiniciarnossaaçãopropositada,com ele. A fim de começar a agir, temos de começar com ummeio que sejapuramenteummeio,enãotambémumfimqueexijaoutrosmeiosdeatingi-lo.

Atéagoraeusódisseporquedevehaverfinsquenãosãomeioseporque

Page 64: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

devehavermeiosquenãosãofins.Suareaçãoaoqueacabodedizeratéagoranãome surpreenderia sevocêdissessequenãoentendecomoéque jápensoupraticamentesemsaberqualeraseufimúltimooudefinitivo.Seopensamentopráticonãopodecomeçarcomumfimquesejaummeioparaalgoalémdesimesmo,esevocênãoconhecenenhumfimquesebusqueporcausadelemesmoenãodeoutracoisa,comopodealgumdiatercomeçadoapensarpraticamente?Como sem dúvida você já pensou praticamente muitas vezes em sua vida,Aristóteles deve estar errado quando diz que o pensamento prático não podecomeçarsemquevocêtenhaumfimúltimooudefinitivoemmente.

Certamentepareceque é assim.Uma distinção entre duasmaneiras de terum fim último ou definitivo em mente abrirá a porta para a solução desseproblema.Afimdeentenderadistinçãonecessária,comecemoscomaquiloqueaprendemos na escola sobre geometria - o mesmo tipo de geometria queAristótelesconhecia.

Os chamados primeiros princípios da geometria são os pontos de partidanecessários para a demonstração das proposições geométricas a provar. Nageometria de Euclides, os primeiros princípios consistem em definições,axiomasepostulados.Asdefiniçõesdepontos,linhas,retas,triângulosetc.sãonecessárias,assimcomoaxiomascomo"otodoémaiordoquequalquerumadesuaspartes"e"coisasiguaisàmesmacoisasãoiguaisentresi".Alémdisso,háos postulados — pressupostos tomados por Euclides a fim de provar asproposiçõesquedemandamprovas.

A diferença entre os axiomas e os postulados é que não se pode negar osaxiomas.Não sepode fugirde afirmá-los.Por exemplo, tentepensarqueumaparteémaiordoqueotodoaquepertence.Mas,quandoEuclidespedequevocêpresumaqueépossívelfazerumaretaligandoumpontoaqualqueroutroponto,vocêpodequerer aceitar esse pressuposto,mas não é obrigado a isso.Nãohánadadeirresistívelnele,comohánoaxiomadotodoedaspartes.

Assimcomoaxiomasepostuladossãotiposdiferentesdepontosdepartidano pensamento geométrico, também há diferentes pontos de partida nopensamentoprático.AssimcomovocêpodeaceitarospressupostospedidosporEuclidesafimdedarinícioàsprovasgeométricas,tambémnoseupensamentoprático você pode presumir que um certo objetivo ou fim é definitivo, e nãofazermaisperguntasarespeitodele,mesmoqueelaspossamserfeitas.

Emoutras palavras, amaioria de nós começa seu pensamento prático nãotendo em mente nosso fim absolutamente último e definitivo, mas simpressupondoqueo fimque temosemvistapodeserconsiderado—aomenospor ora — como se fosse um fim a respeito do qual não há mais nada aperguntar.

Page 65: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

No exemplo que consideramos, podemos tomar a possibilidade de dirigirparaaescolaouparaotrabalhocomoofimparaoqualterumcarro,sercapazde comprá-lo, obter o dinheiro necessário para comprá-lo etc. são os meios.Claroquevocêpercebequepoderiamperguntarporquevocêquerdirigirparaaescolaouparaotrabalho,esuarespostaaessaperguntapoderialevá-loaoutroporqueatéquevocêchegasseaumarespostaquenãoadmitisseumnovoporque.

Essaresposta,sevocêchegasseaela,seriasuaapreensãodofimúltimooudefinitivo,paraoqualtudoomaisémeio.Masvocênãoprecisateressefimemvistaparacomeçarseupensamentopráticoesuaaçãopropositada,porquepodepresumir provisoriamente que algum fim que você tem emmente é, por ora,definitivo—umacoisaquevocêquersóporcausadelamesma.

Quando você faz aquilo que é necessário para obtê-la, você pode seperguntarporqueaqueria,masnãoprecisafazeressaperguntaparapensarnosmeiosdeobtê-la,nemparafazeroqueprecisaserfeitoparausarmeiosparaessepropósito.Essaquestãopodeseradiada—porora,masnãoparasempre.Não,aomenos,sevocêquerlevarumavidabemplanejada,comumbompropósito.

Page 66: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

10.VIVEREVIVERBEM

Quanto mais jovens somos, mais agimos despropositadamente. Se nãodespropositadamente, ao menos por diversão. Há uma diferença entre agirdespropositadamenteeagirpordiversão.Agimosdespropositadamentequandonão temos um fim em vista, um objetivo. Mas quando agimos por diversão,temos um objetivo — o prazer, a recreação do jogo ou do que quer queestejamos fazendo.O prazer que tiramos da atividade em si é nosso objetivo.Nãotemosumpropósitoulterior,issoépropósitosuficiente.

Aatividadeséria,aocontráriodaatividadepordiversão,sempretemalgumpropósitoulterior.Iniciamosaatividadeparaatingiralgumobjetivo,paraoqualfazer isso ou aquilo são meios. Ter e não ter um propósito ulterior é umadistinção entre o trabalho e a diversão, a respeito do que falareimais adiante.Todos admitimos que o trabalho é uma atividade séria e que raramente é tãoagradávelquantoadiversão.

Quantomais jovens somos, émenos provável que tenhamos um plano devida cuidadoso.Quando somos jovens, é provável que nossos objetivos sejamimediatos—coisasafazer,coisasaobter,coisasaserfruídashoje,amanhã,ou,napiordashipóteses,semanaquevem.Teressesobjetivosnãochegaaserumplano de vida como um todo. A vida como um todo é algo muito difícil deconsiderarquandoseéjovem.

Àmedida que ficamosmais velhos, agimos cada vez commais propósito.Tambémficamosmaissériosemenosbrincalhões.Issoéverdadedemodogeral,masnãopara todas aspessoas.Háexceções.Algumaspessoasmaisvelhas sóvivempara o prazer e para o gozo, e quando dizemos isso delas não estamosfazendo elogios. Pelo contrário, estamos censurando-as por dedicar tempo eenergia demais à diversão e não às atividades sérias. Estamos dizendo que oadulto que vive desse jeito não é realmente adulto,mas uma criança.Não háproblemasemcriançasbrincaremamaiorpartedotempo,masháemhomensemulheresmadurosfazeremisso.

À medida que ficamos mais velhos e agimos com mais propósito, queficamos menos brincalhões e mais sérios, tentamos juntar todos os nossosobjetivos sérios em um plano de vida coerente. Se não fizermos isso, entãodeveríamosfazê-lo,comodizAristóteles.Devemostentardesenvolverumplanodevidaparavivertãobemquantopossível.

Sócrates, que foraprofessordePlatão, assimcomoPlatão foi professor deAristóteles, dizia que a vida não examinada não vale a pena de ser vivida.

Page 67: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Aristóteles foi além e disse que não valia a pena examinar uma vida nãoplanejada,porqueumavidanãoplanejadaéumavidaemquenãosabemosoqueestamos tentando fazer, nem o porquê, e em que não sabemos aonde estamostentando chegar, nem como. É uma bagunça, umamaçaroca. Certamente nãovaleumexameatento.

Alémdenãovalerumexameatento,umavidanãoplanejadanãovaleapenaservividaporquenãopodeserbemvivida.Planejarumavidaécuidardela,eissosignificapensarsobreosfinsabuscaresobreosmeioscomquebuscá-los.Viversempensarécomoagirsemobjetivo.Nãolevaninguémalugarnenhum.

Aristóteles,porém,nãoachaquebastapersuadi-lodequeépreciso terumplanodevidaparaviverbem.Eletambémquerpersuadi-loateroplanocerto.Osplanosnãosãotodosigualmentebons.Sevocêadotarumplanoerrado,podeacabar,naopiniãodeAristóteles,semter tidoumaboavida.Parater tidoumaboavida,éprecisoquevocêatenhavividodeacordocomoplanocerto.

Oplanocerto?PodeserfácilparaAristótelespersuadir-nosaterumplanodevidaafimdevivercuidadosaepropositadamente.Issoésóumaquestãodebomsenso.MasnãoétãofácilparaAristótelesconvencer-nosdequesóháumúnicoplano certo e de que devemos adotá-lo. Se ele conseguir fazer isso, teremosoutrosinaldeseubomsensoincomum.

Oquepoderiafazercomqueumplanodevidafossecertoetodososoutroserrados? Aristóteles julga que só pode haver uma resposta a essa questão. Oplanocertoéaquelequealmejaofimúltimocerto-ofimquetodosdeveríamosalmejar.Essapode ser a resposta àpergunta,mas eladeixaoutraquestão semresposta.Qual é o fim último certo - o fim que todos deveríamos almejar? Épossível perceber rapidamente que, se há um fim último correto, devemosalmejá-lo.Assimcomovemosqueéimpossívelpensarqueapartedeumtodoémaiordoqueo tododequefazparte, tambémvemosqueé impossívelpensarqueumfimerradoéumfimquesedevaalmejar.Seumobjetivoéerrado,nãodevemostentaratingi-lo.Sódevemostentarseeleforcerto.

Você pode concordar, mas isso ainda deixa a questão importante semresposta. Qual é o fim último correto? Qual é o objetivo que todos devemosbuscar?

Vocêpodeacharqueédifícilresponderaessaquestão,masAristótelesnãoacha. Talvez eu deva dizer que uma de suas respostas a essa questão émuitofácil para ele. A resposta completa é muito mais difícil de formular e deentender. Vamos começar com a resposta mais fácil, ainda que ela sejaincompleta.

O fim certo que todos devemos buscar é uma boa vida. O raciocínio deAristótelesquantoaissoésimplese,creio,convincente.Vouresumi-lo.

Page 68: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Hácertas coisas que fazemos só para viver—comonutrir nossos corpos,cuidardelesemantê-los saudáveis, eporcausadissoamaioriadenósprecisatrabalhar,parapoderganharodinheironecessárioparaadquirircasa,comidaeroupas.

Háoutrascoisasquefazemosparaviverbem.Fazemosoesforçodeestudarporque achamos que saber mais do que o necessário para manter-nos vivosenriquecenossasvidas.Nãoprecisamosdecertosprazeresparacontinuarvivos,mastê-loscertamentedeixaavidamelhoremaisrica.

Tantoviverquantoviverbemsão finsparaosquais temosdeencontrarosmeios. Mas viver, ou manter-se vivo, é em si um meio para viver bem. Éimpossívelviverbemsemmanter-sevivo—omáximopossívelou,pelomenos,omáximoquepareçadesejável.

Viver,comoacabodedizer,éummeioparaviverbem.Masviverbeméummeio para quê? Como diz Aristóteles, não pode haver resposta para essapergunta,porqueviverbeméumbememsimesmo,umfimquebuscamosporcausa delemesmo e não por causa de nenhuma outra coisa, nempor nenhumpropósitoulterior.

Qualquer coisa em que consigamos pensar, qualquer coisa que chamemosboaoudesejáveléummeioparaviverouparaviverbem.Podemosveravidacomoummeiopara a vida boa,mas nãopodemosver a vida boa comomeioparanenhumaoutracoisa.

Aristótelesachaqueissodeveriaseróbvioparatodosnós.Eletambémachaquenossaexperiênciacomummostraque todosnós,naverdade,concordamosnisso.

A palavra que ele usa para viver bem (ou para a boa vida) costuma sertraduzida pela palavra "felicidade".A felicidade, segundoAristóteles, é aquiloque todos buscam. Ninguém a quem se pergunte se busca a felicidade diria:"Não,prefiroatristeza".

Alémdisso,ninguémaquemsepergunteporquequerafelicidadepodedaruma razão para querê-la. A única razão para querê-la teria de ser algum fimaindamaisdefinitivo,paracujaobtençãoafelicidadeéummeio.Masnãoexisteumfimmaisdefinitivo.Nãohánadaalémdafelicidade,oudaboavida,paraoqueafelicidadesirvademeio.

Useiapalavra"felicidade"demodointercambiávelcom"viverbem"e"vidaboa".Aquiloquesedissesobreafelicidadenãoétãosimpleseóbvioquandoseusa a palavra com qualquer outro sentido. Posso evitar usar a palavra"felicidade"comoutrossentidos,masnãopossoevitarusarapalavra"feliz"commuitos sentidos diferentes, sentidos relacionados de diversas maneiras àfelicidade.

Page 69: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Perguntamosumaooutro:"Vocêteveumainfânciafeliz?".Perguntamosumao outro: "Você está feliz agora?". Dizemos um ao outro: "Feliz ano-novo".Quandousamosapalavra"feliz"dessasmaneiras,estamosfalandodoprazeroudasatisfaçãoqueexperimentamosquandoobtemosaquiloquedesejamos.

Aspessoasficamcontentesporquetêmoquequeremparasentir-sefelizes.Um tempo feliz é um tempo repleto de prazeres e não repleto de dores, umtempodesatisfaçõesenãodeinsatisfações.Sendoassim,podemosestarfelizeshojeeinfelizesamanhã.Podemosconhecerumtempofeliznumaocasião,eumtempoinfelizemoutra.

Sereshumanosdiferentesqueremcoisasdiferentesparasi.Seusdesejosnãosãosemelhantes.Aquiloqueumapessoadeseja,outrapodepreferirevitar.Issoequivaleadizerqueaquiloquealgumaspessoasconsiderambomparasipodeserconsideradomauporoutras.

Somos diferentes em nossos desejos e, portanto, somos diferentes quantoàquilo que consideramos bom para nós. Aquilo que faz uma pessoa sentir-sefelizpodeteroefeitocontrárioemoutra.

Comopessoasdiferentessentem-sefelizesporfazercoisasdiferentes,ouporobtercoisasdiferentesquedesejam,comoéquesepodedizerqueafelicidade-viverbemouavidaboa—éoúnicoobjetivocertoouofimúltimoquetodosossereshumanosdevembuscar?

Aristóteles pode ser capaz de nos persuadir de que todos queremos afelicidade.Elepodesercapazdenospersuadirdequequeremosafelicidadeporcausa dela mesma e não por causa de outra coisa. Mas como ele podepersuadirmos de que todos nós, que queremos a felicidade por causa delamesma,queremosexatamenteamesmacoisa?

Ossereshumanos,aobuscarafelicidade,certamenteparecembuscarcoisasdiferentes. Isso é matéria de experiência comum, como Aristótelesimediatamente percebeu. Assim como nós, ele sabia, graças à experiênciacomum,quealgunsindivíduosjulgamqueaobtençãodafelicidadeconsisteemacumular muitas riquezas, para outros, consiste em ter grande poder, ou emtornar-sefamoso,ouemdivertir-semuito.

Se a felicidade, assim como o sentir-se feliz, vem de obter aquilo que sequer,esepessoasdiferentesqueremcoisasdiferentesporelasmesmas,entãoafelicidadeaserobtidahádeserdiferenteparapessoasdiferentes.

Seéassim,entãocomopodehaverapenasumplanocertoparaviverbem?Comopodehaverumfimúltimoquetodosdevembuscar?Afelicidadeouavidaboapodeserofimúltimoquetodosnósbuscamos,masnãoéomesmofimparatodosnós.

Por favor, lembre-se de algo que eu disse antes neste capítulo. Disse que

Page 70: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

havia uma resposta fácilmas incompleta para a questão "qual é o fim últimocerto que todos deveríamos buscar?". A resposta simples, mas incompleta, é:felicidade,viverbem,ouumaboavidacomoum todo.Parachegarà respostacompleta, precisamos ver se Aristóteles consegue nos mostrar por que viverbem,avidaboaouafelicidadesãoamesmacoisaparatodosnós.

Page 71: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

11.BOM,MELHOR,OMELHOR

A experiência comum nos diz que os indivíduos diferem quanto a seusdesejos.Tambémsabemosqueemnossafalacotidianausamosapalavra"bom"parareferirascoisasqueconsideramosdesejáveis.

Seachamosqueumacoisaémaisdesejáveldoqueoutra,consideramosqueela émelhor. E, dentre diversas coisas desejáveis, aquela quemais desejamosnospareceamelhordetodas.

A reflexão sobre esses fatos da experiência e da linguagem comuns levouAristótelesàsimplesconclusãodequeessasduasideias—obomeodesejável— estão inseparavelmente ligadas.Assim como as afirmativas de Euclides "aparte émenordoqueo todo"e "o todoémaiordoqueaparte" sãoaxiomas,tambémosão"obemédesejável"e"odesejávelébom".

Recordemos o problema que deixamos por resolver no fim do capítuloanterior. Vimos que as diferenças nos desejos humanos fizeram com queAristótelestivessedificuldadesdenosconvencerdequetodosossereshumanostêm o mesmo fim em vista quando almejam o viver bem, a vida boa ou afelicidade.Aquilo que um ser humano acha que trará felicidade pode ser bemdiferentedaquiloqueoutrojulgaseranaturezadavidaboa.Sendoassim,comopodeAristótelesdizerquesóexisteumúnicoplanocorretoparaviverbemouparaatingirafelicidade?

Ele não tem como fazer isso sem nos ajudar a entender que os desejoshumanosnãosãotodosdomesmotipo,equeaquiloqueéverdadeiroparaumtipodedesejonãoéverdadeiroparaoutrotipo.

Os tipos de desejo que consideramos até agora são desejos individuais,desejosadquiridosnocursodavidaedaexperiênciadeumindivíduo.Comoosindivíduos sãodiferentesunsdosoutrosnãoapenas emseus temperamentos edisposições,mastambémnavidaquelevameemsuasexperiênciasparticulares,elesdiferememseusdesejosadquiridos,individuais.

Enquanto cada ser humano é um indivíduo único, com uma vida e umaexperiênciaúnicas,todosossereshumanos,comomembrosdaespéciehumana,compartilhamumahumanidadecomum.Amultidãoeavariedadedasdiferençasindividuaissesobrepõemaostraçosouatributoscomunsqueestãopresentesemtodosossereshumanosporquesomostodoshumanos.

Amaiorpartedessasdiferençasédegrau.Todosossereshumanostêmolhoseouvidos,econseguemvereouvir,masavisãoouaaudiçãodeumindivíduopode ser mais aguçada do que a de outro. Todos os seres humanos têm a

Page 72: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

capacidade de raciocinar, mas essa capacidade comum pode ser maior numapessoadoqueemoutra.Todosossereshumanosprecisamdecomidaparaseusustentoevigor,masumindivíduoquesejamaiordoqueoutropodenecessitardemaisalimentos.

Este último exemplo de um traço comum que subjaz às diferençasindividuaischamaaatençãoparaumoutrotipodedesejo—umtipodedesejoqueénatural,nãoadquirido,equeéomesmoemtodosossereshumanos,quenãoédiferenteemindivíduosdiferentes,excetoemgrau.Quandodizemosqueprecisamos de comida, estamos dizendo que desejamos comida, exatamentecomo quando dizemos que queremos um carro novo estamos dizendo que odesejamos.Ambasaspalavras—"precisar"e"querer"—indicamdesejos,masnãodesejosdomesmotipo.

As necessidades são desejos congênitos ou inatos— desejos intrínsecos ànossanaturezahumanaporque temoscertas capacidadese tendênciasnaturais,capacidades ou tendências comuns a todos nós porque todos temos a mesmanaturezahumana.Todostemosumacapacidadebiológicaparaanutrição.Todososvegetaiseanimaistêmessacapacidade,aspedrasnãoatêm.Éporissoquetodasascoisasvivasprecisamdecomida.Semela,morrem.Arealizaçãodessacapacidadeénecessáriaparamanteravida.

Um indivíduo não adquire o desejo por comida no curso de sua vida, oucomo resultadode suaprópria experiênciaparticular.Elenecessitade comida,quer saiba disso, quer não, e necessita dela mesmo quando não sente essanecessidade, como sente quando a fome aperta. A fome não émais do que aexperiência de sentir uma necessidade natural que está sempre presente, epresenteemtodos.

OsindivíduosnascidosnaÁsia,naÁfrica,naEuropaenaAméricadoNortetêm todos a mesma necessidade de comida e de bebida, e todos, em algummomento,sentirãofomeesede.Mas,tendonascidoemambientesdiferentes,etendo crescido em circunstâncias diferentes, esses indivíduos diferentes vãoadquirir desejos por tipos diferentes de comida e de bebida.Quando sentiremfome ou sede (que são sua consciência de uma necessidade da natureza) vãoquerertiposdiferentesdecoisascomíveisebebíveisparasatisfazerseudesejo.

Elesnãoprecisamdetiposdiferentesdecomidasebebidas.Elesosquerem.Se o tipo de comida ou de bebida que querem não estivesse disponível, suanecessidade poderia ser satisfeita pela comida e pela bebida que não queremporqueaindanãoadquiriramdesejoporela.

O exemplo que temos considerado é uma necessidade biológica, umanecessidadecomumnãoapenasatodosossereshumanos,mastambématodasascoisasvivas.Consideremosagoraumanecessidadeespecificamentehumana,

Page 73: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

uma necessidade comum apenas aos seres humanos, porque nasce de umacapacidadequeéumatributopeculiardanaturezahumana.

Anteriormente, neste livro, sugeri queos seres humanosdiferemdeoutrosanimais por sua capacidade de fazer perguntas com o objetivo de adquirirconhecimentoarespeitodesimesmosedomundoondevivem.Porreconheceressefato,Aristótelescomeçouumdeseus livrosmais importantescomafrase"Por natureza, o homemdeseja conhecer". Em outras palavras, o que ele estádizendoéqueodesejodeconhecimentoéumdesejotãonaturalquantoodesejodecomida.

Há,porém,umadiferençainteressanteentreanecessidadedeconhecimentoeanecessidadedecomida.Privadadecomida,amaiorpartedossereshumanostomaconsciênciadessaprivaçãoaosentirfome.Mas,privadosdeconhecimento,nemsempreossereshumanostomamconsciênciadesuaprivação.Infelizmente,éraroquesintamosoapertodaignorânciacomosentimosoapertodafome.

Todos os desejos adquiridos são desejos dos quais estamos conscientesquando os sentimos. Isso não vale para todas as necessidades naturais. Dealgumasdelas,comodanecessidadedecomidaedebebida,temosconsciênciaquandoestamosprivadosdaquilodequenecessitamos.Mas,noquedizrespeitoaoutrasnecessidadesnaturais,comoanecessidadedeconhecimento,podemosestarconscientesdelasounão,mesmoquandoestamosprivadosdaquilodequenecessitamos.

O fato de não estarmos conscientes de uma necessidade natural não nosdeveria induzir ao erro de pensar que a necessidade da qual não temosconsciêncianãoexiste.Elaexiste,tenhamosounãoconsciênciadela.

Dei alguns exemplos de necessidades naturais a fim de contrastá-las comapetênciasadquiridaseafimdeilustraradistinçãoaristotélicaentredoistiposde desejo. Não é necessário aqui tentar fazer uma enumeração exaustiva dasnecessidades naturais compartilhadas por todos os seres humanos, já que elescompartilham todas as potências, capacidades e tendências intrínsecas à suanaturezahumanaespecífica.MeuobjetivoagoraémostrarcomoadistinçãodeAristótelesentredoistiposdedesejosvaiajudá-loanosconvencerdequeháumplanocertoparaviverbem,quetodosnósdeveríamosadotar.

A fim de entender seu raciocínio, é preciso que reconheçamos algo que,creio,todosouquasetodosreconhecem—quemuitasvezesqueremoscoisasdeque não precisamos. Até cometemos o erro de dizer que precisamos delasquandoapenasasqueremos.Ninguémprecisadecaviar,masmuitaspessoas,porteradquiridoumgostoporele,odesejam,emuitosatésepermitemdizerqueprecisamdele.

Essenãoéoúnicoerroquevocêpodecometeremrelaçãoasuasapetências.

Page 74: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Vocêtambémpodequereralgoquenaverdadenãoébomparavocê.Algumaspessoas querem drogas ou outras substâncias que lhes fazem mal. Elasadquiriramfortesdesejosporessassubstânciaseasqueremcomtantaforçaqueignoramoprejuízoquecausamasipróprias.Elasqueremalgoquelhesfazmal.Mas,comoasqueremmesmoassim,parecem-lhesboasnahoraemquebuscamsatisfazerseusdesejos.

Se não lhes parecessem boas, seria falso dizer que o desejável é bom.Quandoelasdesejamaquiloqueénaverdademauparaelas,aindaassimaquilolhes parece bom.Seu desejo ou apetência estava errado ou equivocado.É porissoqueaquiloquelhespareciabomnãoerabomdeverdade.

Aocontráriodascoisasquevocêquer,equeparecemboasnahoraemquevocêasquer,masquedepoispodemmostrar-seoopostodoqueébom,ascoisasdequevocêprecisasãosempreboasparavocê.Comosãoverdadeiramenteboasparavocê,nãosãoboasnummomentoeoopostodissoemoutro.

Você pode estar equivocado ao pensar que precisa de algo quando apenasquer esse algo - caviar, por exemplo — mas suas necessidades nunca estãoerradas nemmal orientadas, como pode acontecer e frequentemente acontececomsuasapetências.Nãoépossívelquevocêtenhaumanecessidadeerradaouequivocada.Equalquercoisadequevocêpreciseéalgoverdadeiramentebomparavocê,nãoalgoqueapenasparecebomnumahoraporquevocêadeseja.

Agora vemos que a distinção deAristóteles entre os desejos naturais e osadquiridos (ouentrenecessidadeseapetências)está intimamente relacionadaaoutradistinção feitaporele—entrebens reaiseaparentes.Ascoisasquesãorealmenteboasparavocêsãoaquelasquesatisfazemsuasnecessidadesnaturais.Ascoisasquesóparecemboasparavocê,equepodemnãoserverdadeiramenteboasparavocê,sãoascoisasquesatisfazemsuasapetênciasadquiridas.

Outramaneiradedizerissoédizerquebensaparentessãoaquelascoisasquechamamosdeboasporquedefatoasdesejamosconscientementenaquelahora.Nósasqueremos.Porqueasqueremos,elasnosparecemboaseaschamamosdeboas.Todavia,osbensverdadeirossãoascoisasdequenecessitamos,estejamosconscientes dessa necessidade ou não. Sua bondade consiste em satisfazer umdesejoinerenteànaturezahumana.

Háaindaoutramaneiradedizeramesmacoisa,evaleapenaconsiderá-laporqueelaamplianossacompreensãodo raciocíniodeAristóteles.Oboméodesejável e o desejável é o bom.Mas uma coisa pode ser desejável em doissentidosdistintosdapalavra"desejável",assimcomoelapodeserboaemdoissentidos de "boa". Podemos dizer que algo é desejável porque num dadomomento efetivamente desejamos esse algo. Ou podemos dizer que algo édesejável porque deveríamos desejá-lo, independentemente de, num dado

Page 75: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

momento,desejarmosessealgoounão.Aquilo que é desejável num sentido pode não ser desejável em outro.

