ARIANO SUASSUNA, UM INTELECTUAL POLIFÔNICO · Circe Bittencourt argumenta que as “[...] imagens...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS II
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Susana Cardoso Braga
ARIANO SUASSUNA, UM INTELECTUAL POLIFÔNICO:
entre o erudito e o popular no Romance d’A Pedra do Reino e O
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
ALAGOINHAS – BA
Junho de 2018
Susana Cardoso Braga
ARIANO SUASSUNA, UM INTELECTUAL POLIFÔNICO:
entre o erudito e o popular no Romance d’A Pedra do Reino e O
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História do
Departamento de Educação ─ Campus II,
Alagoinhas, da Universidade do Estado da
Bahia, como requisito final para obtenção
do título de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Santos Silva
Banca Examinadora:
____________________________________
Prof. Dr. Paulo Santos Silva (orientador) – UNEB
____________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira - UNEB
___________________________________
Prof.ª Dra. Ione Celeste Jesus de Sousa – UEFS
ALAGOINHAS – BA
Junho de 2018
À minha mãe e ao meu pai...
Sertão, arguém te cantô,
Eu sempre tenho cantado
E ainda cantando tô,
Pruquê, meu torrão amado,
Munto te prezo, te quero
E vejo qui os teus mistéro
Ninguém sabe decifrá.
A tua beleza é tanta,
Qui o poeta canta, canta,
E inda fica o qui cantá.
(Patativa do Assaré)
AGRADECIMENTOS
Ao Poder regente do Universo, com o qual cheguei até aqui.
Aos meus pais, irmã, namorado e familiares, que contribuíram com o meu
caminhar, compreendendo os dias nebulosos com os quais me deparei nessa jornada.
Ao professor Dr. Paulo Santos Silva, o melhor orientador que alguém poderia
desejar, por toda a sua enorme paciência, dedicação, apoio humano e compromisso. Um
verdadeiro mestre no melhor e total sentido da palavra.
A professora Drª Ione Celeste Jesus de Sousa (UEFS) e ao professor Dr.
Raimundo Nonato Pereira Moreira (UNEB) pelos conselhos e atenção para com o meu
texto na qualificação e na defesa.
Ao professor Zézito Rodrigues (UNEB), às professoras Drª Rosângela Miranda
(Ifbaiano) e Ms Zélia Malheiro (UNEB) e a todos os profissionais e professores do
campus VI da Universidade do Estado da Bahia, que de alguma maneira colaboraram
para o meu crescimento até aqui.
Ao prof. Dr Carlos Newton Júnior, professor de estética da Universidade Federal
de Pernambuco, estudioso e grande conhecedor da obra e vida de Ariano Suassuna, que
compartilha igualmente um amor por sua figura e legado, o qual muito gentilmente me
cedeu material de grande importância para o desenvolvimento da pesquisa.
À Fundação Joaquim Nabuco, pelo carinho com o qual fui recebida na pesquisa
realizada em Recife.
Aos meus amigos, que muito me deram apoio nos momentos de tormento, com
carinho especial a Valquiria Oliveira, pelo diálogo em horas de melancolia e a Márcia
Kelly pela tradução do resumo.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), pela
concessão da bolsa, sem a qual a pesquisa sofreria danos.
Por fim, a todos que confiaram na minha pesquisa, capacidade e dedicação e ao
povo sertanejo do qual faço parte.
RESUMO
Analisam-se, com base na obra o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do
Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Vilar Suassuna (1927 – 2014), a construção e a
interpretação que o autor faz do Nordeste, utilizando-se da cultura popular e da memória
individual e coletiva. Ariano Suassuna transita entre a história e a ficção, ao conceber
um herói que constrói um mundo a partir dos delírios em meio à realidade e à fantasia,
apresentando um sertão belo, mesmo diante da crueldade, denunciando o descaso das
autoridades e a miséria do povo, mas sugerindo um universo que vive do sonho, do riso,
da poesia e da imaginação. Alter ego de Ariano Suassuna, Quaderna, seu personagem,
reconfigura a realidade com elementos que mesclam à cultura popular, a ibérica e a
greco-romana em perspectiva universal. O universo sertanejo suassuniano foi possível
graças à compreensão que se tem da realidade apresentada pela verdade da ficção. O
Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é uma maneira de
contar a história e organizar a memória do Nordeste, considerando suas crenças, mitos,
vivências, sofrimentos e alegrias; é a história da sociedade a partir da visão de um
individuo que ao longo da vida a absorve e a toma para si. Além das fontes ficcionais,
empregam-se aqui depoimentos, documentários, jornais e revistas.
PALAVRAS-CHAVES: Ariano Suassuna. Sertão. Pedra do Reino. História. Literatura.
ABSTRACT
It was analyzed, based on o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do
Sangue do Vai-e-Volta, by Ariano Vilar Suassuna (1927 – 2014)), the construction and
interpretation that the author does about the Northeast, using popular culture and
individual and collective memory. Ariano Suassuna transits between history and fiction,
when he conceives a hero who builds a world out of delirium amidst reality and fantasy,
presenting a beautiful sertão, even in the face of cruelty, denouncing the neglect of the
authorities and the misery of the people, but suggesting a universe that lives from the
dream, the laughter, the poetry and the imagination. Alter ego of Ariano Suassuna,
Quaderna, his character, reconfigures reality with elements that combine popular
culture, Iberian and Greco-Roman in a universal perspective. The suassuniano sertanejo
universe was made possible by an understanding of the reality presented by the truth of
fiction. The o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta is a
way of telling the story and organizing the memory of the Northeast, considering its
beliefs, myths, experiences, sufferings and joys; is the history of society from the
perspective of an individual who, throughout life, absorbs and takes it for himself. In
addition to the fictional sources, are used here statements, documentaries, newspapers
and magazines.
KEYWORDS: Ariano Suassuna. Sertão. Pedra do Reino. History. Literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 10
CAPÍTULO I. ARIANO SUASSUNA: A TRAJETÓRIA DE UM SERTANEJO
ARMORIAL, 18
1. Origens, 19
2. Os novos mundos de Suassuna, 21
3. “Tornar-se” Ariano Suassuna, 33
CAPÍTULO II. SUASSUNA E AS PEDRAS NO CAMINHO: POLÍTICA E
CRIAÇÃO LITERÁRIA, 44
1. Conflitos oligárquicos: da Paraíba ao cenário nacional, 44
2. A história e as pedras de um reino, 53
CAPÍTULO III. O SERTÃO TRANSFIGURADO DE SUASSUNA: ENTRE AS
PEDRAS E UM REINO, 68.
1. O Mito de “Pedra Bonita”, 70
2. O Nordeste suassuniano, 74
CONSIDERAÇÕES FINAIS, 94
FONTES, 96
REFERÊNCIAS, 98
10
INTRODUÇÃO
O objetivo desta dissertação é analisar a interpretação do Brasil, com foco no
Nordeste brasileiro, realizada pelo escritor e dramaturgo Ariano Vilar Suassuna (1927 –
2014), utilizando como fonte o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue
do Vai-e-Volta. Discute-se a perspectiva da cultura erudita em relação à cultura popular,
combinando fatos históricos e práticas do cotidiano. O resultado dessa combinação
revela-se em sua prosa romanesca e em sua dramaturgia. A obra aqui escolhida consiste
na fusão das diversas áreas nas quais a arte do autor se manifesta.
Parte-se da premissa de que o conhecimento histórico se baseia nos vestígios
deixados pelo homem, feitos pelo próprio homem em suas experiências no tempo, seja
ele disso consciente ou não, como nos adverte Marc Bloch.1
Para Holien Bezerra:
O objetivo primeiro do conhecimento histórico é a compreensão dos
processos e dos sujeitos históricos, o desenvolvimento das relações que se
estabelecem entre os grupos humanos em diferentes tempos e espaços. Os
historiadores estão atentos às diferentes e múltiplas possibilidades e
alternativas apresentadas nas sociedades, tanto nas de hoje quanto nas do
passado, que emergiam da ação consciente ou inconsciente dos homens;
procuram apontar para os desdobramentos que se impuseram com o
desenrolar das ações desse sujeito.2
Circe Bittencourt argumenta que as “[...] imagens diversas são produzidas pela
capacidade artística humana também nos informam sobre o passado das sociedades,
sobre suas sensações, seu trabalho, suas paisagens, caminhos, cidades e guerras”.3 Os
registros, ao serem examinados historiograficamente, tornam-se não o passado, mas
uma representação deste na contemporaneidade. Portanto, entende-se que, no terreno da
verossimilhança, a literatura é capaz de representar uma dada realidade com coerência.
Desde a origem do movimento dos Annales (1929), a historiografia vem cada
vez mais abrindo espaços novos para a pesquisa histórica. A "Nova História Cultural",
nos anos de 1980, ampliou as possibilidades de pesquisa. A partir dos problemas
enfrentados nas décadas de 1960/1970, retomou-se o que já havia sido definido pelos
1 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão [et al.]. Campinas: Editora da
Unicamp, 1990, p. 108. 2 BEZERRA, Holien Gonçalves. “Ensino de História: conteúdo e conceitos básicos”. In: KARNAL,
Leandro (Org.). História na Sala de Aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2007, p.
42. 3 BITTENCOURT, Maria Fernanda Circe. Ensaios de História: fundamentos e métodos. São Paulo:
Cortez, 2004. p. 353 – 354.
11
Annales na década de 1930, quando surgiram questionamentos a respeito das certezas
metodológicas e dos objetos sobre os quais o historiador se debruça. Com o intuito de
conciliar novos domínios de investigação, a historiografia toma para si outros campos
de estudos, como a psicanálise e a literatura.
Diante das circunstâncias que se apresentaram, o historiador passou a ver na
literatura uma alternativa fecunda de pesquisa: o mundo das representações presentes no
universo da ficção e dele a possibilidade em se extrair o “real”. Passou-se ao uso de
recursos existentes na ficção, dentre eles a narrativa e a subjetividade do indivíduo, que
ganha destaque e se torna mesmo indispensável ao processo de escrita da história.
A historiadora Sandra Pesavento, importante referência nacional nos estudos
dessa modalidade, reconheceu a relevância da literatura para o historiador, pois,
segundo ela, trata-se de um discurso privilegiado por representar o acesso ao
pensamento de diferentes épocas com base em personagens que habitam o campo das
possibilidades do real, preenchendo-se, assim, lacunas acerca das experiências vividas.4
Vários historiadores têm explorado esse campo de investigação. Sidney
Chalhoub, em Machado de Assis, Historiador, analisa o Brasil do século XIX a partir
das obras Machadianas.5 Nicolau Sevcenko, por sua vez, toma a literatura como objeto
da história em Literatura como Missão. Investiga o período da belle époque, com foco
na vida intelectual do Rio de Janeiro, tendo como figuras centrais os escritores Lima
Barreto e Euclides da Cunha.6
Outros estudos, semelhantes aos exemplos acima, mostram como as pesquisas
relacionadas à história e à literatura têm despertado o interesse da historiografia,
mostrando novas possibilidades que cabem ao historiador explorar.
Em pouco mais de 600 páginas, o livro que esta dissertação se propõe a analisar
retrata as aventuras e/ou desventuras do personagem Pedro Diniz Quaderna, em cuja
trajetória críticos reconhecem influências e semelhanças, em sua construção, com
acontecimentos presentes na vida do autor. Ariano Suassuna utiliza-se da força da
literatura e da liberdade que esta lhe possibilita para relacionar ficção e realidade.
O tempo literário é fluído. Nele, existe a possibilidade da coexistência de
diversos períodos em um mesmo espaço. A Pedra do Reino, em um primeiro momento
4 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Disponível em:
https://journals.openedition.org/nuevomundo/1560 Acesso em: 17 abril de 2018. 5 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
6 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.
12
apresenta dois tempos centrais: o tempo da escrita do livro (1958-1971) e o tempo de
sua narrativa (1935-1938).
Acoplados a estes tempos centrais, o livro ainda realiza aberturas a eventos que
combinam o passado próximo e o passado distante, anteriores à vida da personagem e
do autor. Ariano Suassuna busca integrar ambos ─ personagem e autor ─ de alguma
maneira, dando sentido a eles no decorrer da narrativa.
O movimento sebastianista do século XIX, ocorrido nas Pedras do Reino, mais
precisamente no ano de 1838, um século antes dos fatos narrados no romance, encaixa-
se como parte do quebra-cabeça em que Ariano Suassuna utiliza-se de fatos da história
nacional para a construção de seu "castelo" literário.
Outros dois autores se utilizaram dos acontecimentos que envolveram as Pedras
do Reino na produção literária: o precursor da temática, Araripe Júnior, ao escrever O
Reino Encantado: crônicas sebastianistas (1878) e José Lins do Rego, com Pedra
Bonita (1938) e Cangaceiros (1953), o que demonstra a relevância do tema na literatura
e na memória nacional.
Ariano Suassuna escreve sua Pedra do Reino em um momento que coincide com
a vigência da Ditadura Civil-Militar no país (1964-1985), o que, segundo o autor, possui
relação com a narrativa do livro. Na obra, estabelecem-se nexos entre o período
autoritário do governo Vargas (1930 – 1937) e o ditatorial de 1964, o que aparece de
forma transfigurada na criação literária do autor.
Transcorreram aproximadamente três décadas de intervalo entre os
acontecimentos que ligam o primeiro evento ao último (1930 – 1964). Também na obra
é possível ver referências às perseguições políticas a grupos comunistas, o que ocorre
em ambos os momentos, deixando de lado as especificidades de cada período.
A pesquisa procura dar conta da vida de Ariano Suassuna e dos marcos
temporais a ela ligados. Desde a infância cercado pela cultura popular, ele a recriou em
chave erudita, o que culminou no Movimento Armorial nos anos de 1970, alcançando
reconhecimento nacional e aclamação do autor pelo público e pela crítica.
Em 16 de junho de 1927, dia de Corpus Christi, no então palácio do governo
estadual da Paraíba, nascia Ariano Vilar Suassuna. Assinalado desde os primeiros anos
de vida pela tragédia do assassinato do pai, em razão das agitações políticas que
marcaram o país ao final da Primeira República, com a Revolução de 1930, Ariano
Suassuna transformou esse fato no núcleo de todo o seu viver e de grande parte de sua
obra, o que deixa claro em diversos momentos ao longo de seu itinerário de homem
público.
13
A figura paterna irá direcionar, mesmo após a morte, e em decorrência desta,
importantes decisões familiares e seus consequentes acontecimentos. É pela perda dessa
figura central que a família se vê obrigada a mudar-se para Taperoá.
Com o correr dos anos, cresce a vontade de recriar a imagem do pai. Ele passa,
portanto, a ter maior interesse pelas tradições e cotidiano do povo, identificando-se a
partir de então como sertanejo, se não por nascimento, por desejo.
Sua produção mescla esses dois caminhos principais: o sertão nordestino com o
povo, o qual reconhece como “seu”, e a figura paterna, que Ariano Suassuna constrói
para si. Essas opções se tornam claras quando nos deparamos com muitas de suas
principais produções, que vão desde o teatro até às artes plásticas: Uma mulher vestida
de sol (1947), O auto da compadecida (1955), A história do amor de Fernando e Isaura
(1956), O santo e a porca (1957), A farsa da boa preguiça (1960), além das
Iluminogravuras e coletâneas de poemas escritos e reescritos durante toda a vida.
Do conjunto de suas realizações, destaca-se como maior produção, tanto em
volume quanto em relevância, o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue
do Vai-e-Volta (1971).
Levando mais de uma década para a sua finalização, desdobrando-se entre os
anos de 1958 e 1971, data de sua publicação, A Pedra do Reino começa com anotações,
quando Ariano Suassuna buscava informações e tomava notas para a escrita de um livro
em homenagem a seu pai, João Suassuna (1886 – 1930). O autor, em várias
oportunidades, nas entrevistas concedidas ao longo da vida, declarou que a carga
emocional necessária a esse empreendimento não lhe era suportável, o que o impediu de
prosseguir. Não obstante, aqueles rascunhos primários seriam o começo do livro.
A Pedra do Reino se torna, tanto nas palavras de seus críticos como do próprio
Ariano Suassuna, sua principal obra. Primeiro, por tratar-se da tentativa de reunir todas
as formas em que sua arte ganha voz: teatro, romance, poesia, artes plásticas e a arte
inspirada na musicalidade e poesia do Romanceiro Popular. Segundo, porque foi nesse
trabalho que Ariano Suassuna procura expiação de seus fantasmas e angústias
relacionados à perda do pai, pois ali se encontram inseridas referências que ligam a vida
de Ariano Suassuna ao da personagem central, Quaderna.
O livro tem como foco a região Nordeste do país, mais especificamente o Sertão,
moldado pela perspectiva de Suassuna, que o enxerga pedregoso, árido, áspero, que
sobrevive por meio da resistência de um povo que encontra, porém, na poesia o
significado da luta diária.
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Esse sertão abrange, especialmente, os estados de Pernambuco, Paraíba e Rio
Grande do Norte. Trata-se de um recorte geograficamente reduzido e transfigurado. A
redução traz consigo uma densa carga de afetividade, pois a esse espaço ligam-se as
origens e as vivências do autor.
Esse ambiente é classificado por Quaderna, protagonista de Ariano Suassuna,
como o “coração do Nordeste”, as “duas províncias mais sagradas do Império do Brasil,
a Paraíba e Pernambuco, às quais somente o Rio Grande do Norte pode ser ajuntado em
absoluto pé de igualdade”. Com essa visão, interliga essas três regiões à história e à
vida de seus outros personagens.
Ariano Suassuna é, em sua maneira de encarar e representar a realidade, um
escritor que buscou retratar o Brasil com as peculiaridades do chamado "Brasil Real",
Para isso, extraiu da cultura popular as cores e as formas para pintar o cenário de suas
obras, em um eterno contar e recontar de histórias.
Sua ligação com o popular e seus escritos enquanto registros históricos norteiam
algumas inquietações as quais este trabalho busca compreender: até que ponto o popular
se insere na obra de Ariano Suassuna?
A interação que possui com esses universos ambíguos gerou intensos
questionamentos acerca de suas fronteiras socioculturais no decorrer de sua vida,
engendrando em sua figura um exemplo do processo de circularidade e movimento de
informações entre a cultura letrada e a do povo.
Os estudos que incluem o popular no universo de Suassuna são os mais diversos,
todavia se encontram em maior parte na área das letras. Aqui, visa-se uma abordagem
de caráter historiográfico, diferente dos estudos literários, ao se relacionar história e
literatura, tomando-se esta última como registro documental para a pesquisa histórica.
Busca-se, dessa forma, apreender a visão de um intelectual, que, ocupando-se da
esfera popular como matriz, a aborda por meio de uma configuração erudita. Assim,
questiona-se a possibilidade de se enxergar em Suassuna e no Movimento Armorial,
uma tentativa de representação da cultura popular a partir de remanescente de uma
tradição ibérica. Com base na hipótese de que A Pedra do Reino sirva a tal propósito,
reafirma-se a perspectiva da importância da literatura como registro de diversos
elementos da história e da cultura do país.