Podemosefetivamentedesejaraquiloquenãodeveríamosdesejar,oupodemosefetivamentenãodesejaraquiloquedeveríamosdesejar.Aquiloqueérealmentebomparanóséalgoquesempredeveríamosdesejarporquenecessitamosdessealgo,enãotemosnecessidadeserradas.Masaquiloquesóparecebomparanósé algo que se pode desejar erradamente. Pode ser algo que não deveríamosdesejarporquesemostrarárealmenteruimparanósaindaque,nahoraemqueodesejamos,pareçabomporqueoqueremos.

O único plano correto para obter a felicidade ou a vida boa é, segundoAristóteles,umplanoquenos levaabuscareaadquirirascoisascujaposseérealmenteboa.Essassãoascoisasdequenecessitamosnãoapenasparaviver,mas também para viver bem. Se buscarmos todos os bens verdadeiros quedeveríamospossuirdurantenossavida,buscaremosafelicidadedeacordocomoplanodevidacorreto,aquelequedeveríamosadotar.

Comoasnecessidadesnaturais,baseadasemnossascapacidadesetendênciashumanas comuns, são as mesmas em todos os seres humanos, aquilo que érealmentebomparaumapessoaé realmentebomparaoutra.Épor issoqueafelicidadehumanaéamesmaparatodosossereshumanos:elaconsistenapossedetodasascoisascujaposseéverdadeiramenteboa,coisasacumuladasnãodeuma só vez,mas ao longo de toda uma vida. E é por isso que o único planocorretoparaviverbeméomesmoparatodosossereshumanos.

Nenhumavidahumanapodesercompletamenteprivadadebensverdadeiros,pois no nível biológico a privação total de necessidades básicas tornariaimpossível manter-se vivo por muito tempo. As necessidades biológicas decomida,bebida,abrigoesonotêmdesersatisfeitas,aomenosminimamente,afimdequeoorganismovivomantenha-sevivo.Masquandoessasnecessidadessãosatisfeitassomentenessenívelmínimoenadaalémdisso,apenasmanter-sevivo-ouamerasubsistência—éummaumeioparaviverbem.

Nãoapenasessasnecessidadesbiológicasbásicasdevemsersatisfeitasalémdo nível da mais mínima subsistência necessária para manter a vida, comotambém muitas outras necessidades devem ser satisfeitas para que todas asnossas capacidades e tendências humanas aproximem-se da realização. Se afelicidadeconsistenessarealizaçãocompleta,entãocadaindivíduoseaproximamaisdelaàmedidaqueémaiscapazdesatisfazersuasnecessidadeshumanasedevirapossuirascoisasquesãorealmenteboasparasi.

Umplanoparaviverbemémelhordoqueoutronamedidaemqueguiaoindivíduo a uma realização mais completa de suas capacidades e a umasatisfação mais completa de suas necessidades. E o melhor plano de todos,

Page 76: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

aquelequedeveríamosadotar,éoplanoquealmejatodososbensreaisnaordemenamedidacorretaseque,alémdisso,nospermitabuscarcoisasquequeremosmas de que não necessitamos, namedida em que obtê-las não nos impeça desatisfazernossasnecessidadesouderealizarnossascapacidades.

Nem todos os bens aparentes—coisas que desejamos,mas das quais nãoprecisamos - chegam a nos fazer mal. Alguns não são prejudiciais em simesmos, eoutrosnão chegama trazerdesvantagensno sentidode impedir oufrustrar nossos esforços para obter as coisas de que precisamos e que sãorealmenteboasparanós.Abuscadafelicidadeporumhomempodeserdiferentedabuscadafelicidadeporoutro,mesmoqueambossigamoúnicoplanocorretoparaviverbem.

A razão para essas diferenças, quando surgem, é que cada indivíduo podequererparasicoisasdiferentesdascoisasdequeprecisa.Aindaqueaquiloqueérealmentebomparaumserhumanosejaomesmoparatodos,aquiloqueparecebomparacadaindivíduo,deacordocomsuasapetências,podeserbemdiferentedaquiloqueparecebomparaoutroindivíduo.Oquecadaindivíduoquerparasipode ser um bem aparente que nem o prejudica nem impede sua busca dafelicidade.

Agoravocêentendeumpoucoas ideiasdeAristóteles sobrea felicidadeesobrecomobuscá-la.Vocêpercebeporqueeleachaqueelaéigualparatodosossereshumanoseporquedeveríamostentarobtê-laadotandooúnicoplanosérioparaisso.Outrasquestõesaindaprecisamderespostas.

Quais sãoosbensverdadeirosqueum indivíduodeveriabuscarparaviverbemouparadarasiumavidaboa?Mencionamosalgunsdeles,masnemtodos.Seráqueépossívelcompletaralistadosbensverdadeiros?

Se é, então resta ainda outra questão, a mais importante de todas: comodeveríamostentarpossuir todasascoisasdequenecessitamosnaturalmente—detodososbensverdadeirosquedeveríamosteremnossasvidas?Quaismeiossãoindispensáveisparaatingirofimúltimoqueternosemmente?

Só quando essas questões tiverem sido respondidas é que teremos umacompreensão completa do plano de vida que se deve seguir para obter afelicidade.

Page 77: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

12.COMOBUSCARAFELICIDADE

SeráqueThomasJefferson,quandopreparouaDeclaraçãodeIndependênciados Estados Unidos, entendia a visão de Aristóteles da felicidade e de comobuscá-la?

ADeclaraçãodizquetodosossereshumanos,sendoiguaispornatureza,têmomesmodireitoàvida,àliberdadeeàbuscadafelicidade.Avida,comovimos,éemsimesmaummeioparaavidaboa.Tambémaliberdade.

Amenosquepossamosescolherlivrementeascoisasdequenecessitamosouquequeremos,eamenosquepossamoslivrementelevaracaboasescolhasquefazemos—semcoerçãonemimpedimento—nãopodemosbuscarafelicidade.Setudoestádeterminadoparanós,seoesquemadenossavidanoséimposto,nãofazsentidofalardeplanejarnossasvidasoudeadotarumplanoparaviverbem.

Precisamos ficar vivospara viver bem.Precisamosde liberdadepara fazerum esforço — um esforço planejado — para viver bem. Como precisamosdessascoisasparabuscarafelicidade,temosdireitoaelas.Mastemosdebuscarafelicidade?Precisamosviverbem?Senão,qualabaseparadizer,comodisseJefferson,que todosossereshumanos têmodireito—direito intrínsecoàsuanaturezahumana—debuscarafelicidade?

Arespostaaessaperguntaestáemdiversospontosqueforamdiscutidosnoscapítulos anteriores.Vimos que viver bem, ou a felicidade, é o fim último oudefinitivode todasasnossasaçõesnavida—obemquebuscamosporcausadele mesmo e não de outro bem ulterior. Também vimos que efetivamentedesejamos certas coisas e que, ao fazê-lo, elas nos parecem boas. Há outrascoisasquedeveríamosdesejarporqueelassãorealmenteboasparanós,quernospareçamboas,quernão.

Agora, seaboavidacomoumtodoéaquelaque inclui ter todasascoisasque são realmenteboasparanós, entãodevemosdesejar viver bem - atingir afelicidadeouaboavida.Comotudooqueérealmentebomparanóséalgoquedeveríamos desejar, a soma total dos bens verdadeiros é algo que deveríamosdesejar.

A palavra "deveria" expressa a noção de um dever ou de uma obrigação.Temosumdeverouumaobrigaçãodefazeraquiloquedevemosfazer.Dizerquedevemos buscar a felicidade como fim último da vida é dizer que temos umdeverouumaobrigaçãode tentarviverbemoude tornar avidaboaparanósmesmos.

Page 78: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Afimdecumpriressedeverouessaobrigação,precisamosdetudooqueéindispensávelparatornaravidaboaparanós-precisamosdosverdadeirosbensque,emseuconjunto,constituemoucompõemafelicidadeouavidaboa.Éporissoquetemosdireitoaeles.Senãotivéssemosaobrigaçãodetentarviverbemesenãoprecisássemosdecertascoisasparafazê-lo,nãoteríamosodireitoaelasqueThomasJeffersonafirmouquetínhamos.

ThomasJeffersonpensavaquetodosossereshumanos,porteremamesmanaturezahumana,tinhamosmesmosdireitosnaturais.Issoequivaleadizerquetodos têm asmesmas necessidades naturais - que aquilo que é realmente bompara um ser humano é realmente bom para todos os seres humanos. Nessesentido,ThomasJeffersonpareceteradotadoaideiaaristotélicadequeabuscadafelicidadedizrespeitoatodosossereshumanosbuscaremetentaremobteromesmoconjuntodebensreaisparasi.

AntesqueeutentelistarosverdadeirosbensqueAristótelesachouquetodosdeveríamos buscar, gostaria de discutir por um momento a diferença entre aquestão"Oquedevofazerparabuscara felicidade?"eaquestão"Comodevoprocederparafazerumacadeira,umquadroouumamúsica?".Adiferençaentreessas duas questões ilumina a diferença entre agir e fazer, e entre o tipo depensamento relacionado a agir para viver bem e o tipo de pensamentorelacionadoàproduçãodealgumacoisabemfeita.

Sevocêtentarfazerumacadeira,umquadroouumamúsica,precisaterumaideiaprodutivadacoisaaserfeita,eprecisaterosaberpráticoouacapacidadenecessáriaparaproduzirumacadeira,umquadroouumamúsicabem-feita.Aideiaprodutivaeosaberpráticosãoosmeiosparaaquelefim.Masvocênãotemnenhumobrigaçãodebuscaraquelefim.Somentesevocêestiverdeterminadoafazer aquela cadeira, quadro ou música particular você precisa usar os meiosnecessáriosparasuaprodução.

Abuscadafelicidadeédiferentedaproduçãodeumacadeira,deumquadroou de uma música porque você não começa dizendo: "Se quero buscar afelicidade,devofazerissoouaquilo".Nãohánenhumseemquestão,comohánocasodacadeira,doquadrooudamúsica.Vocêpodenãoquererproduzirumacadeiraparticular,nemprecisa,masvocêdeveriabuscarafelicidade.Éporissoquenãohánenhumsequantoaisso.

Vocêdevebuscarafelicidade,mascomodevefazerisso?Essaéaquestãoqueprecisaserrespondida.

Aristóteles nos oferece duas respostas relacionadas a essa questão. Aprimeira consiste na enumeração dos verdadeiros bens de que todos nósnecessitamos—osbensque,juntos,constituemafelicidadeouavidaboacomoum todo. A segunda resposta consiste em sua prescrição para obter todos os

Page 79: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

verdadeirosbensdequenecessitamosnocursodeumavida.Aprimeirarespostaémaisfácildoqueasegunda,entãocomecemosporela.

Pornatureza,somosanimaisquequestionam,quepensamequeconhecem.Comoanimais,temoscorposquenecessitamdecertoscuidados.Comoanimaishumanos,temosmentesquedevemserexercitadasdecertosmodos.Algunsdosverdadeiros bens de que necessitamos são chamados por Aristóteles de benscorporais,comoasaúde,avitalidadeeovigor.Ecomonossossentidosnosdãoaexperiênciadosprazeresedasdorescarnais,Aristóteles tambémincluiessesprazeresentreosverdadeirosbens.Creioquepoucosdentrenósquestionariamseubomsensoaoafirmarquedevemosbuscaroprazercorporalequedevemosevitar,sepossível,adorcorporal.

Essesbenscorporaissãobensquecompartilhamoscomoutrosanimais.Sãobensparanósporquesomosanimais.Ésomentepelomodocomoosbuscamosque nos distinguimos dos outros animais. Por exemplo, outros animaisinstintivamente tentam evitar a dor corporal e sempre instintivamente tentamgozardoprazercorporal.Vê-sequeéassimobservandoumcãoouumgatodeestimação.Mas os seres humanos às vezes abremmão do prazer corporal ousuportam a dor corporal em nome de algum outro bem que julgam maisdesejável.Epodemosatépensarqueérecomendávelquelimitemosnossogozodos prazeres corporais para dar espaço em nossas vidas a outros bens maisimportantes.

Osbenscorporaisqueforammencionadossãomeiosparaofimúltimoqueéafelicidadeouaboavida.Massãotambém,emsimesmos,finsparaosquaisoutras coisas servem de meios. Para nossa saúde corporal, nossa vitalidade enossoprazer,necessitamosdecomida,bebida,roupasesono.

Aristóteles reúne essas coisas todas num único grupo, que chama de bensexternos ou riqueza. A riqueza, segundo Aristóteles, é um verdadeiro bemporque é ummeio necessário para a saúde, para a vitalidade e para o prazercorporais. Sem uma certa quantidade de riqueza, não temos como gozar desaúde,devitalidadeoudeprazer,esemessascoisasnãosepodeviverbem.

Osindivíduosquepassamfome,quepassamfriooucalor,osindivíduosquenãodormem,ou cujos corpos estão consumidospelo esforçodemanterem- sevivos a cada momento, os indivíduos que carecem dos bens externos queproporcionamossimplesconfortosdavidanãopodemviverbem.Estãonumasituaçãotãoruimquantoaquelesforçadosatrabalharcomoescravos,queestãoacorrentados,ouqueestãoatrásdasgrades.Afaltadeumacertaquantidadederiquezaéumobstáculoparaviverbemeparaatingirafelicidadetantoquantoaprivaçãodeumacertaquantidadedeliberdade.

Emambososcasoseudisse,comoAristótelesdiria,"umacertaquantidade".

Page 80: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Elenãodizqueéprecisoterliberdadeilimitadaparaviverbem,nemdizqueariqueza ilimitada é necessária. A razão para a limitação não é a mesma, masambas são bens limitados e não ilimitados, assim como o prazer corporal étambémumbemlimitado,doqualpodemosquerermaisdoqueodevidoparanossoprópriobemúltimo.

Aosdoistiposdebensquejáforammencionados—osbenscorporaiseosbensexternosouariqueza-Aristótelesacrescentaumterceiro.Elechamaessesbensdebensdaalma.Podemosreferi-loscomobenspsicológicos,assimcomoreferiríamososbensdocorpocomobensfísicos.

Osmaisóbviosdessesbenspsicológicossãoosbensdamente,comotodosos tiposdeconhecimento, incluindoo saberpráticoeascapacidades.Entreascapacidades de que todos precisamos certamente está a capacidade de pensar.Precisamosdelanãosóparaproduzircoisasbemfeitas,mas tambémparaagirbemeparaviverbem.

Talvez sejam menos óbvios os bens psicológicos de que necessitamosporque, além de sermos animais que pensam, somos animais sociais. Nãoconseguimosviverbememcompletasolidão.Umavidasolitárianãoéumavidaboa,assimcomoavidadeumescravooudeumpresonãoéumavidaboa.

Assim como naturalmente desejamos adquirir conhecimento, tambémnaturalmentedesejamosamaroutrossereshumanoseseramadosporeles.Umavida totalmente sem amor—uma vida sem qualquer espécie de amigos— éumavidadesprovidadeumbemmuitonecessário.

Aindaqueoutrossereshumanossejamtãoexternosanósquantoasdiversasformas de riquezas, Aristóteles não coloca a amizade entre os bens externos.Antes,eleaconsideraumbempsicológico—umbemdaalma.Comoelaatendeumanecessidadepsicológicanossa,aamizadeésemelhanteaoconhecimentoeàscapacidades,nãoàscoisasquesatisfazemnossasnecessidadescorporais.

Assim como há prazeres do corpo, também há prazeres da mente. Entreesses,porexemplo,estáoprazerquesentimosaofazercoisaseaofruirdeobrasdearte—coisasbemfeitasporoutros.Tambémháasatisfaçãoquesentimosaoadquirir conhecimento, ou por possuir uma capacidade de algum tipo, ou emamareseramados.

Os seres humanos desejam ser amados. Também desejam ser respeitadospelas características que julgam admiráveis ou amáveis. Por reconhecer isso,Aristótelesinclui,entreosbensquecontribuemparaaboavida,aautoestimaeahonra.Mas,emsuaperspectiva,serhonradonãoéumverdadeirobemsenãoforpela razão correta— se nãomerecermos realmente a honra recebida. Algunsindivíduos buscam a fama em vez da honra. Contentam-se em ter uma boareputação,mesmoquenãoamereçam.

Page 81: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Agora enumerei quase integralmente os verdadeiros bens que Aristótelesjulga comporem a vida boa como um todo. Eles são as partes componentesdaquele todoepor issosãoosmeiosquedevemosusarparaobteraquele todoparanós.EssaéaprimeirarespostadeAristótelesàquestãodecomotersucessona busca da felicidade.Namedida emque conseguimos obter e possuir todosesses bens verdadeiros, temos sucesso em nosso esforço de viver bem e deproporcionaranósmesmosumavidaboa.

A segunda resposta de Aristóteles à mesma questão envolve um tipodiferentedereceitaaserseguida.Elanosorientaaagirdemodoadesenvolverum bom caráter moral. Além e acima dos verdadeiros bens mencionados atéagora, há outra classe de bens de que necessitamos— os bons hábitos, maisespecificamente,bonshábitosescolhidos.

Aspessoasquedesenvolveramacapacidadedejogartênisbempossuemumbomhábito,queaspermitejogarbemregularmente.Aspessoasqueadquirirama capacidade de resolver problemas de geometria ou de álgebra têm um bomhábito.Omesmovaleparaaquelesquecomregularidadeesemdificuldadeseabstémde comeroudebebermais doque lhes faria bem,oude entregar- -sedemaisaosprazeresdosonooudarecreação.

Todosesseshábitossãobons,masosbonshábitosmencionadosporúltimosão diferentes dos demais. A capacidade de jogar tênis é um bom hábitocorporal,eacapacidadederesolverproblemasmatemáticoscomfacilidadeéumbomhábitodamente.Osbonshábitosdesse tiponospermitem realizar certasaçõescomexcelência,nãosócomregularidade,mastambémsemesforço.Mas,se existem hábitos de ação, também existem hábitos que nos permitem fazercertasescolhasregularmente,esemterdepassarpeloprocessodechegaraumadecisãoeefetivamenteoptarporalgoacadavezquefazemosumaescolha.

Apessoaqueadquiriuadisposição firmee fortedeevitar comeroubeberdemais temumhábito assim.Trata-se de umbom hábito porque a decisão deabster-sediantedatentaçãodecomerebeberdemaiséadecisãocorreta.

A comida e a bebida são verdadeiros bens, mas só em quantidadesmoderadas.Epossíveladquirirbensverdadeiroseterprazeresdetodosostiposemexcesso.Comfrequênciaqueremosumaporçãomaiordelesdoquenosfariabem, uma porção maior do que aquela de que necessitamos. É por isso queAristótelesdizqueprecisamosdebonshábitosdeescolhaoudedecisão-afimdebuscarosverdadeirosbensnaquantidadecorretaetambémparabuscá-losnaordemcorretaenumarelaçãocorretaentresi.

OnomequeAristótelesdáatodososbonshábitoséumapalavragregaquepode ser traduzidapor "excelência".Noentanto, essapalavragreganos chegacommaisfrequênciapelavialatina,porissoapalavramaiscomumparaosbons

Page 82: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

hábitosé"virtude".Os bons hábitos do tipo exemplificado pelas capacidades de qualquer tipo

são as virtudes damente, ou as virtudes intelectuais.Os bons hábitos do tipoexemplificadoporumadisposiçãofirmedeescolheroudedecidircorretamenteconstituemocaráterdeumapessoa,eporissoAristótelesoschamadevirtudesmorais.

Osdois tiposdevirtudessãobensreaisdequenecessitamosparaumaboavida.Masavirtudemoraldesempenhaumpapelmuitoespecialemnossabuscadafelicidade,tãoespecialqueAristótelesnosdizqueumavidaboaéumavidaemqueasescolhasoudecisõesforammoralmentevirtuosas.

Tentarei explicar por que Aristóteles pensa que essa afirmativa resume aquestãonopróximocapítulo.

Page 83: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

13.BONSHÁBITOSEBOASORTE

Algunsdosverdadeirosbensnecessáriosparaumavidaboasãomeiosparaoutros. Os bens externos, como comida, roupas e abrigo são meios para tersaúde, vitalidade e vigor. Precisamos de riquezas para viver bem porqueprecisamosdesaúdeparaviverbem.

Demodoanálogo,precisamosdesaúde,devitalidadeedevigorpararealizaratividadesquesãonecessáriasparaaobtençãodeoutrosbens.Senãotivéssemosdefazernadaparaviverbem,nãoprecisaríamosdevitalidadenemdevigorparaserativos.

Nahierarquiadosbens,otopocabeàquelesquedesejamosporcausadelesmesmoseporcausadavidaboa.Ariqueza,porexemplo,nãoédesejávelemsimesma, mas só como meio para viver bem. Mas verdadeiros bens como aamizadeeoconhecimentosãodesejáveisemsimesmos,etambémporcausadavidaboa.

Alguns verdadeiros bens são bens limitados,- outros são ilimitados. Porexemplo, a riqueza e o prazer corporal são bens limitados. Você pode querermaisdelesdoqueprecisa,emaisdoqueaquilodequevocêprecisanaverdadenão lhe faz bem.O conhecimento, as capacidades e os prazeres damente sãobens ilimitados. Ter cada vez mais deles é sempre melhor. Eles nunca sãodemais.

Senãohouvessebenslimitadosdosquaisvocêpudessequerermaisdoqueaquilo de que precisa, se todos os verdadeiros bens fossem igualmenteimportantes, de modo que nenhum deles devesse ser buscado por causa denenhumoutro,sequerercertascoisasqueparecemboasnãoentrasseemconflitocom a busca de outras coisas que são realmente boas - se a vida pudesse servivida desse jeito, entãohaveria poucaounenhumadificuldade emviver umavidaboa,enãohaverianecessidadedebonshábitosdeescolhaededecisãoafimdetersucessonabuscadafelicidade.

Mas Aristóteles sabia que as coisas não eram assim. Se você parar umminutoparaconsiderarsuaprópriavida,veráqueeletinharazão.Pensenosseusarrependimentos. Lembre-se das vezes em que você lamentou ter sidopreguiçosoenão ter feitooqueeranecessárioparaobteralgumacoisadequeprecisava.Ouentãorecordeasvezesemquevocêsepermitiuoprazerdedormiroudecomerdemaisesearrependeudepois.Ouaquelavezemquevocênãofezalgoquedeveriaterfeitoporquetinhamedodadorquepoderiasentiraofazeraquilo.

Page 84: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Sevocêtivessefeitoaescolhacerta,setivessetomadoadecisãocertatodasessas vezes, não teria nenhum arrependimento.As escolhas e as decisões quenãoodeixamcomarrependimentossãoaquelasquecontribuemparasuabuscada felicidade ao colocar os bens corretos na hierarquia correta, ao limitar suaquantidadequandoeladeveserlimitada,eaodeixardeladoascoisasquevocêquerseelasforemobstáculosàscoisasdequevocêprecisa.

SegundoAristóteles,avirtudemoraléohábitodefazerasescolhascertas.Fazerumaouduasescolhascertasdentremuitasescolhaserradasnãobasta.Seasescolhaserradassãoemnúmeromuitomaiordoqueasescolhascertas,vocêpersistiránadireçãoerrada—iráparalongedafelicidade,enãoparapertodela.ÉporissoqueAristótelesenfatizaaideiadehábito.

Vocêsabecomooshábitossecriam.Paracriarohábitodeserpontualnosseus compromissos, você tem de tentar ser pontual repetidas vezes.Gradualmentesecriaohábitodapontualidade.Umavezcriado,vocêtemumadisposiçãofirmeefortedeserpontualaochegarondeprometeuchegar.Quantomaisforteohábito,maisfácilagirdaquelejeito,emaisdifícilperdê-loouagirdemaneiraoposta.

Quandovocêcriaumhábito e ele estábemdesenvolvido, senteprazer emfazeraquiloquetemohábitodefazerporqueofazcomfacilidade-quasesemesforço.Vocêsentequeédolorosoagirdemodocontrárioaseushábitos.

Aquiloqueacabodedizervaleparaosbonseparaosmaushábitos.Sevocêcriou o hábito de dormir demais, é fácil e agradável desligar o despertador econtinuardormindo.Édifíciledolorosoacordarnahora.Porisso,sevocêcriouohábitodesepermitirentregar-seacertosprazeresoudeevitarcertasdores,édifícilabandoná-lo.

Na visão deAristóteles, esses sãomaus hábitos porque interferemnaquiloquevocêdeveriafazerparaobterascoisasdequenecessita.Oshábitosopostossão bons hábitos porque permitem que você obtenha aquilo que éverdadeiramente bom para você, em vez de obter somente aquilo que parecebomnahoraepodemostrar-seruimemlongoprazo.

Os bons hábitos, ou as virtudes morais, são hábitos de fazer as escolhascertas entre bens verdadeiros e aparentes. Os maus hábitos, que Aristóteleschamade"vícios",sãohábitosdefazerasescolhaserradas.Cadavezquevocêfazumaescolhacertaealevaacabo,vocêfazalgoqueocolocanadireçãodeseufimúltimodeviverumavidaboa.Cadavezquevocêfazumaescolhaerradaealevaacabo,caminhanadireçãooposta.Apessoavirtuosaéaquelaquefazasescolhas certas regularmente, repetidas vezes, ainda que não necessariamentetodasasvezes.

ÉporissoqueAristótelesjulgaqueavirtudetemumpapeltãoimportantena

Page 85: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

busca da felicidade. É por isso que ele considera a virtudemoral o principalmeio para a felicidade, e a mais importante das coisas cuja posse éverdadeiramenteboa.Avirtudemoraltambéméumbemilimitado.Elanuncaédemais.Oshábitosde fazer as escolhasede tomarasdecisõescorretasnuncaestãofirmesdemais.

Aristóteleschamaumaspectodavirtudemoraldetemperança.Elaconsisteemhabitualmenteresistiràtentaçãodeentregar-seemexcessoatodosostiposdeprazer,oudebuscarmaisdoquesedevedequalquerbemlimitado,comoariqueza.Umarazãoporqueosprazerescorporaisnostentaméquenormalmentepodemosgozá-losimediatamente.Atemperançanospermiteresistiràquiloqueparece bom a curto prazo em nome daquilo que é realmente bom para nós alongo prazo. A temperança também nos permite buscar a riqueza na medidacerta - apenas enquantomeio para outros bens, e não por causa delamesma,comosefosseumfimemsimesma,umbemilimitado.

Aristóteleschamaoutroaspectodavirtudemoraldecoragem.Assimcomoatemperançaéumadisposiçãohabitualderesistiràatraçãodosprazeresporcausade bens mais importantes que o excesso de prazer nos impediria de obter,tambémacorageméumadisposiçãohabitualdefazeroquefornecessárioparaobteraquiloquedevemosobterparaterumavidaboa.

Por exemplo, admitimos que obter conhecimento e desenvolver certascapacidades são virtudes intelectuais que devemos ter. Mas a aquisição deconhecimentoedecapacidadespodeserdolorosa.Estudarémuitasvezesdifícil;aprenderatocarbemuminstrumentomusical,aescreverbemouapensarbemenvolveumapráticaqueémuitasvezesincômoda.

O hábito de evitar aquilo que é difícil ou incômodo porque é dolorosocertamentepodeinterferirnaaquisiçãodeconhecimentosedecapacidadescujaposseéverdadeiramenteboa.Aristóteleschamaessemauhábitodecovardia.

A pessoa que habitualmente evita as dores e os transtornos de obter osverdadeirosbensétãocovardequantoosoldadoquefogedabatalhapormedodeserferido.Osoldadoquearriscasuavidaouquevenceseumedodasferidaspor causadavitória por boa causa temcoragem, assimcomoqualquer pessoaque habitualmente enfrente transtornos, passe por dificuldades e sofra dores afimdeobtercoisasquelhesãoverdadeiramenteboas.

Atemperançaeacoragemsãoaspectosdistintosdavirtudemoral.Umatemavercomresistiràatraçãodosprazerescorporaisecomlimitarnossaânsiaporbenslimitados.Aoutratemavercomsofrerdoresetranstornos.Masambassãosemelhantesnumaspectoimportante.Ambassãohábitosdefazeraescolhacertaentrealgoquepodeserverdadeiramentebom,massónocurtoprazodohoje,doamanhã, da semana que vem, e algo que é verdadeiramente bom para nós no

Page 86: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

longoprazodenossavidacomoumtodo.Aristótelespercebiaqueédifícilparaaquelesquesãojovensemanosouem

experiência manter os olhos em bens remotos e futuros e não em prazeres edoresimediatas.Elesabiaqueissoédifícilatéparaaquelesquesãomaisvelhos.Masele tambémnos lembravadequeadificuldadedeolharparaavidacomoum todo é uma dificuldade que todos temos de vencer para adquirir a virtudemoral—ohábitodeescolhercorretamenteentrebensdeimportânciaduradouraeosprazereseasdorestransitórias.

Aoapontarisso,elechamanossaatençãoparaofatodequetentarviverbemnãoé fácil paranenhumdenós. Issonão tornaoobjetivomenosdesejáveldeobter. Nem nos dispensa da obrigação de fazer o esforço. Pelo contrário: navisãodeAristóteles,asatisfaçãoadvindadosucessodeviverumaboavidaoudetentarvivê-lavaletodasasdificuldadeseesforços.

Por si, todavia, avontadedeenfrentar asdificuldadesede fazeroesforçonãobasta.Seumindivíduotemasmatérias-primasapropriadasàsuadisposição,ouse temacapacidadeouosaberpráticonecessárioparaproduziralgoqueébemfeito,suaproduçãoestáquaseinteiramentesobopoderdoindivíduo.Seosindivíduos fracassam, a culpa é deles. Infelizmente, aquilo que vale para aproduçãodeumaobradeartenãovaleparaviverumavidaboa.

O sucesso nesse empreendimento não está inteiramente em nosso poder.Podemos fracassar sem ter culpa. Podemos fracassar mesmo quando temos avirtudemoralqueAristótelesjulgavanecessáriaparaosucesso.Osbonshábitosdeescolhasãonecessáriosparaosucesso,mastê-losnãoogarante.

Arazãodeserassiméquetodososverdadeirosbenscujapossedeveríamosbuscarafimdeviverbemnãodependemsódenossopoderdeobtê-los.Alguns,comoosbonshábitosdamenteedocaráter (asvirtudes intelectuaisemorais)dependemmuitomaisdenósdoqueoutros,comoariquezaeasaúde,ouatéaliberdade e a amizade.Mesmo adquirir conhecimento e capacidades, ou criarbonshábitosdeescolha,podedependerdeterpaiseprofessoresquenosajudem,enãotemoscomocontrolarisso.

Nãotemoscomocontrolarascondiçõesemquenascemoseemquesomoscriados.Nãopodemosobrigarasorteasorrirparanós.Muitodaquiloquenosacontece,nosaconteceporacaso,nãoporumaescolhanossa.

Nosso esforço não nos garante a posse dos bens externos necessários paralevarumavidaboa.Nemocuidadoque temoscomnossoscorposnosgarantequemanteremos nossa saúde e nosso vigor. A pobreza e as doenças que nosdeixamincapacitadoseatéaperdadaliberdadeedosamigospodemrecairsobrenós,apesardenossacondutatersidoamaisvirtuosapossível.

Avirtudemoral,porém,pormais importanteque sejaparaviverumavida

Page 87: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

boa,nãobasta,porquetantoasortequantoaescolhatêmumpapelnabuscadafelicidade.A boa fortuna é tão necessária quanto os bons hábitos.Alguns dosbensreaisquechegamosapossuirsãosobretudoumdomdafortuna,aindaqueusá-losbemdependadosbonshábitos.AosolhosdeAristóteles, isso fazcomqueavirtudemoralaindasejaoprincipalfatorparaseviverumavidaboa.

Alémdisso,terbonshábitosnospermitesuportarmelhorosinfortúnios.Senãotemoscomocontrolaroquenosaconteceporacaso,aomenospodemostirarvantagem das coisas boas que nos caem no colo graças à boa fortuna,- epodemostentarcompensarpelascoisasdequeamáfortunanospriva.Avirtudemoralnosajudadessasduasmaneirasalidarcomasidasevindasdafortuna—damáedaboa.

Aristóteles resume tudo isso quando diz que nosso sucesso em viver umavida boa depende de duas coisas.Uma é ter a virtudemoral que nos permitefazerasescolhascertas todososdias.Outraéserabençoadopelaboasorteoupelaboafortuna.Assimcomoavirtudemoralnosimpededeirnadireçãoerradaedeescolhercoisasquenãosãoverdadeiramenteboasparanós,tambémaboafortuna nos proporciona os verdadeiros bens cuja obtenção não dependeexclusivamentedenósmesmos.

Umavidaboa,comosedisse,éaquelaemqueapessoatemtudoaquiloquedeseja, desde que não deseje nada inadequado. Para não desejar nada deinadequado,éprecisotervirtudemoral.Mastambéméprecisopossuirbensqueestãoalémdoalcancedenossa escolha—osbens concedidos anóspelaboasorte,alémdosbensadquiridospelosbonshábitosdeescolha.

Entreessesbensdafortunaestãocoisasquedependemdoambientefísicoedasociedadeemquenascemos,emquefomoscriados,eemquelevamosnossasvidas. Aristóteles nunca nos deixa esquecer de que somos animais sociais etambémorganismosfísicos.Terumaboafamíliaevivernumaboasociedadesãocoisas tão importantes quanto viver num bom clima e ter bom ar, boa água,outrosrecursosfísicosàdisposição.

Até aqui, consideramos a busca da felicidade como se fosse um propósitosolitário -comose fossealgoquecadaumdenóspudesse fazer sozinho, sempensarnosoutros.Realmenteascoisasnãosãoassim.Comonãopodemosviverbememcompletasolidão,temosdepensarnaquiloquetemosdefazerparaviverbem com outros. Também temos de pensar naquilo que os outros podem edevemfazerparanosajudaremnossoesforçodelevarumavidaboa.

Abuscadafelicidadeéegoístanamedidaemqueavidaboaaquesealmejasejaaprópria,nãoavidaboadeoutrapessoa.Masquandopercebemosquenãopodemos tersucessonabuscadafelicidadesemconsiderara felicidadealheia,nosso interessepróprioéesclarecido.Nãopodemosser inteiramenteegoístase

Page 88: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

tersucesso.Épor issoque, segundoAristóteles,osdois aspectosdavirtudemoralque

consideramosatéagoranãosãosuficientes.Alémdatemperançaedacoragem,háajustiça.Ajustiçaestárelacionadaaobemalheio,nãosódenossosamigosoudaquelesqueamamos,masdetodos.Ajustiçatambémtemavercomobemdasociedadeemquevivemosequeenvolvetudo—asociedadequechamamosdeEstado.

Viver numa sociedade boa contribui muito para a busca da felicidadeindividual porque uma sociedade boa é aquela que trata de modo justo osindivíduosque são seusmembros.Ela tambémexigequeosoutros indivíduostratemosdemaisindivíduosdemodojustoequeajamparaobemdasociedadecomo um todo. Esse é um bem no qual todos osmembros da sociedade têmparte.

Aspessoasquenão têmtemperançanemcoragemprejudicamasimesmaspor fazer as escolhas erradas regularmente.As pessoas que fazem as escolhaserradasregularmentetambémserãoinjustaseprejudicarãooutraseasociedadeem que vivem. A razão disso é que aqueles que almejam firmemente a vidaverdadeiramenteboaparasiregularmentefarãoescolhasquepermitirãoalcançaresse objetivo. As escolhas assim direcionadas também almejarão uma vidaverdadeiramente boa para os outros e o bem-estar da sociedade compartilhadaporelesepelosoutros.

Considere,porexemplo,apessoaquequermaisriquezadoqueérealmentebom, ou a pessoa que se entrega excessivamente a seu apetite por prazerescorporais,ouapessoaqueanseiaporalgoquenãoéverdadeiramentebomparaninguém—opodersobreoutrossereshumanos,afimdedominarsuasvidas.Certamente essas pessoas arruinarão as próprias vidas. Também é altamenteprovável que vão prejudicar outras pessoas por voltarem-se para a direçãoerrada.Masaspessoasqueapontamsuasprópriasvidasparaadireçãocertasópodembeneficiarosoutroseasociedadeemquevivem.

Page 89: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

14.OQUEOSOUTROSTÊMODIREITODEESPERARDENÓS

Aristóteles disse duas coisas quemeparecemextraordinariamente sensatassobre a relação entre um ser humano e outro.Se entendidas,mostram-sepurobomsenso.

Eledisseque,setodososhomensfossemamigos,nãoserianecessáriohaverJustiça.EletambémdissequeajustiçaéolaçoentreoshomensnosEstados.

Juntandoessasduasobservações,concluímosqueosmembrosdeumEstado(queéamaiorsociedadeorganizadaaquepertencemos)nãosãotodosamigosunsdosoutros.Sefossem,nãoprecisariamserreunidospelaJustiçaparaformarasociedadequechamamosdeEstado.

Amaioria de nós pertence amais de uma sociedade ou grupo organizado.Somos membros de uma família, seja como pais, como filhos, ou ambos.Tambémpodemospertenceraoutrosgruposorganizados,comoumaescola,umclube,umaempresadealgumtipo.Todaselassãosociedadesouassociaçõesdeseres humanos que se combinaram uns com os outros em nome de algumpropósitocomum.

O propósito da associação distingue dois desses grupos organizados dosdemais.Associaçõescomoescolas,universidades,hospitais,empresaseclubesalmejam todas servir algum bem particular. As instituições de ensino, porexemplo,almejamadisseminaçãoeoprogressodoconhecimento,oshospitais,ocuidadocomasaúde,-asempresas,aproduçãoouadistribuiçãodecoisasacomprareavender,edaípordiante.

Em contrapartida, a família é uma sociedade que almejamanter a vida deseusmembros, e oEstado é uma sociedade que almeja enriquecer emelhoraressa vida.Aristóteles crê que, se não houvesse outras vantagens em viver emEstados, os seres humanos se contentariam em viver na sociedade menor dafamíliaouemsociedadesumpoucomaioresformadasporumgrupodefamílias-algocomoumatribo.Oquelevouoshomensaagruparasfamíliasemtriboseaagruparastribosemsociedadesaindamaioresforam,navisãodeAristóteles,asvantagensquesepoderiaobtercomassociaçõesmaioresemaisinclusivas.

Como vimos, nosso objetivo como seres humanos deveria ser não apenascontinuarvivos,masviverbem-tãobemquantopossível.Claroquecontinuarvivos é indispensável para vivermos bem. Como os seres humanos não sãoanimais solitários,mas sociais, devemassociar-se uns comos outros a fimdemanteredepreservarsuasvidas,edetrazeraomundooutrageração,quedeve

Page 90: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

sercuidadaeprotegidaduranteainfância.SegundoAristóteles,afamíliaeatribosãoasassociaçõesousociedadesque

originalmente passaram a existir para servir esses propósitos. Talvez elas nãofaçammaisisso,ounãonamesmamedida,masAristótelespedequepensemossobresuaorigem.Oquelevouossereshumanosaformaressasassociações?

Umarespostaquesugereasiprópriaé"instinto".Oinstintolevaasabelhasaformarcolmeiaseasformigaraformarcolôniasouformigueiros.Talvez,então,seja um instinto humano formar famílias, tribos e Estados. Se sim, essassociedades seriam completamente naturais, ao contrário de associações comoescolas,clubesouempresas.Estesúltimosdificilmentesãoprodutosdoinstinto.Oshomenssereúnemvoluntariamenteparaformaressasassociaçõesporcausadospropósitosparticularesqueelasatendem.

NavisãodeAristóteles, as famílias, as triboseosEstados, assimcomoasescolas, clubes e empresas, não são produtos do instinto. Eles não são comocolmeiaseformigueiros,quesempresãoorganizadosdomesmojeitoparacadaespécie de abelha ou de formiga, onde quer que se possa encontrá-la, geraçãoapós geração. Mas ainda que todos os animais pertençam à mesma espécie,encontramos padrões muito diferentes de associação e de organização nasfamílias,triboseEstadoshumanos.

Isso,segundoAristóteles,indicaqueessassociedadesforam,emsuaorigem,formadas propositada e voluntariamente, e formadas com algum plano deorganizaçãoqueossereshumanosenvolvidosconceberamporsipróprios.Nessamedida, são semelhantes às escolas, aos clubes e às empresas que os sereshumanosinstituemdemodovoluntário,propositadoepensado.Masasfamílias,as tribos e os Estados também são diferentes das escolas, dos clubes e dasempresasnamedidaemquesãoassociaçõesvoluntáriasenaturais.

SeráqueAristótelesnãosecontradizaodizerqueasfamílias,astriboseosEstadossãosimultaneamentevoluntáriosenaturais?Eleestariasecontradizendoseachassequeas famílias, as tribos eosEstados sãonaturaisdomesmo jeitoque as abelhas e os formigueiros são naturais - produtos do instinto.Mas, deacordocomAristóteles,háoutramaneiradeumasociedadesernatural.Elapodesernaturalnosentidodequedeveserformadaparaatenderalgumanecessidadenatural—anecessidadedepermanecervivos,ouanecessidadedeviverbem.

Umasociedadepodesernaturalnessesentido,etambémtersidoformadademodo voluntário, propositado e pensado - para servir o fim que faz dela umasociedadenatural.

As famílias, segundoAristóteles, originaram-se da necessidadede os sereshumanosmanterem-sevivoseprotegeremecriaremseus filhos.Osgruposdefamílias,ouastribos,porseremumpoucomaioreseporenvolveremmaisseres

Page 91: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

humanos em trabalhos conjuntos, passaram a existir para servir a essamesmanecessidade commais eficácia.A organização cada vezmaior doEstado, queoriginalmenteveiodacombinaçãodefamíliasedetribos,nãoapenasatendiaamesma necessidade de modo cada vez mais eficaz, como também servia aopropósito adicional de permitir que alguns indivíduos, se não todos, vivessembem.Umavezqueavidamesmaestivessesegura,seriapossíveldedicaratençãoeesforçosamelhoraravidaeatorná-lamelhoremaisrica.

QuandoAristótelesdizqueohomemépornaturezaumanimalpolítico,estádizendo mais do que diz a afirmação de que o homem é um animal social.Existem outros animais sociais, como as abelhas e as formigas, os lobos, quecaçamembandos, eos leões,quevivememfamília.Mas somenteoshomensorganizam suas sociedades de modo voluntário, propositado e pensado, eestabelecemleisoucostumesquedistinguemumasociedadehumanadeoutra.

Esseéumsentidodaafirmaçãodequeohomeméumanimalpolítico.Eleéum animal que estabelece leis e costumes. Este é outro sentido. QuandoAristótelesdeclaraqueohomemépornaturezaumanimalpolítico,tambémestádizendoqueossereshumanosnãopodemviverbem,nãopodemobteromelhortipodevidasparasimesmosseapenasviverememfamíliaseem tribos.Paraisso,AristótelesachaqueelesdevemviverjuntosemcidadesouemEstados.

A palavra grega para cidade ou Estado é "pólis", de onde vem a palavra"político". A palavra latina para cidade é "civis", de onde vêm "civil" e"civilizado".Sendopolíticospornatureza,oshomensdevemviveremEstadosafimdevivertãobemquantopossível.Avidaboaéavidaciviloucivilizada.

Voltemosagoraàsduasafirmaçõescomqueestecapítulocomeçou.Setodososhomensfossemamigos,aJustiçanãoserianecessária.ComoosmembrosdeumEstadoraramente—oununca—sãotodosamigosunsdosoutros,aJustiçaénecessáriaparauni-losdemodopacíficoeharmôniconamaiordassociedadeshumanas:oEstado.

Suponhamos por um instante que os membros de uma família são todosamigosunsdosoutros—amigosnosentidomaiselevadodotermo.

Quandodoissereshumanossãoamigosnessesentidomaiselevado,elesseamam.Seuamorosimpeleadesejarumobemdooutro,adesejarbeneficiarooutro, a fazer qualquer coisa que seja necessária para melhorar ou paraenriqueceravidadooutro.

Ambos, por causa dessa amizade ou amor, agirão de modo a promover afelicidade ou a vida boa umdo outro.Nenhumdeles faria qualquer coisa queprejudicasseooutro,impedindoouobstruindosuabuscadafelicidade.

E por isso que a Justiça seria desnecessária numa família em que os paisamassemosfilhos,emqueosfilhosamassemospais,eemquemaridoeesposa,

Page 92: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

irmãos e irmãs amassem uns aos outros perfeitamente o tempo todo.Mas namaiorpartedasfamíliashámomentosemqueoamorouamizadenãochegaàperfeição.Entãoummembrodafamíliapodedizeraoutro:"Vocênãoestásendojustocomigo",ou"Oquevocêestápedindoé injusto",ou"Tenhoodireitodeesperarissoouaquilodevocê".

Nesses momentos, o amor deixa de ser a coisa que une os membros dafamília, e a Justiça entra em cena - a Justiça que tenta cuidar para que oindivíduo obtenha aquilo que tem o direito de esperar, que o indivíduo estejasendotratadodemodojustopelosoutros,equeestejasendoprotegidodemaleseprejuízosquepossamlhecausar.

SeaJustiçanãointerviessequandooamorfalhaouseafastadaperfeição,osmembrosdafamíliapoderiamnãoficarjuntos,ouaomenosnãoviveriamjuntosempazeharmonia,tentandocompartilharogozodosbensquelhessãocomuns.IssoqueseacabadedizervalemaisaindaparaosEstados,cujosmembros,emsua maioria, não têm relações de amizade ou de amor. Onde falta o amor, aJustiçatemdeintervir,paraqueoshomenspossamunir-seemEstados,eassimviverdemodopacíficoeharmoniosounscomosoutros,agindoe trabalhandojuntosporumpropósitocomum.

Aristótelessabiaquehádiversostiposdiferentesdeamizade.Desses,achavaquesóumeraaamizadeperfeita-aquelaqueexisteentrepessoasqueseamamequesódesejambeneficiar-semutuamente.

Aristóteles também sabia que essas amizades são raras. Com maiorfrequência,dizemosqueoutrapessoaé amigaporqueelanoséútilouporquenos proporciona algum prazer. Essas amizades são egoístas. A pessoa quechamamosdeamigaatendealguminteressenosso,enósaconsideramosamigasó enquanto isso durar. Por outro lado, a verdadeira amizade ou amor não éegoísta.Ébenevolente.Elaalmejaserviraobemdooutro.

AJustiça,assimcomooamor,volta-separaobemdaoutrapessoa.Contudo,háumaclaradiferençaentreosdois.Quemquerquesaibaoqueéoamorsabequeumindivíduonuncapodedizeraoutro:"Tenhoodireitodeseramado.Vocêdeveriameamar".

Quandoamamosverdadeiramentealguém,nãodamosàpessoaamadaaquiloque ela tem o direito de nos pedir. Pelo contrário, damos a ela o que temos,generosaedesinteressadamente,semnempensarnosdireitosdela.Fazemosporelamaisdoqueelatemodireitodeesperar.

Às vezes até amamos pessoas que não nos amam.Não estabelecemos queelasnosamareméumacondiçãoparanossoamor.Masquandoagimosdemodojusto para com outros, dando-lhes aquilo que têm direito de esperar, somosegoístas namedida emque esperamos que eles nos tratem com justiça.Nesse

Page 93: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

sentido, dizer quedevemos agir comosoutros domodo comoesperamosqueelesajamconoscoéegoísta.

O que os outros têm o direito de esperar de nós? Que cumpramos aspromessas que lhes fazemos. Que digamos a verdade sempre que dizer umamentira vá prejudicá-los de algummodo.Que devolvamos qualquer coisa quepegamos emprestada e que tenhamos prometido devolver. Que paguemo-lhesnossas dívidas. Que não façamos mal à sua saúde, nem machuquemos seuscorpos,nemosmatemos.Quenãointerfiramosemsualiberdadedeaçãoquandoseusatosnãonosprejudicamsobnenhumaspecto.Quenãodigamosfalsidadesquefiramsuareputaçãoouquelhesdeemmáfama.

Todas essas coisas, e muitas outras semelhantes, podem ser resumidasdizendoqueosoutrostêmodireitodeesperardenósquenãofaçamosnadaquepossaimpedirouobstruirsuabuscadafelicidade-nadaquepossaperturbaroudificultar sua obtenção ou posse dos verdadeiros bens de que necessitamparaproporcionar uma boa vida a si mesmos. É a necessidade que têm dessesverdadeirosbensquelhesdáumdireitoaeles,eéessedireitoaelesquesomosobrigadosarespeitar—senósmesmosformosjustos.

Podeserquenemsempresejamosjustos,aomenosnãoperfeitamentejustos.Algumas pessoas são o extremo oposto de justas. Em vez de ter o hábito derespeitar os direitos das outras, habitualmente inclinam-se na direção oposta-,buscamascoisasquequeremparasipróprias,mesmoqueparaissotenhamdepassarporcimadosdireitosdosoutros.

EporissoqueseestabelecemleisparaprescreveroqueosmembrosdeumEstadopodemounãopodemfazerparalidarunscomosoutroscomjustiça.Setodostivessemohábitodeserjustosemseustratosunscomosoutros,nãohaveria necessidadedessas leis, nemde sua aplicaçãopeloEstado.Mas comopoucos indivíduos são perfeitamente justos, e como alguns são por hábitoinclinados a ser injustos, leis que prescrevem a conduta justa têm de seraplicadaspeloEstado, a fimde impedir queum indivíduováprejudicar outroseriamenteaoviolarseusdireitos.

Seráqueosoutrostêmodireitodeesperarqueajamosdemodopositivoparaajudá-losemsuabuscadafelicidade?Nãoatrapalhar, impedirouobstruirseusesforçosparaobterosverdadeirosbensdequenecessitaméumacoisa.Ajudá-losaobteressesbenséoutra.Seráqueelestêmodireitodepedirnossaajuda?

De acordo com o entendimento de Aristóteles da diferença entre amor ejustiça,arespostaénão.Éagenerosidadedoamor,nãoasobrigaçõesdajustiça,o que impele um indivíduo a ajudar outro a obter ou a possuir os verdadeirosbensnecessáriosparaumaboavida.ÉporissoqueasleisaplicadaspeloEstadonãoexigemqueosindivíduosajudem-semutuamente,realizandoaçõespositivas

Page 94: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

quepromovamabuscadafelicidadedosoutros.OEstado,todavia,estabeleceeaplicaleisqueexigemqueoindivíduoajade

modopositivoparaobem-estardacomunidadecomoumtodo.Obem-estardacomunidadeafetaabuscadafelicidadeporseusmembros.Umaboasociedade,uma sociedade em que o bem comum das pessoas é atendido e promovido,contribuiparaavidaboadeseus indivíduos.AristótelesdizdiretamentequeofimqueobomEstadodeveserviréafelicidadedosindivíduosqueocompõem.Cabe-lhepromoversuabuscadafelicidade.

Quando,portanto, como indivíduos, obedecemosa leisquenosorientamaagir considerando o bem-estar da comunidade como um todo, estamosindiretamente ajudando a promover a busca da felicidade dos nossoscompanheiros seres humanos. Aquilo que fazemos diretamente por algunsoutros,porcausadenossoamorporeles,fazemosindiretamenteportodoorestoao obedecer a leis que exigem que ajamos considerando o bem-estar dacomunidadeemqueeles,assimcomonós,vivem.

Page 95: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

15.OQUETEMOSODIREITODEESPERARDOSOUTROSEDOESTADO

Amateupróximocomoatimesmo!Ajacomosoutroscomogostariaqueagissemcomvocê!

Essas duas máximas conhecidas relacionam você aos outros. As duas

parecem fazer de você o pivô de sua ação relacionada aos outros. Ame a simesmoeameseupróximodamesmamaneiraeaté, talvez,namesmamedidaemquevocêamaasimesmo.Penseemcomovocêdesejaqueosoutrosajamemrelaçãoavocêeajadamesmamaneiraemrelaçãoaeles.

Parece que invertemos essa ordem, considerando primeiro, no capítuloanterior, aquilo que os outros têm o direito de esperar de nós, e agora, nestecapítulo,aquiloquetemosodireitodeesperardosoutros.Seriamaisexatodizerquenoselevamosacimadeumaordemquenoscolocaemprimeirolugareosoutrosemsegundo.

Direitos sãodireitos.Sequalquer ser humanoos têm,por ter necessidadesquecompartilhaemcomumcomtodososdemaissereshumanos,entãotodososdemais também têm os mesmos direitos. Não faz diferença se você pensaprimeironosseusprópriosdireitosedepoisnosdireitosdosoutros.

Há, porém, um sentido emque você vemprimeiro.Você vemprimeiro naordem do pensamento a respeito daquilo que deve fazer. O fim último quedeveriadeterminartodooseupensamentoprático,todasassuasescolhas,etodaa sua açãoéumavidaboapara si próprio.Você temaobrigaçãodeviver tãobemquantohumanamentepossível-aobrigaçãodeobteredepossuir,nocursodeumavida,todasascoisasquesãoverdadeiramenteboasparavocê.

A Justiça, como vimos, não exige que você promova, por meio de açõespositivas,afelicidadealheia,nãodomodocomovocêestáobrigadoabuscarasuaprópriaporcausadoamorquetemporsimesmo.AJustiçaapenasexigequevocênãoimpeçanemfrustreabuscadafelicidadealheia.Sevocêforalémdissoparaajudá-losemsuabusca,vocêfazissoporqueosamacomoamaasimesmo.

Seusdireitoseosdireitosdosoutros,quedizemrespeitoàJustiça,baseiam-senascoisasquesãoverdadeiramenteboasparatodosossereshumanosporqueatendemnecessidadesintrínsecasdanaturezahumana.Pensararespeitodoqueébom,esobretudoarespeitodoqueéverdadeiramentebom, temdeprecederopensara respeitodosdireitos.Porexemplo, sevocênãopensasseque teruma

Page 96: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

certa quantidade de riqueza, que ter um grau satisfatório de saúde, e que terliberdadesãocoisasrealmenteboasparavocê,nãoserialevadoadizerquetodostêmdireito a elas, não apenas enquantomeiosdevida,mas tambémenquantomeiosdevidaboa.

Aquilo que você tem o direito de esperar dos outros é, portanto, idênticoàquilo que eles têm o direito de esperar de você. Os direitos são os mesmosporque os direitos de todos são iguais e porque aquilo que é verdadeiramentebomparavocêéverdadeiramentebomparatodososdemaissereshumanos.Eéassim porque todos nós somos humanos, todos nós temos a mesma naturezahumana,àqualsãoinerentesasmesmasnecessidadesfundamentaisquepedemparaseratendidas.