Estabelecer princípios que norteiam a pesquisa é passar por teorias elaboradas ao
longo da história. É necessário, portanto, compreender os processos de troca cultural,
exemplificando aquilo que Ginzburg denomina de "circularidade cultural" entre a
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grande e a pequena cultura, conforme Bakhtin.7 Ginzburg traz na figura de
Menocchio a exemplificação do processo de circularidade da cultura que existiu na
Europa pré-industrial entre as classes dominantes e as classes subalternas, onde o
moleiro friulano, torna-se um filtro entre os dois grandes grupos sociais. Algo
semelhante ao que observamos no processo que Ariano Suassuna toma para si, indo de
um extremo a outro, entre o universo erudito e popular, não permanecendo fixo em
nenhum dos espaços. 8
Peter Burke, ao retratar o processo de transformação da Europa pré-industrial,
traz à luz atores sociais que se tornaram importantes como veículos de transmissão
nesse mesclado espaço social.9 Andarilhos, charlatões, artistas de rua, palhaços, amas de
leite, mulheres, um grupo de filtros transmissores, que circulavam de um extremo a
outro, absorvendo, reinventando e (re)transmitindo em sua própria visão de mundo,
elementos que permaneceram perpetuando-se de maneira que não se pode prever ou
controlar.
O processo em que a reinvenção de símbolos e manifestações ocorre é algo
maleável dentro do universo popular. É possível enxergar novos cenários dentro de
tradições já consagradas em que o povo se torna “guardião” de cada elemento que
compõe as reminiscências da memória ao longo do tempo, através de costumes, da
oralidade, das transformações de elementos clássicos, que não possuíam mais espaços
na sociedade moderna.
O Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta,
enquanto objeto e a principal fonte desta análise, é uma obra em que o autor revela
aspectos históricos, memorialísticos e culturais da população do Nordeste brasileiro que
buscou retratar. Deve-se ter em consideração a impossibilidade de retratar tal espaço em
sua pluralidade cultural e histórica. Os fatos aqui apresentados referem-se ao “Nordeste
de Ariano Suassuna”, limitado geográfica e poeticamente, conforme os interesses do
escritor. Toda uma arte, experiências e construção social do Nordeste sertanejo são
percebidas ao longo das páginas do livro.
Durante o longo processo de produção da obra, Ariano Suassuna procurou
retratar os eventos sebastianistas ocorridos nas Pedras do Reino no século XIX, com
7 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: Hucitec Editora, 1987. 8 GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. Trad. dos poemas: José Paulo Paes. Revisão Técnica: Hilário
Franco Jr. ⸺ São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 9 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500 – 1800. Trad. Denise Bottmann. 2ª
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
16
base nos escritos de Antônio Attico de Souza Leite, e como veio a ressoar na memória
popular.10
Após aposentar-se como professor da Universidade Federal de Pernambuco,
Suassuna desenvolveu um projeto denominado aulas-espetáculos, as quais ministrou até
o fim de sua vida. Grande parte dessas aulas encontra-se disponível e se constitui em
fonte para a análise de seu pensamento no universo da literatura e das artes.
Acervos de jornais de distintos períodos retratam momentos conturbados de sua
história, como as críticas das quais seu pai e família foram alvos. Os periódicos são,
portanto, outro corpo de fontes indispensáveis para a análise aqui proposta. Eventos
ligados ao sucesso de crítica e público, suas peças teatrais e o filme A Compadecida
(1969), este último contando com a assessoria de Ariano Suassuna, integram o corpus
documental. O filme, de grande repercussão internacional, já apresentava elementos que
seriam incorporados pela estética no Movimento Armorial.
A imprensa é um terreno fecundo, por possibilitar a investigação da visão de
diversos grupos e seus interesses. Vista como processo, a memória de Suassuna,
carregada de emotividade, considerando-se o que antecedeu e que sucedeu ao
assassinato do pai, é capaz de esclarecer e suscitar questionamentos a respeito da
concepção da figura dos indivíduos envolvidos. Por essa razão foi considerada nesta
abordagem, porém, com a devida cautela.
Em sua carreira, tanto em vida quanto postumamente, Ariano Suassuna foi
positivamente reconhecido pela crítica literária, tanto nacional quanto internacional, o
tornando uma figura de destaque na literatura. Sua obra, especialmente aquela voltada
para a dramaturgia, é vista como um importante legado e seu Romance d’A Pedra do
Reino, um dos maiores registros ficcionais da literatura brasileira.
O próprio Ariano Suassuna transforma-se em fonte jornalística, haja vista os
vários registros pessoais que realizou em periódicos do país. Deve-se chamar a atenção
para seu “Almanaque Armorial do Nordeste”, pequeno compêndio literário produzido
por ele em um curto espaço de dois anos (1972 – 1974), onde o autor, em uma espécie
de diário semanal, publicava posições, pensamentos e ideias a respeito dos mais
variados assuntos, tendo o Nordeste e sua cultura, como foco principal. Suassuna se
10
Antônio Attico de Souza Leite (1835 – 1877) Foi deputado provincial (1873-1877). Escreveu o
trabalho, Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, Província de
Pernambuco, à Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco, do qual era membro.
Postumamente, com a supervisão de seu filho Solidônio Attico de Souza Leite, resultou na obra
“Fanatismo Religioso - Memorias sobre o Reino Encantado na Comarca de Vila Bela”, sendo o primeiro
trabalho a respeito do evento e memória da Pedra do Reino, de São José do Belmonte (PE), que inspirou o
épico romance escrito por Ariano Suassuna.
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enxergava, ou desejava que assim fosse visto, como o defensor da cultura nacional,
cavaleiro errante que evitaria o colapso diante das garras sanguinárias da “globalização”
e da “aculturação”.
Os meios para a pesquisa ainda se estendem as entrevistas, produções artísticas,
trabalhos acadêmicos onde o foco varia entre sua figura, seus trabalhos ou o Movimento
Armorial. Ariano Suassuna transformou-se em um ícone da cultura pop. Grande parte
desse acontecimento se deve ao fato da proliferação midiática de suas entrevistas e
aulas-espetáculos. Nelas, o autor propaga suas ideias a respeito da cultura nacional e do
mundo letrado por meio da comicidade e de uma linguagem acessível.
O primeiro capítulo desta dissertação, Ariano Suassuna: a trajetória de um
sertanejo armorial, ocupa-se da construção da formação intelectual e do universo
artístico de Ariano Suassuna. A coexistência entre o popular e o erudito em uma mesma
figura ao longo de sua trajetória. Procura-se mostrar o contexto de criação do autor,
destacando os fatos e os momentos que marcaram seu processo de desenvolvimento,
desde os seus primeiros anos até a fase adulta e sua consagração.
No segundo capítulo, Suassuna e As Pedras no Caminho: política e criação
literária, analisa-se o tempo da narrativa a partir do enredo do romance e os demais
tempos históricos que nele se desenvolvem. A problematização em torno da relação
ficção/memória, através da vivência da personagem Quaderna, encontra-se explorada
nesta seção. Discute-se ainda como a literatura se insere enquanto fonte para a pesquisa
histórica.
O debate exposto propõe a análise das diversas faces e fases da vida de Ariano
Suassuna relacionadas às memórias do escritor, à luz dos fatos históricos. São tópicos
deste capítulo a identidade do Ariano Suassuna poeta, dramaturgo, romancista e artista
plástico, assim como o Ariano Suassuna criança, adulto, estudante de direito, professor
universitário. Explora-se o conhecimento biográfico, necessário à construção do perfil
de um indivíduo, pensado aqui como uma fusão de seus diversos “eus”.
Já o terceiro capítulo, O Sertão Transfigurado de Suassuna: entre as pedras e
um reino, tem por objetivo a análise da obra fonte, a releitura do universo popular e sua
ressignificação em chave erudita, tendo Ariano como filtro e interprete dessa dicotomia
e da fusão entre esses universos.
18
CAPÍTULO I
ARIANO SUASSUNA: A TRAJETÓRIA DE UM SERTANEJO ARMORIAL.
O título deste capítulo visa exprimir a dualidade presente na figura de Ariano
Suassuna, cuja trajetória intelectual foi marcada pela cultura popular, que termina por
incorporar-se ao seu universo letrado, reconhecendo-se como sertanejo em seu
caminhar.
O sentido de Armorial remete a um Livro para registro de brasões de armas.
Estudiosa do Movimento Armorial e da obra de Ariano Suassuna, Idelette Muzart
Fonseca dos Santos vai além, definindo Armorial como um substantivo que designa a
coletânea de brasões da nobreza de uma nação ou província. A utilização do termo
como adjetivo, conforme passa a ser utilizado por Ariano Suassuna, constitui-se,
portanto, um neologismo.11
Ariano Suassuna assim definiu a Arte Armorial:
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a
ligação como o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do
Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música da viola, rabeca ou pífano que
acompanham seus “cantadores”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas,
assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com
esse mesmo Romanceiro relacionados.12
O escritor ressalta a relação do Movimento com a literatura do Nordeste,
presente nos folhetos das feiras, por unir nele três formas distintas de arte: a poesia, a
xilogravura e a música, tornando a obra uma bandeira cultural a respeito da
interpretação do Nordeste.
Entre os motivos da escolha do termo, encontram-se, segundo Idelette, três
pontos principais. Primeiro, o fator estético. Conforme Ariano Suassuna, o termo
Armorial é uma palavra que canta, ligada a heráldica, na perspectiva dos esmaltes
limpos, nítidos, pintados em metal ou esculpidos em pedra cercados por símbolos. Ele
relaciona tal conceito às particularidades das construções barrocas e sertanejas do
11
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular: Ariano Suassuna e o
Movimento Armorial. 2ª ed. Campinas – SP: Editora da Unicamp, 2009. 12
VASSALO, Ligia. O Sertão Medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1993, p. 28.
19
Brasil, a concretização do termo à transmissão da ideia ao plano do real. Por último,
alude às insígnias do povo, sua literatura, símbolos, identidade, música e poesia, que
são, segundo essa concepção, límpidos, reluzentes, coloridos, festivos.13
1. Origens
Em diversos relatos, ao longo de sua vida, Ariano Suassuna (1927-2014)
demonstrou desconforto com as consequências decorrentes da morte prematura do pai,
João Suassuna (1886-1930), ex-governador da Paraíba e, à época, opositor do
governador João Pessoa (1878-1930).
João Suassuna foi assassinado por motivos políticos, durante uma emboscada na
cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, no contexto da Revolução de 1930. Sua
morte efetivou-se em represália ao assassinato do governador da Paraíba, João Pessoa,
ocorrido naquele mesmo ano, durante o episódio conhecido como a “Guerra de
Princesa” (1929-1930).14
O coronel Zé Pereira, personalidade de destaque na política do Nordeste e do
país, tornou-se líder de um movimento que entrou em confronto com as forças do
governo da Paraíba representadas por João Pessoa.
José Pereira figurava como líder de diversos chefes da oposição estadual. Eles
não viam com bons olhos as ações de João Pessoa, entre as quais a de tentar centralizar
os departamentos do poder público e desvincular a máquina administrativa do estado do
controle dos coronéis. Tais medidas tornaram-se impopulares frente aos líderes políticos
estaduais, que levaram a cabo ações contra o seu governo.
A crescente indignação de lideranças paraibanas, durante o mandato de João
Pessoa, em decorrência da proibição de reeleição de candidatos a cargos no governo, do
desarmamento dos coronéis e da “Guerra Tributária”, resultou na deflagração da
"Guerra de Princesa". De acordo com Inês Rodrigues, com a tentativa de combater a
crise econômica que assolava o estado, João Pessoa buscou favorecer o comércio local,
com maior incentivo aos produtos e produtores da Paraíba quando em 17 de novembro
de 1928, promulga-se a Lei Tributária de 1928, regulando a exportação e importação de
13
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular. 14
Segundo Inês Rodrigues, embora o evento do conflito de Princesa tenha ocorrido em 1930, os
preparativos, bélicos, políticos e financeiros se iniciaram no ano de 1929. RODRIGUES, Inês Caminha L.
A Revolta de Princesa: poder privado x poder instituído. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
20
mercadorias, onde, com o Imposto de Incorporação, colocava uma barreira sobre os
produtos que possuíam procedência fora do estado.15
Diante do cenário propício ao conflito, um grupo de coronéis insatisfeitos,
feridos em seu orgulho, se junta a um segmento de comerciantes endinheirados e
descontentes. Nessas circunstâncias, o coronel José Pereira torna-se o homem certo para
aquela liderança.
Segundo Rodrigues, seu prestígio ultrapassava os limites do estado, sua
personalidade, gentil e polida, angariava a simpatia de um grande número de indivíduos
a ele devotados, pessoas que, inclusive por sua ajuda, se encontravam ligadas ao
governo e a suas forças militares, o que acabou lhe favorecendo.
Em decorrência das baixas e derrotas que o governo do estado vinha sofrendo
frente aos rebeldes de Princesa, numerosas foram as atitudes tomadas com o intuito de
conseguir modificar a situação.
O conflito teve fim com o assassinato de João Pessoa (1930). Embora o crime
possuísse razões passionais, a ele foi atribuída toda a carga política daquele conturbado
momento da história do país. A Guerra de Princesa revelou-se além de um conflito
armado, uma guerra de egos, psicológica e midiática.
Ambos os lados buscavam, principalmente por meio da imprensa, difamar o
oponente, as brigas entre a União, jornal apoiador do governo e o Jornal do
Commercio, opositor, serviam para inflamar os descontentamentos e a população palco
da disputa. Diante desse contexto, João Pessoa e João Dantas, travaram uma disputa
através da imprensa, dando abertura ao ódio pessoal.
Com a divulgação de documentos íntimos, cartas amorosas entre ele e sua
amante, a professora e poetiza Anayde Beiriz (1905 – 1930), apreendidas por meio da
invasão de um apartamento pertencente a João Dantas, pela polícia da Paraíba,
desencadeou uma sucessão de acontecimentos em um efeito dominó. A divulgação das
cartas tornou-se um verdadeiro escândalo na época, Anayde e seu romance com João
Dantas era um episódio paradoxal para a sociedade da época. Espirito livre, Anayde,
representava tudo o que conflitava com o conservadorismo da classe a qual João Dantas
pertencia.16
15
RODRIGUES, Inês Caminha L. A Revolta de Princesa. 16
AMARO, Lays & LIMEIRA, Emanuel. Anayde Beiriz e João Dantas - Um Romance nos Anos 30
(2014). Documentário 18’ 39”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B7gr0EUzpbw
Acesso em: 19 abr de 2018.
21
A transmissão da memória relativiza a história com suas variações. Há alegação
de que João Pessoa jamais autorizou a invasão e a divulgação das cartas pertencentes a
João Dantas, tornando alvo inocente de seu opositor. Em contrapartida, muitos
reconhecem legitimidade no ataque a Dantas, diante de todo o acúmulo de ofensas a sua
família.
A morte do governador João Pessoa desencadeia reviravolta exacerbando a
situação conflituosa. O poder do estado, que até então colecionava insucessos frente aos
rebeldes, presencia a vitória dos rebelados em decorrência daquela morte. Simpatizantes
e apoiadores do movimento de Princesa transferem-se de lado. A imagem de João
Pessoa, transformado em mártir, causa tamanha comoção popular que ganha não
somente as ruas do estado da Paraíba, mas as ruas do país, contexto que contribuirá para
a eclosão da Revolução de 1930.
Toda essa situação, de grande impacto para a história nacional, também causará
uma imensa transformação na vida de Suassuna e sua família.
2. Os novos mundos de Ariano Suassuna
O pequeno Ariano Suassuna contava com a tenra idade de 3 anos quando a
ausência da figura paterna lhe foi imposta, situação que marcou toda a sua trajetória de
vida, tanto em âmbito familiar, quanto no que tange à trajetória literária.
A romancista cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), umas das escritoras de
destaque da literatura nacional e amiga de longa data de Ariano Suassuna, ratifica, em
um documentário intitulado O Sertãomundo de Ariano Suassuna, um retrato difundido
em relação ao ser de Ariano Suassuna e à sua perda paterna:
A Personalidade de escritor dele se formou muito com essa tragédia, se
desenvolveu muito com essa tragédia, como que tocou as fibras mais
importantes do coração dele. Olha, é difícil à gente dizer, porque o escritor
sublima as coisas, o autor, um pintor, sublima o sujeito, o pai dele morreu
assassinado, ele vai pintar, não pinta o pai sendo assassinado, mas o pai
assassinado tá ali. De forma que essa tragédia da família do Ariano deve ter
refletido muito na literatura dele, nos livros ele é ele, mas ele é também o
fruto daquele, de todo aquele ambiente em que ele se criou e foi vítima.17
A morte do pai significará uma drástica mudança. O acontecimento não afetou
somente a vida do menino Ariano Suassuna, mas também a de toda a família, que foi
17
MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004). Documentário, 60’24”. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=Xgfu4eDuzE0 Acesso em: 20 de Jan de 2017.
22
estigmatizada enquanto membros pertencentes de um clã “vencido”, representantes do
sertão arcaico e esquecido.
Uma nova realidade se apresentou à família Suassuna, que, desde a morte do
governador João Pessoa, se viu obrigada a constantes mudanças por conta das
perseguições e represálias sofridas. Com o falecimento do patriarca, João Suassuna, a
família que ainda resistia na fazenda Acauhan, liderada por Dona Rita Vilar Suassuna
— viúva aos 34 anos de idade —, viu-se a cada dia em situação preocupante, em
especial após a terrível seca de 1932, que trouxe consigo o estrago à propriedade. A
viúva se estabeleceu com os filhos, no mesmo ano da tragédia, na cidade de Taperoá,
sertão da Paraíba, onde recebia auxílio da família materna.18
Sobre ela, Ariano Suassuna
revelou que o maior desgosto que alguém podia dar à mãe era ficar se lamuriando da
vida: “Ela foi muito forte. Usou luto a vida inteira, mas não deixou a gente usar”.19
Acauã, pássaro habitante do sertão, que tem em seu canto o prenúncio de maus
presságios, era também o nome da propriedade adquirida por João Suassuna no ano de
1919 (Acauhan).20
Após sua saída do governo da Paraíba (1928), tornou-se a residência
da família. Típica moradia sertaneja do século XVII, segundo Tavares, localizada no
atual município de Sousa, no estado da Paraíba, a 427 quilômetros da capital, além de
ter sido pouso de tropeiros no passado, guardava em si forte importância histórica “[...]
Ali dormiu Frei Caneca, após ser preso no Ceará durante a [...] Confederação do
Equador”.21
Ariano Suassuna nasceu em 16 de junho do ano 1927. Em um dia de Corpus
Christi. Esse fato possivelmente influenciou o autor, o que se revela na atmosfera
mística e religiosa que permeia a sua obra, e conforme relata o próprio Ariano Suassuna,
de forma notadamente idealizada:
18
Segundo recorda Tavares, a nomenclatura de “sertão”, com a qual se designa Taperoá compreende uma
realidade mais figurativa do que geográfica, localizando o sertão mais além “Embora seja considerada
uma cidade sertaneja, Taperoá fica a oitocentos metros de altitude [...] O Sertão propriamente dito se
situa mais além [...] Esta área em geral chamada Alto Sertão, mas o termo não se deve à altitude, e sim
ao fato de ser a parte mais remota do estado”. TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna. Rio de
Janeiro: Editora José Olympio, 2007, p. 23-24. 19
VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Rio de Janeiro: Editora
Zahar, 2007, p. 11. 20
“Acauã” é também a música de composição de Zé Dantas e interpretação de Luiz Gonzaga, que
relaciona o mito popular que liga sua figura e seu canto ao mau agouro: “Acauã, acauã vive cantando/
[...] No silêncio das tardes agourando/ Chamando a seca pro sertão [...] Acauã/ Teu canto é penoso e faz
medo/ Te cala acauã/ Que é pra chuva voltar cedo [...] Toda noite no sertão/ Canta o João Corta-Pau/ A
coruja, mãe da lua/ A peitica e o bacurau/ Na alegria do inverno/ Canta sapo, gia e rã/ Mas na tristeza
da seca/ Só se ouve acauã [...]”. DANTAS FILHO, José de Sousa. Acauã. Disponível em:
https://www.letras.mus.br/luiz-gonzaga/8238/ Acesso em: 16 abr 2017. 21
TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna, p. 10.
23
Nasci num dia de Corpus Christi, às 16h. Naquele 16 de junho de 1927, a
procissão estava passando na frente do palácio do governo onde meu pai
[João Suassuna] era governador e onde minha família morava, quando todos
pararam para receber a notícia do meu nascimento. Ali por perto havia uma
velhinha, uma dessas velhinhas típicas do Nordeste, uma figura linda, cabeça
bem branquinha, com casaco de mangas compridas e saia até os pés, que
disse na hora: “Esse menino só pode ter um futuro de santidade”. O que
mostra como essas velhinhas do Nordeste são fracas no ramo da profecia.22
Após a morte de João Suassuna e a mudança da família para Taperoá, Ariano
Suassuna encontrou ali a matéria principal daquilo que conduziu e foi a base de todo o
seu trabalho: a cultura popular do Nordeste, à qual somou o trauma de sua vida: a morte
do pai.23
No Nordeste, as cidadezinhas sertanejas do interior não diferem muito entre si.
Fora as diferenças de localização, sotaques e tradições, que variam de lugar para lugar,
dando-lhe vida própria, elas não são idênticas, porém parecidas em sua atmosfera. São
comunidades em que o tempo passa devagar, em que as pessoas interagem de maneira
distinta dos grandes centros urbanos.
É comum, ainda no século XXI, encontrar ornando essas cidades uma pracinha,
com suas tardes e noites de convívio social e uma igreja. É característico da vida dessas
localidades as construções relacionadas à fé católica ou católica sertaneja, como
denominado por Ariano Suassuna.
Taperoá era, em sua época, uma dessas cidadezinhas do interior do Nordeste
brasileiro. Ela se transformou no cenário do universo suassuniano, o palco de seu teatro.
Mesmo nas obras em que não a cita diretamente, pode-se perceber, em sua descrição, a
silhueta característica desta cidade, tão importante para o autor.
Adriana Victor, secretária de impressa de Ariano Suassuna, entre os anos de
1995 e 1998, e Juliana Lins, co-autora de diversas obras de cunho biográfico,
publicaram Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Entre os diversos relatos a respeito
do autor, descrevem o apreço que Ariano Suassuna demonstrava por Taperoá, terra a
qual chamava de sua, embora não tendo nela nascido.24
A identificação com a pequena cidade do interior pernambucano fazia com que o
autor de o Auto da Compadecida sentisse por aquele pedaço de chão o aconchego
22
DIAS, Maurício Santana. “No meio do caminho tinha a Pedra do Reino”. Entre Livros, São Paulo, a. 1,
n. 3, jul, 2005, p. 30-35. 23
Carlos Newton Júnior identifica na poesia de Ariano, como este mesmo já declarou “ser a sua poesia a
fonte profunda de tudo o que ele escreve inclusive o romance e o teatro”, elementos tanto dessa figura
paterna, quanto do reino perdido de sua infância. NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino: a
poesia armorial de Ariano Suassuna. Recife: Editora da Universitária da UFPE, 1999. 24
VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico.
24
daquilo que caracteriza o que se reconhece como lar, conforme suas numerosas
declarações de natureza autobiográficas.
Em Taperoá, Ariano Suassuna seguiu o seu cotidiano de menino. Além do
aprendizado das primeiras letras, faz questão de ressaltar o uso assíduo da biblioteca do
pai e do gosto crescente pela literatura, além das caçadas e das expedições às fazendas
ao redor. Entre elas, a Fazenda Malhada da Onça é uma de suas referências. Sua
importância é de tal ordem que se transfigurou na “Fazenda Onça Malhada” em A
Pedra do Reino.
Ariano Suassuna elaborou, assim, uma fusão espacial no seu processo de
rememoração que se exprime na sua produção ficcional. Ele recorda Acauhan, ao se
lembrar do pai e de sua primeira infância e se reporta à sua época de menino, por volta
dos 7 anos, na fazenda Malhada da Onça, em Taperoá. Com base nesses dois “lugares
de memória”, Ariano Suassuna construiu a ficcional “Fazenda Onça Malhada”, onde o
personagem Quaderna viveu sua vida de menino.
Nesses primeiros anos de aprendizado e construção interior, duas figuras se
destacaram como “[...] seus primeiros mestres de literatura: seus tios Manuel Dantas
Villar — meio ateu, republicano e anticlerical — e Joaquim Duarte Dantas —
monarquista católico”. 25
Mais uma vez, sua realidade foi transportada para a ficção:
Clemente e Samuel personagens de A Pedra do Reino foram inspirados nesses dois tios
de Ariano Suassuna.26
A trajetória intelectual de Ariano Suassuna passou pelo processo de formação do
indivíduo ligado ao ensino secular e às tradições populares, entrelaçando-se na figura de
uma só pessoa. O contato com as culturas que emanam do povo se deu bem antes do
escritor estabelecer relações com o mundo das letras. Naquele momento a sua formação
processava-se no âmbito do que considerava o “Brasil real”, que posteriormente viria a
ser “deturpada” pelo “Brasil oficial”.27
Com sete anos de idade, eu vi o primeiro desafio de cantadores em Taperoá,
no sertão da Paraíba, [...] levado a essa peleja por um irmão meu, Lucas
Suassuna. E, dos dois cantadores que estavam se enfrentando nesse dia, um
25
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. 14ª ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2014, p. 20. 26
SUASSUNA, Ariano. “Programa Roda Viva, TV Cultura” em 06/05/2002. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=mW4zTJq7k0M&t=229s Acesso em: 30 de maio de 2016. 27
Ariano em sua teoria que gira em torno do indivíduo frente ao Brasil Real x Brasil Oficial, sempre em
declarações, ao longo da vida, remete a um pensamento do escritor brasileiro Machado de Assis.
“Machado de Assis tem uma frase que sempre me impressionou muito. Ele sempre dizia que o país real é
bom e revela os melhores instintos, mas o país oficial é caricato e burlesco”.
25
era um grande cantador, Antônio Marinho. E eu tive um choque muito
grande. Foi uma coisa que me impressionou muito, não só pelos desafios,
nem pelos improvisos, mas porque Antônio Marinho cantou um folheto que
ele sabia decorado. Aquilo me impressionou muito.28
Após esse primeiro contato, que tanto lhe impressionou, Ariano Suassuna
declarou que recebeu um impulso decisivo. Ele descobriu na biblioteca deixada pelo
pai uma variedade de clássicos da literatura universal. Essa descoberta proporcionou-lhe
os primeiros contatos com a matéria do mundo:
Imediatamente depois, houve um outro conhecimento que me levou a me
ligar ainda mais profundamente a essa arte popular brasileira. Meu pai era um
grande entusiasta dos cantadores e dos poetas populares. Ele tinha um amigo,
um escritor cearense chamado Leonardo Mota, que era pesquisador dessa arte
popular. Pesquisava os cantadores e os folhetins. Um dos livros de Leonardo
Mota é dedicado a meu pai [...] um livro chamado Sertão Alegre. E, no corpo
do livro mesmo, ele cita meu pai como uma das pessoas que forneciam
versos de cantadores a ele; meu pai era uma das fontes de Leonardo Mota.
[...] Por isso eu comecei a respeitar essa tradição popular, talvez eu não
respeitasse se não a tivesse visto como objeto de livro.29
A presença na biblioteca paterna de obras sobre a arte popular fez com que ele
reconhecesse no pai um entusiasta e admirador dessa cultura. Conforme o próprio
Ariano Suassuna admitia, a biblioteca do pai o influenciou muito.30
Talvez a cultura
popular não fosse tão marcante em sua obra se não estivesse presente ali a imagem do
pai e o desejo de encontrar na escrita alguma maneira de ligar-se a ele.
O conhecimento da arte dos mamulengos, vista em Taperoá, no mercado
popular, foi importante na trajetória do escritor. Ao reportar-se à sua formação, afirma
que esse conhecimento fundiu-se ao literário que ele vinha adquirindo, pois Ariano
Suassuna reconheceu ali, na representação teatral dos bonecos, a manifestação de
histórias universais e, com isso, sua ligação com outras épocas.
Em seu trabalho pioneiro a respeito do teatro de Ariano Suassuna, Lígia Vassalo,
em O Sertão Medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna, apresenta o
exame dos aspectos medievais que perpassam a obra do escritor, na perspectiva de sua
28
DIDÍER, Maria Thereza. “Conversa sobre o popular e o erudito na cultura do Nordeste”. Projeto
História, PUC-SP, São Paulo, v. 18, mai 1999. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10999/8119 Acesso em: 20 jan 2017. 29
Ibidem. 30
“Foi de uma influência fundamental, a biblioteca que ele nos deixou”. MACHADO, Douglas. O
Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004).
26
dramaturgia, que transporta tais elementos da literatura popular do Nordeste para o
ambiente culto.31
Ainda que Lígia Vassallo tome como suporte a perspectiva do universo das
Letras, sua obra se ocupa de aspectos historiográficos que mostram a permanência de
características da cultura medieval no Nordeste brasileiro, as quais se constituem em
referências básicas para a dramaturgia de Suassuna. Como já referido, algumas
lembranças que marcaram a infância do autor em Taperoá acabaram refletindo em sua
visão de mundo, a exemplo do espetáculo teatral de bonecos, “mamulengos”.
Lígia Vassalo demonstra como esse tipo de teatro, juntamente com outras
manifestações, são exemplos das reminiscências culturais europeias no Sertão. Segundo
a autora, apesar de sua origem imemorial, o espetáculo cômico aparece em diversos
registros e em distintas épocas como na trama de Dom Quixote, de Cervantes, ou na
vida cotidiana no Rio de Janeiro do século XVIII, conforme apresentado por Luiz
Edmundo em O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis, conforme ressalta a autora.32
Por meio de piadas, diálogos e a reprodução de um universo onde a obscenidade
e a violência são encontradas, além de seu caráter popular, reforça-se a ideia de que os
mamulengos estariam ligados à farsa e a commedia dell’arte.
Já Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, ao definir o
mamulengo, proporciona a visão da importância deste para as camadas populares em
regiões do Nordeste. A classificação do autor ocorre, inclusive, em Pernambuco,
revelando assim uma visão próxima daquilo que Suassuna teria presenciado na Paraíba,
diante da contiguidade entre ambos os estados. Conforme Cascudo:
Espécie de divertimento popular em Pernambuco, que consiste em
representações dramáticas, por meio de bonecos, em pequeno palco, alguma
coisa elevado. Por detrás de uma empanada, esconde-se uma ou duas pessoas
adestradas, e fazem que os bonecos se exibam com movimento e fala. A
esses dramas servem ao mesmo tempo de assunto cenas bíblicas e de
atualidade. Tem lugar por ocasião das festividades da igreja, principalmente
nos arrabaldes. O povo aplaude e se deleita com essa distração,
recompensando seus autores com pequenas dádivas pecuniárias. Os
mamulengos entre nós são mais ou menos o que os franceses chamam
marionette ou polichinelle. [...] Puppet-shows como o chamou Henry Koster,
João Redondo, (Rio Grande do Norte, João Minhoca, no Rio de Janeiro [...]
Don Cristóbal Espanha, Hans Wurts na Alemanha, Punch na Iglaterra, Jean
Klassen na Áustria, Hans Pikelharing na Holanda, Karagauz na Túrquia,
Pupazzi, Guignol, foram aplaudidos em toda a Europa desde a Idade Média.
Tiveram e tem teatrinho em Paris e Londres, exclusivos. Egípcios tiveram
seus mamulengos. Os gregos denominavam-nos neuro-spata; simulacra,
31
VASSALLO, Ligia. O Sertão Medieval. 32
EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis – 1763 – 1808. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2000.
27
imagungulae em Roma, barattini italianos. Difícil apurar o povo que não o
possui ou possuiu. Luís Edmundo (No Tempo dos Vice-Reis, 447, Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 163, tomo (109) documenta a
popularidade dos títeres na capital brasileira do séc. XVIII. O mamulengo é
verdadeiramente o Guignol, o pupazzi italiano. As figurinhas são animadas
pela mão do encenador [...] Fantoche Ricardo em Portugal.33
De acordo com Tavares, foi em Taperoá que Ariano Suassuna teve contato com
pessoas idosas, especialmente mulheres, que, embora desconhecessem o universo
letrado, era por meio da oralidade que recitavam longos poemas aos quais
denominavam de cantigas velhas, termo e cenário, inclusive reconstruídos em A Pedra
do Reino.
Ariano Suassuna teria posteriormente descoberto que tais cantigas estavam
ligadas a antigos romances ibéricos, preservados por meio da oralidade no decorrer dos
séculos.34
Em Peter Burke, vê-se que em uma Europa pré-industrial, onde a maior parte da
população era analfabeta, era possível às mulheres desempenharem o importante papel
de transmitir a cultura popular por meio da difusão de histórias.35
Nobres e eruditos tinham em suas mães, irmãs, esposas, que em sua grande
maioria, embora nobres, não estavam inseridas naquilo que Bakhtin denomina de
"grande cultura". Havia ainda as amas de leite, camponesas, através das quais
possivelmente se estabelecia contato com as baladas e estórias populares. Walter
Benjamin, em O Narrador, ao lamentar-se das transformações que o mundo passava
diante da modernidade, revive poeticamente lembranças de um passado romântico, no
qual as pessoas transformavam o ato de contar histórias, em uma coletiva transmissão
de experiências, adornando o mundo de outrora agora em ruínas substituído pelo
progresso e suas relações egoístas.36
É possível que a influência das mulheres que guardavam as histórias do povo
tenha conduzido à valorização do feminino na obra de Ariano Suassuna. Nela, as
mulheres não são vistas como personagens insignificantes ou que se submetem a
vontades masculinas de maneira passiva, como comumente imagina-se que ocorra na
realidade do sertão. Na verdade, utiliza-se de artimanhas para conseguirem o seu
intento. 33
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª edição. Rio de Janeiro: Ediouro,
2010, p. 72. 34
TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna. 35
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. 36
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Obras escolhidas vol. I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasilense, 1987.
28
Dois exemplos ambíguos retratam bem essa realidade da obra de Suassuna: a
Virgem Maria, a Compadecida em O Auto da Compadecida (1955), e Caroba, em O
Santo e A Porca (1957). A primeira ao utilizar-se da imagem da pureza e da
benevolência, através da transmissão da ideia de passividade, consegue modificar o
destino de condenação das demais personagens, salvando-as do inferno. A personagem
Caroba, por sua vez, é revestida da imagem popular do pícaro, se utilizando da astúcia
para alcançar seus objetivos.
Em Taperoá, segundo o texto O Teatro, o circo e eu, Suassuna se viu diante de
uma de suas maiores paixões e encantamentos na vida: O Circo, que para ele seria uma
estranha representação de metáforas na vida.37
Herdeiros da Commedia Dell'Arte,
comédia ao estilo pastelão, os palhaços modernos advêm de uma tradição de artistas
andarilhos que perambulavam de cidade em cidade, apresentando-se tanto em cortes
quanto em praças públicas.38
Segundo Burke, artistas de entretenimento, ambulares e mascates, em trupes ou
sozinhos, com características próprias, roupas coloridas, chamativas e codinomes em
sua maioria cômicos, viajavam de lugar em lugar acreditando que mudar o público era
mais fácil que mudar o repertório.39
Ainda em Burke, verifica-se a importância dessas personagens na circulação de
elementos culturais, de cidade em cidade, por meio das apresentações que realizavam,
tanto para as camadas populares, como para as abastadas, alguns tornando-se famosos.
Figura icônica desse cenário eram os palhaços, populares tanto nas cortes quanto
nas tavernas e praças públicas, por vezes sendo os mesmos indivíduos. Demonstrando,
assim, entre outras coisas, além do palhaço, a diversidade que existia nesses grupos
andarilhos de entretenimento, por vezes maltrapilhos e pobres, algo que lembra a
diversidade dos tipos nos circos sertanejos da década de 1930, presentes na infância dos
meninos do sertão de Taperoá, dentre eles Ariano Suassuna.40
Contando Ariano Suassuna com cerca de 15 anos de idade, a família mudou-se
definitivamente para o Recife, onde seus irmãos mais velhos já residiam e estudavam, e
ele, dos dez aos quinze, passou a maior parte do tempo vivendo no internato do Colégio
37
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. NEWTON JÚNIOR, Carlos (Org.). Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 2008. 38
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. 39
Ibidem. 40 Ibidem.
29
Americano Batista.41
Como o próprio Ariano relata em suas lembranças no texto, Três
histórias de trem:
[...] Ali, no Colégio, eu passava boa parte do tempo sonhando com o dia em
que teria o direito de voltar, de trem, para casa. Viera estudar em 1937,
interno, com dez anos de idade; e, principalmente durante os dois primeiros
anos de internato, não era raro eu acordar, de madrugada, na cama do
dormitório do internato, com lágrimas nos olhos: é que despertara com o
apito do trem soando na madrugada. Aquele apito parecia acentuar a solidão
e a saudade de casa, lembrando-me que, ali, eu estava preso e exilado, e que,
noutro lugar ⸺ para onde eu deveria ir de trem ⸺, estavam me esperando as
pessoas e os lugares amados, dos quais eu fora apartado um dia, de maneira
tão brusca e em tão pouca idade.42
Foi também no Colégio Americano Batista que Ariano Suassuna descobriu a
“sua” segunda biblioteca, continuando assim a caminhada no universo literário. A
terceira biblioteca foi a do Ginásio Pernambucano, posteriormente Colégio Estadual de
Pernambuco, em 1943, ano seguinte ao estabelecimento da família no Recife. A partir
daquele momento, viu-se mais e mais impossibilitado de fixar-se novamente no Sertão,
tornando-o um território de sonhos e imaginação, habitado por seus mitos e lendas;
significados e símbolos; morada da sua memória. É possível que isso tenha contribuído
para que a saudade da aurora do tempo se incorporasse mais em sua literatura. Não o
sertão real, mas o sertão da memória, modificado pelas transformações do tempo e das
recordações.
Sua vida literária iniciou-se, marcada pela melancolia, com a publicação do
poema Noturno, em 7 de outubro do ano de 1945, contando Ariano Suassuna com a
idade de 18 anos, embora já tendo demonstrado em outros momentos sua afinidade com
o universo das letras.43
Aquele não era, ainda, o autor do teatro cômico reverenciado em
todo o país, mas o autor influenciado pelo romantismo inglês, em especial, pelos
“poetas metafísicos”, fazendo da morte, da solidão e da perda elementos sempre
presentes em seus poemas, o que resultou numa visão trágica do mundo.44
A esses
elementos, juntou-se a existência de uma aura religiosa, também presente em muitos de
seus escritos.
41 Segundo Tavares, embora a família fosse, como a maioria das famílias sertanejas, tradicionalmente
seguidora do catolicismo, a mãe de Ariano, dona Rita Dantas, converte-se ao protestantismo após sua
mãe, Afra Dantas Vilar, ser operada e segundo a sua visão, salva por um cirurgião norte americano e
protestante. Ariano por sua vez, irá por razão do casamento com Zélia, regressar à religião católica,
dando-lhe, todavia visão própria. TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna 42
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial, p. 198. 43
DIAS, Maurício Santana. No meio do caminho tinha a Pedra do Reino. Entre Livros, São Paulo, a. 1, n.
3, jul, 2005, p. 30-35. 44
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino.