Entreessasnecessidadesestáanecessidadedeviverassociadoaoutrossereshumanos.Nãosomosotipodeanimalquepodeviversozinho.Comovimos,associedadeshumanas—asfamílias,astriboseoEstado—surgiramparaatenderessanecessidade.Maselastambémnosajudamaatenderoutrasnecessidades-nossa necessidade de bens de que a preservação da vida depende, e nossanecessidadedebenssuperiores,dequeavidaboadepende.

Ainda que a sociedade seja boa em si mesma porque precisamos viverassociadosaoutrossereshumanos,umasociedadeparticularpodenãoserboaseo modo como ela está organizada ou o modo como ela opera não ajuda ouefetivamente atrapalha os indivíduos que são seusmembros em seus esforçosparaadquirirepossuirascoisasquesãoverdadeiramenteboasparaeles.

Porexemplo,umafamílianãoéboasenãodáaseusfilhosaliberdadeaquetêmdireito,senãocuidadesuasaúde,senãoosajudaacrescercomodeveriam.Issonãosignificaquea famíliaemsi sejaumacoisa ruim,porqueascriançaspequenas não são capazes de preservar suas próprias vidas e de crescer semfamílias.Issosignificaapenasqueumafamíliaparticularnãoéboaporquenãofazporseusfilhosaquiloqueelestêmodireitodeesperardela.

Emsuapreocupaçãocomaquiloqueébomemau,Aristótelesestápensandonassociedadesboasemás,etambémnossereshumanosbonsemaus,eemsuasvidasboasemás.Aquiloquejásedissesobreasociedadeemsiserboaé,paraele, umamera observação de senso comum.Não podemos nos tolerar se nãovivemosemsociedade.

Começando por aí, Aristóteles considera aquilo que torna uma sociedadeboa, ou uma sociedade melhor do que outra. E assim como sua questãodefinitivasobreavidahumanadiz respeitoàmelhorvidaquecadaumdenóspode viver, também sua questão definitiva sobre a sociedade diz respeito àmelhorsociedadeemquepodemosviverebuscarafelicidade.

ComoAristóteles acha que, de todas as sociedades humanas, o Estado ou

Page 97: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

sociedade política é quemmelhor nos permite viver a vida boa ou civilizada,vamos nos concentrar em suas respostas às perguntas sobre o bom Estado esobreomelhorEstado.

Parece-lhe óbvio que um bom Estado é um Estado bem governado. ParaAristóteles, isso é tão óbvio quanto dizer que uma vida boa é uma vida bemvivida. Para ele, não pode haver Estado sem governo. Os seres humanos nãopodemviverjuntosempazeemharmonianaausênciadeumgoverno.

Issopoderianãoserverdadesetodosossereshumanosfossemamigoseseamassem uns aos outros. Também poderia não ser verdade se todos os sereshumanos fossemperfeitamente justos, demodoquenãohouvesse necessidadede aplicar leis justas que impedissem um indivíduo de prejudicar outro. MasAristótelesaprenderacomaexperiênciacomumqueossereshumanosnãoestãotodosunidospeloamoroupelaamizade,queamaiorpartedossereshumanosnãoéperfeitamentejusta,equealgunssãodeverasinjustosemseuegoísmo.

PorissoseubomsensoolevouaconcluirqueogovernoénecessárioparaaexistênciadeumEstadooudeumasociedadepolítica.

Porsernecessário,ogovernoébomemsi,assimcomoasociedade,porsernecessária,éboa.Porém,comovimos,umasociedadeparticularpodesermá,ounãotãoboaquantopoderiaser.

Alguns, que não dispõem do bom senso deAristóteles, já disseram que ogoverno é absolutamente desnecessário. Eles não enxergam que os sereshumanos— sendo como são, não como gostaríamos que eles fossem— nãopodemviver juntosempaze agir juntosparaumpropósitocomumsemviversobumgovernoque tenhaopoderdeaplicar leisede tomardecisões.Nãosetrataapenasdeprendercriminosos.Paraqueumcertonúmerodeindivíduosajaem comum para um propósito comum, é preciso que haja algum aparato quetomeasdecisõesexigidasporsuasaçõesemconjunto.

Tambémjásedisseque,aindaqueogovernosejanecessário,eleéummalnecessário,porqueenvolveousodeforçacoercitiva(aforçausadanaaplicaçãodas leis) e porque envolve limitações à liberdade do indivíduo. Aqueles quedizem isso não compreendem argumentos muito importantes de Aristóteles arespeitodaaplicaçãodas leiseda limitaçãoda liberdadedos indivíduosnumasociedade.

Segundo Aristóteles, o homem bom — o homem virtuoso que é justo -obedeceàsleisjustasporqueévirtuoso,nãoporquetemeapuniçãoquepoderiaadvirdaviolaçãodaleioudaperturbaçãodapaz.Eleobedeceàsleisemantéma paz voluntariamente, não porque é coagido pelos agentes da lei. Ele não écoagidopelogoverno,epor issoogovernonãoé,paraele,ummal,comooéparaohomemmau.

Page 98: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Ohomembomtambémnãosentequesualiberdadeélimitadapelogoverno.Elenãoquermaisliberdadedoqueconsegueusarsemprejudicarosoutros.Sóohomemmau quermais liberdade do que isso, e portanto só ele sente que sualiberdadedefazeroquequiser,sempreocupar-secomosoutros,élimitadapelogoverno.

Ofatodeogovernoemsisernecessárioebomnãotornatodasasformasdegoverno boas, ou tão boas quanto poderiam ser. Para Aristóteles, a linha quedivide as formas de governo boas das más é determinada pelas respostas àsperguntasqueseseguem.

Primeira,ogovernoserveaobemcomumdaspessoasgovernadas,ouserveaosinteressesegoístasdaquelesquedetêmopoderdegovernar?Ogovernoqueserveaointeressedosgovernantesétirânico.Sóogovernoquepromoveavidaboadosgovernadosébom.

Segunda, o governo se baseia meramente no poder à disposição dosgovernantes,ousebaseiaemleisqueforamfeitasdeumamaneiracomaqualosgovernadosconcordaram,eemcujaformulaçãotomaramparte?Ogovernoquesebaseiaapenasnaforça,estejaelanasmãosdeumsóhomemounasdemaisde um, é despótico, mesmo quando é benevolente ou bem-disposto, e nãotirânico.Paraserbom,ogovernotemdeterumaautoridadereconhecidaeaceitapelos governados, não o mero poder ou força ao qual eles se submetem pormedo.

Aristóteles chamou o governo que é bom sob esses aspectos de governoconstitucional ou governo político. Ao chamar esse governo de político, elequeriasugerirqueessaéaúnicaformadegovernoqueéadequadaparaEstadosousociedadespolíticas.

Isso nos leva à terceira questão. Ela se aplica ao governo que não é nemtirâniconemdespótico,masconstitucional—umgovernobaseadoemleis,noqual até aqueles que governam são regidos por leis. Sobre esse governo, cabeperguntar:seráqueaconstituição—aleifundamentalemqueoprópriogovernosebaseia—éjusta?Eseráqueasleisfeitasporessegovernosãojustas?

Qualquer governo que não seja tirânico é bom sob esse aspecto. Entreosgovernosnãotirânicos,umgovernoconstitucionalémelhordoqueumgovernodespótico. E, entre os governos constitucionais, o melhor é o que tem umaconstituiçãojustaeleisjustas.

Ao fazer o elogio do governo constitucional, Aristóteles diz que esse é ogoverno dos homens livres e iguais. Ele também diz que essa é a forma degovernonaqualoscidadãosgovernamesãogovernadosporsipróprios.

Aquelesquesãogovernadosporumdéspotasãosúditos,nãocidadãoscomalgumavozemseuprópriogoverno.Aquelesquesãogovernadosporumtirano

Page 99: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

não estão em situação melhor do que os escravos. Em ambos os casos, sãogovernadoscomoinferiores,nãocomoiguais.Somenteaquelesque,porseremcidadãos,sãogovernadosporoutroscidadãosqueforamescolhidosparaterumcargopúblicoporalgumtemposãogovernadoscomoiguais,ecomooshomenslivresdevemsergovernados.

Nessepontodeseuraciocínio,Aristótelescometeuumerrograve.Porvivernumaépocaenumasociedadeemquealgunssereshumanosnasciamescravoseeram tratados como escravos, e numa sociedade em que as mulheres eramtratadas como seres inferiores, ele cometeu o erro de achar que muitos sereshumanos tinham naturezas inferiores. Ele não percebeu que aqueles quepareciam inferiores tinham essa aparência por causa da maneira como eramtratados,nãoporqueseusdonsinatosfosseminadequados.

Porcometeresseerro,eledividiuossereshumanosemdoisgrupos.Deumlado, colocou aqueles que podiam ser governados como cidadãos— livres eiguais, com voz em seu próprio governo. De outro, colocou aqueles que sópodiamsergovernadosdespoticamente,sejacomosúditos,sejacomoescravos-semvozemseuprópriogoverno,portanto,nemlivresnemiguais.

Vivemos numa época e numa sociedade em que não se pode aceitar queninguém cometa o erro de Aristóteles. Corrigindo seu erro, somos levados àconclusãodequetodosossereshumanosdevemsergovernadoscomocidadãoscom voz no próprio governo, portanto, devem ser governados como livres eiguais.Asúnicasexceçõesparaessetodosuniversalmenteinclusivosãoaquelesqueaindaestãonainfânciaeosincapacitadosmentalmente.

Tendochegadoàconclusãoqueseacabadeenunciar,tambémvemosqueogovernoconstitucionalsóéjustosesuaconstituiçãodáatodosossereshumanosomesmo status de cidadãos sem discriminá-los por sexo, raça, credo, cor ouriqueza.Assim,eletambémlhesdáaliberdadeaquetêmdireito,aliberdadedeseremgovernadoscomocidadãos,nãocomoescravosousúditos.

Umserhumanonãoémaisnemmenoshumanodoqueoutro,aindaqueumpossasersuperiorouinferioraoutroemmuitosoutrosaspectos,comoresultadodediferençasemdonsinatosouemqualidadesadquiridas.Essasdesigualdadescertamentedevemserconsideradasnaseleçãodealgunssereshumanosparaoexercício de cargos públicos, mas devem ser totalmente desconsideradas noestabelecimentodasqualificaçõesparaacidadania.

Todos os seres humanos são iguais como humanos. Sendo iguais comohumanos,sãoiguaisnosdireitosquenascemdasnecessidadesintrínsecasàsuanaturezahumanacomum.Umaconstituiçãonãoéjustasenãotrataigualmenteosiguais,esenãoreconheceodireitoigualdetodosàliberdade—odireitodeseremgovernadoscomosereshumanosdevemsergovernados,comocidadãos,

Page 100: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

nãocomoescravosousúditos.Chegamosaumarespostaparaaquestãosobreaquiloquetemosodireitode

esperardoEstadoemquevivemosedogovernosoboqualvivemos.Temosodireitodesergovernadoscomocidadãosporumgovernoaoqualdemosnossoconsentimentoequenospermitetervoznessegoverno.

Será que isso é tudo o que temos o direito de esperar? Ainda que tenhacometidooerrodepensarquesóalgunssereshumanostinhamodireitodesergovernadoscomocidadãos,AristótelesachavaqueessessereshumanostinhamodireitodeesperarmaisdoEstadoemquevivem.OmelhorEstado,naopiniãodele,eraaquelequefaziatudooquepodiaparapromoverabuscadafelicidadepor seus cidadãos. Isso continua verdadeiro, independentemente de todos ouapenasalgunssereshumanosdeveremsercidadãos.

OquepodeumEstadofazerparapromoverabuscada felicidadeporseuscidadãos?Podeajudá-losaobtereapossuirtodososbensreaisdequeprecisameaquetêmdireito.Paraentenderisso,temosdelembraralgoquedissemosnocapítuloanterior.

De todos os verdadeiros bens que precisamos possuir para viver bem, aobtençãoeapossedealgunsestãomaissobnossopoderdoqueaobtençãoeaposse de outros. Alguns, como a virtude moral e o conhecimento, dependemamplamente das escolhas que fazemos. Alguns, como a riqueza e a saúde,dependemconsideravelmentedetermosboasorteoudetermossidoabençoadospelaboafortuna.

AsprincipaismaneirasdeumbomEstadoedeumbomgovernoajudaremseus indivíduos em sua busca da felicidade é fazer aquilo que podem parasuperarasprivaçõessofridasporcausadoazaroudamáfortuna,enãoporcausade suamáconduta.Eledeveria fazerporelesaquiloqueeles,por suaprópriadecisãoeesforço,nãopodemfazerporsipróprios.OmelhorEstadoeomelhorgovernosãoaquelesquefazemomáximonessesentido.

AúnicacoisaquenenhumEstadoougovernopodefazer,nãoimportaquãobom ele seja, é tornar seus cidadãos moralmente virtuosos. A aquisição devirtudesmorais depende quase integralmente das escolhas feitas por cada umdeles.Assim,omelhorEstadoeomelhorgovernosópodemdaraseuscidadãosascondiçõesexternasquelhespermitemtentarviverbemequeosincentivamafazê-lo.Elenãopodegarantirque,dadasessascondições, todos terãosucesso.Seusucessoouseu fracassodepende,emúltima instância,dousoque fizeremdasboascondiçõesemquevivemsuasvidas.

Page 101: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ParteIV

OHomemcomoConhecedor

Page 102: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

16.OQUEENTRANAMENTEEOQUESAIDELA

Oscapítulosanterioresdiscutiramopensareoconhecer,masnãoamentequepensaequeconhece.

NaParteII,consideramosopensamentoprodutivo—otipodepensamentorelacionado a fazer coisas. Nela, também consideramos o tipo de pensamentonecessário para o fazer — o tipo que chamamos de capacidade ou de saberprático.

NaParteIII,examinamosopensamentopráticoeoconhecimentoprático—opensamentosobreosmeiosesobreosfinsdaaçãohumanaeoconhecimentodaquiloqueébomemauparabuscarmos,oudoqueécertoedoqueéerradoparafazeraoconduzirmosnossavida.

Agora, na Parte IV vamos tratar do pensamento teórico, o pensamentovoltado para o conhecimento, não para a produção ou para a ação. E vamosdiscutir o conhecimento em si — o conhecimento de como as coisas são, etambém daquilo que devemos ou não devemos fazer.Aqui, pela primeira vezvamostratardaquiloquesabemossobreamentequepensaequeconhece.

A linguagem desempenha um grande papel no pensamento e noconhecimentohumanos.SegundoAristóteles,aspalavrasqueusamosexpressamas ideias comque pensamos.As sentenças declarativas que enunciamos ou asasserçõesque fazemosexpressamopiniõesqueafirmamosouquenegamos—opiniõesquepodemserverdadeirasoufalsas.

Quandoumaasserçãoquefazemoséverdadeira,elaexpressaconhecimento.Seéfalsa,cometemosumerro.Nãopodemosestarerradosquantoaalgoeterconhecimentodesse algo simultaneamente.Asopiniõespodemserverdadeirasoufalsas,corretasouerrôneas,masoconhecimentoincorreto,errôneooufalsoétãoimpossívelquantoumcírculoquadrado.

Deondevêmas ideiascomquepensamos?ParaAristóteles,pareciaóbvioque não nascemos com elas em nossas mentes - elas são, de algum modo,produtosdanossaexperiência.Épor issoquesuaexplicaçãodopensamentoedo conhecimento humanos volta-se primeiro para os sentidos e para aexperiênciaqueresultadofuncionamentodenossossentidos.

Ossentidossãoasjanelasouasportasdamente.Tudoquechegaàmentedomundoexteriorentranelapelossentidos.Oqueentranelapodemserpalavrasousentençasditasporoutrossereshumanos.Comotodossabem,aprendemosmuitodessemodo,certamenteapartirdomomentoemquenossavidaescolarseinicia.Mas o aprendizado não começa com a escola. Nem tudo o que aprendemos,

Page 103: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

mesmoapósaescola,envolveasserçõesfeitasporoutraspessoas.Considerandoa raça humana como um todo, e também as crianças humanas de todas asgerações,oaprendizadocomeçacomaexperiênciasensível,antesqueaquelesqueaprendemusempalavrasparaexpressaroqueaprenderam.

Na época de Aristóteles, geralmente se pensava que temos cinco sentidosexternos—avisão,aaudição,otato,oolfatoeopaladar.ArazãodeAristótelestê-loschamadodesentidosexternoséquecadaumdelesestárelacionadoaumórgãodesentidonasuperfíciedenossoscorpos,sobreoqualomundoexteriorage;avisãoresultadaaçãodecoisasforadenóssobrenossosolhos,-aaudição,deatosexterioressobrenossosouvidos,-o tato,deatosexterioressobrenossapele,- o cheiro, de atos exteriores sobre o nosso nariz,- e o paladar, de atosexterioressobrenossalínguaenossaboca.

A moderna pesquisa científica descobriu que temos mais do que cincosentidoseórgãosdesentido,-porexemplo,osórgãosdesentidocomosquaispercebemos o movimento de nossos braços e pernas ou a posição de nossoscorpos.Mas o número exato de sentidos e de órgãos de sentidos não afeta aexplicaçãodadaporAristótelesparaacontribuiçãodossentidosedaexperiênciasensívelparanossospensamentoeconhecimento.

Cada um dos sentidos produz sensações somente quando o órgão sensívelsofre a ação física de algo no mundo exterior. Os sentidos são receptorespassivosquetêmdeserativadosdefora.Cadaumdosnossosórgãosdesentidoséumreceptoraltamenteespecializado.Nãopodemossentirnemogostonemocheiro das coisas com nossos olhos,- não podemos ouvir nem ver com nossalínguaenariz.Percebemosascorescomosolhos,ossonscomosouvidos,oscheiroscomonarizetc.

Podemos perceber certos aspectos domundo à nossa volta demais de umjeito.Podemosverotamanhoeoformatodoscorpos,e tambémsenti-lospelotato.Conseguimosvereouviromovimentodoscorposdeumlugarparaoutro,econseguimosatédizerseessemovimentoélentoourápido.

Assensaçõesdosdiversostiposqueacabamosdemencionarsãoasmatérias-primasdequenossaexperiênciasensíveléformada.Aindaqueessasmatérias-primas cheguem separadamente de fora, pelos canais dos diversos órgãos desentido,elasnãopermanecemseparadas,ouisoladasumasdasoutras,emnossaexperiênciasensível.Omundoqueexperienciamospormeiodossentidoséummundo de corpos de diversos tamanhos e formatos, em movimento e emrepouso, e relacionados uns com os outros no espaço de diversas maneiras.Nossa experiência dessemundo de corpos também inclui uma vasta gama dequalidades - as cores que os corpos têm, os sons que fazem, a aspereza ou asuavidadedesuassuperfícies,edaípordiante.

Page 104: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Segundo Aristóteles, nossa experiência sensível é produto de nossapercepção. As sensações que recebemos passivamente por meio de nossosórgãos sensoriais são apenas asmatérias-primasquede algummodo juntamospara formar o tecido inconsútil de nossa experiência sensível. Ao juntá-las,somosmaisativosquepassivos.

A sensação é uma informação que vem do exterior. Mas a experiênciasensível que nasce de nossa percepção desse mundo exterior envolve nossamemóriaenossaimaginação.Elaécompostademuitoselementos,etodostêmsuaorigemnaquiloquenossosváriossentidosrecebem,massãotransformadospelo modo como são juntados para compor o todo que é o mundo quepercebemos.

Se descrevermos em palavras qualquer experiência de percepção comum,veremos imediatamente que ela é muito mais do que as matérias-primas dasensação.Porexemplo,vocêpercebeumcachorropretoquelateepersegueumgatoamarelotigradonarua,eogatocorrenafrentedeumcarroazulquefreiasubitamente, cantando o pneu. Nessa descrição de uma experiência sensível,apenasalgumaspalavrasnomeiamqualidadesvisíveisouauditivassentidaspeloolhoepeloouvido—ascoreseossons.Umcãoeumgato,umcarroeumarua,perseguir,correresubitamenteparar—todasessascoisaspercebidasenvolvemmaisdoquesensaçõesrecebidasdoexterior.

Quandovocêpercebeumobjetoquechamade cãooudegato, ouquandopercebe ações que chama de perseguir ou de correr, sua memória e suaimaginaçãoparticipam,especialmenteseocachorropercebidolheforestranho,e o gato for conhecido, já visto por aí.Alémdisso, sua compreensão tambémparticipa.Vocêtemalgumacompreensãodequetipodeanimaléumgato,umtipodiferentedocachorro.Vocêtemalgumacompreensãodecomosãoostigres,comoindicaasuapercepçãodequeogatotemopelotigrado.Vocêcompreendeadiferençaentreandarecorrer,entreirrápidoediminuiravelocidade.Sevocênãoentendessetudoisso,nãopoderiatertidoaexperiênciadepercepçãoquefoidescrita.

Segundo Aristóteles, essas várias compreensões que temos resultam daatividade da nossamente, não da atividade dos nossos sentidos. Nossamenteformaideiasdecãesedegatos,decorreredeperseguir.Asideiassebaseiamnasinformaçõesquenossossentidosrecebemdomundoexterior.DeacordocomAristóteles, elas são o produto da atividade da mente em seu esforço decompreenderomundoqueexperienciamospormeiodossentidos.

Assim como podemos sentir coisas porque elas podem ser sentidas,compreendemoscoisasporqueelaspodemsercompreendidas.Seocãoquelateeocarroquecantapneunãofossemvisíveisnemaudíveis,nãopoderíamosvê-

Page 105: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

los nem ouvi-los. De modo análogo, se o cão e o gato não pudessem sercompreendidos como tipos diferentes de coisas, não poderíamos compreenderque eles têm naturezas diferentes. Para Aristóteles, apreendemos as naturezasdoscãesedosgatospormeiodenossaideiaoucompreensãodaquiloqueéumcãoouumgato,assimcomoapreendemosapretidãodocachorroouaazulidadedoautomóvelpormeiodassensaçõesvisuaisrecebidaspornossosolhos.

Quandoumcarpinteirocomeçaafazerumacadeira,eletemdeteremmenteuma ideiada cadeiraquequer fazer.Elenão apenas temde ter uma ideiadascadeirasemgeral,comotambémaideiamaisdefinidadacadeiraparticularquedesejafazer.Aotrabalharcomessasideiasecomamatéria-primadospedaçosdemadeira,ocarpinteiroformataessespedaçoseosjuntadetalmodoqueelesassumemaformadacadeira.Aideianamentedotrabalhadorprodutivotornou-seaformadomaterialemqueeletrabalha.

Amatériavivaquetemumacertaformaéumcão.Amatériavivaquetemumaformadiferenteéumgato.Quandoascriançasaprendemadistinguirentrecãesegatoseareconhecercadaumdeles,suapercepçãodoscãesedosgatosenvolve alguma compreensão da natureza particular de cada um desses doistiposdeanimais.Essacompreensãoconsisteemterumaideiadaquiloqueéumcãoeumaideiadaquiloqueéumgato.

ParaAristóteles,teraideiadeumgatoequivaleaternamenteaformaqueécomumatodososgatosequefazquecadagatosejaotipodeanimalqueé.Issoo leva a dizer que, assim como a mão é a ferramenta das ferramentas (oinstrumentocomoqualusamosoutrosinstrumentos),tambémamenteéaformadasformas.Outramaneiradedizeramesmacoisaédescreveramentecomoolugaremqueasformasqueestãonascoisassetornamnossasideiasdelas.

A mente forma ideias tomando as formas das coisas e separando-as damatéria das coisas. Produzir ideias é o exato oposto de produzir coisas. Aoproduzircoisas,colocamosasideiasquetemosemnossasmentesnascoisasaotransformaramatériadeacordocomnossas ideias.Aoproduzir ideias,nossasmentes tomam as formas das coisas e as transformam em ideias pelas quaiscompreendemosanaturezadascoisasquetêmessaouaquelaforma.

Obter ou produzir ideias também pode ser contrastado com comer coisas.Quandocomemosumamaçã,colocamostantosuaformaquantosuamatériaemnossocorpo.Aformasemamatérianãonosnutriria.Amatériasemaformanãoseriaumamaçã.Mas,quandoobtemosaideiadeumamaçã,tiramosaformadamatéria damaçã.A ação de nossamente ao fazer isso transforma a forma damaçãnumaideiadotipodefrutaqueéumamaçã.

As ideias ou compreensões mencionadas até agora são ideias oucompreensões de objetos que percebemos. São os tipos de objetos que estão

Page 106: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

presentesemnossaexperiênciasensível.Sãotambémostiposdeobjetosdequeconseguimos lembrar quando esses estão ausentes. São até os tipos de objetosqueconseguimosimaginar,comopoderíamosimaginarumcãoouumgatoquenunca percebemos, ou sonhar com um cão ou com um gato de figura ou corestranha.

Mas quando a mente começa a produzir ideias a partir da experiênciasensível,elanãoparanasideiasquenospermitemcompreenderosobjetosquepercebemos,recordamoseimaginamos.Somoscapazesdecompreendermuitosobjetos de pensamento que não conseguimos perceber sensivelmente, como obem e omal, o certo e o errado, a liberdade e a justiça. Não poderíamos terdiscutido esses objetos em capítulos anteriores deste livro se não oscompreendêssemos-senãotivéssemosformadoideiasdeles.

O pensamento começa com a formação de ideias a partir das informaçõesrecebidas pelos sentidos. As sensações são os dados que a mente recebe domundo exterior. As ideias são os dados que a mente produz como resultadodaquiloquerecebe.

O pensamento vai mais longe. Ele relaciona as ideias que produz. Ele asjunta,asseparaeasconfronta.Pormeiodessasoutrasatividadesdopensamento,amente produz conhecimento, não apenas conhecimento a respeito deobjetosque percebemos, recordamos ou imaginamos, mas também conhecimento arespeito de objetos que não fazem parte de nossa experiência sensível. Aaritmética, a álgebra e a geometria são bons exemplos desse tipo deconhecimento.

Umasensaçãonãoéverdadeiranemfalsa.Vocêsimplesmenteatem,comoquandopercebeapretidãodocachorroouaazulidadedocarro.Mesmoquandoseussentidosoenganam,oquefazemcomfrequência,asensaçãoemsinãoénemverdadeiranemfalsa.Ocachorro,porexemplo,poderiaestarnasombra.Aluzdosol,vocêoteriapercebidocomocinza,nãocomopreto.Ofatodevocêpercebê-lo comopreto quando está na sombra não é falso,mas se, a partir sódessainformação,vocêpensaqueeleépreto,vocêpodeestarerrado.Oerroestáemseupensamento,nãonasuapercepçãosensível.

Todo substantivo comum e quase todo adjetivo e verbo em nossa línguanomeiamumobjetodepensamento-umobjetonoqualpodemospensarporqueformamosumaideiadele.Nemtodososobjetosemqueconseguimospensarsãoobjetosquetambémconseguimospercebersensivelmente,recordarouimaginar.Os cães e os gatos, por exemplo, são objetos que somos capazes de perceber,mas também somos capazes de pensar neles quando não há cães nemgatos ànossa volta para serem percebidos por nossos sentidos. Além disso, somoscapazesdepensarnasmínimaspartículasdematériadentrodoátomo,aindaque

Page 107: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

nossos sentidos não sejam capazes de perceber nada tão pequeno, nem com aajudadomaispotentemicroscópio.

Assimcomoassensações,asideiasnãosãoverdadeirasnemfalsas.Sevocêeeuestivéssemosconversando,eeudissesseapenasapalavra"cão",ouapenasapalavra "gato",vocênão seriacapazde responderdizendosimounão.Vamossupormomentaneamentequevocêeeutenhamosamesmacompreensãodessaspalavras. Elas significam paramim amesma coisa que significam para você,porqueparanósdoiselasexpressamasmesmasideias.Quandoeudisse"cão",você e eu pensamos no mesmo objeto. O mesmo sucedeu quando eu disse"gato".

Suponhaagoraqueaodizer"gato"eutenhamexidoacabeçaouapontadonadireçãodeumanimalnorecintoquetenhacomeçadoalatirnaquelemomento.Imediatamentevocêteriadito:"Não,issonãoéumgato,issoéumcão".Ofatodeeuterpronunciadoapalavra"gato"enquantomexiaacabeçaouapontavaoanimal que nós dois percebíamos poderia ter sido expressado numa frase:"Aqueleanimalaliéumgato".Ofatodevocêterditoquenãotambémpoderiatersidoexpressadopelafrase"Sevocêachaqueaqueleanimaléumgato,vocêestáerrado.Aafirmaçãoquevocêacabadefazeréfalsa".

Nãoépossívelqueestejamoserradossimplesmenteaopensaremcãesouemgatos, assimcomonãoépossívelque estejamoserrados simplesmentequandopercebemosocãonassombrascomopretoenãocomocinza.Ésomentequandofazemos uma asserção como "Aquele cão é preto" que surge a questão de seaquilo que dizemos ou pensamos é verdadeiro ou falso.A palavra "é" tem deentraremnossopensamento,ecomelaentraoutrapalavra,"não".Quando"é"e"nãoé" entram emnosso pensamento, passamos do nível de apenas ter ideiasparaonível de combiná-las e de separá-las.Então chegamos aonível emqueestamosformandoopiniõesquepodemserverdadeirasoufalsas.

Haoutraspalavras,como"e","se"e"então","jáque"e"logo","ou","nãosimultaneamente", que entram em nosso pensamento num nível ainda maiselevado de pensamento.Esse é o nível emque fazer uma asserção nos leva aafirmaroutraouarejeitaroutraporserfalsa.

Aristótelesdistingueentreessestrêsníveisdepensamentoemsuaexplicaçãodecomoamenteoperaaoproduzirconhecimento.Apartirdasmatérias-primasda experiência sensível, a mente forma ideias. As ideias, por sua vez, são asmatérias-primasapartirdasquaisamenteformajuízosnosquaisalgumacoisaéafirmadaounegada.Assimcomoasideiasúnicassãoexpressadasnalinguagemporpalavrasouexpressõesúnicas,osjulgamentossãoexpressadosporsentenças—sentençasdeclarativasemqueaparecemaspalavras"é"ou"nãoé".

O terceiro nível é chamado porAristóteles de raciocínio ou de inferência.

Page 108: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Somente quando uma asserção se torna a base para afirmar ou negar outraasserçãoéqueamenteascendeaoterceironíveldepensamento.Nessenível,opensamento envolvedar razõespara aquiloquepensamos.Nessenível, aquiloquepensamospodenãoserapenasverdadeirooufalso,podesertambémlógicoouilógico.

Aristóteleseraumgrandelógico.Elefundouaciênciadalógica.Escreveuoprimeiro livro sobre o assunto, um livro que foi considerado referência pormuitosséculosequeaindaexerceconsiderávelinfluência.Nopróximocapítulo,consideraremosalgumasdesuasregrasbásicasparaconduziropensamentodemaneiralógica.

Aindaqueopensamento lógico sejamelhordoqueo ilógico,nemsempreele chega a conclusões verdadeiras. Aristóteles observou que para a mente épossívelmanteropiniõesquesãoverdadeirassemterchegadoaelasdemaneiralógicaeque tambémépossívelqueopensamento lógicochegueaconclusõesfalsas.Porisso,apósdaralgumaatençãoàquiloquefazcomqueopensamentoseja lógico ou ilógico, teremos de considerar o que torna o pensamentoverdadeirooufalso.

Page 109: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

17.OSTERMOSPECULIARESDALÓGICA

AssimcomoonomedeNewtonestáassociadoàleidagravidade,onomedeAristótelesestáassociadoàleidacontradição.AssimcomoonomedeEinsteinestáparaateoriadarelatividade,odeAristótelesestáparaateoriadosilogismo.Duaspalavrasestãonocoraçãodaleidacontradição:“é"e"nãoé".Doisparesdepalavrassãocentraisparaateoriadosilogismo-aexplicaçãodeAristótelesparaoraciocíniocorretoouincorreto.Elessão"se"e"então","jáque"e"logo".

Comoregradepensamento,aleidacontradiçãonosdizprimariamenteoquenãopensar.Trata-sedeumaleicontraacontradição,umaleiquenosordenaaevitarcontradizer-nos,sejaemnossaspalavras,sejaemnossopensamento.Elanosdizquenãodevemosresponderaumaquestãodizendosimultaneamentesime não. Dito de outro modo, ela nos diz que não devemos afirmar e negar amesma proposição. Se digo ou penso que Platão foi professor de Aristóteles,devoevitardizeroupensarquePlatãonãofoiprofessordeAristóteles.Dizeroupensarissoserianegaralgoqueafirmei.

Vocêpodeseperguntarporqueessaregradepensamentoétãobásicaetãosólida.ArespostadeAristóteleséquealeidacontradiçãonãoésóumaregradepensamento, mas também uma asserção sobre o próprio mundo — sobre asrealidadesnasquaistentamospensar.

A lei da contradição, como asserção sobre a realidade, diz algo que éimediatamenteóbvioaobomsenso.Umacoisa—qualquerqueseja—nãopodeexistirenãoexistirsimultaneamente.Ouelaexiste,ounãoexiste,masnãonomesmomomento.Uma coisa não pode ter um atributo e não o ter aomesmotempo. A maçã na minha mão, para a qual estou olhando, não pode, nesseinstante,teracorvermelhaenãoteracorvermelha.

IssoétãoincrivelmenteóbvioqueAristótelesdizquealeidacontradiçãoéautoevidente.Paraele,suaautoevidênciaindicaqueelaéinegável.Éimpossívelpensarqueamaçãésimultaneamentevermelhaenãovermelha,assimcomoéimpossível pensar que uma parte é maior do que o todo a que pertence. Eimpossível pensar que uma bola de tênis que você tenha jogado por cima dacerca pode ser encontrada na grama do outro lado e que ela não pode serencontradaaliporquedeixoudeexistir.

Aleidacontradiçãocomoafirmaçãosobrearealidadeemsisubjazàleidacontradição como regra de pensamento. A lei da contradição como asserçãosobre a realidade descreve o modo como as coisas são. A lei da contradiçãocomoregradepensamentoprescreveomodocomodevemospensara respeito

Page 110: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

das coisas se queremos que nosso pensamento a respeito delas esteja emconformidadecomomodocomoascoisassão.

Quando duas asserções são contraditórias, as duas não podem serverdadeiras,tampoucoasduaspodemserfalsas.Umatemdeserverdadeiraeaoutrafalsa.OuPlatãofoiprofessordeAristótelesounãofoi.Todososcisnessãobrancos,oualgunsnãosão.Porém,seemvezdedizerquealgunscisnesnãosãobrancos, o que contradiz a asserção de que todos os cisnes são brancos, eudissessequenenhumcisneébranco,oresultadonãoteriasidoumacontradição.As pessoas que não conhecem a distinção arístotélica entre asserçõescontraditóriaseasserçõescontráriaspodemficarsurpresascomisso.

E possível que essas duas asserções - "todos os cisnes são brancos" e"nenhum cisne é branco" — sejam falsas, ainda que ambas não possam serverdadeiras. Alguns cisnes podem ser brancos e outros pretos, e nesse caso éfalsodizerquetodososcisnessãobrancosouquenenhumoé.Aristótelesdizque um par de asserções é contrário, não contraditório, quando ambos nãopodemserverdadeiro,masambospodemserfalsos.

Seráqueháumpardeasserçõesquepossamserambasverdadeiras,masquenãopossamserambasfalsas?Sim,deacordocomAristóteles.Aasserçãodequealguns cisnes são brancos e a asserção de que alguns cisnes não são brancospodem ser ambas verdadeiras, mas ambas não podem ser falsas. Os cisnespodem ser brancos ou não brancos, e, assim, se apenas alguns são brancos,alguns não devem ser brancos. Aristóteles chama esse par de asserções desubcontrário.

Suponha,porém,queemvezdedizerquealgunscisnessãobrancosequealgunscisnessãonãobrancos,eutivesseditoque"algunscisnessãobrancos"eque"algunscisnessãopretos".Seráqueessepardeasserçõesseriasubcontrário,que seria impossível que ambos fossem falsos? Não, porque alguns cisnespodem ser cinza, ou verdes, ou amarelos, ou azuis. Branco e preto não sãoalternativasexclusivas.Nãoéverdadequetodoobjetovisíveldeveserbrancooupreto.

Sendoassim,proporque"todososcisnessãopretos"éocontráriode"todososcisnessãobrancos"nãovaifuncionar,porquepodeserquenenhumdelessejaverdadeiro,equeambossejamfalsos.Paradizerocontráriode"todososcisnessãobrancos"éprecisodizer"nenhumcisneébranco",não"todososcisnessãopretos".

Diferentemente de "preto" e "branco", alguns pares de termos, que sãotermos contrários, esgotam as alternativas. Por exemplo, todos os númerosinteirossãoparesouímpares.Nãoháumaterceirapossibilidade.Aousartermosquesãoalternativasexcludentes,épossívelformularumacontradiçãosemusar

Page 111: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

"é" e "não é". A asserção de que todo número inteiro é um número ímpar écontraditapelaasserçãodequetalnúmeroéumnúmeropar,porque,seéímpar,nãoépar,eseépar,nãoéímpar,tendodeserumououtro.

NãomeépossívelexageraraimportânciadasregrasdeAristótelesarespeitodas asserções que sãomutuamente incompatíveis de umdesses trêsmodos—porcontradizeremumaàoutra,porseremcontráriasumaàoutra,ouporseremsub- contrárias uma à outra. A importância é que observar essas regras nãoapenasnosajudaaevitar fazerasserções incoerentescomotambémaperceberincoerências nas asserções feitas por outras pessoas e a questionar aquilo quedizem.

Quando uma pessoa com quem estamos conversando se contradiz ou fazasserções contrárias, temos todo o direito de interrompê-la e dizer: "Você nãopode fazer essasduas asserções.Nãoépossívelqueambas sejamverdadeiras.Qualdelasvocêrealmentequerdizer?Qualdelasvocêconsideraverdadeira?".

E particularmente importante observar que as asserções gerais — asasserçõesque contêmapalavra "todos" - podem ser contraditas por umúnicoexemplonegativo.Paracontradizerageneralizaçãodeque todososcisnessãobrancos,bastaapontarumúnicocisnequenãosejabranco.Esseúnicoexemplonegativofalseiaageneralização.

Edessemodoquesetestamasgeneralizaçõescientíficas.Suapretensãodeser verdadeiras pode sermantida enquanto não há exemplos negativos que asfalsifiquem. Como a busca por exemplos negativos não tem fim, umageneralização científica nunca pode ser considerada final ou completamenteverificada.

Os seres humanos são dados a generalizar, especialmente quando pensamsobreoutrossereshumanosquesãodiferentesdelesemtermosdesexo,deraçaoudereligião.Sesãohomens,sedãoodireitodedizer—sempensar,espera-se—quetodasasmulheressãoassimouassado.Sesãobrancos,sedãoodireitodedizer que todososnegros são issoou aquilo.Se sãoprotestantes, se dãoodireitodedizerquetodososcatólicossãotalouqual.Emtodosessescasos,umexemplonegativobastaparainvalidarageneralização,-e,quantomaisexemplosnegativoshouver,maisfácilserámostrarquãoinapropriadaéageneralização.

O uso de termos contrários, como "preto" e "branco" ou "par" e "ímpar",coloca em cena outro conjunto de palavras que controla nosso pensamento deacordocomcertasregras-"ou"e"nãosimultaneamente".Porexemplo,quandojogamosumamoedaparadecidiralgo,sabemosque,quandoelacair,serácaraoucoroa,nãoasduascoisassimultaneamente.Essaéumadisjunçãoforte.Há,porém,disjunçõesfracas,emquealgopodeserissoouaquilo,etalvezasduascoisas, mas não sob o mesmo aspecto nem ao mesmo tempo. Dizer que os

Page 112: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

tomates sãovermelhosouverdesnospermitedizerqueomesmo tomatepodesertantovermelhoquantoverde,masemmomentosdistintos.

As disjunções, e especialmente as disjunções fortes, nos permitem fazerinferências simples ediretas.Se sabemosqueumnúmero inteironãoé ímpar,podemos inferir imediatamente que ele deve ser par. De modo análogo, sesabemos que um número inteiro não é primo, podemos inferir imediatamentequeeledeveserdivisívelporoutrosnúmerosalémdelemesmoedeum.Quandovemosqueamoedalançadacaiucomacaraparacima,sabemosimediatamentequenós,queapostamosemcoroa,perdemos.Nãoprecisamosviraramoedaparatercertezadisso.

Aristóteleschamaas inferênciasdesse tipode inferências imediatasporquese vai imediatamente da veracidade ou da falsidade de uma asserção àveracidadeouàfalsidadedeoutra.Nãohápassosderaciocínio.Seésabidoquetodos os cisnes são brancos, sabe-se imediatamente que alguns cisnes sãobrancos;e,alémdisso,sabe-sequeaomenosalgunsobjetosbrancossãocisnes.

Épossívelequivocar-senessesimplesprocessodeinferência,eissoacontececom frequência. Por exemplo, a partir do fato de que todos os cisnes sãobrancos, é correto inferir que alguns objetos brancos são cisnes,mas émuitoincorretoinferirquetodososobjetosbrancossãocisnes.

Aristóteleschamaessainferênciaincorretadeconversãoilícita.Aclassedosobjetosbrancosémaiordoqueaclassedoscisnes.Oscisnessãoapenasalgunsdosobjetosbrancosdomundo.Cometeroerrodepensarque,porquetodososcisnes são brancos, também podemos dizer que todos os objetos brancos sãocisnes,étratarasduasclassescomosefossemcoextensivas,enãoosão.

Há dois pares de palavras que funcionam como operadores na inferênciaimediataetambémnoprocessomaiscomplexodoraciocínio.São"se"e"então",e"jáque"e"logo".Paraexpressaracorreçãológicadeumainferênciaimediata(ainferênciadequealgunscisnessãobrancos,apartirdofatodequetodososcisnes sãobrancos), dizemos:"Se todos os cisnes são brancos, então segue-senecessariamentequealgunscisnessãobrancos".Paraexpressaraincorreçãodeumaconversão ilícita,dizemos:"Se todosos cisnes sãobrancos,entãonão seseguequetodososobjetosbrancossãocisnes".

Essesdoistiposdeasserções"se-então"sãoasserçõesdeinferênciascorretase incorretas logicamente.Oqueé importanteobservaraquiéqueaveracidadedessas asserções "se-então" sobre inferências corretas e incorretas logicamentenãodependede jeitonenhumdaveracidadedas asserções conectadaspor se eentão.

Aasserçãodequetodososcisnessãobrancospodeserefetivamentefalsa,e

Page 113: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ainda seria logicamente correto inferir que alguns cisnes sãobrancos se -massomente se - todos o forem. Mesmo que a asserção de que todos os objetosbrancos são cisnes fosse verdadeira, e não falsa, ainda seria logicamenteincorretoinferirquetodososobjetosbrancossãocisnesapartirdofatodequealgunscisnessãobrancos.

Já dissemos o bastante sobre o uso de "se" e de "então" — essa últimaacompanhadapelaspalavras"segue-senecessariamente"ou"não se segue"—para expressar nosso reconhecimento de inferências corretas e incorretas. Equantoa"jáque"e"logo"?Quandocolocamos"jáque"e"logo"nolugarde"se"e "então", estamos efetivamente fazendo a inferência que não fizemos quandofalamosapenas"se"e"então".

Paraficarnomesmoexemplo,nãofizdefatonenhumainferênciasobreoscisnesousobreosobjetosbrancosem todasasasserções"se-então"a respeitodeles.Nãofaçoefetivamenteumainferênciaatédizer:"Jáque todososcisnessãobrancos, logo segue-seque alguns cisnes sãobrancos".Minha asserçãodeque todos os cisnes são brancos me permite afirmar que alguns cisnes sãobrancos.

Somentequandofaçoafirmaçõesdessetipo,ligadaspor"jáque"e"logo",averacidade ou a falsidade daminha primeira asserção afeta a veracidade ou afalsidade da segunda. Minha inferência pode ser logicamente correta, mas aconclusãodaminhainferênciaefetivapodeserefetivamentefalsaporqueminhaasserção inicial, introduzida pela palavra "já que", é de fato falsa. A verdadepodeserquenenhumcisneébranco,eporissoerafalsoconcluirquealgunsosão,aindaquefosselogicamentecorretofazerisso.

Quandodigo"setodososcisnessãobrancos",estouapenasdizendosetodossão,nãoquetodossão.Masquandodigo"jáquetodososcisnessãobrancos...",estoudizendoquetodossão.Seeuestivercertoaofazeressaasserção,tambémestareicertoaodizerquealgunscisnessãobrancos.

AquiloqueacaboudeserditosobreasregrasdeAristótelesparaainferênciaimediatameajudaaresumirbrevementeasregrasderaciocínioqueconstituemsuateoriadosilogismo.Eisummodelodesilogismo:

Premissamaior:Todososanimaissãomortais.Premissamenor-.Todososhomenssãoanimais.Conclusão:Todososhomenssãomortais.

Consideremos dois exemplos mais de raciocínios silogísticos — de uma

premissa maior e outra menor a uma conclusão. Primeiro, um no qual o

Page 114: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

raciocínio é logicamente válido, mas em que a conclusão é falsa porque apremissamenoréfalsa.

Premissamaior:Osanjosnãosãomachosnemfêmeas.Premissamenor:Algunshomenssãoanjos.Conclusão:Algunshomensnãosãomachosnemfêmeas.

E outro no qual uma conclusão verdadeira se segue logicamente de duas

premissasverdadeiras.

Premissamaior:.Osmamíferosnãobotamovos.Premissamenor:Ossereshumanossãomamíferos.Conclusão:Ossereshumanosnãobotamovos.

Considerando esses três raciocínios diferentes, podemos observar

imediatamente que o raciocínio silogístico é mais complicado do que ainferência imediata.Na inferência imediata, podemospassar imediatamentedeuma asserção isolada a outra asserção isolada, e as duas asserções terão osmesmostermos.Noraciocíniosilogístico,vamosdeduasasserções,nasquaishátrêstermosdiferentes,aumaconclusãoemqueaparecemdoisdessestermos.

No primeiro exemplo, os três termos na premissamaior e namenor eram"animais","homens"e"mortais".Eosdoistermosnaconclusãoeram"homens"(um termo da premissa menor) e "mortal" (um termo da premissa maior).Acontecesempreassimnoraciocíniosilogístico,eacontecesempredeoterceirotermo,queocorrenasduaspremissas("animais")desaparecernaconclusão.

Aristóteleschamaessetermocomumàspremissasmaioremenordetermomédio.Eledesaparecenaconclusãoporquecumpriusuafunçãonoprocessoderaciocínio.Essafunçãoéconectarosoutrosdois termosumaooutro.Otermomédiolhesservedeintermediário.ÉporissoqueAristótelesdizqueoraciocíniosilogístico é mediado, ao contrário da inferência imediata. Na inferênciaimediata,nãohátermomédioporquenãohánecessidadedeintermediação.

Não vou me dar ao trabalho de explicar como isso funciona nos trêsexemplos de raciocínio silogístico que acabo de dar. Você pode fazer issosozinho. As únicas regras adicionais que você precisa levar em conta são asseguintes.Primeira,queseapremissamaiorouapremissamenorfornegativa(seelascontiveremalgumaformade"nãoé"emvezde"é",oude"nenhum"emvezde"todos"),entãoaconclusãotambémtemdesernegativa.Nãoépossíveltirarumaconclusãoafirmativaseumadaspremissasénegativa.

Page 115: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Asegundaregraéqueotermomédiotemdefuncionarcomoconectivo.Eisumexemplonoqualotermomédionãofazisso:

Premissamaior:Nenhumhomemépornaturezabestadecarga.Premissamenor:Nenhumamulaépornaturezahomem.Conclusão:Nenhumamulaépornaturezabestadecarga.

Não apenas a conclusão é de fato falsa, como é também logicamente

incorreta.Umaconclusãoafirmativa temdevirdeduaspremissasafirmativas,mas não é possível tirar validamente conclusão nenhuma de duas premissasnegativas.Arazãoéqueanegativanapremissamaiorexcluitodososhomensdaclassedecoisasquesãopornaturezabestasdecarga,-eanegativanapremissamenorexcluitodasasmulasdaclassedoshomens.Porisso,nãopodemosinferircorretamentenadaarespeitodarelaçãoentreaclassedasmulaseaclassedascoisasquesãopornaturezabestasdecarga.

Éinteressanteobservarnoexemploqueacabodedarqueaspremissasmaioremenorsãoambasverdadeiras,masaconclusãoquenãoseseguelogicamentedelaséfalsa.Éperfeitamentepossívelqueasduaspremissassejamdefatofalsasequedelassesigalogicamenteumaconclusãofalsa.Porexemplo:

Premissamaior:Nenhumpaitemfilhas.Premissamenor:Todososhomenscasadossãopais.Conclusão:Nenhumhomemcasadotemfilhas.

Oquetodosessesexemplos(emuitosoutrosquepoderíamosconsiderar)nos

mostram é algo que já foi observado e que, talvez, valha a pena repetir. Oraciocínio pode ser lógico independentemente de as premissas e a conclusãoseremdefatoverdadeirasoufalsas.Somenteseasduaspremissasforemdefatoverdadeiraséqueaconclusãoqueseseguelogicamentedelasétambémdefatoverdadeira.

Se qualquer uma das premissas é falsa, então a conclusão que se seguelogicamente delas pode ser verdadeira ou falsa. Não temos como dizer o queserá.Porsuavez,seaconclusãoqueseseguelogicamentedecertaspremissasédefatofalsa,entãopodemosinferirqueumaouambasaspremissasdaqualelasaiutemdeserfalsatambém.

Isso nos leva a mais uma importante regra de raciocínio mostrada porAristóteles. No raciocínio silogístico, assim como na inferência imediata, avalidade da inferência é expressada por um "se" e um "então". No caso do

Page 116: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

raciocíniosilogístico,estamosdizendoqueseasduaspremissassãoverdadeiras,entãoaconclusãoqueseseguelogicamentedelas tambéméverdadeira.Aindanão afirmamos a veracidade das premissas. Afirmamos apenas a validade dainferênciadaspremissasàconclusão.Somentequandoafirmamosaveracidadedaspremissas trocando "se"por "jáque"podemos trocar "então"por "logo" eafirmaraveracidadedaconclusão.

Aregraquediscutimosaquitemduaspartes.Deumlado,eladizquetemosodireito de afirmar a veracidade da conclusão se afirmamos a veracidade daspremissas.Deoutrolado,eladizquetemosodireitodequestionaraveracidadedas premissas se negarmos a veracidade da conclusão. Digo "questionar averacidadedaspremissas"porque,aonegaraveracidadedaconclusão,sabemosapenasqueumadaspremissasouqueambassãofalsas,masnãosabemosqualéocaso.

Aregra"dedoisgumes"queacabamosdeenunciaraplica-separticularmentebem a um tipo de raciocínio que Aristóteles chamou de hipotético. Elenormalmenteenvolvequatrotermos,nãotrês.

EmOFederalista,AlexanderHamiltondisse:"Seoshomensfossemanjos,nenhumgoverno serianecessário".Se, aodizer isso,Hamiltonnegassequeoshomens são anjos, não se seguiria conclusão nenhuma.Negar a asserção "se"(quenoraciocíniohipotéticoéchamadadeantecedente)nãolhedáodireitodenegaraafirmação"então"(queéchamadadeconsequente).

Hamilton,todavia,obviamenteachavaqueogovernoéinquestionavelmentenecessárioparauma sociedadede sereshumanos.Logo, elenão teriahesitadoemnegarqueoshomenssãoanjos.Eleestariacertoemfazê-loporquenegaraconsequente(aasserçãoentão)noraciocíniohipotéticolhedáodireitodenegaraantecedente(ouaasserçãose).

A verdade sugerida por Hamilton também pode ser expressada por umaúnicaasserçãocomplexaquemaisescondedoquerevelaoraciocínioportrásdesi. Ei-la: "Porque os homens não são anjos, o governo é necessário para asociedadehumana".Oraciocínioquenãoestáexpressadoenvolveumasériedeasserções a respeito da diferença entre os homens e os anjos que tornam ogovernonecessárioparaasociedadehumana.Essetipodeargumentocompacto,queomiteouqueescondepremissasindispensáveis,échamadoporAristótelesdeentimema.

Page 117: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

18.DIZERAVERDADEEPENSÁ-LA

Apalavra"verdade"foiusadainúmerasvezesnosdoiscapítulosanteriores.Comoessesdoiscapítulostratamdamaneiracomoamentefuncionaedepensare saber, é bastante natural que a referência à verdade e à falsidade tenha sidofrequente.Quandosabemosalgo,aquiloquesabemoséaverdadeaseurespeito.Quandotemosdepensardemaneiracorretaeadequada,nossoesforçoalmejaaverdade.

Eu achei que era possível usar as palavras "verdade" e "falsidade" (ou"verdadeiro" e "falso") sem explicar o que elas significam porque todosentendemoquesignificam.Sãoideiascomuns,usadascomumente.Aquestão"oqueéaverdade?"nãoédifícilderesponder.Umavezquevocêentendeoqueéa verdade, a questão difícil, como veremos, é: como podemos dizer se umaasserçãoparticularéverdadeiraoufalsa?

A razão de eu dizer que todos, por uma questão de senso comum,compreendem o que são verdade e falsidade é que todos sabem como contarmentiras. Todos contamos mentiras em algum momento, e todoscompreendemosadiferençaentrecontarumamentiraecontaraverdade.

Suponhamos que eu ache que um dado restaurante fecha aos domingos.Numamanhãde domingo, vocêmepergunta se aquele restaurante está abertoparaojantarnaquelanoite.Eudigoquesim.Porora,nãonospreocupemoscoma razão por que eu menti para você. Minha mentira consistiu em dizerexatamenteoopostodoquepenso.Eudissequeumcertorestauranteestáabertoparaojantaraomesmotempoemqueachoquenãoestá.

Dizer"está"quandovocêacha"nãoestá"-oudizer"nãoestá"quandovocêacha "está" - é contar uma mentira. Dizer a verdade é o exato oposto disso.Consiste em dizer "está" quando você pensa "está", e "não está" quando vocêpensa"nãoestá".

UmfilósofoamericanoquefoiprofessordeHarvardnoiníciodoséculoXXobservouespirituosamentequementirosoéaquelequedeliberadamente tiradolugarseuspredicadosontológicos."Está"e"nãoestá"sãooqueelereferiuporpredicados ontológicos. Em outras palavras, mentiroso é aquele queintencionalmentecoloca"está"nolugarde"nãoestá",ou"nãoestá"nolugarde"está".Dizeraverdade,então,éfazeraquiloquesedizestardeacordoouemconformidadecomaquiloquesepensa.Mentirénãodizeroquesepensa,masoexatoopostodisso.