30
Envolto nesse mundo, Suassuna sentiu-se exilado contra a sua vontade e
solitário. Foi na poesia que encontrou a maneira de externar toda a melancolia que, para
ele, o mundo parecia ter. Estando "exilado", seu maior desejo foi retornar ao reino
perdido ─ o reino utópico de sua infância ─, e nele encontrar a beleza, o amor e a
poesia, todos atrelados à figura do pai:45
Noturno
Têm para mim Chamados de outro mundo
As Noites perigosas e queimadas,
Quando a Lua aparece mais vermelha.
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
São Ouropéis antigos e fantasmas
Que, nesse Mundo vivo e mais ardente
Consumam tudo o que desejo Aqui.
Será que mais Alguém os vê e escuta?
Sinto o roçar das asas Amarelas
E escuto essas Canções encantatórias
Que tento, em vão, de mim desapossar.
Diluídos na velha Luz da lua,
A Quem dirigem seus terríveis cantos?
Pressinto um murmuroso esvoejar:
Passaram-me por cima da cabeça
E, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
A ventania me agitando em torno
Esse cheiro que sai de teus cabelos.
Que vale a natureza sem teus Olhos,
Ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?
Da terra sai um cheiro bom de vida
E nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
Abrase fundamente as minhas mãos…
Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
O vento encrespa as Águas dos dois rios
E continua a ronda, o Som do fogo.
Ó meu amor, por que te ligo à Morte?46
No ano seguinte à publicação de Noturno, Ariano Suassuna entrou na Faculdade
de Direito do Recife, que se incorporou à Universidade Federal do Pernambuco, como
estudante do curso de Direito. Posteriormente, voltou a esta universidade onde lecionou
durante muitos anos na condição de professor de Estética.
Embora jamais tenha exercido a profissão para a qual havia estudado, a
universidade forneceu a Ariano Suassuna um campo fértil para encontrar-se consigo
mesmo, permitindo o desabrochar do artista e a formação intelectual que lhe faltava,
através do convívio com outros jovens e novos universos literários. Descobria-se ali o
45
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, do exílio e o reino. 46
VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico, p. 30-31.
31
Ariano palhaço, teatrólogo, romancista, ligado à cultura popular, o que fez dele "o
imperador sagrado da Pedra do Reino".
Foi na universidade que Ariano Suassuna encontrou jovens que, como ele,
possuíam interesses semelhantes na arte e na literatura. Eram aspirantes artistas,
escritores, atores, poetas, pintores e romancistas. Foi na faculdade também que Ariano
Suassuna encontrou uma figura primordial, necessária à sua lapidação: Hermilo Borba
Filho (1917 – 1977). Mais velho e mais experiente no teatro, tornou-se o líder do grupo
de jovens do qual Ariano fazia parte. Como dizia Ariano Suassuna, Hermilo era o “[...]
abridor de veredas e apontador de caminhos”.47
Foi através de Borba Filho que Ariano Suassuna tomou contato com a poesia e o
teatro de Garcia Lorca, representando um marco na vida do autor de O Auto da
Compadecida, pois através da arte de Lorca, Ariano Suassuna enxergou a possibilidade
do trabalho de um intelectual que unia, em sua composição, o universo popular e o
erudito.
Além disso, o trabalho de Lorca tornou-se significativo diante das semelhanças
que Ariano Suassuna reconhecia entre a Espanha e o sertão nordestino brasileiro.
Proveniente de um pequeno lugarejo (Fuente Vaqueros) no sul da Espanha, local que
tinha por característica uma intensa miscigenação de culturas, dentre elas a árabe, a
cigana, a judia e a castelhana. Com esses povos vinham os mitos, as histórias de
cavaleiros e os diversos tipos populares, e o pensamento de um resgate catalão e
heroico. Tal contato com um misto de culturas proporcionou a Lorca decisivas
influências no seu trabalho como escritor.48
É possível que Ariano Suassuna enxergasse no autor espanhol uma imagem de si
e da realidade do Nordeste, que a um misto de culturas que ali havia chegado com os
conquistadores portugueses, se somaram as culturas dos negros africanos e dos povos
indígenas.49
Assim como Lorca, Ariano Suassuna graduou-se em Direito e Filosofia e,
enquanto este tinha por matriz as raízes populares encontradas no Romanceiro Popular
Nordestino, Lorca produzia importantes obras a partir do Romanceiro Popular Cigano.
Naquele momento, a identificação com a poesia do escritor espanhol impulsionou
Ariano Suassuna a deixar de lado a poesia melancólica inglesa.50
47
COSTA, Luís Adriano Mendes. Antônio Carlos Nóbrega em acordes e textos armoriais. Campina
Grande: EDUEPB, 2011. 48
VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. 49
Ibidem. 50
VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico.
32
A união desses jovens liderados por Borba Filho gerou importantes frutos para o
teatro e a arte nacional. Em 1946, criam o TEP (Teatro de Estudantes de Pernambuco),
que visava, através de uma dramaturgia ligada a assuntos nacionais, diminuir a distância
entre o povo e a elite. Eles pretendiam também elaborar uma roupagem atualizada para
o teatro no país.
Esse caminho representava algo novo, já que as interpretações do teatro
pernambucano das décadas passadas privilegiavam a dramaturgia estrangeira. Aqueles
jovens buscavam a boa interpretação por meio de temáticas universais inseridas no
contexto brasileiro e folclórico.51
Por conta dessa realização, encontra-se outra semelhança com as ideias de
Lorca. Assim como o poeta espanhol, após retornar de suas viagens pela Espanha,
produziu La Barraca, grupo teatral universitário ambulante, onde realizou montagens
de peças de autores espanhóis consagrados, propósito semelhante ao de Suassuna e seus
jovens companheiros.52
Foi no TEP que Ariano Suassuna, juntamente com outros jovens estudantes, teve
oportunidade de lançar suas primeiras peças teatrais ao público. O grupo teve atividade
ativa até o ano de 1953, quando muitos membros se formaram e seu principal líder,
Hermilo Borba Filho, partiu para São Paulo.
Alguns anos se passaram e em 1960, (re)surgiu o grupo teatral, intitulando-se
herdeiro do TEP. Era o Teatro Popular do Nordeste. Com maior maturidade,
levantavam bandeira contra um teatro estéril e fugaz, sem ligação com a realidade local.
Com manifesto datado de 1961, o grupo foi completado por poetas, pintores, músicos e
escritores.
Todavia foi o Teatro Adolescente do Recife que lançou Ariano Suassuna no Rio
de Janeiro, repercutindo em todo o país, quando em 1956 foi encenada O Auto da
Compadecida, por ocasião do I Festival Nacional de Teatro Amador. Na edição
comemorativa do livro, lê-se em sua introdução:
O grande acontecimento do Primeiro Festival de Amadores Nacionais,
realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Fundação
Brasileira de Teatro, foi a representação pelo Teatro Adolescente do Recife,
sob a direção de Clênio Wanderlei, do Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna. Se a interpretação era boa, considerado aquilo que se pode exigir
de um grupo amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto, até
certo ponto, inexperientes, o que, por outro lado, tinha a vantagem de dar ao
espetáculo um tom de simplicidade, de despojamento, de espontaneidade, que
51
VASSALLO, Lígia. O Sertão Medieval. 52
TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna.
33
correspondia ao espírito da peça e se enquadrava, no estilo de apresentação
que mais lhe convinha, a verdade é que foi o texto em si o causador do
entusiasmo despertado.53
A obra, que tem origem em folhetos da cultura popular, se torna um marco na
vida literária do escritor. Seu sucesso foi tanto, que ganhou duas versões para o cinema.
A primeira, em 1969, contando com a supervisão de Ariano Suassuna, foi mais fiel à
obra original e à estética armorial que, naquele momento, vivia, segundo Idelette
Santos, sua fase preparatória, entre 1946 e 1969.54
Esse período teve início com a
formação do grupo de jovens artistas universitários e a formação dos grupos teatrais que
buscavam uma aproximação por trilhas da erudição com a cultura popular. Tal período
também compreendeu a transformação e a descoberta que Ariano Suassuna fez de si
mesmo, e de seu acesso a novos universos e realidades literárias.
A segunda produção do Auto da Compadecida ocorreu no ano de 2000. Embora
o filme tenha fugido mais da estética e da ideia armorial da primeira, pode-se ressaltar
que a imagem de pícaro de João Grilo tornou-se mais acentuada que na primeira versão.
Seu sucesso gerou mais repercussão que a primeira, proporcionando ainda maior
destaque a obra de Ariano Suassuna, fazendo com que o autor declarasse, em diversos
momentos ao longo da vida, ser um autor de poucos leitores e de livros pouco
conhecidos, salvo O Auto da Compadecida, obra levada a outras partes do mundo,
tornando o autor conhecido internacionalmente.
3. “Tornar-se” Ariano Suassuna
Segundo Carlos Newton Júnior, Acauhan tornou-se o “reino encantado” de
Ariano Suassuna, que guardava, entre outras coisas, a inocência perdida da infância,
talvez por estarem ali registrados os momentos felizes e as últimas e poucas memórias
da figura paterna.
O autor de Auto da Compadecida preservou em Acauhan o Éden ao qual jamais
retornará, o símbolo de sua eterna busca do pai, para ele o rei idolatrado, livre de
máculas. É possível entender a partir de sua poesia a maneira como ele vislumbrava
Acauhan e qual a imagem que constrói em homenagem ao pai, a quem declarava amor e
devoção.
53
SUASSUNA, Ariano. O Auto da Compadecida. 36ª ed. São Paulo: Editora Agir, 2014, p. 5.
54 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular.
34
O poema não deixa de ser uma “acusação”:
Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.
Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.
Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.
Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.55
As famílias sertanejas eram marcadas por ligações de parentescos reais ou
simbólicas, o que formava grandes clãs. Com a morte do pai, Ariano Suassuna passou a
fazer parte de um clã destituído e teve que carregar esse estigma, marca de uma
mudança em consequência da qual sua família passou a ocupar o lado vencido.56
Pierre Bourdieu alerta para a necessidade de reconstruir o cenário social em que
o indivíduo atua, lugar caracterizado por uma pluralidade de campos, pois “[...] os
acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço
social”.57
Analisar as questões que marcaram a vida de Ariano Suassuna, tanto do ponto
de vista pessoal, quanto acadêmico e literário, é buscar entender as interseções que
constroem e regem a vida do indivíduo e que o torna resultado de todas as complexas
identidades que o constituem nos mais diversos campos sociais.58
A construção de uma trajetória e de sua representação demonstra, entre outras
coisas, a relação com o contexto que o cerca. Portanto, a história de vida de um
indivíduo pode ser vista como um recurso para o estudo social, que leva o pesquisador
tanto a questionamentos, quanto ao encontro de possíveis soluções para o
esclarecimento das indagações acerca de um determinado contexto histórico. Constitui-
se, assim, a possibilidade de enxergar o passado por meio da existência do outro.59
55
SUASSUNA, Ariano. “Fazenda Acahuan (lembranças de meu pai)”. In: Seleta em Prosa e Verso.
SANTIAGO, Silviano (Org.) Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2007, p. 12. 56
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, do exílio e o reino. 57
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: Usos e abusos da história oral. FERREIRA Marieta de
Moraes; JANAÍNA, Amado (Org.) Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1999, p. 190. 58
Ibidem. 59
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”.
35
Segundo Philippe Lévillain, “[...] a biografia de um rei ou de um general, não se
confunde com a história dos acontecimentos em que um e outro se envolveram. Mas é
difícil manter-se a distinção”.60
Torna-se possível ao historiador encontrar na biografia,
a partir da análise da construção do indivíduo dentro da sociedade, a porta de entrada
para a compreensão de um contexto e como ele se converte na representação de uma
época. Nesse sentido, entender tanto o contexto de criação da obra suassuniana, quanto
a vivência social do criador, é uma das tarefas de reconstrução do passado, aspecto ao
qual o historiador deve estar atento.
Embora grande parte das obras de Ariano Suassuna descreva cidades que se
assemelham à atmosfera de Taperoá, é possível enxergar em A História do amor de
Fernando & Isaura uma exceção a essa característica presente nessas construções dos
cenários de Suassuna.
A obra propõe uma releitura da lenda de Tristão e Isolda na perspectiva do
Nordeste enquanto cenário, conforme o próprio Ariano Suassuna declarou. Todavia, o
Nordeste aqui apresentado não é o mesmo a que se está habituado nas obras de Ariano
Suassuna, aquele em que se retrata o sertão, mas sim o seu oposto: aquele da região da
zona da mata.
Ao realizar tal distinção, compreende-se que essa região, segundo o olhar de
Ariano Suassuna, encontra-se dividida entre polos, que ele denomina de macho/fêmea,
conforme o texto Encantação de Guimarães Rosa. A Zona da Mata, com suas paisagens
onduladas e suaves seria o lado feminino, já o sertão estaria ligado ao hemisfério
masculino, com seu solo rude, seco, pedregoso, áspero, endurecido em meio à realidade
do cotidiano.61
A História do Amor de Fernando e Isaura ganha vida enquanto proposta de um
ensaio no processo de autodescoberta de Ariano Suassuna em seu papel de romancista.
A obra será o prólogo, que servirá de experimento para A Pedra do Reino.
Como reflexo da criação de A Pedra do Reino, Ariano Suassuna, em diversos
momentos de sua vida, se declarou um cangaceiro ineficaz ou um palhaço frustrado,
deixando evidente que as frustrações que vivenciou em diversas áreas de sua vida foram
recriadas na literatura. Anna Paula Soares Lemos, em seu trabalho intitulado Ariano
Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino (2006), identificou entre os
arquétipos de Ariano Suassuna, os papéis de Profeta, Rei e Palhaço, que, embora
60
LÉVILLAIN, Philippe. “Os Protagonistas”. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 141-184. 61
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial.
36
presentes em toda a sua obra, ficam visivelmente característicos em seu Romance d’A
Pedra do Reino, através do personagem Quaderna. 62
A análise comparada de falas tanto de Ariano Suassuna, como as de Quaderna,
permite perceber diversas semelhanças biográficas entre criador e criatura, a exemplo da
paixão pela arte circense em ambos. Manifesta-se Ariano Suassuna:
Já declarei várias vezes que sou um Palhaço e Dono-de-Circo frustrado. Meu
trabalho de escritor, de professor, de falso profeta fraco e pecaminoso, de
cangaceiro sem coragem, de organizador de espetáculos armoriais de música
e de dança, de cavaleiro sem cavalo e de criador de cabras sem terra, não
passa da tentativa de organizar um vasto circo.63
Diz Quaderna, a certo momento do inquérito ao Juiz Corregedor, em duas
situações:
[...] Sempre tive vontade de ter um Circo, e a hora é essa!64
[...] O Circo era o jeito que eu tinha de transformar toda essa Literatura, todo
esse Teatro de Rua em Literatura-de-estrada, isto é, uma Literatura cavaleira
e epopeica”.65
Torna-se comum e viva a presença do circo ao longo de A Pedra do Reino,
desde a Estranha Cavalgada Moura até a empreitada que Quaderna realiza com seu
sobrinho Sinésio, O Alumioso, em busca do tesouro perdido dos García Barreto. Declara
Ariano Suassuna:
O palhaço Gregório inclusive teve um papel muito importante em minha
vida, né?! Ele era o grande palhaço do Circo Estringuine66
, o circo que ia lá a
Taperoá. Eu fiquei de tal maneira agradecido a Gregório, que eu não sei se
vocês repararam, mas no Auto da Compadecida, eu coloquei um palhaço pra
representar o autor. Porque eu considero o Palhaço a figura típica e
emblemática do ator.67
O circo se tornava uma atração de destaque, pois, tratando-se de uma sociedade
marcada pela oralidade, aquele teatro popular ali presente adentrava de maneira mais
livre o cotidiano das pessoas.
Para Antônio Cândido, em A personagem de ficção, a escrita permite ao autor a
transfiguração da sua realidade, e dos que nela habitam, para o mundo da imaginação,
62
LEMOS, Anna Paula Soares. “Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino”.
(Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006). 63
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial, p. 210. 64 SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, p. 606. 65
Idem, 452 – 453. 66
O Circo Estringuine, encontra-se também presente em A Pedra do Reino, relacionada a primeira
experiência sexual das personagens Quaderna e Arésio. 67
MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004).
37
em um processo de busca por verossimilhança articulando fantasia e realidade, de modo
a estampar a complexidade da existência tanto no universo imaginário quanto no
universo físico e psicológico. Nesse processo, a memória do autor se torna peça
fundamental, aliada à imaginação, no ato de criação: “[...] o romance se baseia, antes de
mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício manifestada através
da personagem”.68
Embora as personagens de Ariano Suassuna se apresentem às vezes de um modo
grotesco e exagerado, considerando daquilo que concebemos como a realidade, sua
expressão é a manifestação do mundo pelo olhar transformador do artista ao interpretar
o mundo.69
Apesar de na esfera literária Ariano Suassuna ser um autor mais conhecido
primeiramente por seu teatro e pelos romances, foi a poesia que deu início a esse
processo, e o que proporcionou sua transformação enquanto escritor. O próprio Ariano
Suassuna declarou que sua poesia era a fonte profunda de tudo aquilo que escreveu.70
Sobre A Pedra do Reino, afirmou ter sido construída através de um poema contido no
folheto XLIV do romance, A Visagem da Moça Caetana: 71
Eu não sei se você já reparou aquilo é um poema, e eu escrevi aquele poema,
consciente do que “tava” escrevendo, quer dizer, até o ponto em que a gente é
consciente, porque se você olhar bem, ali está, todo o núcleo da Pedra do
Reino, “tá” certo? Então aquilo ali pra mim é o capítulo mais importante da
Pedra do Reino, é aquele, que se chama a “Visagem da Moça Caetana”,
porque ele contém, uma exposição do centro vital do romance, e uma
exposição que aí foi talvez, foi talvez não, foi com certeza involuntária,
aquilo é uma, é como que uma soma de toda a minha literatura, tudo que eu
procuro com a minha literatura, quando ela diz assim: “você está tentando em
vão reedificar seus dias para sempre destroçados”, é isso mais ou menos que
eu tendo com a literatura.72
No trecho “vão reedificar [...] seus dias para sempre destroçados” é possível
perceber que a literatura foi a maneira encontrada pelo escritor para fazer justiça a si e à
sua família, pela morte do pai, assim como pelos estigmas aos quais foram condenados.
Mas foi o Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
sua grande realização, sua “[...] terrível história de amor e de culpa; de sangue e de
68
CÂNDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 40. 69
A relação entre o exagero e o grotesco que caracterizava a cultura popular nos períodos de liberdade a
que tinham direito, durante o período do carnaval, buscando com isso demostrar de maneira inversa e
critica através da comicidade a sociedade em que viviam, é discutida por Bakhtin em A cultura popular
na Idade Média e no Renascimento. 70
NEWTON JÚNIOR, CARLOS. O Pai, do exílio e o reino. 71
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 305. 72
MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004).
38
justiça; de sensualidade e violência; de enigma, de morte e disparate [...]” como declara
Quaderna.73
A literatura é, por vezes, o caminho pelo qual procura fazer-se a justiça,
autores que por esse caminho expõe as chagas de uma época.74
A poética popular de Ariano Suassuna se constrói com a soma do desejo de
concretizar seu maior intento, o de fazer justiça diante da morte do pai, e tal qual o
personagem Quaderna, que percebendo não possuir talento para as armas, resolve
conquistar a coroa roubada, a glória de sua família, através da literatura, tornar-se autor
da maior obra da literatura brasileira, agraciada por seus grandes mestres da literatura
nacional, José de Alencar e Euclides da Cunha.