Comodissehápouco,todomundoentendeisso.Tudooquefizfoiexplicar,

Page 118: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

damaneiramaisexplícitapossível,aquiloquetodomundoentende.Fizissoparaprepararoterrenoparaarespostasimples,claraebaseadanosensocomumqueAristótelesdaráparaaquestãoarespeitodaquiloquetornaonossopensamentoverdadeirooufalso.

A respostadele éque, assimcomodizer averdadeaoutrapessoaconsistenuma concordância entre aquilo que se diz e aquilo que se pensa, pensarverdadeiramente consiste num acordo entre aquilo que se pensa e aquilo arespeito de quê se pensa. Por exemplo, se me perguntarem se CristóvãoColomboera espanholou italiano,pensarei verdadeiramente sepensarque eleeraitaliano,efalsamentesepensarqueelenãoeraitaliano.

Esse único exemplo basta para compreender a explicação deAristóteles arespeito daquilo que torna o nosso pensamento verdadeiro ou falso. Pensamosverdadeiramente(outemosaverdadeemnossamente)sepensarmosqueaquiloque é, é; ou que aquilo que não é, não é. Pensamos falsamente (ou temosfalsidadeemnossamente)sepensarmosqueaquiloqueé,nãoé;ouqueaquiloquenãoé,é.

No caso de dizer a verdade a outra pessoa, o acordo é entre aquilo quedizemos em palavras a outra pessoa e aquilo que efetivamente pensamos. Nocasodepensaraverdade,oacordoéentreaquiloquepensamoseosfatostaiscomosão.Averdadeconsistenumacorrespondênciaentreamenteearealidade.

Expressamosamaioriadenossospensamentoscompalavras,quer falemosconoscomesmosoucomoutrapessoa,querescrevamosnossospensamentosdealgum modo. Nem todos os pensamentos que expressamos oralmente são ouverdadeirosou falsos.Aristótelesobservaque asquestõesnão sãoverdadeirasnem falsas, nemos pedidos que fazemos a outras pessoas, nemas ordens quedamos.Somenteassentençasdeclarativas—assentençasquecontêmdealgumaformaaspalavras“é"ou"nãoé",ouquepodemserreformuladasparacontê-las—sãoverdadeirasoufalsas.

Isso não deveria surpreender, considerando que Aristóteles entende queaquiloquetornaumaasserçãoverdadeiraestáemsuaconcordânciacomosfatosem questão. As sentenças declarativas são as únicas sentenças que tentamdescreverosfatos-omodocomoascoisassão.Somenteessasasserçõespodemtersucessonissoounão.Setêmsucesso,sãoverdadeiras,senãotêm,sãofalsas.

Pareceria,então,queasasserçõesquesãoprescritivasenãodescritivasnãopodemserverdadeirasou falsas.Umaasserçãoprescritivaéumaasserçãoqueprescrevealgoquevocêoueudevemosfazer.Comopodeumaasserçãoquedizque devo dedicar mais tempo à leitura e menos às brincadeiras pode serverdadeira ou falsa se a veracidade ou a falsidade da asserção de nossos

Page 119: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

pensamentosconsistenumacordoentreaquiloqueafirmamosounegamoseomodocomoascoisassãoounãosão?

É muito importante conseguir responder essa pergunta. Se não houvesserespostaparaela,asasserçõessobreosobjetivosquedevemosalmejarnavida,esobreosmeiosquedevemosempregarparaalcançá-los,nãoseriamverdadeirasnemfalsas.

TudooqueaprendemoscomAristótelessobreabuscadafelicidade(naParteIII deste livro) poderia ser ainda interessante como expressão das opiniões deAristóteles sobre esses assuntos.Mas ele nãopoderia afirmar, nemeupoderiafazê-lo,queháverdadeemsuasrecomendaçõesarespeitodaquiloquedevemosfazerparaobteravidaboahumanaquetemosaobrigaçãomoraldetentarobter.

Aristóteles obviamente pensava que seu ensinamento sobre a vida e sobrecomoobtê-laeraverdadeiro.Logo,eledevetertidoumarespostaparaaquestãoa respeito da veracidade das asserções que contêm as palavras "deve" e "nãodeve".Eletinha.Eledissequeassimcomoumaasserçãodescritivaéverdadeiraseestádeacordoouemconformidadecomarealidade,umaasserçãoprescritivaéverdadeiraseestádeacordoouemconformidadecomodesejocerto.

Oqueédesejocerto?Issoconsisteemdesejaraquiloquesedevedesejar.Oquesedevedesejar?Aquiloquesejarealmentebomparaumserhumano.Oqueé realmente bom para um ser humano?Aquilo que satisfaça uma necessidadehumana.

A asserção de que uma pessoa deve desejar aquilo que seja bom para siprópriaéumaverdadeautoevidente.E igualmenteautoevidentequeaasserçãodequeaparteémenordoqueotodofinitoaquepertenceéverdadeirademodoautoevidente.Assimcomoéimpossívelparanóspensaremumapartequesejamaior do que o todo a que pertence, ou em um todo que seja menor do quequalquer uma de suas partes, é impossível para nós pensar que não devemosdesejaraquiloqueérealmentebomparanós,ouquedevemosdesejaraquiloqueérealmenteruimparanós.

Entrenossasnecessidadeshumanasestáanecessidadedeconhecimento.Apossedoconhecimentoérealmenteboaparaossereshumanos.Comoodesejocerto consiste em desejar aquilo que devemos desejar, a asserção de quedevemosdesejaroconhecimentoestáemconformidadecomodesejocerto.Porconformar-seaodesejocerto, elaéverdadeira, segundoa teoriadeAristótelesdaquiloquetornaumaasserçãoprescritivaverdadeira.

Acabamosdedaropassomaisfácilpararesponderaquestãodecomodizerse uma asserção é verdadeira ou falsa.Uma asserção como "um todo finito émaior do que suas partes" revela sua verdade já à superfície. Assim que

Page 120: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

entendemosostermosquecompõemaasserção-"todo","parte"e"maiorque"—,imediatamentevemosqueaasserçãoéverdadeira.Éimpossívelentenderoque é um todo, o que é uma parte, e a relação de maior que, semsimultaneamenteentenderqueumtodoémaiordoquetodasassuaspartes.

Nãohámuitasasserçõesquepossamos fazerque sejamautoevidentementeverdadeirasdessejeito.Aasserçãodequeaquiloqueérealmentebomdeveserdesejadoéumadelas.Massuaverdadenãoétãomanifestaquantoaverdadearespeitodostodosedaspartesporqueémaisfácilparanósentenderostodoseaspartesdoqueentenderadistinçãoentrebensreaiseaparenteseadistinçãoentreoquedeveserdesejadoeoqueédefatodesejado.

As vezes dizemos que asserções que não são autoevidentes são autoevi-dentes. Ao fazê-lo, normalmente queremos sugerir que ela são verdades deaceitaçãogeral—aceitáveissemmaioresdiscussões.Foi issoquefezThomasJeffersonquandoescreveu,naDeclaraçãodeIndependência,que"consideramosestas verdades autoevidentes: todosos homens são criados iguais, sãodotadosporseuCriadordecertosdireitosinalienáveis",edaípordiante.EssasasserçõespodemtersidoaceitascomoverdadeiraspelossignatáriosdaDeclaraçãoeporoutras pessoas, mas teria sido necessário um raciocínio bastante extenso paraestabelecersuaveracidade.

Aquiloqueacabodedizerindicaoutramaneiraparadizerseumaasserçãoéverdadeiraoufalsa.Senãoéverdadeirademodoautoevidente,suaveracidadepode ser estabelecidapormeiodadiscussãooudo raciocínio.De acordo comAristóteles,averacidadedecertasasserçõespodeserdemonstradadessemodo.Sãonecessáriasduascondiçõesparademonstrarouparaprovaraveracidadedeumaasserção.Umaéaveracidadedaspremissasusadasnoraciocínio.Aoutraéacorreçãoouavalidadedopróprioraciocínio.

Consideremosaasserção"osEstadosUnidossãomaioresdoqueoestadodeNova York". São necessárias duas premissas para estabelecer sua veracidade.Umadelasé"otodoémaiordoquetodasassuaspartes".Aoutraé"osEstadosUnidossãoumtodo,doqualoestadodeNovaYorkéumaparte".Aessasduasasserções,segue-sequeosEstadosUnidossãomaioresdoqueoestadodeNovaYork.Sendoaspremissasverdadeiras,aconclusãoqueseseguedelastambéméverdadeira.

Assim como poucas asserções podem ser enxergadas por nós comoverdadeiras demodo autoevidente, também poucas podem ser enxergadas pornóscomoverdadeirasporseremresultadodeumraciocínioválidoapartirdepremissasverdadeiras.Averacidadedamaioriadasasserçõesqueexpressamaquilo que pensamos não é determinada assim tão facilmente.Namaioria doscasos, permanecemos em dúvida quanto à veracidade ou à falsidade de uma

Page 121: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

asserção. Quando conseguimos resolver nossas dúvidas, isso acontece porqueapelamosàsevidênciasproporcionadaspelaexperiênciadenossossentidos.

Por exemplo, se temos dúvidas se um certo prédio tem doze ou quinzeandares,amaneiraderesolveressadúvidaéolharoprédioecontarosandares.Umasóobservação, relativamentesimples,vainosdizerseaasserçãosobreaalturadoprédioéverdadeiraoufalsa.

O apelo à observação é o modo de determinar a veracidade de asserçõessobrecoisasquepodemserpercebidaspelossentidos.Vocêpodeseperguntarsepodemos confiar em nossos sentidos. Nem sempre, mas o modo de conferirnossa própria observação é confirmá-la ou corroborá-la com a observação deoutraspessoas.

Por exemplo, como resultado de minha própria observação, posso fazer aasserção de que o carro que bateu nomuro estava indomuito rápido. Outrastestemunhasdomesmoeventopodemserconvocadasparachegarmosàverdadeda questão. Se todas elas relatarem a mesma observação, provavelmente éverdade que o carro estivesse indo muito rápido quando bateu. Quanto maistestemunhasconcordaremnesseponto,maisprováveleleé.

Uma asserção que seja apenas provavelmente verdadeira tem a mesmaveracidade que uma asserção que consideramos certamente verdadeira. Ou ocarro estava indo muito rápido ou não estava. Uma asserção sobre suavelocidadeéverdadeiraouéfalsa.Quandodizemosqueumaasserçãoéapenasprovavelmente verdadeira, não estamos estimando seu grau de veracidade.Estamos estimando nosso próprio grau de segurança para reclamar-lheveracidade.

Osgrausdeprobabilidadenãosãomedidasdaverdadedeumaasserção,masapenasmedidasda segurança comquepodemosdeterminar suaverdade.Umaverdadequeafirmemoscomcerteza,comoaverdadesobreostodoseaspartes,nãoémaisverdadeiradoqueumaverdadequeconsideramosapenasprovável,comoaverdadearespeitodocarroquebateu.

Algumastestemunhasestãoqualificadasparafazerobservaçõesqueajudamadeterminaraverdadedasasserções,-outras,não.Porexemplo,comoresultadodaminhaprópriaobservação,possodizerqueoanelnoseudedoédeouro.Elepode,éclaro,parecerdeouroeserapenas revestidodeouro.Edifícil, senãoimpossível,saberadiferençaapenasaolhonu.Nemumjoalheiroexperientelhedariaumaopiniãosobre issoapenasolhandoousegurandooanel.O joalheirosabequehámodosdedeterminaraverdadeiranaturezadosobjetosqueparecemser feitos de ouro. Ao submeter seu anel ao teste apropriado e observar oresultado, o joalheiro, por ser uma testemunha especializada, pode dizer seminhaasserçãooriginalsobreoaneléverdadeiraoufalsa.

Page 122: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Até agora consideramos asserções sobre objetos particulares— asserçõessobreaalturadeumprédio,sobreavelocidadedeumcarro,sobreometaldeumanel. A veracidade dessas asserções pode ser conferida pela observação. Àsvezes, como resultado da observação, seja a nossa própria ou a de outros,podemos ter relativa certeza da veracidade da asserção considerada, outrasvezes,ficamossemtê-la.

Raramenteaobservaçãonosdáa certezaque temos sobreaveracidadedeasserçõesquesãoverdadeirasdemodoautoevidenteoucujaveracidadepodeserestabelecida por raciocínios válidos. Digo "raramente" e não "nunca" porque,segundoAristóteles, algumas asserções simples sobre objetos observáveis sãotão evidentemente verdadeiras quanto algumas asserções gerais sãoautoevidentementeverdadeiras.Paramim,éimediatamenteevidentequeháumafolhadepapelnaminhamáquinadeescrevernomomentoemqueescrevoestafrase.Nãoprecisodaconfirmaçãodeoutras testemunhasparameassegurardaveracidadedeminhaasserçãosobreessefatoobservável.Tenhotantacertezadesuaveracidadecomotenhodaveracidadedaasserçãosobreostodoseaspartes.

Ficamos com uma grande classe de asserções que chamamos degeneralizações baseadas na experiência, asserções como "todos os cisnes sãobrancos"e"todososesquimóssãobaixos".Comoéimpossívelparanósouparaqualquer pessoa observar a cor de todos os cisnes, ou a altura de todos osesquimós, a observação por si não tem como estabelecer a veracidade dessasgeneralizações.

Uma certa quantidade de observações pode nos convencer de que asgeneralizações são provavelmente verdadeiras. Quanto maior o número deobservações,maispodemos ficar convencidos.Oaumentodonúmero sópodeaumentar a probabilidade. Ele nunca pode levar a uma certeza de que asgeneralizaçõessãoverdadeiras.

Podemos, todavia, ter certeza de que umageneralização é falsa, ainda quenunca possamos ter certeza de que ela é verdadeira. No capítulo anterior,observeiquea asserção "todosos cisnes sãopretos"oumesmo"algunscisnessão pretos" contradizem a asserção "todos os cisnes são brancos". Duasasserções contraditórias não podem ser ambas verdadeiras. A veracidade deminhaobservaçãodequeumcisneépretofalseiaageneralizaçãodequetodosos cisnes são brancos.A luz daquela única observação, sei com certeza que ageneralizaçãoéfalsa.

ArespostadeAristótelesàquestãodecomosomoscapazesdedizerseumaasserçãoéverdadeiraoufalsapodeserresumidadizendoquesomoscapazesdefazê-loapelandodeumladoàexperiênciaedeoutroàrazão.Apercepçãodossentidosnosproporcionaumamaneirade conferir a veracidadeou a falsidade

Page 123: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

das afirmações em questão. Além disso, Aristóteles recomenda que sempreconsideremos as opiniões dos outros antes de nos decidir - as opiniões damaioriadoshomens,oudospoucosespecialistas,oudossábios.

Page 124: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

19.ALÉMDEDÚVIDARAZOÁVEL

Emnossostribunais,existemdoiscritériosparaqueumjúridêumveredito.Nasquestõesdefatosubmetidasaojúripelotribunal,ojúriàsvezeséobrigadoadarumarespostaqueconsiderealémdedúvidarazoável;eàsvezesbastaqueojúriconsiderequesuarespostasebaseianumapreponderânciadeprovas.

Aristótelesfezumadistinçãosimilarentreasduasmaneirascomopodemosresponderquestõesde todosos tipos.Assimcomoa respostado júri, queestáalém de dúvida razoável, às vezes podemos responder uma questão com umaasserção que tem o status de conhecimento. Quando nossas respostas nãoconsistem de conhecimento,Aristóteles as chama de opiniões.As opiniões seaproximam do conhecimento namedida em que têm o peso das provas a seufavor.Noladoexatamenteopostodaescalaestãoaquelasopiniõesquenãotêmnenhumabaseemprovas.

A distinção aristotélica entre conhecimento e opinião é muito drástica—talvezdrásticademaisparaqueaaceitemossemrelativizá-la.Paraele,quandotemosconhecimento, aquiloqueconhecemosconsistedeverdadesnecessárias.Afirmamos essas verdades com certeza porque estão além de toda dúvidarazoável.Porexemplo,nãonosépossívelduvidardequeumtodofinitoémaiordoquetodasassuaspartes.Sealgoéumtodofinito, temdesermaiordoquetodasassuaspartes.Eimpossívelquenãoseja.

Essas verdades autoevidentes constituem um exemplo daquilo a queAristóteles se refere como conhecimento. O outro exemplo consiste emconclusões que podem ser validamente demonstradas por premissas que sãoverdadeiras de modo autoevidente. Quando afirmamos essas conclusões, nãoapenassabemosque aquilo que afirmaméverdadeiro, como também sabemosporqueaquiloqueafirmaméverdadeiro.Sabendoasrazõesporqueaquiloqueafirmaméverdadeiro,sabemosqueaquiloqueafirmamnãopodeserdiferente.Aquitambémestamosempossedeverdadesnecessárias.

Emsuaépoca,Aristótelespensavaqueamatemática,sobretudoageometria,exemplificavaesseconhecimentodealtaqualidade.Avisãodamatemáticaquese temhoje emdia não está de acordo comadeAristóteles.Mesmoassim, amatemática chegamais perto do que qualquer outra ciência de exemplificar oqueAristótelesqueriadizercomconhecimento.

Ao considerar as verdades da geometria, podemos compreender outradistinção feita porAristóteles entre conhecimento e opinião.Dizia ele que háduas maneiras de afirmar a conclusão de uma demonstração geométrica. O

Page 125: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

professor que compreende a demonstração afirma a conclusão à luz daspremissasqueaprovam.Ele temconhecimento.Por suavez,oalunoquenãoentendeademonstração,masqueafirmaaconclusãosóporqueoprofessordissequeelaeraverdadeira,nãotemconhecimento.Mesmoqueaverdadeemsisejaumaverdadenecessária,afirmá-laapartirdaautoridadedeoutrapessoaétê-lacomosefosseopinião,enãoconhecimento.Paraamaioriadenós,asverdadescientíficascomqueestamosfamiliarizadossãoopiniõesquetemosporcausadaautoridadedoscientistas,nãoumconhecimentopossuídopornósmesmos.

Vocêpodeacharessemododedistinguirentreoconhecimentoeaopiniãomais útil e também mais aceitável. Somente poucas asserções são verdadesnecessárias para nós, porque são verdadeiras de modo autoevidente e porqueseusopostossãoimpossíveis.Todasasoutrasasserçõesexpressamopiniõesquepodemserverdadeirasounão.AindaqueAristótelesfossechamarasasserçõesdesse tipo de asserções de opinião e não de conhecimento, vejamos seconseguimos dividir as opiniões em dois grupos, um dos quais com algumasemelhançacomaquiloqueAristótelesreferiaporconhecimento.

Asopiniõesquetemospodemserbaseadasemrazõeseemobservações,oupodeserqueastenhamossemessabase.Porexemplo,sesustentoumaopiniãosó porque alguém me disse que ela era verdadeira, e eu mesmo não tenhonenhumaoutrarazãoparajulgá-laverdadeira,entãoelaéumameraopinião.Aasserçãopodeatéserverdadeiradefato.Issonãofazcomqueelasejamaisdoque mera opinião. No que diz respeito a afirmá-la, não tenho bases que mepermitamjulgá-laverdadeira,excetoaautoridadedeoutrapessoa.

Cada um de nós também tem certos preconceitos pessoais - coisas quejulgamosverdadeirassimplesmenteporqueacreditamosnelas.Nãotemosbasesracionais para acreditar nelas. Antes, estamos emocionalmente ligados a elas.Por exemplo, as pessoas costumam acreditar que seu país é omelhor país domundo. Isso pode ser verdade ou não. Pode até ser possível afirmar que seja,citando provas de algum tipo, ou dando razões para pensar assim. Mas aspessoas que acreditam nisso normalmente não citam provas nem dão razões.Elassóqueremacreditarnisso.

Asasserçõesaqueestamosemocionalmenteligadosporessetipodeautoi-lusãosãomerasopiniões.Outraspessoaspodemestarligadasemocionalmenteaopiniõescontrárias.Comonemumaopiniãonemaoutra,quepodeseroopostodaquela, tembase em razõesou emprovas, umaopiniãodesse tipovale tantoquantoqualqueroutra.

Nocasodasmerasopiniões,todostêmodireitodepreferirassuaspróprias— aquelas às quais o indivíduo está ligado emocionalmente. Não pode haverdiscussão sobre essas opiniões, ao menos não uma discussão racional. As

Page 126: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

opiniõesdesse tiposãocomoexpressõesdogostopessoalparacomidaseparabebidas.Vocêpodegostardesucodelaranjamaisdoquedesucodeabacaxi,eeupossopreferir sucodeabacaxi a sucode laranja.Você temdireitoaos seusgostos,eeuaosmeus.Nãofazsentidodiscutirqualémelhor.

Asdiferençasdeopiniãosetornamdiscutíveissomentequandoasopiniõessobreasquaistemosdiferençasnãosãomerasopiniõesnosentidoqueacabamosdeindicar—somentequandonãosãoapenaspreconceitospessoais,expressõesdegosto,oudecoisasemquequeremosacreditar.

Porexemplo,possoterboasrazõesparaacharqueaproveitaraenergiasolarvainosproporcionarenergiasuficientequandooscombustíveisfósseiscomoocarvão e o petróleo se esgotarem.Vocêpode ter boas razõespara achar que aenergia solarnão resolveráoproblema.Cadaumdenós, alémdisso,pode sercapazdecitarestatísticasdeestudoscuidadososdefontesdeenergia.Nenhumdenóspodeconseguirconvencerooutro.Mesmoassim,asopiniõesquetemosesobreasquaistemosdiferençasediscutimosnãosãomerasopiniões.

Suponhamosquenenhumdenós tenhaefetivamenteestudadoaquestãodaenergia.Simplesmentelemosoqueoutrosdisseramsobreoassunto.Asopiniõesopostasquetemossebaseiamnaautoridadedeoutros.Suponhamosaindaqueamaiorpartedasautoridadesdaáreaestejamdoseulado,ouque,dasautoridadesàs quais se pode recorrer, os maiores especialistas estejam do seu lado.Aristóteles diria que seus argumentos são mais fortes. Para ele, a opinião damaioria dos homens, ou da maioria dos especialistas, ou dos melhoresespecialistas,éprovavelmenteamelhoropinião.

Chegamos cada vez mais perto daquilo a que Aristóteles se referia comoconhecimento e nos distanciamos cada vez mais da mera opinião, quando asopiniões se baseiam em provas científicas e em raciocínios científicos. Asopiniõesbaseadasemumapreponderânciadeprovasenosmelhoresraciocíniossãoconsideradasconhecimentopeloscientistasdehoje.

Não é conhecimento no sentido aristotélico da palavra, porque aquilo queafirmamos saber pode não ser amelhor opinião dentre duas contrárias se, porcausa de novas investigações científicas, surgirem mais provas em favor dooutrolado,ouse,porcausadenovospensamentoscientíficos,surgiremrazõesmelhoresemfavordaopiniãooposta.Nãoháconclusãocientíficaconhecidaqueseja final ou definitivamente verdadeira - verdadeira além da possibilidade decorreçãoouderejeiçãopornovasinvestigaçõesepornovospensamentossobreoassunto.

O oposto de qualquer opinião considerada uma opinião científica nuncadeixadeserpossível,porquenenhumaconclusãocientíficaéemsiumaverdadenecessária.Aindaassim,muitasconclusõescientíficastêmsidosustentadaspor

Page 127: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

umapreponderânciadeprovaseporrazõesinquestionadashámuitosséculos.Ofatodenovasdescobertaspoderemalterarabalançacontraessasconclusões,ouo fatodeas razõesa favordelaspoderemser seriamentequestionadasporumnovo pensamento sobre o assunto não nos impede de considerar que essasconclusõessãoconhecimentofirmementeestabelecido-porora.

Seráqueasconclusõescientíficas,baseadasnumapreponderânciadeprovase nos melhores argumentos existentes num dado momento, são as únicasopiniõesquepodemosconsiderarconhecimento?Não.Asconclusõesfilosóficastambém podem ser opiniões que temos o direito de considerar conhecimentoporquesãoapoiadasporbonsraciocíniosepelopesodasprovasaseufavor,enãoafavordasconclusõesopostas.

Como as conclusões do pensamento filosófico diferem das conclusões dapesquisacientífica?Arespostaestánaspalavras"pensamento"e"pesquisa".Asconclusões científicas se baseiamnas investigações realizadas pelos cientistas,estejam eles em laboratórios ou não. Aquilo que os cientistas pensam parachegar a essa conclusãonunca é suficientepor si.Énecessário semprepensarsobre as observações ou descobertas de investigações ou de pesquisascuidadosamenteplanejadaseexecutadas.

Em contrapartida, o pensamento filosófico chega a conclusões a partir daexperiência comum, do tipo de experiência que todos temos em nossas vidascotidianas sem fazer pesquisa nenhuma — sem executar cuidadosamenteinvestigaçõescuidadosamenteplanejadas.Osfilósofosnãofazempesquisa.Nãoconcebemexperiênciasnemexecutaminvestigações.

O pensamento filosófico sobre a experiência comum começa com asopiniões do senso comum que a maioria das pessoas tem. Ele melhora essasopiniõesdosensocomumporsermaisreflexivoeanalíticodoqueamaioriadaspessoas. Na minha própria visão do assunto, ele chega às melhores e maissofisticadas conclusões naquilo que chamei de senso comum incomum deAristóteles.

Asconclusõescientíficasoufilosóficasnormalmentesãogeneralizaçõesdaexperiência — seja a experiência especial que resulta da pesquisa ou dainvestigação,sejaaexperiênciacomumquetodostemosseminvestigaçãonempesquisa.Comoobservamosnumcapítuloanterior,qualquergeneralizaçãopodeser falseada por uma única observação negativa. Isso vale tanto para umageneralizaçãofilosóficaquantoparaumageneralizaçãocientífica.Quantomaistempo uma generalização passar sem ser falseada, mais direito temos deconsiderá-laconhecimentoestabelecido,aindaquenuncapossamosconsiderá-lafinal ou definitivamente verdadeira - além da possibilidade de correção ou derejeição.

Page 128: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Comoasconclusõesfilosóficassebaseiamnaexperiênciacomumenãonaexperiência especial, e como elas não são afetadas pelos resultados deinvestigaçõesoudepesquisas,asconclusõescomoasobtidasporAristóteleshámaisdedoismil anos aindapodem,hojemesmo, reclamarpara si o statusdeconhecimentofilosófico.Nadaemnossaexperiênciacomumdesdesuaépocaasfalseou.

A maioria das conclusões científicas que eram aceitas correntemente naépocadeAristótelesfoirejeitadaoucorrigidadesdeentão.Ouforamfalseadaspelasdescobertasdepesquisasposteriores,ouforamcorrigidasemelhoradasporum pensamento melhor, por observações melhores e por investigações maisminuciosas.

Nem todas as opiniões que podem ser consideradas conhecimentoestabelecido assumem a forma de generalizações científicas ou filosóficasbaseadas na experiência. A investigação ou a pesquisa histórica chega aconclusões sobre questões factuais particulares— a data em que determinadoevento se deu, os passos seguidos por alguém para tornar-se governante, ascircunstânciasquelevaramaoiníciodeumaguerraetc.