Ariano Suassuna busca, na construção literária, fazer justiça a sua família e
assim bradar e se vingar do assassinato do pai, por ele considerado covarde, conforme
declara:
Na década de 1950 tentei escrever uma biografia de meu Pai, a "Vida do
Presidente Suassuna, Cavaleiro Sertanejo". Chamei-a assim porque sempre
vi Suassuna como um Rei e Cavaleiro: entre outras coisas ele tinha três
Cavalos de sela, todos com nomes de Cangaceiros do grupo de Lampião:
Passarinho, Bom-Deveras e Medalha. Não consegui escrever o livro, por
causa da carga de sofrimento que ele me acarretava.75
O desejo de exorcizar-se de seus fantasmas ainda não seria realizado. Não havia
outra alternativa ao escritor, além de deixar de lado o trabalho a que se prontificara
realizar na vida. Todavia, algum tempo depois, Ariano Suassuna passou a tomar as
notas do que se tornaria a representação física de seu amadurecimento, como também o
que pretendia como a grande síntese de todo o seu trabalho de até então, a sua obra-
prima. Essa iniciativa resultou no Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue
do Vai-e-Volta. Nela, há transfigurações tanto do universo interno, quanto externo,
tornando-a atemporal.
O trabalho criador seria o encontro, em graus variáveis, da memória, da
observação e da imaginação. Trata-se de uma situação complexa, que nem mesmo o
próprio autor seria capaz de determinar a proporção que cada elemento toma no
processo de produção, separando aquilo que é consciente e do que é inconsciente.76
73
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 35. 74
GAY, Peter. Represálias Selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave
Flaubert e Thomas Mann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 75
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. 76
CÂNDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção.
39
Embora se possa perceber nas palavras de Quaderna ecos da voz de Ariano
Suassuna, jamais se deve confundir a realidade de um indivíduo com a realidade criada
e recriada de um personagem. Como adverte Mário Vargas Llosa, a ficção não deve ser
confundida com a realidade, todavia faz parte desta. O escritor ao "mentir" expressa
distintas verdades, pois a própria realidade é transformada, a partir do momento em que
compreendemos que “as coisas não são como vemos, mas como as recordamos”.
Escrevem-se os romances e com eles modifica-se a vida, de forma que os fatos sejam
embelezados ou piorados.77
Aí, à medida que eu ia crescendo, essas ideias iam cada vez mais se
enraizando no meu sangue. Eu ouvia, decorava e cantava inúmeros folhetos e
romances que me eram ensinados por Tia Filipa, por meu Padrinho-de-crisma
João Melchíades Ferreira, e pala velha Maria Galdina, uma velha meio
despilotada do juízo, que nos frequentava.78
Eis que ao se observar a fala de Quaderna, que tal qual Ariano Suassuna cresce
em meio a folhetos de cordel da arte popular e aos velhos que transmitiam por meio da
oralidade as cantigas antigas, e também igualmente a Ariano Suassuna, alimenta um
desejo de vingança, no processo de formação da sua personalidade.
Quaderna, assim como Ariano Suassuna, nas palavras de Newton Júnior, faz
parte de um clã vencido e, diante desse fato, tenta poeticamente transformar a história
de sua família, que de fanáticos religiosos e assassinos convertem-se nos verdadeiros
representantes da "raça brasileira".79
A Pedra do Reino seria a maneira que Ariano Suassuna encontrou para
conseguir preservar a imagem paterna presente, já que sua existência lhe era negada. O
processo de preservação e construção dessa memória e com que o escritor transformasse
o pai em um herói sertanejo, cavaleiro andante, defensor da honra e da justiça.
Ainda criança, Ariano Suassuna teve contato, por meio de seu tio, Joaquim
Duarte Dantas, com a história de Dom Sebastião, O Desejado, que povoará a
imaginação do garoto, dando-lhe, a partir de então, composições que lhe acompanharão
no decorrer da vida. Ariano Suassuna funde a mística presente na história de Dom
Sebastião à figura paterna e alimentou a ideia esperançosa de que este rei sertanejo um
dia retorne para os seus. Da memória de João Suassuna reconstituiu fragmentos e desses
fragmentos ergue o seu castelo literário, com seu rei.
77
LLOSA, Mário Vargas. A verdade das mentiras. Trad. Cordelia Magalhães. São Paulo: ARX, 2004, p.
23. 78
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 89. 79 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino.
40
Um rei como D. Sebastião ou Carlos Magno da França. Na sua dedicatória de A
Pedra do Reino, lê-se:
Em memória de JOÃO SUASSUNA,
José de Alencar, Jesuíno Brilhante, Sylvio Romero, Antônio Conselheiro,
Euclydes da Cunha, Leandro Gomes de Barros, João Duarte Dantas, Homero
Torres Villar, José Pereira Lima, Alfredo Dantas Villar, José Lins do Rego e
Manuel Dantas Villar,
Santos poetas, mártires, profetas e guerreiros do meu mundo mítico do
Sertão, oferece, dedica e consagra, ARIANO SUASSUNA.
Nessa passagem fica clara a importância de certas personagens para o autor, e
como a maior delas, João Suassuna, encabeça as demais, a exemplo do icônico Carlos
Magno, o rei herói e seus Doze Pares da França.
No ano de 1990, Ariano Suassuna tornou-se um dos imortais e em seu discurso
de posse da Academia Brasileira de Letras, declarou:
Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino
que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto
da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que
escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo,
buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos
outros, das palavras que o pai deixou.80
Naquele ano de posse, contava Ariano Suassuna com 63 anos. A sua fala
emotiva, ao evocar a morte do pai, mostra o quanto o peso daquela fatalidade era forte e
presente em sua vida e como a imagem trágica ainda preservou-se no mundo de
Suassuna, como ele também declarou no mesmo discurso: “[...] Em algumas ocasiões
lanço mão do riso para me defender, porque, como sertanejo, não gosto de ser visto
dominado pela emoção”.
Carlos Newton Júnior, em obra já citada, demonstra os passos que fizeram
Ariano Suassuna utilizar-se do cômico, deixando de lado a melancolia característica das
influências dos poetas ingleses, para lançar mão do riso, utilizando-se da farsa e da
mentira e assim representar as tragédias sombrias da humanidade, transforma o seu
mundo interior com temáticas universais.81
O próprio Suassuna se declarava um grande
mentiroso, que através da criação tornava o riso uma maneira de engabelar seus
80
SUASSUNA, Ariano. “Discurso de posse da Academia Brasileira de Letras”. Disponível em:
http://www.academia.org.br/academicos/ariano-suassuna/discurso-de-posse Acesso em: 12 de mar de
2017. 81 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino.
41
ouvintes, como se descobrisse no riso uma forma de encontrar e dizer aquilo que
desejava.
A universidade representou o encontro de Suassuna com a possibilidade de
desenvolver de maneira diversa sua arte. A partir dali seus trabalhos passam a refletir o
mundo triste não somente pela face da melancolia como também pela comédia,
tornando-o um artista tragicômico, que absorve o sofrimento do mundo e o externa por
meio do riso.
Segundo Tavares, Ariano Suassuna credita dois fatos importantes em sua
mudança de postura: o primeiro foi a influência de João Cabral de Melo Neto, para que
ele se dedicasse à comédia: “Você é muito engraçado conversando, mas só quer
escrever coisas trágicas”; o segundo, seria o encontro de sua vida: teria o amor por
Zélia lhe lançado o raio de sol necessário para que o fizesse sair da escuridão na qual
havia imergido e que creditava ao mundo.82
No dia 18 de outubro de 1970, o concerto Três Séculos de Música Nordestina:
do Barroco ao Armorial, da Orquestra Armorial, realizado na Igreja de São Pedro dos
Clérigos, no Recife, oficializou o movimento que dava corpo a todos os esforços de
Ariano Suassuna e seus companheiros, desde os teatros amadores do tempo da
faculdade até os encontros, na vida adulta, do Gráfico Amador, para realizar uma arte
erudita com raízes populares.
Na ocasião, houve a apresentação de trabalhos de diversos artistas das mais
distintas áreas, entre eles Ariano Suassuna, que despontava como romancista. Em 1971,
com os armoriais ainda em atividade foi lançada a obra Romance d’A Pedra do Reino e
o Príncipe do Sangue do Vai e Volta.83
Aí eu imaginei, congregar, um grupo de artistas, pra que nós juntos, nós
procurássemos, cada um em seu campo, uma arte erudita brasileira
fundamentada na raiz popular da nossa cultura. Essa era a Arte Armorial.
Agora, ao mesmo tempo, com o Movimento Armorial, eu pretendia fazer do
nosso trabalho, uma ponto de lança pra gente lutar contra esse processo de
descaracterização e vulgarização da cultura brasileira.84
82
TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna. 83
“[...] No ano seguinte, a segunda exposição de arte armorial, realizada na Igreja de Rosário dos Pretos,
em 26 de novembro de 1971, confirmava a proclamação de Suassuna”. SANTOS, Idelette Muzart
Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular, p. 21. 84
MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna, (2004).
42
Diferentemente do Movimento Modernista de 1922, houve pouca repercussão da
crítica e da imprensa locais quanto ao Movimento Armorial (1970). Sua maior
sonoridade se deu em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Segundo Newton Júnior, somente após a recepção do Sul e Sudeste foi que
alguns veículos locais noticiaram o Movimento, cuja concepção visava retratar e
enaltecer a cultura popular nacional, focada no Nordeste, em especial, Pernambuco.85
Os registros de jornais do período comprovam a maior receptividade que Ariano
Suassuna possuía no sul do país, com enfoque no Rio de Janeiro, onde se encontram, ao
longo dos anos, notas das produções teatrais com as obras do autor.
Em 1971, o movimento, ainda em sua primeira fase, apresentaria um segundo
concerto, com o agora Quinteto Armorial, no dia 26 de novembro, na Igreja Rosário dos
Pretos.86
Segundo Luís Costa, além da apresentação musical, ocorreu juntamente uma
exposição de artes plásticas, em madeira, cerâmica, desenho e tapeçaria.87
Nota-se certo desacordo por parte de seus estudiosos em referência às fases do
movimento e divergindo-se sobre se ele teria ou não se findado. É fato que, tendo em
Ariano Suassuna um de seus fundadores e maior representante, a vida do Movimento
estaria ligada a própria vida do autor.
Em seu importante e pioneiro trabalho sobre o Movimento Armorial, Idelette dos
Santos declara a dificuldade em demarcar uma época de encerramento de suas
atividades.88
Para a autora ele apenas se transforma, não mais sendo um movimento
cultural, mas torna-se uma referência estética e histórica.
Todavia, ela entende o ano de 1981 como um marco decisivo para Ariano
Suassuna e também para o Armorial. É nesse momento que Suassuna, em uma carta
publicada no Diário de Pernambuco, declara se afastar da vida pública e literária.
Ariano Suassuna afirma encontrar-se em um momento de reflexão. A Pedra do
Reino, como ele mesmo dirá posteriormente, tornou-se um equívoco de interpretação do
Brasil. O autor que escreve a obra na ânsia de combater a visão vitoriosa do governo
pernambucano sobre Princesa, em um maniqueísmo entre o bem e o mal, credita ao
município rebelado a alcunha de “Nova Canudos”, percebe no momento de isolamento,
85
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada. 86
O Quinteto Armorial foi uma nova experiência de Ariano Suassuna, que em conflito com Cussy de
Almeida, representou uma cisão dentro do próprio Movimento. Enquanto Almeida defendia uma unidade
musical do movimento, Ariano advogava a presença dos instrumentos populares na música Armorial,
apresentando dessa maneira, características mais próximas da realidade sertaneja. COSTA, Luís Adriano
Mendes. Antônio Carlos Nóbrega em acordes e textos Armoriais. . 87
Idem. 88
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular
43
em um exame de consciência que “[...] no caso de Canudos, eram tropas urbanas [...] a
serviço dos privilegiados, acabando um arraial popular, e Princesa não era. Eram
privilegiados da cidade, lutando contra privilegiados do campo”.89
Ao se associar o silêncio de Suassuna ao do Movimento compreende-se a
importante relação e a simbologia que ele possui frente ao Armorial, não somente em
sua construção, mas no campo da representatividade.
89
SUASSUNA, Ariano. Programa Roda Viva.
44
CAPÍTULO II
SUASSUNA E AS PEDRAS NO CAMINHO: POLÍTICA E CRIAÇÃO
LITERÁRIA.
1. Conflitos Oligárquicos: da Paraíba ao cenário nacional.
Recife, 1930. É assassinado o presidente do estado da Paraíba, João Pessoa. Em
um contexto de desentendimentos políticos, sua morte abrirá uma fenda, impossível de
ser fechada, ao menos do ponto de vista de Ariano Suassuna.
Um turbilhão de transformações acaba por alterar as estruturas do poder político
no estado. Trata-se de um capítulo corriqueiramente lembrado, em função de sua
relevância para a história nacional, um cisma entre a “velha república” em seus últimos
momentos de agonia e a “nova” que surgia. Um passado que então passa a ser visto
como arcaico.
O presidente paulista, Washington Luís (1869 – 1957), foi deposto no golpe
contra o governo federal, pelos rebeldes em outubro de 1930, em momento próximo ao
fim de seu mandato.
Com as crescentes desavenças entre São Paulo e Minas Gerais, a deterioração
das conhecidas estruturas econômicas, sociais e políticas, as oligarquias dissidentes,
gaúcha e paraibana, se unem a Minas Gerais formando a Aliança Liberal, grupo que
tinha como objetivo vencer os paulistas nas eleições daquele ano.
Embora o plano não tenha obtido o êxito pretendido durante o percurso da forma
que era esperado, Getúlio Vargas, todavia, alcança o poder, levando por fim à ruptura
do eixo São Paulo-Minas Gerais.
Segundo Boris Fausto, essa situação é um “Reflexo e ao mesmo tempo parte
constitutiva de um conjunto de transformações que ocorrem na sociedade brasileira [...]
das principais linhas da estrutura econômica e social da República Velha”.90
A dominação do setor agroexportador cafeeiro, durante a Primeira República,
não deve ser vista com características lineares. As inúmeras crises enfrentadas, somada
90
FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org). Brasil em Perspectiva.
Rio de Janeiro: Ed Bertrand Brasil, 20ª ed. 1995, p. 227.
45
à superprodução do produto e as diversas oscilações do mercado externo, decorrentes de
eventos como a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) e a Grande Depressão de 1929,
ocasionaram conjuntamente rupturas dentro da própria estrutura oligárquica.
Essa realidade demonstra, dentre outras coisas, a grande dependência em relação
ao capital externo, tanto por ter no exterior a maior soma de seu mercado consumidor,
como aos empréstimos concedidos ao país.
A política de valorização do café, iniciada em 1906, demonstrou-se ineficiente
com o decorrer das décadas, pois tanto a União quanto os estados não foram capazes de
arcar com os encargos financeiros ocasionados por ela.
Embora tal sistema tenha conseguido garantir uma significativa rentabilidade do
setor cafeeiro, daquele momento até 1930, se apresentou falho em diversos aspectos.
Dentre os motivos que acarretaram tal situação, além dos fatores financeiros, havia a
deficiência em atender às necessidades da sociedade que se transformava e da tímida
classe média que surgia, ansiando por mudanças no meio político e econômico, ainda
que não possuísse peso social significativo nesse novo cenário.
O corpo social brasileiro, durante a Primeira República, não pode ser
simplificado como uma engrenagem que se limite somente ao setor agroexportador.
Mesmo como setor forte, encontrava-se sujeito à monocultura, que se deparava com as
oscilações do mercado internacional, o que demonstra sua grande dependência a uma
esfera maior.
As disputas políticas em torno da presidência da República, em suas primeiras
décadas, não apresentavam opções viáveis em contraposição aos grupos dominantes do
café e de seu poder econômico. Deixando de lado, inclusive, antigas oligarquias que na
dança das cadeiras do poder, perdiam posições no jogo de interesses.
Tal característica, ausência de novas possibilidades, se dava inclusive pela
realidade atípica do Brasil, onde a pequena industrialização urbana estava diretamente
ligada à burguesia agrária, o que fazia com que todo o setor oligárquico, e onde seu
poder alcançasse, acabasse sendo legitimado pelo Estado, tamanho o seu poder e
influência.
Todavia, deve-se encarar o fato de que, embora houvesse predominância desse
setor na liderança política e econômica do país, gerando como consequência
desequilíbrio de poder, em relação aos outros grupos e facções dos demais estados, elas
existiam e representavam interesses financeiros afastados da hegemonia do café.
46
Ocorre, portanto, um encontro de forças entre as aspirações dessa tímida classe
média e de oligarquias afastadas dos grandes centros do poder, algumas em declínio,
contra os senhores do café, até aquele momento mandatários da política do país. Esse
novo grupo que se forma dentro de uma mescla de posicionamentos, interesses e
aspirações, se une com um objetivo maior, o de romper a estrutura de poder hegemônico
da “Velha República”.
A sucessão presidencial, em 1929, e suas disputas marcam a história do período,
a partir de uma expressão mais ampla por meio da formação da Aliança Liberal.
A Aliança Liberal reflete estas características do sistema social existente.
Ela nasce de um acordo entre Estados cujos interesses não estão vinculados
ao café, mas a forma regional das reinvindicações não é destituída de
significado. Pelo contrário, a regionalização se expressa nas condições
políticas em que se dá a cisão da classe dominante, no fim da década de 20.
[...] A Aliança [...] é soma das reinvindicações de vários grupos
desvinculados da economia cafeeira.91
.
Deve-se raciocinar, todavia, que esse processo de disputas políticas e o
movimento de 1930 são episódios que, embora tenham ocorrido em um curto espaço de
tempo, não sofreram uma ação direta de causa e efeito, já que, segundo Fausto, as forças
do primeiro evento não são exatamente as que lideraram a revolução.92
Ou seja, a
formação da Aliança Liberal não seria suficiente para explicar por completo a tomada
do poder central.
O percurso dessa ruptura é marcado por intrigas familiares e políticas,
assassinatos, propagandismos, conflitos armados e as consequências advindas das
próprias modificações de uma época.
Na cidade da Paraíba, então capital do estado de mesmo nome, em 22 de outubro
de 1928, João Pessoa (1878 – 1930) toma posse do cargo de governador, substituindo a
João Suassuna (1886 – 1930), graças à influência do então senador e ex-presidente da
república, Epitácio Pessoa (1865 – 1942).
Líder político da Paraíba, Epitácio, percebendo a redução de seu poder e
controle sobre a política do estado, indica para candidato ao governo seu sobrinho João
Pessoa, substituindo assim a ameaça que a chapa sucessora de João Suassuna passara a
representar. Conforme relatos da época, inclusive na imprensa periódica, havia uma
grande tensão entre o patronato intelectual e de liderança de Epitácio Pessoa, contra o
91
FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”, p. 234. 92
Ibidem.
47
ex presidente João Suassuna, que tentava criar seu próprio território eleitoral a partir da
candidatura ao senado e da indicação de candidato próprio ao governo do estado, como
retrata o Correio da Manhã em 1926. “Com insistência se fala na possibilidade do sr.
João Suassuna deixar o governo da Parahyba, renunciando, a fim de ser eleito
senador”93
Segundo o historiador José Octávio Arruda Mello, Epitácio se sente afrontado,
após a declaração de Zé Pereira, que compondo a chapa de Suassuna, alega ser seu
poder somente simbólico para os mandos políticos do estado.94
Todavia a influência de Epitácio se mostra maior, com o apoio do presidente
Washington Luiz. João Pessoa é então lançando como presidente do estado, para coibir
o avanço das forças opositoras à figura de líder estadual de seu tio. Claro foi o
descontentamento de João Suassuna, frente aos acontecimentos. Novamente O Correio
da Manhã relata:
O sr João Suassuna é, como governador da Parahyba, presidente da
commissão executiva. Devia nesse caráter presidir a convenção que escolheu
o senhor João Pessoa para seu successor. Mas porque não pode fazer seu
candidato e sim o sobrinho do sr. Epitácio, resolveu não comparecer. E os
trabalhos foram dirigidos pelo sr. José Gaudencio.
Tudo fez o sr Suassuna para que a convenção não se reunisse senão em julho
ou agosto, quando o ex-presidente da República estivesse na Europa. 95
É evidente que as eleições daquele ano já transmitiam a insatisfação local de
muitos membros da elite que João Suassuna representava. Era ele a representação da
figura de um coronel, suas ideias e intentos claros diante de seu descontentamento frente
ao poder que pretendia alcançar.
João Pessoa foi eleito, seguindo o desejo de Epitácio Pessoa. Em seu discurso de
posse, provoca o descontentamento da plateia dos líderes locais, por enfrentar com
“novas ideias” o poder consolidado de antigos chefes políticos.
Senhores deputados, agradeço cordialmente a vossa manifestação. Recebo-a
primeiro com a demonstração pública das disposições em que vos achais de
colaborar dentro das vossas funções constitucionais com o novo governo e
depois com a promessa de que essa colaboração não faltará enquanto for boa
a gestão dos negócios públicos. (...) Não há democracia sem boas eleições,
93
Correio da Manhã “No mundo político: sr Suassuna”. Rio de Janeiro, 03 Out de 1926, p. 04. 94
GOULART, Geraldo. “PRINCESA do Sertão”. Produção: TV Senado, 2010. Documentário: 02’06”.
https://www.youtube.com/watch?v=AHcIY5-0I9o Acesso em: 18 de agos de 2018. 95
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 maio de 1928, p. 04.
48
não há boas eleições sem bom eleitor, não há bom eleitor sem voto
consciente e não há voto consciente sem eleitor independente. 96
Ernani Satyro (1911 – 1986), ex-governador da Paraíba e por oito vezes
deputado federal pelo estado, além de político de destaque no estado, teve importante
papel no universo das letras, sendo membro da Academia Paraibana de Letras e da
Academia Brasileira de Letras. Conterrâneo de Ariano Suassuna, dizia nutrir uma
admiração pela pessoa de João Suassuna, de quem guardava lembranças em sua
infância.
Postumamente tem seus ensaios políticos reunidos e organizados. Em sua
impressão a respeito dos acontecimentos que marcaram a o estado Paraíba no final da
década de 1920, declara em seu discurso, a respeito de João Pessoa:
[...] pregava uma ação vigorosa contra os maus costumes políticos, reclamava
contra as impurezas do voto e a ação dos cabos eleitorais. Por aí, bem se
podia pressentir a tempestade que se aproximava. Seu governo foi uma
pequena revolução [...] modificavam a fisionomia política e administrativa do
estado. 97
De acordo com Fausto, dentre outros pontos, “a grande arma e denominador
comum da Aliança é a defesa da representação popular, através do voto secreto”.98
Essa
questão estava presente nas palavras de João Pessoa, o que demonstra sua inclinação às
ideias defendidas pelo movimento da Aliança Liberal, já em sua posse, modificando o
costume de uma época.
A Aliança Liberal era uma tentativa de coibir a ação das facções até então no
poder e atender às ambições dos grupos políticos “esquecidos”, que não partilhavam na
mesma medida os benefícios do comando central. Assim, buscava-se revigorar o poder
de Epitácio, além das classes médias urbanas que surgiam e passavam, embora ainda
receosamente, a representar um novo papel na sociedade.
Próprio da política dos coronéis, a máquina estatal servia aos interesses dos
líderes locais, gerando submissão paternal para com o coronel de uma determinada
região, impedindo dessa maneira ações imparciais e igualitárias, afinal, ao padrinho não
se ofende e, portanto, não se cobra, conforme a dinâmica do sistema oligárquico e do
coronelismo.
96
Trecho extraído do discurso de posse de João Pessoa em 22 de outubro de 1928, em documentária
GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão. 97
SÁTYRO, Ernani, 1911 – 1986. Série perfis parlamentares nº 61. Seleção e apresentação
FERNANDES, Flávio Sátiro (Org) – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011, p. 155. 98
FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”, p. 235.
49
Dentre as ações pretendidas por Pessoa, as quais muito irritaram os coronéis,
estava o desejo de tomar o controle da máquina burocrática do estado, passível de uma
arrecadação ineficiente e deficiente. Sendo os cargos públicos preenchidos por meio de
indicação, a arrecadação tornava-se seletiva, “pois do amigo não se cobrava”, gerando
grandes dívidas ao governo que não conseguia dessa maneira sanar seus
compromissos.99
Relatado pela história nacional, uma das primeiras mudanças do presidente João
Pessoa foi a tentativa de renovar o quadro político do estado, impedindo a recandidatura
de figuras já tradicionais. João Pessoa a denominava de sadia renovação republicana.100
Era uma tentativa de frustrar e limitar o alcance da influência dos chefes locais,
ultrapassando muitas vezes a do próprio governo estadual.
Contudo, o primo do governador, Carlos Pessoa, foi agraciado pelo próprio João
Pessoa da imunidade de sua imposição, o que aumentou ainda mais a revolta dos líderes
contra o governador, dando-lhes motivo de rechaçar a figura e as imposições de Pessoa.
Em decorrência das diversas medidas e posicionamentos do governo, a exemplo
da retirada de poder dos coronéis, das ações tributárias do estado, da tentativa em
modificar o sistema de funcionamento e favoritismo do estado, Zé Pereira (1884 –
1949) e João Pessoa travam uma luta sem trégua pelo poder na Paraíba.
O Coronel foi apoiado de maneira não declarada pela administração federal, que
não via com bons olhos as mudanças e a inclinação do novo governador às ideias da
Aliança Liberal. Havia ainda o descontentamento de parte dos parentes de João Pessoa,
devido à preferência de Epitácio por ele. O coronel em vida negaria tal apoio por parte
do governo federal:
Comecei com setecentos e cheguei a ter um exército de dois mil homens, dos
quais apenas oitocentos estavam bem armados. E quanto a essa história que
anda espalhada por aí, de que Washington Luís e Júlio Prestes me ajudavam
com armas, é mentira. Eles nunca me amparam em momento nenhum da luta.
Quem me auxiliou foi um grupo de amigos particulares da Paraíba, de
Pernambuco e de São Paulo. 101
Zé Pereira tomou para si as dores dos coronéis, em especial, como o próprio
viria a declarar anos depois, a do ex-presidente do estado João Suassuna, a quem dizia
devotar grande estima, ao qual João Pessoa havia proibido a recandidatura.
99
RODRIGUES. Inês Caminha L. A Revolta de Princesa. 100
GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão. 101
O Cruzeiro, “A Campanha de Princesa”, Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1949, p. 98.
50
Como consequência, em fevereiro de 1930, Zé Pereira proclamou o Território
Livre de Princesa, com hino e bandeira próprias, símbolos de sua pretensa autonomia
territorial e política. O levante, embora aparentasse fraco em face das forças do governo
estadual, foi subestimado por João Pessoa. No entanto mostrou-se resistente, em
especial por meio da rede de relações e respeito que o coronel Pereira possuía.
O conflito de interesses entre as forças políticas da Paraíba foi o princípio do que
culminaria na Revolta de Princesa e com ela a notoriedade das mortes de três Joãos
ligados ao mandonismo do estado, João Pessoa, João Dantas e João Suassuna.
Colocando em andamento o projeto de reerguer as finanças do estado, mesmo
que para isso mudasse o tradicional sistema de arrecadação seletiva e da tributação
comercial, João Pessoa ia assim de encontro aos interesses dos coronéis e dos
comerciantes locais.
Através da Lei nº 673, de 17 de novembro de 1928, João Pessoa “obrigou” aos
comerciantes paraibanos, em especial do interior, a comercializarem os produtos
oriundos do litoral do estado. Com um rígido sistema para a arrecadação de tributos
passa a distinguir as mercadorias importadas por meio do Porto de Cabedelo (PB), entre
as trazidas por via terrestre do estado vizinho do Pernambuco, até então livres de
quaisquer tarifações.102
Esse episódio foi denominado de “Guerra Tributária”, a primeira que João
Pessoa enfrentaria e que teria prosseguimento com o conflito de Princesa. O confronto
teve seu principal espaço de manifestação nas páginas de dois periódicos: o Jornal do
Comércio, pertencente aos primos enciumados do presidente, os Pessoa de Queirós, e A
União, órgão oficial do governo do estado, que via com bons olhos e defendia as ações
da nova administração.
Por meio do conflito, prosseguiu uma tentativa cada vez maior, por parte de João
Pessoa, de desprestigiar o poder dos coronéis, chegando ao limite do desarmamento
destes.
Embora as medidas do governador tenham proporcionado resultados
satisfatórios à economia do estado, possibilitando o saldo de compromissos financeiros,
não foi o suficiente para impedir o descontentamento da classe dominante nos tempos
passados.
Entre os descontentes destacava-se José Pereira Lima, como já mencionado, tido
como um dos maiores coronéis do Nordeste, cujo prestígio ultrapassava a esfera
102
GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão.
51
estadual, atingindo o âmbito federal. Com importantes negócios no vizinho
Pernambuco, Zé Pereira foi grandemente prejudicado com a política de João Pessoa,
não só financeiramente, mas simbolicamente.103
Antecessor a João Pessoa, o governo de João Suassuna representou uma política
de poder e autonomia em relação aos coronéis, desvinculando-se do controle que
Epitácio representava na política da Paraíba.104
Ariano Suassuna, em seus depoimentos refere-se à força que Zé Pereira
representava, a liberdade que o governo de seu pai proporcionou aos chefes políticos.
Revelando a maneira como se dava o jogo de poder, alcançando a intimidade do espaço
familiar, uma possibilidade de laços estreitados de forma mais segura, o afetivo: “Zé
Pereira era prestigiado por todos os governadores, inclusive por meu pai, ele era
inclusive padrinho de minha irmã mais velha, Selma, e eram amigos pessoais, e meu pai
no combate ao cangaceirismo, dava todo o prestígio a Zé Pereira”.105
João Pessoa embora fruto da estrutura social dominante, se esgueira para fora
desta, onde seus valores estavam aquém do sistema organizacional conhecido. Não se
pretende, a partir disso, sugerir que João Pessoa tenha sido um “revolucionário”
disposto a mudar todo um conjunto de práticas e normas enraizadas historicamente na
sociedade, especialmente em uma região como o Nordeste.
Deve-se compreender o novo governador como um homem fruto de seu tempo,
possível resultado das transformações que o país passava, reflexo de uma sociedade
com traços urbanos que surgiam timidamente. Eventualmente, há de se reconhecer a
própria história de sua figura: filho de um modesto funcionário público, advinda do lado
materno, sua ligação com uma nobreza passada e com a tradição oligárquica. Derivou
também do lado materno, em companhia de um tio militar, a oportunidade de residir em
um significativo número de cidades absorvendo vivências e experiências diversas.
As atitudes e pensamentos de João Pessoa na Paraíba, considerados
insubordinadas por uns e renovadoras por outros, foram ganhando repercussão nacional.
Somou-se a essa circunstância a negativa do governador em apoiar a chapa oficial do
governo de Washington Luís, juntamente, e mais uma vez, sob a influência de Epitácio
Pessoa, o que acarretou sua indicação à Aliança Liberal.
103
RODRIGUES, Inês Caminha L. A Revolta de Princesa. Além de sua influência ser retratada em
jornais do período é homenageado por Ariano Suassuna em A Pedra do Reino, como uma das grandes
figuras brasileiras, em uma analogia aos 12 pares da França. 104
GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão. 105
Trecho extraído do discurso de posse de João Pessoa em 22 de outubro de 1928, em documentário GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão.
52
As relações oligárquicas de poder na Paraíba não fugiram às regras dos demais
estados. A “Velha República” perpetuou-se, em muitos aspectos, como uma extensão da
dominação presente no Império. O Nordeste que, em um passado não tão distante,
dominara a economia do país e consequentemente sua política, perdia espaço para a
política do café na região Sudeste em relação ao governo central, sua participação
política permanecia na representação de líderes estaduais, que se ligavam à hegemonia
dos estados de São Paulo e Minas Gerais. No caso da Paraíba, Epitácio Pessoa era tal
representante, ex-presidente da República.
A negativa de apoio à chapa oficial irá reverberar posteriormente, quando, com o
conflito de Princesa, o governo central se colocou em apoio aos amotinados da Paraíba,
negando a ajuda necessária ao poder oficial.
Conforme propõe o historiador Edward Carr, torna-se indissolúvel e sem sentido
a separação entre os acontecimentos que regem a vida do indivíduo e aqueles que
acarretam o cotidiano e as transformações da sociedade.106
É fato que o assassinato de
João Pessoa ocorreu por motivos passionais, mas não se pode negligenciar que a mão de
João Dantas ao puxar o gatilho carregava muito mais que intrigas amorosas.
É possível se considerar a hipótese de que os ânimos de amargura alimentados
desde a posse de João Pessoa, considerada “subversiva”, seus pensamentos diante das
transformações políticas e suas atitudes não canônicas de administração até a revolta de
Princesa, acabaram por envolver a figura de João Dantas, por razões de caráter pessoal,
narrativa encontrada em jornais da época.
RECIFE, 26 (A, A) – Está sendo ouvido na Chefatura de Polícia o dr. João
Duarte Dantas. Confessa que matou o presidente João Pessoa por uma
questão de honra pessoal. Declarou [...] estar o presidente movendo
campanha de difamação a sua honra pessoal. Acrescentou que não está
arrependido, pelo contrário está tranquilo e aguardando a ação da justiça.107
João Pessoa foi transformado em mártir, em um contexto de uma histeria
coletiva, e João Dantas em um louco assassino, vingativo e suicida: “É certo que havia
entre o morto e o assassino ódios antigos. Toda a gente, mesmo muitos dos adversários
do sr. João Pessoa, apontava João Duarte Dantas como oposicionista feroz e capaz de
eliminar o presidente da Paraíba”.108
106
CARR, Edward Hallet. “A Sociedade e O Indivíduo”. In: O Que é História?. Trad.: Lúcia Mauricio de
Alverga. Rio de Janeiro: Editora Paz & Terra, 3ª ed., 1982. 107
Correio Paulistano. São Paulo, 27 de julho de 1930, p. 02. 108
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 27 de julho de 1930, p. 04.
53
O documentário, Princesa do Sertão, uma produção da Tv Senado, que narra os
motivos que desembocaram na Revolta de Princesa, desde a posse de João Pessoa até o
conflito em si e suas consequências, contando inclusive com a participação de Ariano
Suassuna.
O documentário é concebido sob a perspectiva de um de embate entre ideias e
convicções, concentrando o grupo dos “vencidos” e dos “vencedores”. Embora a figura
de João Pessoa seja colocada como central é possível se distinguir o posicionamento de
ambos os lados, a imagem que se perpetuou, sob a perspectiva oficial, e como esse
cenário é e pode vir a ser questionado.
Suassuna, juntamente com familiares e partidários de Zé Pereira, expõe o clã do
Pessoa como o grupo vilão, em especial por meio da deslealdade em relação à morte de
seu pai, já que os algozes de sua casa não possuíam a hombridade de fazer a “justiça”
pelas próprias mãos, mas pela covardia de um pistoleiro, conforme acentua Newton
Júnior:
Eram adversidades de toda ordem. O ambiente político, cada vez mais
agressivo, caracterizado por ameaças que punham em risco a segurança dos
filhos, obrigava-a a se deslocar de um lugar para outro, à procura da acolhida
e da proteção de parentes e amigos. Deslocamentos que, a rigor, se iniciaram
já com as primeiras perseguições políticas anunciadoras da Revolução de 30,
quando João Suassuna ainda era vivo.109
A política da Paraíba compôs um retrato do cenário agitado que o país
atravessava. As consequências se alastraram por décadas. Ariano Suassuna tornou-se
um filtro desse resultado, transmitindo reminiscências em sua literatura.
2. A História e As Pedras de Um Reino
No Folheto L: Interrogatório, em Galope – Os Três Irmãos Sertanejos, que
integra o romance aqui analisado, a personagem Quaderna em resposta a uma das
inúmeras indagações do Corregedor, referente ao processo ao qual enfrentava, declara
ter uma visão política própria, adaptada à dinâmica de sua realidade, a do sertão.
Quaderna, portanto, se identificava como Monarquista de Esquerda. Para ele, “as
Fazendas sertanejas são Reinos, os fazendeiros são Reis, Condes ou Barões, e as
109
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada: Iniciação à Obra de Ariano Suassuna.
Recife: Editora Artelivro, 2000, p. 17.
54
histórias são cheias de Princesas e cavaleiros; de filhas de fazendeiros e Cangaceiros,
tudo misturado!”.110
Mais ou menos, Excelência! Eu preferia que o senhor anotasse exatamente
como eu disse, Monarquista de Esquerda! Meu sonho é fazer do Brasil um
Império de Belo Monte de Canudos, um Reino de república-popular, com a
justiça e a verdade da Esquerda e com a beleza fidalga, os cavalos, os
desfiles, a grandeza, o sonho e as bandeiras da Monarquia Sertaneja!111
Ao analisar trechos como estes em A Pedra do Reino, identifica-se uma
aproximação entre o desejo da personagem, em seu ideal de sociedade, e a visão popular
que Canudos passa a representar após a obra de Euclides da Cunha. Em uma coletânea
de textos escritos pelo próprio Ariano Suassuna e organizados pelo professor Carlos
Newton Júnior, já referida aqui, é possível identificar no texto Canudos, nós e o mundo,
no qual Ariano Suassuna estabelece as relações entre os acontecimentos que marcaram
o aglomerado sertanejo e sua representação como reduto do povo, seu desejo por
igualdade.112
Assim como ocorreu em Canudos, outras partes do mundo sofrem com a
dominação e o massacre dos poderosos, quando as massas vão de encontro aos seus
interesses.
Em Canudos, a bandeira do divino usada pelos seguidores de Antônio
Conselheiro era a do Divino Espírito Santo ⸺ a bandeira do nosso povo,
pobre, negro, índio e mestiço. Povo que o Brasil oficial, o dos brancos e
poderosos, mais uma vez (e como já sucedera em Palmares e Contestado),
iria esmagar [...] Como era de esperar, a “justiça” dos poderosos também ali
cortou a cabeça do Brasil real. E os acontecimentos de Canudos continuaram
a se repetir a cada instante. Em todos os lugares [...] nossos inumeráveis
“arraiais de Canudos” [...] Mas temos que [...] ampliar a imagem [...] no
plano internacional para dizer que, diante de países ricos e poderosos como
os Estados Unidos ou a Rússia, o chamado Terceiro Mundo é um imenso
arraial de Canudos , pobre e injustiçado [...] que estão sendo esmagados ou
humilhados.113
Ao mesmo tempo em que o imaginário de Quaderna, em sua definição de
Monarquista de Esquerda, se apega à representação de símbolos de um passado
Europeu, transfigurados para a linguagem popular do Nordeste, muitos dos quais
incorporados pela estética Armorial.
110
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 350 –
351. 111
Idem, p. 355. 112
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. 113
Ibidem, p. 275 – 276.