Aqui, comonocasodaciência, apesquisa reúneprovas, sobreasquaisoshistoriadores pensam e, à luz do que pensam, propõem conclusões queconsideram baseadas em uma preponderância de provas, e por boas razões.Quando é assim que se chega a conclusões históricas, elas podem serconsideradas conhecimento estabelecido, ainda que novas pesquisas venham amudarnossavisãodoassunto.

Agoravemosquehápelomenoscincotiposdistintosdeconhecimento,esóumdeleséoconhecimentonosentidoestritoqueAristótelesatribuiuàpalavra.Trata-se do conhecimento que temos quando compreendemos verdadesautoevidentes. Os outros quatro tipos são 1) as opiniões bem fundadas dopensamento matemático - as conclusões que os matemáticos conseguemdemonstrar, 2) as generalizações estabelecidas da pesquisa ou da investigaçãocientífica, 3) as opiniões filosóficas baseadas na experiência comum e norefinamento do senso comum pela reflexão filosófica, e 4) as opiniões sobrefatos particulares que os historiadores conseguem basear em pesquisashistóricas.

Todos esses quatro tipos são opiniões no sentido de que nunca estãoestabelecidos por razões e provas a ponto de não poderem ser falseados oucorrigidospornovospensamentosoupornovasobservações.Contudo,todososquatrosãotambémconhecimentonosentidodequenumdadomomentotêmopesodasprovasa seu favor, eosargumentosemquesebaseiampermaneceminquestionados.

Page 129: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

ParteV

QuestõesFilosóficasDifíceis

Page 130: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

20.AINFINITUDE

Asquestõesfilosóficasdifíceissãoaquelasimpossíveisderesponderàluzdaexperiência comum e usando apenas o senso comum. Respondê-las exigereflexãoeraciocíniocontinuados.

Como surgem essas questões? ParaAristóteles, elas surgiam em parte dosrefinamentos do senso comum desenvolvidos por seu próprio pensamentofilosófico.Emparte,eramquestõesqueelelevantoudiantedasideiasdeoutraspessoas,comunsemsuaépoca.

Entreosestudiososdanaturezaqueoprecederamhaviadoisfísicosgregos,LeucipoeDemócrito,osprimeirosaproporemateoriadosátomos.Deacordocom sua teoria, tudo no mundo natural se compõe de partículas mínimas einvisíveisdematéria,separadasporumvazio-umespaçototalmenteprivadodematéria.Eleschamavamessaspartículasdeátomos,afimdeindicarqueessasunidades de matéria não eram apenas muito pequenas, mas absolutamentepequenas. Na visão deles, nada menor pode existir, pois cada átomo é umaunidadeindivisíveldematériaenãopodesercortadoemunidadesmenores.

Os átomos, segundoDemócrito, diferemumdooutro apenas em tamanho,formatoepeso.Estãoconstantementeemmovimento.Eseunúmeroéinfinito.

Aristóteles lançouduasobjeçõesaessa teoria.Primeiro,questionoua ideiacentraldateoriaatomística.Seumátomoéumaunidadesólidadematériasemumvácuoouespaçovaziodentrodesi,então,dizia,nãopodeserincortávelouindivisível.Ouumátomotemalgumespaçovaziodentrodesi,eportantonãoéuma unidade de matéria, ou, se é desprovido de espaço vazio, a matéria écontínua,enessecasoelaédivisível.

O raciocínio aqui pode ser ilustrado com algo maior do que um átomo.Tenho em minhas mãos um fósforo. Quebro-o em dois pedaços menores demadeira. Agora, cada um desses pedaços é uma unidade distinta de matéria.Como não formam mais um único pedaço de madeira, não podem mais serquebradosemdois.Mascadaumdosdoispedaçosdemadeiraaindapodeserdividido,eassimpordiante,indefinidamente.

Tudo o que é contínuo, diziaAristóteles, é infinitamente divisível.Tudo oque é um—umaúnicaunidadedematéria— temde ser contínuo.Senãoofosse,nãoseriaumaunidadedematéria,masduasoumais.Comesseraciocínio,Aristóteles julgava terdemonstradoquenãopoderiahaverátomos.Podehaverunidades dematériamuito pequenas,mas, pormenores que sejam, podem serdivididasempartículasaindamenores,desdequecadaumasejaumaunidadede

Page 131: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

matéria—umaecontínua.Emsegundolugar,Aristóteleseracontrárioàideiadequehaviaumnúmero

infinitodeátomosnomundo.Seunúmeropodeserimenso,tãoimensoquenãopode ser contado. Mas não pode ser infinito porque, segundo Aristóteles, éimpossível que um número infinito de coisas coexista em ato em qualquermomentodotempo.

De início, essas duas objeções de Aristóteles contra os atomistas de suaépoca parecem incoerentes. Por um lado,Aristóteles parece estar dizendo quequalquerunidadecontínuadematériadeveserinfinitamentedivisível.Poroutro,parece estar dizendoqueumnúmero infinito deunidadesnãopode existir emmomentoalgum.Seráqueelenãoestásimultaneamenteafirmandoenegandoaexistênciadeuminfinito?

A aparente contradição é resolvida por uma distinção característica dopensamentodeAristóteles.Chegamosaessadistinçãonumcapítuloanteriordolivro(vejaocapítulo7).Trata-sedadistinçãoentreoqueépotencialeoqueéatual-entreaquiloquepodeser(masnãoé)eaquiloqueé.

Aristóteles julgaquepodehaverdois infinitos - ambospotenciais,nenhumatual.Uméoinfinitopotencialdaadição.Outro,oinfinitopotencialdadivisão.

O infinito potencial da adição está exemplificado pela infinidade dosnúmeros inteiros.Não existe um número inteiro que seja o último número nasérie de números inteiros que começa em 1, 2, 3, 4 e daí por diante. Tomequalquer número nessa série, por maior que seja, e há um número seguinte,maior ainda. E possível continuar adicionando um número após o outro, semfim. Mas isso é somente possível enquanto o ato dessa adição não pode serrealizado,poislevariaumtempoinfinito—umtemposemfim.

Comoveremosnopróximocapítulo,Aristótelesnãonegavaainfinitudedotempo.Pelocontrário,afirmavaaeternidadedomundo—queelenãoteminícionemfim.Masumtempoinfinitonãoexisteemnenhummomento.Assimcomoasérieinfinitadenúmerosinteiros,trata-seapenasdeuminfinitopotencial,nãodeuminfinitoemato.

Logo, também a infinitude da divisão é um infinito potencial, não atual.Assimcomovocêpodeadicionarumnúmeroatrásdooutrosemparar,tambémpodedividirqualquer coisaque seja contínua semparar.Onúmerode fraçõesentre os números inteiros 2 e 3 é infinito, assim como o número de númerosinteiroséinfinito.Osdoisinfinitos,porém,sãopotenciais,nãoatuais.Elesnãoexistemematoemnenhummomentodotempo.

Nesteinstante,eemnenhumoutroinstante,diziaAristóteles,nãopodehaveruma infinitude em ato de coisas coexistentes, como haveria se os atomistasestivessem corretos. Eles diziam, não esqueçamos, que neste exato momento

Page 132: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

coexisteumnúmeroinfinitodeátomos.Eraisso,eapenasisso,queAristótelesnegava.

Seuraciocínioarespeitoeraoseguinte.Onúmerodecoisasquecoexistemematoédefinidoouindefinido.Seéinfinito,é indefinido.Masnadapodesersimultaneamenteatualeindefinido.Logo,nãopodehaveruminfinitoematodenenhumaespécie—umnúmeroatualmenteinfinitodeátomoscoexistentes,ummundo atualmente infinito, um espaço atualmente infinito que está repleto deunidadesdematériaatualmenteexistentes.

Osúnicos infinitosquepodemexistir, segundoAristóteles, sãoos infinitospotenciais que fazem parte dos processos infindáveis de adição ou divisão.Comoummomentodotemposucedeouprecedeoutro,ecomodoismomentosdotemponãocoexistememato,otempopodeserinfinito.

Page 133: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

21.AETERNIDADE

Aristótelesjulgavaqueotempopodeserinfinitoporqueéfeitodeumasériede momentos ou de instantes que precedem ou sucedem um ao outro e nãocoexistememato.Ummomentodotempodeixadeexistirassimqueomomentoseguinte passa a existir. Como esse processo pode continuar infindavelmente,podehaverumnúmeroinfinitodemomentosoudeinstantesdotempo.

Otempopodeser infinito,masseráqueoé?Seé,entãoomundoqueoraexistenãotemfim.Mesmoquetenhatidocomeço,podeexistirindefinidamente,jáqueotemponãotemfim.Semprepodehaveroutromomento.

Aristótelesfoimaislonge.Nãoapenaselejulgavaqueotempoerainfinito,tambémjulgavaqueomundonãotinhacomeçonemfim.Seomundonãotinhacomeço nem fim, então o tempo é infinito em ambas as direções.Não há ummomentodotempoquenãosejaprecedidoporummomentoanterior.Nãoháummomentodotempoquenãosejasucedidoporummomentoposterior.

Por que Aristóteles pensava que o mundo é eterno? Ele usou a palavra"eterno"paraexpressarseuentendimentodequeomundonãotemcomeçonemfim.Às vezes a palavra "eterno" é usada para falar daatemporalidade, comoquando se diz queDeus é eterno.Aristóteles tambémusou a palavra "eterno"nesse sentido. Mas, em sua visão, a eternidade do mundo é uma coisa, e aeternidadedeDeuséoutra,bemdiferente.

Afimdeentenderessadistinçãoentreasduaseternidades—aeternidadedaatemporalidade e a eternidade do tempo sem começo nem fim—, temos deconsideraroentendimentoqueopróprioAristótelestinhadotempo.

O tempo, segundo ele, é a medida do movimento ou da mudança. Outramaneira de expressar essa ideia é dizer que o tempo é a dimensão em que omovimentoouamudançaocorre,assimcomooespaçoéadimensãoemqueascoisasmateriaisexistem.Ascoisasqueexistemocupamoupreenchemoespaço.As coisas quemudam persistem no tempo.A bola de bilhar que rola de umaponta à outra damesa faz isso num período de tempo. Essemovimento levatempo.Aduraçãodomovimentoémedidapelonúmerodemomentosdetempoquelevouparaaboladebilharirdaquiatéali.

Segue-se, julgavaAristóteles, que o tempo não tem começo nem fim se omovimentoouamudançanão temcomeçonemfim.Masporqueelepensavaqueomovimentoouamudançanãopodecomeçarenãopodeterminar?Essaédefatoumaquestãomuitodifícil.

Aresposta,seéqueháresposta,estánaideiaaristotélicadecausaeefeitoe

Page 134: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

em sua ideia deDeus.Tudooque acontece, diziaAristóteles, temde ter umacausa. Se um corpo se move, algo tem de ter causado seu movimento. Porexemplo,aboladebilharnãosemoveusozinha.Foimovidapelotacoquebateunela. Para colocar a bola emmovimento, o taco teve de semover.Mas outracoisatevedemovê-lo.Edaípordiante.

IssoequivaleaumanegaçãoporAristótelesdoprimeiromotornasériedemotoresecoisasmovidas.Aristóteles,comovimos,afirmavaaexistência—e,maisdoqueisso,anecessidadedaexistência—deumprimeiromotor.Mas,emsuaperspectiva,oprimeiromotornãoeraoprimeirodeumasériedecoisasquemovemequesãomovidas.Oprimeiromotornãoeraaprimeiracausaeficientedomovimento—omotorqueiniciaraomovimentodascoisas.

No capítulo 23, sobre Deus, retornaremos à concepção aristotélica doprimeiromotor.Porora,basta-medizerqueoDeusdeAristóteles,aocontráriodoDeusbíblico,nãocriouomundo.Aristóteles terianegadoaafirmativacomque a Bíblia se inicia: "No princípio,Deus criou o céu e a terra". Ele a terianegadoporquenãoviaqualquerrazãoparapensarqueomundochegouaterumcomeço.

Sehouvesserazãoparapensarqueomundoemmovimentoteveumcomeço,há tambémrazãoparapensarqueomundoemmovimento terá fim.Ascoisasindividuaisdequeomundosecompõepassamaexistiredeixamdeexistir.Nãopodehaverumnúmeroinfinitodecoisasindividuaisquecoexistamemnenhummomentodotempo.Maspodehaverumnúmeroinfinitodecoisasquepassamaexistiredeixamedeexistirnumtempoinfinito,ounumtemposemcomeçonemfim. Passar a existir e deixar de existir é, como vimos, um tipo demudança.Assimcomoomovimentolocal,ouomovimentodeumlugaraoutro,elenuncacomeçouenuncatermina.

OtipodemovimentoqueAristótelestinhaemmenteantesdetudoquandofalavadaeternidadedomovimentonãoeraomovimentodoscorposnaTerra,nem qualquer outra mudança terrestre. Ele contemplava os céus e osmovimentos do Sol, da Lua, dos planetas e das estrelas. Esses movimentos,julgava,exemplificavamdemodomaisclaroaeternidadedomovimentoe,comela,aeternidadedomundo.Comoveremosnocapítulo23,aeternidadedeDeusé usada por Aristóteles para explicar a eternidade do mundo. Essas duaseternidades são diferentes namedida em que a atemporalidade é diferente dotempoperpétuo.

Page 135: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

22.AIMATERIALIDADEDAMENTE

Astrêsquestõesfilosóficasquenosinteressamnestecapítulonãosãotodasigualmentedifíceis.Aprimeiradelas,amenosdifícil,éseascoisasmateriaisdomundofísicotambémsãoimateriaissobalgumaspecto.Maisdifíciléaquestãodeseaexistênciadamentehumanaintroduzalgodeimaterialnummundoque,não fosse por isso, seria material. Por fim, a mais difícil: a questão de se ouniversoincluialgumseroualgunsseresinteiramenteimateriais.

Oleitorquese lembradaquiloquefoiditonocapítulo8 teráumapistadaresposta que Aristóteles deu à primeira questão. Vimos naquele capítulo quetodasascoisasmutáveisdanaturezafísicasãocompostasdematériaedeforma.Entendemos isso falando de obras de arte humana. O artista ou artesão pegamateriaisquepodemserformadosdealgumjeitoeproduzumaobradearteaotransformar os materiais em que trabalha - dando-lhes uma forma queinicialmentenãotinham.Amadeiraquesetornaumacadeiracomoresultadodaprodutividadehumanaassumeuma forma—a formada "cadeiridade"—quenãotinhaantesdesertransformadapeloprodutor.

Éimportantelembrarqueentendemosqueformanãoéfiguranemformato.As cadeiras produzidas pelos homens têm muitos formatos diferentes, mas,independentementedoformatoquetenham,sãotodascadeiras.Éaforma,nãooformato,quefaztodasascadeirasdediferentesformatosseremomesmotipodecoisa.Aformaeraumaideianamentedoprodutorantesdeseraformapelaqualeletransformouamadeiraemcadeira.Tendoaideia,oprodutorentendeuotipode coisa material que desejava produzir. Assim como a ideia na mente doprodutoréumacompreensãodo tipodecoisaaser feita, tambéma formanosmateriaistransformadospeloprodutoréoquefazdelaotipodecoisaproduzida.

Independentementede seremprodutosdaartehumanaoucoisasnaturais enãoartificiais, todasascoisasmateriais têmumaspectoquenãoématerial.Aformanãoéamatéria.Amatérianãoéaforma.Ascoisascompostasdeformaedematériatêmumaspectoimaterialetambémumaspectomaterial.

Comovimos, conseguimos pensar namatéria sempensar na forma,mas amatériapura—amatériatotalmentedesprovidadeforma-nãopodeexistir.Asformas que a matéria pode assumir atualizam suas potências. Se carece dequalquer espéciede forma, amatéria, por si, nãopode ter atualidade, e aquiloquenãotematualidadenãopodeexistir.

Tambéméverdadeirodizerqueasformasqueamatériaassumenãoexistemseparadasdamatériaaquedãoalgumtipodeatualidade—aatualidadedeuma

Page 136: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

cadeira,ouaatualidadedeumaárvore?Asformasquesãooaspectoimaterialdascoisasmateriais são formasmateriais—formasque têmsuaexistêncianamatéria.Masseráqueessaéaúnicaexistênciaquetêm?Seráqueelastambémpodemexistirseparadasdamatériadascoisasquesãocompostasdematériaedeforma?

A resposta de Aristóteles a essa questão é afirmativa. Uma vez mais énecessário recordar algo dito num capítulo anterior. No capítulo 16, observeique,deacordocomAristóteles,amentehumanacompreendeotipodecoisaqueumacadeiraouumaárvoreéporterumaideiadela.Terumaideiaconsisteemternamenteaformadacoisasemtertambémsuamatéria.

Aquiloqueacabodedizertemavercomadiferençaentreamenteemsuaatividadedeconhecedoraeamenteemsuaatividadedeprodutora.

Comoprodutora,amentetemumaideiaprodutivaqueusaparatransformarmatérias-primas emcadeiras e emmesas.Elapõe suas ideiasnessasmatérias-primas e lhes dá a forma de uma cadeira ou de uma mesa. Enquantoconhecedora, amente pega ideias das coisas naturais domundo físico. Ela aspegatirandoasformasdascoisasmateriaisdamatériadessesobjetoscompostos—sejamárvores ou cavalos.Ao fazê-lo, ela entendeque tipode coisa é umaárvoreouumcavalo.

Outro ponto a recordar do capítulo 16 é a diferença entre saber e comer.Quando comemos (quando colocamos comida dentro do nosso organismo e adigerimos),tomamostantoamatériaquantoaformadacoisacompostaquenosnutre—sejaumamaçãouumabatata.

Aos olhos deAristóteles, a razão de amaçã ou de a batata que comemosnutrirmos é que quando a digerimos e a assimilamos, transformamos suamatéria.

A nutrição envolve a assimilação da comida que comemos.A assimilaçãoocorrequandoamatériaquetinhaaformadeumamaçãoudeumabatataperdeaquela formae assumea formadecarne,ossos e sanguehumanos.Épor issoquedevemoscolocaremnossospróprioscorpostantoamatériaquantoaformadascoisasmateriaisnasquaisbuscamosnossanutrição.

Sesaberfosseexatamentecomocomer,nuncaseríamoscapazesdeentenderquetipodecoisaéumamaçãouumabatata.Paraentenderquetipodecoisaéumamaçãouumabatata, temosde tirarasformasdessascoisascompostasdamatériaqueestãoinformando.

Paraassimilarcoisascomíveis,temosdesepararamatériadaformaetrocaraformaqueamatériatinhapelaformadenossospróprioscorpos.

Para entender coisas conhecíveis, temos de separar a forma da matéria emanter a forma separada damatéria. Somente separada damatéria a forma se

Page 137: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

tornaumaideiaemnossasmentes,umaideiapelaqualcompreendemosquetipodecoisaéumamaçãouumabatata.

Porquê?Essaéaquestãodifícilqueaindanãofoirespondida.ArespostadeAristótelesbaseia-senumadistinçãoentreotipodecoisaqueumabatataouumamaçã sãoemgeral, ebatatas emaçãsparticulares, cadaqualumacoisaúnica.Essamaçãparticularquetenhonamãoéacoisaúnicaqueéporqueaforma,quefazdelaumamaçã,estáunidacomessaunidadedematéria,quefazdelaessamaçã,enãoaquelaoutraemcimadamesa.Aquelaalitemamesmaforma,masunidaaumaunidadediferentedematéria.Asdiferentesunidadesdematériaqueentramna composiçãodasduasmaçãs individuais é que as tornam indivíduosdiferentes.Aformaquecadaumadelas teméoquefazdeambasmaçãs—omesmotipodefruta.

Quando temos a ideia que nos permite entender que tipo de coisa é umamaçã, estamos entendendo as maçãs em geral, não essa ou aquela maçãindividual. Aos olhos de Aristóteles, percebemos pelos sentidos aindividualidade dessa ou daquela maçã, mas não podemos, pelas ideias quetemosemnossasmentes,entendersuaindividualidade.Somentetiposemgeralsãocompreensíveis,nãoindivíduos.

É por isso que amente, ao entender os tipos em geral, tem de separar asformas das coisas materiais de sua matéria e manter essas formas separadas,como ideias pelas quais compreendemos. É por isso também que Aristóteleschamavaamentedeformadasformas—olugaremqueasformasdascoisasmateriaispodemexistirseparadasdesuamatéria.

AgorachegamosàrespostadeAristótelesparaasegundaquestãoformuladano início deste capítulo. Será que amente humana introduz algo de imaterialnummundoque,semisso,seriamaterial?Aristótelesdizquesim.

Se a mente não fosse um elemento imaterial da composição dos sereshumanos, ela não nos daria a capacidade de entender as coisas materiais,separandosuasformasdesuamatéria.Eseamentenãosegurasseouguardasseasformasdascoisasmateriaisseparadasdesuamatéria,nãoteríamosasideiaspelasquaisentendemosos tiposemgeral -o tipodecoisaqueéumabatataédistintodotipodecoisaqueéumamaçã.

Afimdesegurarouguardarformasseparadasdamatéria,amenteemsitemdeserimaterial.Seelafossematerial,asformasseriamguardadasnamatéria,eassimnãoseriammaisideiaspelasquaisentendemosostiposemgeral.

Háoutramaneiradedizeramesmacoisaquepodenosajudaraentenderumpouco melhor o raciocínio de Aristóteles. Sentir e perceber são ummodo deconhecer. Quando sentimos e percebemos coisas individuais (como essa ouaquelamaçã),esseconhecimentoenvolveaaçãodenossosórgãossensíveisede

Page 138: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

nossoscérebros,quesãoelementosmateriaisdenossacomposição.Entender é um modo diferente de conhecer. Ao sentir e perceber,

conhecemos essa ou aquela coisa individual. Ao compreender, conhecemos otipodecoisaemgeralqueessacoisa individualé.Aocontráriode sentir edeperceber,esseconhecimentonãoenvolveaaçãodenenhumórgãomaterial,nemmesmodocérebro.

Veréumatodoolho,mascompreendernãoéumatodocérebro.Éumatoda nossa mente - um elemento imaterial em nossa composição que pode serrelacionadoaocérebrocomoórgãomaterial,masqueédistintodele.

Resumindo o que aprendemos até agora: de acordo com Aristóteles, asformasdascoisasmateriaisnomundofísicosãoaspectosimateriaisdelas.Alémdisso, o mundomaterial, de que fazemos parte, inclui um elemento imaterialporquetemosmentesecérebros,mentesquesãodistintasdoscérebros.

Essas são as respostas de Aristóteles às duas primeiras das três questõesfilosóficasdifíceiscomquecomeçamos.Aterceiraemaisdifícilquestão-sobrea existência de um ser totalmente imaterial — será respondida no capítuloseguinte.

Page 139: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

23.DEUS

Como Aristóteles considera o universo eterno— perpetuamente passandopormudanças—,issoolevaaquestionaracausadaperpetuidadedamudança.Ele atribui todas as mudanças que constantemente ocorrem na Terra aomovimento dos corpos celestes. Mas o que os mantém perpetuamente emmovimento?

Não pode ser algo que está em movimento ou mudando sob qualqueraspecto. Se estivesse, essa coisa também precisaria de uma causa para seumovimento, uma causa para sua mudança. Dado um tempo infinito, seriapossível remontar de efeito a causa numa série infinita e nunca chegar a umaprimeiracausa—ummotoremmovimentoquenãoéelemesmomovidoporoutracoisaemmovimento.

Umprimeiromotorquemovetudooqueestáemmovimentosemmoveresemsermovidotemdecausaromovimentoporseratrativoenãopropulsivo.Otacoquebatenabolaea impeleéacausaeficienteouativadomovimentodabola.Odocenavitrinaquemeincitaaentrarnalojaparacomprá-loecomê-locausameumovimentodemododiferente.Semmover-se,elemeatrai.Elenãoéa causa eficiente de eu entrar na loja,mas a causa final— a razão de eumemovernaqueladireção.

Paramover tudoomais semsermovidonemmover-se, oprimeiromotor,dizAristóteles, temde funcionarcomoumacausaatrativaou final.Aopensarassim,elenãotinhaemmenteaatraçãogravitacionalqueaTerraexercesobreoscorpos que caem em sua superfície, nem a atração gravitacional que a Luaexercesobreasmarés.

Em sua visão, as causas atrativas ou finais operam em inteligências quepodemresponderaelaseadotá-lascomomotivosparaaação.Quandodizqueum corpo pesado que cai na Terra deseja repousar ali, ele está falandometaforicamente, não literalmente. Aquele movimento é apenas como omovimentodapessoaqueéatraídapelodocenavitrinaaentrarnaloja.

Pensando assim,Aristóteles considerounecessário dotar os corpos celestesdeinteligênciasquefuncionamcomoseusmotores.Assimcomoumautomóvelémovidoporseumotor,umcorpocelesteémovidoporumainteligência.Mas,ao contrário domotor do automóvel, que precisa ser posto emmovimento, asinteligências celestes funcionam como motores por ser atraídas pelo primeiromotordouniverso.

Page 140: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Por ser um motor imóvel e eterno de um universo perpetuamente emmovimento, o primeiromotor tem de ser imutável.Mas, por ser imutável, navisãodeAristóteles,eletambémtemdeserimaterial.Tudooqueématerialtempotências, estando sujeito à mudança ou ao movimento, sendo tambémimperfeito,poisacadamomentonãoéematotudoquepoderiaser.

Vimos nos capítulos anteriores que aquilo que é pura ou completamentepotencialnãopodeexistir.Nadaexistesemseratualsobalgunsaspectos,nemsem ser potencial sob outros.O inverso, porém, não é verdade.O ato puro (aforma sem matéria) pode existir, ainda que a pura potência (a matéria semforma)nãopossa.

É raciocinandoassimqueAristóteles chegaà conclusãodequeoprimeiromotor é ato puro—um ser totalmente desprovido dematéria ou de potência.Além disso, esse ser imaterial é um ser perfeito, um ser que não carece denenhumaperfeiçãoquelhefalteobter.Aesseserperfeito,oprimeiromotordouniverso,AristóteleschamoudeDeus.

Deus, para Aristóteles, não é o único ser imaterial do universo. Asinteligênciasquemantêmas estrelas emseus circuitos eternospor ser atraídaspela perfeição de Deus também são imateriais. Mas ainda que, na teoria deAristóteles,elastambémsejamimateriais,elenãoasconsideravaperfeitas,nematospuros.SóDeus.

E difícil, se não impossível, explicar a potência que se deve atribuir àsinteligênciasestrelaresseelasnãosãoatospuros.Algoqueésimultaneamenteimaterialetempotêncianãocabebemnoesquemaaristotélicodascoisas.

Aos ouvidos modernos, soa comomítica a explicação de Aristóteles paraaquilo que mantém o universo perpetuamente em movimento. Todavia, éinteressante seguir o raciocínio que o levou a afirmar a existência do serimaterial e perfeito que chamoudeDeus.Esse raciocínio oferecia ummodeloparapensadoresposterioresemseusesforçosdeprovaraexistênciadeDeus—nãodoDeusdeAristóteles,masoDeusdoGênesis,oDeusquecriouomundoapartirdonada.

A concepçãodeDeus comoPrimeiroMotor e a concepçãodeDeus comoCriadorsãosemelhantesemtrêsaspectos:aimaterialidade,aimutabilidadeeaperfeição do Ser Divino. Mas o PrimeiroMotor de Aristóteles só serve paraexplicar a imutabilidade do universo e seu movimento perpétuo. Foi anecessidadede explicar issoque levouAristóteles a desenvolver sua teoria domovimentodoscorposcelestesesuaconcepçãodoPrimeiroMotorcomocausafinaldeseusmovimentos.

Aristótelesnãojulgavanecessárioexplicaraexistênciadouniverso.Porsereterno,elenuncapassouaexistire,assim,aseusolhos,nãoprecisavadeuma

Page 141: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

causa eficiente que lhe fizesse ser— uma causa operada como um produtorhumano que faz uma obra de arte. Costumamos dizer que o ser humano queproduzalgoécriativo.Noentanto,ocriadorhumanosempretemosmateriaisdanaturezaparatrabalhá-los.Elenãofazalgoapartirdonada.Ele,portanto,nãocrianomesmosentidoemquesejulgaqueDeuscria.

A concepção de Deus como Criador veio da necessidade de explicar aexistênciadouniverso,assimcomoaconcepçãodeDeuscomoPrimeiroMotorsurgiunamentedeAristótelesporcausadanecessidadedeexplicaraeternidadedouniversoeseumovimentoperpétuo.ÉdifícildeterminarseaconcepçãodeDeus como Criador teria surgido na mente de pensadores posteriores doOcidentesemasentençainicialdoGênesis,"noprincípio,Deuscriouocéueaterra".IssoéconsideradoumaverdadedivinamentereveladapelastrêsgrandesreligiõesdoOcidente—ojudaísmo,ocristianismoeoislamismo.

Seria natural e razoável perguntar seAristóteles teria aceitadoou rejeitadoaquilo que essa sentença afirma.Como ele julgava que o universo era eterno,seráquenãoterianegadoqueouniversoteveumcomeço?E,aonegarisso,seráqueelenãoteriarejeitadoaideiadeumDeusqueotivessecriado?

Se criar é fazer que algo que não existia passe a existir (algo comparávelàquiloqueoartistahumanofazaoproduzirumaobradearte),entãoummundoquenãotemcomeçonãoprecisadecriador.Masmesmoummundoquenãotemcomeçopodeprecisardeumacausapara continuar existindo se sua existêncianãofornecessária.ParaAristóteles,algoquenãoexistenecessariamenteéalgoquepodeexistirounão.Seomundonãoexistenecessariamente,podedeixardeexistir.Oque,então,mantémummundoquepodedeixardeexistiremperpétuaexistência?

O próprio Aristóteles nem levantou nem enfrentou essa questão. Tivessefeitoisso,poderia terraciocinadoatéconcluirquealgumacausaeranecessáriapara manter o universo existindo perpetuamente, assim como raciocinou atéconcluirquealgumacausaeranecessáriaparamanterouniversoperpetuamenteemmovimento.Umapequenaalteraçãonosignificadodapalavra"criador"fariaa conclusão atingida levar ao conceito de Deus como Criador, não só comoPrimeiroMotor.

Numsentidodapalavra,criaréfazerquealgoquenãoexistepasseaexistir.Em outro sentido da palavra (um sentido mais sutil, talvez), criar é causar aexistência daquilo que pode existir ou não, sem considerar o fato de aquilopassar a existir. É nesse último sentido da palavra,mais sutil, queAristótelespoderia ter concebido Deus simultaneamente como Primeiro Motor e comoCriador.

Asteoriasaristotélicasdescritasnestecapítuloeateoriaquesugeriqueele

Page 142: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

poderia terdesenvolvidodentrodoarcabouçodesua filosofianão fazempartedosensocomum.Nãosãonemsofisticaçõesdosensocomum,aindaquepossambasear-senessassofisticações.

Sobesseimportanteaspecto,asteoriasdiscutidasnestecapítulodiferemdasideiasfilosóficasquediscutimosemcapítulosanterioresdeste livro.As teoriasdiscutidasnestecapítulopodemserconsideradasa teologiadeAristóteles,nãosua filosofia.Se sua teologia não tem relação comnosso senso comum, comotemsua filosofia,elaaomenos temrelaçãocomcrenças religiosascomuns—crenças religiosas que têm sido dominantes no Ocidente há mais de dois milanos.EssefatoéarazãoporquejulgoqueaconcepçãoaristotélicadeDeuseoraciocínioqueolevouadesenvolvê-ladevemserincluídosnestelivro.

Page 143: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

EPÍLOGOPARAAQUELESQUELERAMOUQUEREMLERARISTÓTELES

Naintroduçãodestelivro,recomendeiatodosquedesejamaprenderapensarfilosoficamente que tivessem Aristóteles como o primeiro professor. Nãorecomendei que ninguém começasse lendo os livros que Aristóteles mesmoescreveu.Essaéaúltimacoisaqueeusugeririaaalguém.

Os livros de Aristóteles são difíceis demais para iniciantes. Mesmo nasmelhores traduções,muito daquilo que se diz continua obscuro.Os tradutoresusammuitaspalavrasincomuns,palavrasquenãousamosemnossalinguagemcotidiana.Ainda que algumas palavras usadas porAristóteles fossempalavrasqueseusconterrâneosgregosusavam,elelhesdavasentidosparticulares.

Aindaassim,algunsleitoresdestelivropodemquererleraspartesdasobrasdeAristótelesdasquaistireiainspiraçãoparaaexposiçãodeseupensamento.ÉatépossívelqueentreosleitoresdestelivrohajaalguémquejáleuasobrasdeAristóteles-senãointegralmente,aomenosalgunsdeseusprincipaistratados.ElespodemquerercontraporminhaexposiçãoaostextosqueuseiparaextrairosgrandesprincípiosdopensamentodeAristóteles.

Devoconfessaraambososgruposdeleitoresque,semprequepossível,fizsimplificações. Troquei as palavras incomuns por outras comuns.Mantive-mefielàorientaçãoprincipaldeAristótelesnospontosprincipaisdesuadoutrina,enunca me dei ao luxo de ter me desviado do caminho principal pelasrelativizações,complexidadesesutilezasqueopróprioAristótelesapresenta,oquecostumadeixarseusleitoresmaisperplexosdoqueesclarecidos.

ParaofereceràquelesqueleramouquedesejamlerAristótelesumguiadostextos queme serviram de fontes, preparei um índice dematérias deste livro,paralelo ao sumário que aparece no começo. Nesse índice, mudei todos ostítulos, trocando o conjunto de títulos que descreve demodomais preciso asdoutrinasaristotélicasexpostasnascincopartese23capítulosdestelivropelostítulos originais (que eram adequados ao estilo e ao conteúdo de minhaapresentaçãodopensamentodeAristóteles).

Para deixar isso claro, coloquei, entre colchetes, após os títulos comdescriçõesmaisprecisas,ostítulosqueaparecemnosumáriodestelivro.Sobotítulo de cada um dos 23 capítulos, às vezes colocarei breves sentenças, emlinguagem aristotélica, sobre as doutrinas expostas no capítulo. Em todos oscasos, colocarei uma lista de referências aos devidos trechos das obras de

Page 144: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Aristóteles,eàsvezesindicareiarelevânciaparticulardeumtrechoespecíficoqueestejasendocitado.

Parte I.Ouniversododiscurso segundoAristóteles: suascategoriase suataxonomia[Ohomemcomoanimalfilosófico]1. A classificação cjuádrupla de Aristóteles das substâncias sensíveis emateriais:corposinorgânicos,vegetais,animais,homens[Jogosfilosóficos]NessecapítulotratamosdoscritériosusadosporAristótelesparadistinguirentreas coisas vivas e as não vivas,- no domínio das coisas vivas, entre vegetais eanimais,-e,nodomíniodavidaanimal,entrebestaseanimaisracionais,istoé,sereshumanos.Metafísica,LivroI,cap.I.SobreaAlma,LivroI,cap.I,V,LivroII,cap.I-III,V1X;LivroIII,cap.III,XIIHistóriadosAnimais,LivroX,cap.I.GeraçãodosAnimais,LivroI,cap.I-IX;LivroIYcap.IV-VI.PartesdosAnimais,LivroI,cap.IV-VDiga-se ainda que Aristóteles estava ciente das dificuldades de aplicar esseesquema classificatório. As dificuldades são devidas à existência de casoslimítrofesqueficamdosdoisladosdalinhaqueseparaoqueévivodoquenãooé,easplantasdosanimais.HistóriadosAnimais,LivroVIII,cap.I.Apresenta-seadistinçãoentrediferençasessenciaiseacidentais.Categorias,cap.VMetafísica,LivroV,cap.IYXI,LivroIX,cap.VIII.2.Agamadosseres-,asdezcategorias[Agrandedivisória]Nesse capítulo tratamos do ser dos objetos que não existem do modo comosubstâncias sensíveis e materiais existem (por exemplo, objetos matemáticos,ficções,mentes,ideias,substânciasimateriaiscomoasinteligênciasincorpóreasqueconstituemosmotorescelestiais,eDeus).

Page 145: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Metafísica,LivroIII,cap.V-VI;LivroXII,cap.VIII;LivroXIII,cap.I-VSobreoCéu,LivroII,cap.I,XII.SobreaAlma,LivroIII,cap.IV-VI.Adistinçãoentresubstânciaeacidente,istoé,entrecorposeseusatributos.Categorias,cap.V-VII.Física,LivroI,cap.II.Metafísica,LivroVII,cap.IV-VI.A distinção anterior diz respeito às substâncias materiais como sujeitos demudança,easeusacidentescomoosaspectosemqueelasmudam.Física,LivroI,cap.VI-VII;LivroII,cap.III.Aessênciaouanaturezaespecíficaemrelaçãoàformasubstancial.Metafísica,LivroVcap.IYXI;LivroVII,cap.XVI,LivroVIII,cap.VI;LivroIX,cap.VIII.SobreaAlma,LivroII,cap.IVAhierarquiadasnaturezasouessênciasespecíficas.Metafísica,LivroVIII,cap.III.Epílogo–193OinventáriodeAristótelesdasdiversascategoriasaquepertencemosatributosacidentaisdasubstância.Categorias,cap.IVEntreos acidentesda substância, alguns sãopermanentesou imutáveis, são aspropriedades inseparáveis da natureza essencial de cada tipo de substânciamaterial.Tópicos,LivroVcap.I-III.

Page 146: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

AatitudedeAristótelesemrelaçãoàambiguidadedaspalavras.DaInterpretação,cap.I.Tópicos,LivroII,cap.IV3.A razão ou inteligênciaprodutiva, prática e teórica [As três dimensões dohomem]Esse capítulo resume brevemente a tripla divisão de Aristóteles da atividadeintelectualouopensamentoempensamentovoltadoparaaproduçãodecoisas,opensamentovoltadoparaaaçãopolíticaemoral,eopensamentovoltadoparaaaquisiçãodeconhecimentoenquantofimemsimesmo.Ética,LivroVI,cap.II,IVSobreaAlma,LivroIII,cap.VII.ParteII.Afilosofiaaristotélicadanaturezaedaarte[Ohomemcomofazedor]4. A natureza como artista e o artista humano como imitador da natureza[CrusoésegundoAristóteles]A diferença entre aquilo que acontece por meio da natureza e aquilo queacontecepormeiodaarte.Física,LivroI,cap.VII,VIII;LivroII,cap.I-III,VIILIX.Poética,cap.I-IVAdiferençaentreaquiloqueacontecepormeiodaarteeaquiloqueaconteceporacaso.Física,LivroII,cap.IV-VI.Política,LivroI,cap.XI.Adiferençaentreasmudançascausadaspelanaturezaeasmudançascausadaspelaarte.Metafísica,LivroVII,cap.VII-IX.Adiferença entre a produção de coisas corpóreas pelo homeme a geração ouprocriaçãodecoisasvivasnanatureza.GeraçãodosAnimaisMetafísica,LivroVII,cap.VII

Page 147: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

4.Ostrêsprincipaismodosdemudançaacidentalmudançade lugar,mudançadeQualidade,mudançadeQuantidade[Mudançaepermanência]Adistinçãoentremudançasubstancialemudançaacidental,eadiferenciaçãodetrêsmodosdistintosdemudançaacidental.Categorias,cap.XIVFísica,LivroIII,cap.I,-LivroVcap.I-II,V;LivroVII,cap.IV;LivroVIII,cap.

VII.As substâncias corpóreas como sujeitos permanentes ou duradouros quepersistemaolongodetodasasmudançasacidentais.Física,LivroI,cap.VI-VII,-LivroII,cap.I-III.Metafísica,LivrosVIII-IX;LivroXII,cap.I-VArefutaçãoaristotélicadanegaçãodeParmênidesdamudançaedanegaçãodeHeráclitodapermanência.Física,LivroI,cap.II-IYVIII-IX;LivroVI,cap.IX.Adistinçãoaristotélicaentremovimentonaturalemovimentoviolento.Ocaráterparticulardosujeitodamudançanageraçãoenacorrupção:amatéria-primacomosujeitodemudançanamudançasubstancial.Física,LivroI,cap.VII;LivroII,cap.I-III.Metafísica,LivroVII,cap.VII-IX;LivroXI,cap.XI,LivroXII,cap.II-III.5.Adoutrinaaristotélicadasc/uatrocausas:eficiente,material, formale final[Asquatrocausas]Adoutrinamencionada.Física,LivroII,cap.III-IX.Metafísica,LivroI,cap.III-X;LivroVcap.III;LivroVI,cap.II-III;LivroVII,cap.XVII;LivroVIII,cap.II-IV;LivroIX,cap.VIII;

Page 148: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

LivroXII,cap.IV-VConsideraçãosobreascausasfinaisnanaturezaenaarte.Física,LivroII,cap.VIII-IX.SobreaAlma,LivroII,cap.XII-XIII.PartesdosAnimais,LivrosII-IVGeraçãodosAnimais,LivroI,cap.IV-XIII.Opapeldapotênciaedoatonasmudançasdesubstânciaedeacidente.Física,LivroIII,cap.I-III.Metafísica,LivroI,cap.VI-VII;LivroVII,cap.III,VII-XVII;LivroVIII,cap.

IV-VI;LivroXII,cap.II-VO papel da substância como causamaterial e da forma acidental como causaformal namudança de acidente, e damatéria-prima como causamaterial e daformasubstancialcomocausaformalnamudançadesubstância.Física,LivroI,cap.IV-IX;LivroII,cap.VII;LivroII,cap.III.Metafísica, Livro I, cap. VI-VII; Livro V cap. VIII; Livro VII, cap. III, VII-

XVII;LivroVIII,cap.IV-VI;LivroIX,cap.VI-IX;LivroXII,cap.II-V6.Maioresdesenvolvimentosdateoriadapotênciaedoato,edamatériaedaforma,sobretudonocjuedizrespeitoàmudançadesubstância,ouàgeraçãoeàcorrupção[Serenãoser]Física,LivroIII,cap.I-III.Metafísica,LivroVII,cap.VI-IX;LivroIX,cap. I,111-1X;LivroXI,cap. IX,XI;LivroXII,cap.II-III,VSobreaGeraçãoeaCorrupção,LivroI,cap.I,III-V;LivroII,cap.I,VII,IX.7. A análise aristotélica dos fatores intelectuais da produção artística e suaclassificaçãodasartes[Ideiasprodutivasesaberprático]Avirtudeintelectualdaarte.Ética,LivroVI,cap.IV

Page 149: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Oartistacomoimitador.Poética,cap.I-VO caráter particular de três artes cooperativas: a agricultura, a medicina e oensino.Física,LivroII,cap.I-II,VIII.Abelezadosprodutosbenfeitos.Poética,cap.VII.ParteIII.FilosofiamoralepolíticadeAristóteles[Ohomemcomoator]8.Ofimcomoprimeiroprincípionopensamentopráticoeousodosmeioscomoiníciodaaçãoofimcomoprimeironaordemdaintençãoeúltimonaordemdaexecução[Pensandosobrefinsemeios]Adistinçãoentrefinsemeioscomobensdesejáveisporcausadesimesmosebensdesejáveisporcausadeoutracoisa.Ética,LivroI,cap.YVII,IX.O fim último no pensamento prático, comparado com axiomas de verdadesautoevidentesdopensamentoteórico.SegundosAnalíticos,LivroI,cap.II.10.Afelicidadeconcebidacomoacfuilocjuenãodeixanadaadesejare,porserconcebidaassim,obemúltimooudefinitivoabuscar[Vivereviverbem]Adistinçãoentrevivereviverbem.Política,LivroI,cap.I-II,IX.Aconcepçãodefelicidadecomoumaboavidacompleta,juntocomváriasvisõessustentadasporindivíduossobreoqueconsisteaboavida.

Page 150: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Ética,LivroI,cap.IV-YVILX;LivroX,cap.II,VLVIII.11. A distinção aristotélica entre bens reais e aparentes, ou entre bens cjuedevem ser desejados e bens cjue são efetivamente desejados, e também suadistinçãoentreosdesejosnaturaiseadcjuiri-dos[Bom,melhor,omelhor]Ética, Livro II, cap.VI; Livro III, cap. IV-V; LivroX, cap.VSobre a Alma,LivroII,cap.II-111;LivroIII,cap.III,VII.Retórica,LivroI,cap.VI-VII.12. Os verdadeiros bens cjue são os componentes do todo dos bens cjueconstituemajelicida-de,eaindispensabilidadedavirtudemoralparaabuscadafelicidade[Comobuscarafelicidade]Ética,LivroI,cap.IV-VVII-X;LivroVII,cap.XI-XIV;LivroIX,cap.IV,VI11-

XI;LivroX,cap.I-VIII.13.Avirtudemoraleaboafortuna,osdoisfatoresoperativosindispensáveisnabuscadafelicidade[Bonshábitoseboasorte]A virtude moral em geral e os três principais aspectos da virtude moral:temperança,coragemejustiça.Ética,LivrosII-VAboafortuna,indispensávelàfelicidade:adistinçãoentreohomemvirtuosoeoventuroso.Ética,LivroI,cap.X;LivroVII,cap.XIII;LivroX,cap.VIII.Política,LivroVII,cap.I,XIII.Adistinçãoentreosbenslimitadoseosbensilimitados:avirtudemoralresultadamoderaçãocomosbenslimitados.Ética,LivroVII,cap.XIVPolítica,LivroI,cap.VI11-X;LivroVII,cap.I.

Page 151: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

14.Asobrigaçõesdo indivíduoemrelaçãoà felicidadealheiaeemrelaçãoaobem-estardacomunidadeorganizada[Oqueosoutrostêmodireitodeesperardenós]Ohomemcomoanimalsocialepolítico.Política,Livro1,cap.I-II.A família, a tribo e o Estado, ou sociedade política, como comunidadesorganizadas.Política,Livro1,cap.I-II.Ajustiçacomovirtudemoraldirecionadaparaobemalheio.Ética,LivroYcap.I-II.Adistinçãoentrejustiça,deumlado,eamizadeouamor,deoutro.Ética,LivroVIII,cap.I,IX.Ostiposdeamizade.Ética,LivroVIII,cap.II-VI.15.15. 0papel doEstado em incentivarou facilitarabuscada felicidadeporcadaindivíduo[OquetemosodireitodeesperardosoutrosedoEstado]AconcepçãodeAristótelesdobomEstadocomoaquelequepromoveabuscadafelicidadeporseuscidadãos.Política,LivroI,cap.II;LivroII,cap.VI;LivroIII,cap.IX-X;LivroVII,cap.I-

III,cap.XIII-XIVAteoriaaristotélicadasformasdegoverno,edoscritériosparajulgarabondadeoumaldadedasdiversasformasdegoverno.

Page 152: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Política,LivroI,cap.I,VXII-XIII;LivroIII,cap.VI-VII,XI,XV-XVI;LivroVcap.II-III,VIII,XII,-LivroVI,cap.IV;LivroVII,cap.II,XIV

A distinção aristotélica entre escravidão natural e escravidão legal ouconvencional.Política,LivroI,cap.IV-VII,XIII.A teoria aristotélica da distinção entre a justiça natural e a justiça legal ouconvencional.Ética,LivroVcap.VII.AvisãodeAristótelesdopapeldasmulheresnafamíliaenoEstado.Política,LivroI,cap.XIII.

ParteIVApsicologia,alógicaeateoriadoconhecimentodeAristóteles[Ohomemcomoconhecedor]16. Os sentidos e o intelecto: a percepção, a memória, a imaginação e opensamentoconceituai[Oqueentranamenteeoquesaidela]Arelaçãoentrelinguagemepensamento.Categorias,cap.I.DaInterpretação,cap.I-II.A descrição aristotélica dos sentidos externos e de sua distinção dos sentidosinternos:osentidocomum,amemóriaeaimaginação.SobreaAlma,LivroII,cap.V-XII;LivroIII,cap.I-III.SobreaSensação[Parvanaturaliai)HistóriadosAnimais,LivroIYcap.VIII.Adistinçãoentremerassensaçõeseaexperiênciadapercepção.Metafísica,LivroI,cap.I.Adoutrinaaristotélicadequeassensaçõeseasideias,tomadasemsimesmasou

Page 153: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

isoladas,nãosãonemverdadeirasnemfalsas.Categorias,cap.IVDaInterpretação,cap.I.SobreaAlma,LivroII,cap.VI;LivroIII,cap.III,VI.Metafísica,LivroIYcap.V;LivroVcap.XXIX.A teoria aristotélica das ideias como formas que o intelecto abstrai daexperiência.SobreaAlma,LivroIII,cap.IVVII-VIII.Metafísica,LivroXIII,cap.II-III.17.Inferênciaimediataeraciocíniosilogístico[Ostermospeculiaresdalógica]Aleidacontradiçãocomoprincípioontológicoecomoregradepensamento.DaInterpretação,cap.VI.PrimeirosAnalíticos,LivroII,cap.XVII.SegundosAnalíticos,LivroI,cap.XI.Metafísica,LivroIYcap.III-VIII;LivroIX,cap.V-VI.Oquadradodaoposição:contraditórios,contráriosesubcontrários.DaInterpretação,cap.VI,X.Categorias,cap.X.PrimeirosAnalíticos,LivroI,cap.II.Inferênciaimediataapartirdoquadradodaoposição.DaInterpretação,cap.VII-X.PrimeirosAnalíticos,LivroI,cap.II-III;LivroII,cap.VIIL-X,XXII.Asregrasdosilogismo.PrimeirosAnalíticos,LivroI.SegundosAnalíticos,LivroI,cap.XII.Adistinçãoaristotélicaentrevalidadelógicaeverdadefactual.PrimeirosAnalíticos,LivroII,cap.II-IVSegundosAnalíticos,LivroI,cap.XII.

Page 154: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

Oentimemanaargumentaçãoretórica.PrimeirosAnalíticos,LivroII,cap.XXVII.Retórica,LivroII,cap.XX,XXII.18.Verdadeteóricaeverdadeprática[Dizeraverdadeepensá-la]Adefiniçãodeverdade.Metafísica,LivroIVcap.VII.Categorias,cap.VAverdadedosaxiomasouprimeirosprincípios:verdadesautoevidentes.SegundosAnalíticos,LivroI,cap.III,VX,XII.Sentençasquenãosãoverdadeirasnemfalsas.DaInterpretação,cap.II.A teoria aristotélica da diferença entre a verdade de afirmações factuais eafirmaçõesnormativas:“afirmaçõesdeser"e“afirmaçõesdedeverser".Ética,LivroVI,cap.II.Acertezaouaprobabilidadecomqueasproposiçõessãoafirmadasounegadas.DaInterpretação,cap.IX.Primeiros Analíticos, Livro I, cap. XIII; Livro II, cap. XXV SegundosAnalíticos,LivroI,cap.II,VI,VIII,XXX,XXXIII.Metafísica,LivroIYcap.IV-VI;LivroVI,cap.I;LivroIX,cap.VI-VII.19.Ateoriaaristotélicadoconhecimentoesuadistinçãoentreoconhecimentoeaopiniãocorreta[Alémdedúvidarazoável]Categorias,cap.VPrimeirosAnalíticos,LivroI,cap.XIII.

Page 155: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

SegundosAnalíticos,LivroI.cap.II,IV-VIII,XXX,XXXIII.Tópicos,LivroI,cap.II.Retórica,LivroII,cap.XXVMetafísica,LivroIYcap.IV;LivroVI,cap. II,•LivroVII,cap.XV;LivroIX,cap.X;LivroXI,cap.VI,VIII.SobreaAlma,LivroIII,cap.III.ParteV.AcosmologiaeateologiadeAristóteles[Questõesfilosóficasdifíceis]20.Oinfinitoatualeoinfinitopotencial[Ainfinitude]CríticadeAristótelesàteoriadosatomistas.Física,LivroI,cap.II.SobreoCéu,LivroIII,cap.IV;LivroIYcap.II.DoutrinadeAristótelesquantoàdivisibilidadeinfinitadasmagnitudescontínuasedamatéria.Física,LivroIII,cap.I,VI-VII;LivroYcap.III,LivroVI,cap.I-II.Metafísica,LivroIII,cap.IV;LivroV,cap.XIII.Aristótelesnegaasmultitudesemagnitudesinfinitasematoeafirmaosinfinitospotenciaisdeadiçãooudedivisão.Física,LivroIII,cap.IV-VIII.Metafísica,LivroXI,cap.X.21.Aeternidadedomundoedomovimentooudamudança[Aeternidade]Aconcepçãoaristotélicadotempocomomedidadomovimento.Física,LivroIVcap.X-XIVArgumentosdeAristótelesparaaeternidadedotempoeparaaperpetuidadedomovimentooudamudança.Física,LivroVII,cap.I-11;LivroVIII,cap.1-VI,VIII.

Page 156: Aristóteles para Todos · 2019. 3. 19. · Filósofo, professor e teórico da educação norte-americano, Mortimer J. Adler (1902-2001) nasceu em Nova York, no seio de uma família

TeoriadeAristótelesdainfluênciadomovimentocelestesobreosmovimentosemudançasterrestres.SobreoCéu,LivroI,cap.II,IX-XII;LivroII,cap.III.SobreaGeraçãoeaCorrupção,LivroII,cap.X-XI.Concepção de Aristóteles da imutabilidade ou eternidade de Deus; a atem-poralidadedoeternoouimutável.Metafísica,LivroXII,cap.VI-VII,IX.22.Aimaterialidadedointelectohumano-,opensamentoconceituai,cjueabstraiasformasdamatéria[Aimaterialidadedamente]SegundosAnalíticos,LivroI,cap.III.SobreaAlma,LivroIII,cap.IV-YVII-VIII.Metafísica,LivroXIII,cap.II-III.23.Oprimeiromotor.Oserdivinoenquantoatopuro.[Deus]TeoriadeAristótelesdasinteligênciascomomotorescelestiais.SobreoCéu,LivroII,cap.I,XII.Metafísica,LivroXII,cap.VIII.ArgumentosdeAristótelesparaaexistênciadeummotor imóvelquecausaosmovimentoscelestesaomododeumacausafinalnãoeficiente.Física,LivroVIII,cap.I-VI.Metafísica,LivroXII,cap.VI-IX.1.Causamaterial:aquilodecjuealgumacoisaéfeita.2.Causaeficiente:aquilocomcjuealgumacoisaéfeita.3.Causaformal:aquilonocjuealgumacoisaéfeita.4.Causafinal:aquiloparacjuealgumacoisaéfeita.