55
Embora jamais tenha se envolvido diretamente em política, incorporando tal
característica em diversos de seus discursos, Ariano Suassuna, desde o seu nascimento,
encontrou nesse meio importantes referências em sua trajetória de escritor.
A definição de Quaderna como um “Monarquista de Esquerda” e seu desejo de
criar um império popular parece retratar os pensamentos de Suassuna, que embora
possua pareceres e visões conservadoras em relação ao desenvolvimento e o cotidiano
da sociedade é oriundo de um grupo oligárquico, no decorrer de sua vida, se apresentou
como “defensor” do povo, participando do quadro do governo de Miguel Arraes, ou
ainda em defesa de figuras políticas ligadas às ideias de esquerda.
Segundo Newton Júnior, das cinco lembranças que Ariano Suassuna conservou
do pai, quatro encontram-se ligadas à fazenda Acauhan. Todas essas lembranças, de
acordo com ele, foram recriadas literariamente no romance O Rei Degolado (1977),
através das reminiscências do personagem-narrador Pedro Quaderna, que se confunde
com as do próprio Suassuna.
A trama desenvolvida em O Rei Degolado, na medida em que se considera a
continuação da trajetória biográfica do personagem Quaderna, torna possível declarar
também presentes e reconstruídas no Romance d’A Pedra do Reino.
Para Newton Júnior, João Suassuna era o retrato da nova realidade que se
instalava no país, em que o patriarcado rural perdia espaço para as novas forças políticas
que se instauravam através do meio urbano, representada pela Revolução de 1930. João
Suassuna é, portanto, o perfil da figura oligárquica, um poder que emana do mundo
rural e que se favorece do jogo das relações do poder oriundos daquele universo.
Exilado no Recife, o Sertão já se apresentava como uma imagem, para Ariano
Suassuna, algo tal qual o Sião para os hebreus ⸺ a terra de origem sagrada e distante
⸺, analogia reforçada inclusive pela semelhança sonora entre as palavras “Sertão” e
“Sião”.114
Na visão de Albuquerque, a construção do Nordeste como espaço da saudade,
fruto do resgate de um passado, se desenvolve da necessidade de recuperar a glória de
outrora, agora em ruínas.115
Ariano Suassuna irá experimentar o processo de transição entre o arcaico e a
modernidade, memórias construídas a partir de relatos e de experiências ao longo de boa
parte da vida. Essa saudade dará origem a muitas produções artísticas, influenciado
tanto por sua história pessoal como pela construção da região, sendo o Recife uma
114
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada, p. 61. 115
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 5ª ed. São
Paulo: Cortez, 2011.
56
importante referência, a partir do contanto e conhecimento com autores clássicos como
Gilberto Freyre. Ariano Suassuna se reconhece na saudade e transforma-a em arte. Para
Albuquerque:
A saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços
queridos de seu ser, dos territórios que que construiu para si. A saudade
também é um sentimento coletivo, pode afetar toda uma comunidade que
perdeu suas referências espaciais ou temporais, toda uma classe social que
perdeu historicamente sua posição, que viu os símbolos de seu poder
esculpidos no espaço serem tragados pelas forças tectônicas da história.116
A descrição que Carlos Newton Júnior realiza em O Circo da Onça Malhada:
iniciação a obra de Ariano Suassuna, de como haveria sido a sua infância, se assemelha
em muito ao que o autor de O Auto da Compadecida faz com Quaderna, em A Pedra do
Reino: “[...] os anos intensamente vividos em Taperoá, marcaram para sempre o futuro
escritor, [...] numa feira [...] é o lugar onde trava contato com um rol de personagens
que o acompanharão durante toda a vida”. 117
É perceptível que a busca do pai torna-se para Suassuna, a busca de sua própria
identidade. As tragédias familiares de sangue, que ele descreve em suas primeiras peças,
e que prossegue com ímpeto na Pedra do Reino e a vida confusa de diversos
personagens, caracterizaria uma realidade pessoal do autor.
Segundo Le Goff, a memória estaria não somente ligada às lembranças
acumuladas, mas estas se entrelaçariam ao processo de reconstrução por meio da
releitura de vestígios através do espaço social em que o indivíduo se desenvolve.118
Ariano Suassuna transforma a Pedra do Reino em um trabalho autobiográfico,
um diário que tem por objetivo retratar a necessidade do autor de contar a sua história,
expressar as memórias guardadas, a ótica dos “vencidos”. Ariano Suassuna, dessa
maneira, deseja transformar os perdedores em “vencedores”. Reflete, nesse processo,
uma recontagem, que vai além de si, pois passa por uma abordagem e releitura da
história do Nordeste e do país.
As autobiografias são constatações de vidas e a representação dessas em um
determinado contexto social. Segundo Philippe Lejeune, “A indústria editorial não pode
se interessar senão por um pequeno número de histórias de vida: de escritores
conhecidos [...] ou testemunhos de impacto”. 119
116
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p. 78. 117
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada, p. 25. 118
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 119
LEJEUNE, Philippe. Mémoires de vie et identité. Le Groupe Familial, nº 147, abil – junho de 1995.
57
Nessa ótica, Suassuna guarda em si e traduz as consequências de um evento, a
história de um grupo, o capítulo da história de um país e transforma o coletivo em
particular.
A compreensão de um autor e seus pensamentos por meio da literatura que
produz é analisada por Peter Gay, que, evocando o exemplo de autores clássicos, chama
a atenção para a reprodução da visão do mundo destes, transfigurado através da
literatura.120
A trajetória de Ariano Suassuna, e o papel que cumpre na literatura, em muito se
aproxima de diversos intelectuais, inclusive aos retratados no livro de Peter Gay,
Represálias Selvagens. Provenientes de famílias abastadas, alguns escritores do século
XIX buscavam de alguma maneira defender aquilo que acreditavam como senso de
justiça, reconstruindo pelas palavras o retrato de uma época e denunciando as práticas as
quais considerou injustas.
A esses escritores era reservado o direito de se utilizarem da imaginação e da
liberdade de criação: “[...] o romancista sério [...] devia limitar-se estritamente a
personagens plausíveis e vivendo em ambientes plausíveis e participando de
acontecimentos plausíveis”.121
O Romance da Pedra do Reino aproxima a realidade e a fantasia. Em um artigo
comemorativo aos 80 anos de Ariano Suassuna, Carlos Newton Júnior publica um breve
parecer a respeito da construção do universo mítico de Ariano Suassuna. No texto,
destaca o romance como pedra fundamental da visão deste a respeito de sua biografia e
a de sua família:
[...] Ariano faz de sua obra um grito de protesto e uma desesperada tentativa
de recuperação de uma mundo que lhe foi confiscado pela inapelável trama
do destino [...] Quem se lembraria, hoje, de João Suassuna e da injustiça de
que foi vítima, não houvesse sido eles resgatado para a história pelo poder da
literatura? 122
Nas palavras do próprio Suassuna, em discurso de posse da Academia Brasileira
de Letras, ele se coloca como “[...] aquele mesmo menino que, perdendo o Pai
120
A literatura aqui é uma porta de entrada ao psíquico dos escritores, a composição que dão do mundo
externo através do interno, retratando autores realistas que buscaram a máxima proximidade e
verossimilhança da sociedade de sua época. GAY, Peter. Represálias Selvagens. 121
GAY, Peter. Represálias Selvagens, p. 13. 122
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Universo Mítico de Ariano Suassuna. Continente, Pernambuco, ano
VII, nº 78, junho 2007, p. 13 – 15.
58
assassinado [...] passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do
que faço e do que escrevo [...] buscando recuperar sua imagem”.123
A grafia da palavra “Pai” com inicial maiúscula é apenas mais um indício da
grandiosidade e importância com a qual Ariano Suassuna enxerga a João Suassuna, não
somente o pai do menino injustiçado por uma ausência forçada, mas o homem honrado,
portador das mais altas qualidades humanas, que mesmo assim não impediu de ser
desconfigurado e desrespeitado por um erro historiográfico ao qual Ariano Suassuna
buscou reajustar com o seu olhar através da literatura.124
A despeito disso, no entanto, Suassuna em uma entrevista no ano de 2000,
esclarece não ser o Romance d’A Pedra do Reino uma vingança, mas “[...] uma
tentativa de recuperação. Por isso eu acho o nome Pedra muito importante é como se eu
encaixasse uma pedra angular para erguer um monumento ao meu pai”.125
De acordo com Le Goff, monumento é “[...] um sinal do passado [...] é tudo
aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação”. O historiador ainda chama a
atenção para a incorporação de significados à ideia de monumento que, desde a
Antiguidade, tende a se especializar em dois sentidos, sendo um deles “[...] um
monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em
que a memória é particularmente valorizada: a morte”.126
Ainda que hipoteticamente a ideia de vingança não tenha perpassado a cabeça de
Suassuna, a referência às Pedras do Reino está além de seu romance. Não pode ser
negligenciado o fato de que ao escolher a ligação com tal arquitetura natural, Ariano
Suassuna associa em alguma medida a lembrança de João Suassuna à memória da
história do Nordeste. Duas tragédias irreparáveis, em ambos os casos a morte de
indivíduos inocentes.
A despeito da tragédia, ela não é somente uma lembrança evocada na obra de
Suassuna, em seu Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta.
Possui raízes profundas na construção daquele povo. Além dele, Euclides da Cunha
retorna o fato em Os Sertões (1902), bem como José Lins do Rego, em Pedra Bonita
(1938).
123
SUASSUNA, Ariano. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Discurso de posse.
http://www.academia.org.br/academicos/ariano-suassuna/discurso-de-posse Acesso em: 20 de jan de
2017. 124
SUASSUNA, Ariano Vilar. Ao Sol da Prosa Brasileira. [Outubro/ 2000]. São Paulo: Caderno de
Literatura Brasileira. Ano II, nº 10, p. 22 – 51. 125
LE GOFF, Jacques. “Documento/ Monumento”. In: ____ História & Memória, p. 535. 126
Ibidem, p. 535.
59
Em uma análise a respeito da vida e da trajetória de intelectuais brasileiros entre
a primeira e a segunda metade do século XX, Sergio Miceli traça um panorama de como
as transformações políticas pelas quais o país vivia acarretaram mudanças na vida
cultural, no papel político da classe dirigente no Brasil.127
As modificações que a Revolução de 1930 trouxe não envolviam somente as
movimentações pós tomada de poder, mas abrangiam todo um sistema que já
apresentava sinais de colapso e decadência, a “Velha República” estava se consumindo
em seus próprios acordos e desacordos.
Ariano Suassuna, mesmo vindo a se inserir em um fluxo já em andamento,
torna-se elemento resultante das consequências desses polvorosos tempos. Em sua obra,
Miceli discute a trajetória de diversos intelectuais, cujas vidas foram transformadas.
Uma das situações analisadas diz respeito à ausência da figura paterna, fator que foi
decisivo em relação a Suassuna.
Miceli define como nomandismo familiar as mudanças estratégicas das famílias
em declínio financeiro, com o intuito de reerguerem-se socialmente. “Naquelas
situações em que o declínio resulta do desaparecimento da figura paterna (falecimento,
absenteísmo, separação dos pais)”.128
A esse fenômeno também cabia o processo do apoio que os parentes, em fase
crítica, buscavam em familiares mais abastados, por meio de uma rede de relações
parentais. Agregado a esses episódios, havia uma feminização do lar, onde as mulheres
(mãe, tias, irmãs), comumente tomavam para si a responsabilidade financeira da casa,
na medida em que:
[...] os esforços por parte da mãe em busca dos recursos dos parentes
abonados que possam completar os rendimentos que aufere mediante
trabalhos de baixa rentabilidade (costura, doçaria, bordado, flores de papel
etc.), com vista a propiciar aos filhos oportunidade de escolarização capazes
de sustentar o processo de desclassificação social.129
Após a morte de João Pessoa, a família Suassuna passa a ser perseguida, tendo
como alvo direto seu patriarca, acusado de envolvimento e mandatário do crime. Teve
início uma caçada pública à figura de João Suassuna.
O Jornal O Imparcial, a exemplo de diversos outros jornais do país, publicou em
08 de setembro de 1930 matéria a respeito do assassinato do presidente João Pessoa e
127
MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920 – 1945). São Paulo: Difel/ Difusão
Editorial S.A., 1979. 128
Idem, p. 98. 129
Idem, p. 99.
60
acusou de cumplicidade do caso o então deputado João Suassuna: “Foram denunciados
como autores do bárbaro crime, o bacharel João Dantas e seu cunhado Moreira Caldas e
como cúmplices os srs. Júlio Lyra e João Suassuna”. 130
Em O Correio da Manhã, lê-se: “Em perpetração do odiosíssimo homicídio,
João Duarte Dantas foi o braço que executou, mas outros responsáveis diretos podem
ser encontrados, entre os quais devem ser salientados o deputado João Suassuna”.131
Esse tipo foi o procedimento seguido por outros diversos jornais pelo país.
Em 09 de outubro daquele mesmo ano, em busca de defesa nas cortes da capital
do país, João Suassuna é assassinado por um pistoleiro contratado como acerto de
contas. Todavia, o assassinato do patriarca não encerrou as perseguições à família
Suassuna. Dona Rita, agora mãe e viúva, passa, portanto, ao posto de líder de família e
decide por fim buscar apoio em Taperoá, onde residem seus parentes.
A exemplo do que sugere a ideia das pretensões almejadas pelas famílias
decadentes, conforme análise de Miceli, Rita Vilar Suassuna, ao buscar o apoio parental
em Taperoá, não vai atrás somente do suporte financeiro, já que, após a morte de João
Suassuna, enfrenta diversas intempéries e com elas a perda de patrimônio. Ela quer dar
aos filhos a oportunidade de proteção tanto de vida, não perpetuando os cadáveres,
como de possibilidades que as relações familiares ligadas as de poder proporcionavam,
conforme Miceli sugere, facilitando os caminhos por meio das redes de relação do
poder.132
O acerto de contas por meio da política das balas, lavando a honra de famílias,
era algo comum no cotidiano da época. Ao se deslocar para o Rio de Janeiro, após
acusações de um possível complô envolvendo o assassinato de João Pessoa, Suassuna
em uma carta de despedida à esposa, diante da consciência de uma presumível tragédia,
pede-lhe que encerre o ciclo de possíveis fatalidades que poderia arrastar sua família
depois de morto, mas alegando inocência contra as acusações sofridas. Em trechos de
sua carta, João Suassuna declara:
Não sei que destino nos esteja afinal reservado, nessa fase extrema e
gravíssima da vida nacional [...] em que os deixo pobres e expostos a
verdadeiros martírios, numa época em que é incerto e negro o futuro da pátria
brasileira [...] resolvi escrever estas declarações e deixa-las, com outros
documentos da minha defesa [...] Se me tirarem a vida, os parentes do
presidente João Pessoa, saibam todos os nossos que foi clamorosa injustiça –
130
FERREIRA, João Pires. “O Assassino do Presidente João Pessoa”. O Imparcial, São Luíz, 08 set de
1930, p, 01. 131
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 03 de set. de 1930, p. 03. 132
MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil.
61
eu não sou responsável, de qualquer forma, pela morte dele nem de pessoa
alguma neste mundo. Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de
vingança contra ninguém. Não se façam criminosos por minha causa.133
É relato presente tanto na voz de Ariano Suassuna, de familiares, quanto de
estudiosos, que tal carta ao expressar a esposa o seu último desejo. Faz com que ela
impeça o impulso do desejo de vingança, característico do período. Evitando que seus
filhos e familiares levassem a história em curso adiante somando o número de cadáveres
à narrativa.
Mês polvoroso, outubro de 1930 ainda traria consigo dissabores aos Suassuna.
Aos três dias daquele mês a Aliança Liberal, reestruturada após a morte de João Pessoa,
dá início às incursões armadas. Estoura a “Revolução”. Ariano Suassuna guarda na
memória a visita que ele juntamente com o irmão João e a mãe fizeram a João Dantas.
Este morreu naquela mesma semana, atestado como suicídio. A forma misteriosa de sua
morte representava mais uma das retaliações que a família sofria e sofreria como
consequência da morte de João Pessoa.
No Nordeste, a partir do estado da Paraíba, as tropas rebeldes se disseminariam.
[...] era 3 de outubro, ia estourar a Revolução de 30; as tropas da Paraíba
depuseram o governador, tomaram o poder e desceram para cá. Aqui,
tomaram a cadeia e, na madrugada do dia 6, João Dantas foi encontrado com
a garganta cortada, na cela do terceiro andar da Detenção. Até hoje a gente
tem certeza de que ele foi assassinado e o outro lado diz que foi suicídio.134
As causas “misteriosas” pelas quais se deram a morte de João Dantas serviriam
de inspiração a Ariano Suassuna, duas décadas depois, para a trama da Pedra do Reino,
ao narrar o assassinato de Dom Sebastião Garcia Barreto, padrinho de Quaderna.
A imaginação do romancista, como já mencionado, não produz o real, mas parte
deste, transfigurando em uma nova realidade. Na figura de Dom Sebastião, em A Pedra
do Reino, é possível identificar a imagem paterna de um rei morto, mesmo diante de sua
grandiosidade, somado ao episódio da misteriosa morte de João Dantas, relatada
posteriormente como mais um assassinato de toda essa trama.
Em uma entrevista à revista carioca O Cruzeiro, de 08 de outubro de 1949, Zé
Pereira descreve os fatos que antecederam seu rompimento com o então governador
133
Trecho da carta de João Suassuna a sua esposa Rita Suassuna in SÁTYRO, Ernani. Série perfis
parlamentares nº 61, p. 157 - 158. 134
SUASSUNA, Ariano Vilar. Ao Sol da Prosa Brasileira, p. 22 – 51.
62
João Pessoa.135
A narrativa do coronel, que se torna um sobrevivente, é um contraponto
à narrativa dos vitoriosos. Assim como a família Suassuna, Zé Pereira se junta ao clã
dos “vencidos”, mais um representante do “arcaísmo” do interior paraibano.
Em nota introdutória, o repórter deixa claro a reclusão vivida pelo coronel, após
os fatos, afastando-se do tumulto causado pela vida pública, “[...] Zé Pereira era um
homem rico, mas perdeu tudo que tinha na campanha de 30”, inclusive através de saque
realizado em sua propriedade, por mãos de pessoas conhecidas.136
“Zé Pereira gosta de viver distante de repórteres, sabendo fugir a perguntas de
maneira bastante diplomática, sem criar antipatias” o que revela o seu caráter
ponderado, pelo qual possuía grande admiração e respeito social, particularmente entre
seus correligionários.137
Durante sua trajetória política, o rompimento com o governo de João Pessoa
desencadeou um efeito em cascata, levando o estado da Paraíba a uma guerra civil e
política, influenciando posteriormente o imaginário do próprio Suassuna e sua escrita da
Pedra do Reino.
[...] Foi deputado em quatro legislaturas, a última em 1930, quando as
panelas da política brasileira começaram a ferver.
[...] Foi então organizada a nova chapa de representantes paraibanos que
teriam de formar a bancada do Estado na Câmara. ⸺ Dessa chapa ⸺ diz Zé
Pereira ⸺ não constava o nome de João Suassuna ex-Presidente do Estado,
motivo por que se deu o rompimento dos amigos de Suassuna com João
Pessoa.138
Princesa transformou-se ao mesmo tempo no último reduto que buscava
conservar a estrutura política e social como forma de preservar a ordem, ao mesmo
tempo desencadeando acontecimentos que culminaram na morte de João Pessoa,
angariando forças à Aliança Liberal levando à “Revolução” de 1930.
Ainda de acordo com O Cruzeiro, o coronel José Pereira foi durante muito
tempo perseguido pelo novo governo, perdendo praticamente tudo após os
acontecimentos de 1930 se afastando da política e da vida pública, ressurgindo
novamente nos anos de 1940 e 1949, ano de sua morte. Por fim, uma vida menos
tumultuada que os 146 dias do cerco de Princesa.
135
O Cruzeiro, “A Campanha de Princesa”, p. 98. 136
Ibidem, p. 98. 137
Idem. 138
Idem.
63
Os acontecimentos de 1930 reorganizaram as alianças e embora “com uma base de
apoio fraca e limitada [...] foi se implantando com a indicação de interventores”,
causando fragilidade nas elites regionais de cada estado em que o movimento se
apossava.139
A dança das cadeiras representou uma ruptura, provocando “novas” antigas
relações. O que justifica a permanência tanto de práticas, como de nomes do antigo
regime que renasciam agora como liberais. Segundo Silva:
Não havia por que as elites políticas estaduais aderirem a um movimento que
desalojava seus membros mais representativos [...] Adesão que, uma vez
vitorioso o movimento, não foi difícil conseguir. Isto por conta de uma lógica
própria da política coronelística: ficar sempre que possível ao lado de quem
estava no poder .140
Vinte e oito anos depois dos episódios de 1930, em 1958, tem início a produção
do Romance d’A Pedra do Reino, através das notas que o autor começa a realizar.
Todavia, em mais de uma oportunidade Suassuna declara que a gênese da Pedra do
Reino é anterior a este momento.
A necessidade de erguer um Castelo Literário, e transformar João Suassuna em
sua pedra fundamental, o alçando ao posto de Rei, era uma constante na vida de Ariano
Suassuna. Aos olhos de um leitor um pouco mais atento e conhecedor da biografia do
autor será fácil notar esse paralelo entre Quaderna, o personagem central do romance e
Ariano Suassuna.
Segundo o próprio Ariano Suassuna, no princípio da década de 1950, em uma
primeira tentativa frustrada, teve a intenção de escrever uma biografia a respeito de seu
pai, Vida do Presidente Suassuna, Cavaleiro Sertanejo. Finalmente, “[...] em 1958,
comecei a tomar notas para um romance longo, que era a Pedra do Reino. Fiz mais de
uma versão d’A Pedra”.141
A segunda tentativa, igualmente malograda, vai para o
âmbito da poesia, ele inicia sua carreira literária através desse caminho, mas não
consegue transmitir em palavras a dor que alega sentir em Cantar do Potro Castanho.
O Brasil mais uma vez tornara-se palco de tempos difíceis. O ano de 1964
aproximava-se e Ariano Suassuna agora homem adulto, pai de família e já consagrado
139
SILVA. Paulo Santos. Âncoras da Tradição: luta política, intelectuais e construção do discurso
histórico da Bahia (1930 – 1949). Salvador: EDUFBA, 2000, p. 251. p. 28. 140
Idem, p. 25 e 29. 141
O trabalho de Ariano, em todas as esferas, guarda como característica o processo de constante reescrita
que o autor faz, onde muitos destes, mesmo após a publicação, são reescritos na busca daquilo que
considera melhorias, e diante das transformações sofridas pelo próprio autor, enquanto indivíduo ao longo
da vida.
64
autor de peças teatrais, se via em meio a novas incursões políticas que tumultuariam a
escrita da história nacional.
A década de 1960 iniciava-se sob a égide do Cinema Novo e das mais diversas
aspirações artísticas e culturais. Uma vez mais se buscava o retrato e a alma, a essência
e representação daquilo que seria a “verdadeira” imagem do homem brasileiro. O
mundo bipolarizado fomentava a indissolubilidade entre cultura, arte e política.
Nesse momento, “[...] a defesa da cultura nacional [...] abriu portas
especialmente no campo das artes, para vertentes românticas, que se inspiraram no
resgate da identidade de um suposto homem autêntico do povo brasileiro para implantar
o progresso e a revolução”.142
Mas qual seria a representação desse homem brasileiro? Em um momento em
que o marxismo era abordado a partir de um viés romantizado, o retorno ao passado e o
encontro com as raízes do país, onde o povo, sua arte e seu cotidiano, era o caminho a
ser seguido. Era através dele que esses grupos de artistas engajados pretendiam
conclamar a revolução popular.
Representante de um romantismo melancólico frente à modernidade que não
podia ser impedida, Walter Benjamin tornara-se leitura obrigatória daqueles tempos.
Como exemplo, segundo o cineasta Eduardo Coutinho, em relação à nona tese de
Benjamin, a qual faz alusão em um de seus filmes. 143
[...] Essa tese de Benjamin é das mais representativas do romantismo
marxista; ela expressa bem o sentimento de vários intelectuais artistas diante
da inexorabilidade do progresso, como foi o caso de brasileiros nos anos 60,
que há um tempo pretendiam revolucionar a sociedade em direção ao futuro e
buscavam para tanto o encontro com as raízes do passado, em meio a um
acelerado processo de modernização e urbanização da sociedade.144
Embebidos de ideias semelhantes àquelas que nortearam os modernistas a
respeito da “brasilidade”, o sujeito que desenhavam como os agentes de transformações
eram as figuras dos pescadores do litoral, das comunidades ribeirinhas, do camponês
nordestino, do emigrante, que embora muitas vezes fugisse de sua terra de origem,
carregava consigo sua autêntica essência.
142
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 66. 143
A 9ª Tese de Benjamin que explana a respeito da filosofia da história. Baseado em uma tela de Paul
Klee, intitulada Angelus Novus (1920), Benjamin defendia a ideia de que o Anjo da História estava sendo
levado pelo vendaval do progresso e embora não quisesse seguir, se vai, mas de costas, contemplando a
História, em sua ruína. Disponível: www.rae.com.pt/wb2. Acesso: 30 de novembro de 2017. 144
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro, p. 95.
65
Esses homens também estavam nas cidades na condição de operários fabris
oriundos desse grupo original. Isso se reflete nas produções artísticas que tinham o
objetivo de atingi-los. Para isso viam no teatro um meio para alcançar de forma didática
e conquistar as massas, como expressão da realidade nacional, fundindo arte e política.
Segundo Ridenti, um artigo talvez tenha marcado esse novo período engajado
“O Teatro Como Expressão da Realidade Nacional” (1959) do ator e teatrólogo
comunista Gianfrancesco Guarnieri. Dentre outros pontos, Guarnieri defendia a
construção de uma dramaturgia nacional e a “lei dois por um”, a qual obrigava a
apresentação de uma produção nacional após duas estrangeiras, o que acabava
estimulando os autores e os textos nacionais.
O incentivo ao teatro nacional juntamente com uma cultura envolta com o
marxismo em sua visão romantizada e a idealização nacional de um momento pré-
industrial podem ser compreendidas indiretamente como um estímulo ao
desenvolvimento teatral de Ariano Suassuna.
Ainda segundo Ridenti, buscava-se a arte popular dentro do CPC: “Os
movimentos culturais do pré-64 sofriam influências do PCB, de diversas correntes
marxistas e do ideário nacionalista e trabalhista da época”.145
O movimento cultural do CPC, incorporando conceitos e diretrizes do PCB, não
se restringia ao eixo Rio-São Paulo. Estava presente nas principais capitais do país, em
particular a partir dos anos de 1960 com a crescente agitação política do país.
Recife, nomeada a cidade vermelha, em correspondência com a sua tradição
comunista, ao tempo do Golpe de 1964, tinha na chefia do governo do estado o
advogado Miguel Arraes, aliado do presidente deposto João Goulart. Antes do golpe,
sua administração foi marcada pelo apoio à população carente, opondo-se aos interesses
e abusos dos usineiros da região.
Embora existisse certa liberdade de expressão no CPC, dentro do PCB, era
inevitável não se interligarem:
[...] especialmente nos anos 60, havia uma ligação íntima entre expressão
política, artística e cientifica ⸺ todos voltados para a revolução brasileira ⸺
que conduzia os jovens engajados das classes médias a militar no cinema e
no teatro ou em qualquer outra arte no jornalismo, na universidade [...] sendo
essas opções encaradas como formas de realização de projetos coletivos e
não essencialmente como opção individual de carreira.146
145
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro, p. 77. 146
Idem, p. 92.
66
Os grupos teatrais amadores e itinerantes se multiplicavam pelo país, o próprio
Ariano Suassuna já havia vivido uma experiência semelhante em sua vida na época da
faculdade de Direito. Nesse momento ele encontra um campo fértil que possibilita o
desenvolvimento de suas habilidades no âmbito literário e teatral, juntando-se a outros
jovens estudantes, interessados nos mais variados campos da arte, além da literatura,
música, teatro e pintura.
Esse grupo de jovens inexperientes passa a ser liderado por Hermilo Borba
Filho, mais velho e intelectualmente à frente de seus colegas universitários, os
direcionou na retomada, em 1946, do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) “[...]
direcionada [...] para encenação de [...] clássicos da dramaturgia universal; direcionada
também para a pesquisa em prol de um teatro brasileiro novo, de raízes nordestinas e
populares”.147
Foi através de Borba Filho que Ariano Suassuna tomou conhecimento do artista
espanhol, Garcia Lorca e, à semelhança dele, decide orquestrar juntamente com seus
companheiros um teatro itinerante, se espelhando em seu trabalho de resgate da cultura
popular da Espanha, realizar algo próximo no Brasil.148
Anos depois, Borba Filho escreveria um artigo no Diário de Pernambuco, em
defesa de Ariano Suassuna, agora escritor consagrado:
Trata-se no que se refere a Ariano Suassuna de um Professor de alta
categoria, de um artista raro, [...] (sua peça “Auto da Compadecida” tornou-
se clássica ainda em vida do autor, encenada e publicada em vários países da
Europa, Ásia e América. Seu romance “A Pedra do Reino” foi um arrasador
sucesso nacional, por muita gente considerado como um novo marco da
nossa literatura de ficção), do líder de um movimento do qual não se pode
[...] lhe tirar os méritos [...] por uma filosofia que compreenda e revele o
homem brasileiro, por uma estética que, sendo particular, por isto mesmo se
projeta no plano universal, por uma arte que seja latino-americana [...]
brasileira, isto na música, no teatro, no cinema, no romance, na poesia, na
escultura”. 149
Para Michael Pollak, existem ligações entre a memória e a formação social do
indivíduo.150
A partir dessa questão, podemos perceber que por meio da memória de
alguém se torna possível ao averiguar a construção que uma pessoa faz de si, seja ela
consciente ou inconsciente e de que maneira ela transmite isso ao mundo.
147
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada, p. 43. 148
Idem. 149
FILHO, Hermilo Borba. “Ariano & Denner”. Diário de Pernambuco. Recife, 13 de abril de 1972. 150
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,
1992, p. 200 – 212.
67
Assim, podemos encarar a identidade social de alguém como um reflexo de sua
memória, algo íntimo e intrínseco à pessoa. Por outro lado, deve-se pensar que por
tratar-se de uma construção, embora íntima e individual, ela parte do meio ao qual o ser
se insere, sendo por isso uma troca na relação entre sujeito/ sociedade e vice-versa.
Deve-se encarar que embora os vestígios da história de um indivíduo guardem
em si a essência, tais lembranças são fluidas. “Se destacamos essa característica
flutuante, mutável da memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar
também que, na maioria das memórias, existem marcos ou pontos relativamente
invariantes e imutáveis”.151
Como o próprio autor diz, tais marcos podem representar o coletivo, o
individual, ou ambos ao mesmo tempo. Na representação da memória, ao ser externada,
pode o indivíduo estar ou não presente no relato dessa exteriorização, sendo esta última
situação ocasionada quando o sujeito toma para si uma memória e a reconstrói. Isso
ocorre, pois ao longo da vida, tamanho foi o contato dele com diversos relatos, o que
leva a memória a um processo de construção através do direcionamento que o grupo que
a incorpora realiza. Ainda que de maneira inconsciente, ela torna-se parte da tradição de
um povo. A isso Pollack denomina de Memória herdada.
Em seus constantes relatos ao longo da vida, Ariano Suassuna faz de sua
memória um berço fértil para a sua imaginação teatral e literária, mas também a torna
fonte de pesquisa na busca de reconstruir e a sua biografia e a de sua família.
Entre o vivido e a memória herdada, apresentada e representada por Ariano
Suassuna, há uma fusão, que se incorpora ao seu propósito de apresentar uma nova
imagem da tragédia que envolve sua família. Sua obra o Romance d’A Pedra do Reino e
o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, efetiva suas intenções.
151
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social, p. 200 – 212.
68
CAPÍTULO III
O SERTÃO TRANSFIGURADO DE SUASSUNA: ENTRE AS PEDRAS E UM
REINO
Nas histórias que correm pelas estradas empoeiradas do Nordeste, trazidas pelas
“[...] ventanias guerreiras do Sertão: o cariri, o vento frio e áspero das noites de serra, e
o espinhara, o vento queimoso e abrasador das terras incendiadas”, fatos se misturam a
fantasias, mitos e lendas são recriados, narrativas antigas emergem em um novo
espaço.152
Entre a ficção e a realidade são muitas as versões que giram em torno dos
acontecimentos que se sucederam em Pedra Bonita, as conhecidas Pedras do Reino. A
primeira referência histórica da qual se conhece registro do movimento é a do
historiador Antônio Attico de Sousa Leite, sob o título de Memoria sobre A Pedra
Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, Província de Pernambuco,
publicado originalmente no ano de 1875, sob a responsabilidade do Instituto
Arqueológico e Geográfico de Pernambuco.
Após a história, a literatura se encarregou de perpetuar a memória assinalada do
Sertão. O Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta foi o
terceiro título a abarcar os acontecimentos envolvendo os “fanáticos” de Pedra Bonita
(1836 – 1838). A obra de Ariano Suassuna possui dois antecessores no universo das
letras, Araripe Júnior e José Lins do Rego.153
No ano de 1878, o advogado e escritor cearense Araripe Júnior (1848-1911),
publicou O Reino Encantado: Crônicas Sebastianistas. Em 1938, um século após o
evento messiânico, José Lins do Rego (1901 – 1957) dá inicio ao ciclo de temáticas
relacionadas ao cangaço, aliado ao flagelo das massas provocado especialmente pelas
secas e pela exploração dos poderosos, sendo o misticismo messiânico com a distorção
do catolicismo em forma de fanatismo, a consequência.
152
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 115. 153
Na obra Os Sertões, Euclides da Cunha traz uma referência ao movimento de “Pedra Bonita”, todavia
diferente de Araripe Júnior e especialmente de José Lins do Rego e Ariano Suassuna, ele não aborda uma
linguagem poética, seu trabalho encontra-se em um âmbito cientifico e positivista. Todavia é Euclides um
dos grandes influenciadores na obra e visão de mundo de Ariano Suassuna, a incorporação do Brasil
Oficial x Brasil Real.
69
Tal qual Ariano Suassuna, José Lins do Rego admite a influência da cultura
popular e do sertão em suas obras. Segundo Alfredo Bosi, Lins do Rego “[...] sempre se
declarou um escritor espontâneo e intuitivo”, deixando claras as influências presente em
suas narrativas: “Os cegos cantadores, amados e ouvidos pelo povo, porque tinham o
que dizer, tinham o que contar. [...] quando imagino meus romances tomo sempre como
modo de orientação o dizer as coisas como elas surgem na memória, como o jeito e as
maneiras simples dos cegos poetas”.154
São eles, os cantadores, os aedos sertanejos, que em uma sociedade iletrada
tornam-se os principais transmissores da cultura popular, levando a sua maneira as
histórias que os antigos contam.
Nascido e criado nesse contexto, com seus sujeitos, histórias, cheiros, sons,
cores, rituais, práticas, costumes e aqueles modos de vida tão típicos da cultura popular
sertaneja, assim como Ariano Suassuna, do Rego embora também não pertencente às
camadas populares, pode absorver dela fortes traços, que são encontrados em suas
criações ficcionais.
Todavia, a obra de Lins do Rego possui uma linha própria, característica dos
romances da década de 1930.155
Além das práticas do dia-a-dia, José Lins do Rego
propõe uma leitura social dos fatos e do cotidiano. Tanto em Pedra Bonita (1938)
quanto em Cangaceiros (1953), em diversas passagens há um retrato cru da sociedade
ao longo dos romances, perfil distinto em relação ao de Pedra do Reino, que se constrói
muito mais sob a influência das ideias surrealistas, criadas a partir de imagens que se
atrelam à realidade, característica marcante na obra de Ariano Suassuna.
Tendo como palco uma região fronteiriça e afastada dos grandes centros, o
movimento messiânico de Pedra Bonita ocorre no sertão do Pajeú, onde se encontra o
município de São José do Belmonte no estado do Pernambuco. O espaço geográfico
aqui é, portanto, um facilitador, tanto por conta das frágeis condições sociais, quanto
pela preservação de tradições que se configuram em um processo de longa duração,
154
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2ª ed. 5ª reimpressão. São Paulo: Editora
Cultrix, 1975, p. 448. 155
Segundo Cândido, a busca da interpretação do país e da “descoberta” de um perfil próprio, antes vistos
como possíveis manchas, agora se transformam em singularidades que merecem ser exaltadas que teve
um sutil início durante o romantismo e se firmou durante o Modernismo, mas é após as transformações de
1930 que ele é marcado com forte característica “[...] Pode-se dizer que o Modernismo veio criar
condições para aproveitar e desenvolver as intuições de um Silvio Romero, ou um Euclides da Cunha
[...] sob este ponto de vista, o decênio mais importante é o seguinte, de 1930 [...] nesse decênio de
intensa pesquisa e interpretação do país”. CÂNDIDO, Antônio. Literatura & Sociedade. 9ª ed. Rio de
Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006, p. 130 a 132.
70
diante das poucas e lentas transformações que ocorrem. Palco fértil para a
imaginação, a fé exacerbada, o desespero, a loucura e a exploração.
O mito de Pedra Bonita tem origem em um fascínio e adoração transmitida
especialmente através da oralidade e do cordel, e tem sua gênese em histórias advindas
de Portugal. Após a morte de El-Rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir no
Marrocos (1578), se cria o precedente do mito do Sebastianismo. Solteiro e sem
herdeiros diretos, D. Sebastião foi sucedido por um tio Cardeal, já em idade avançada,
D. Henrique, que veio a falecer dois anos após assumir o trono.
Portugal, passou então para o domínio espanhol, situação que perdurou por seis
décadas. Com a sujeição ao país vizinho e a crescente insatisfação da população
lusitana, difunde-se o mito do retorno do jovem monarca, salvador e restaurador do
trono e da glória portuguesa de outrora.
Segundo Antônio Cândido, encontra-se em Portugal a base de nosso
“cosmopolitismo”, e sua interação com o local, na busca de nossa própria identidade e
auto reconhecimento e afirmação: “[...] Todo o nosso século XIX, apesar da imitação
francesa e inglesa, depende literalmente de Portugal, através de onde recebemos não
raro o exemplo e o tom da referida imitação”. 156
1. O Mito de “Pedra Bonita”:
Conta a história, incorporada inclusive nas narrativas escritas por Ariano
Suassuna e por José Lins do Rego, que no ano de 1836, um astucioso beato de nome
João Antônio dos Santos, apareceu em torno da cidade de Pajeú, com pedrinhas
brilhantes, as quais dizia serem diamantes oriundos de uma lagoa mágica próxima às
Pedras do Reino, onde Dom Sebastião lhe aparecera por meio de uma visão, revelando
ser a construção rochosa as torres de uma catedral encantada.157
Munido de um folheto, que contava a vida e a morte heroica do jovem monarca,
associando este elemento a uma sociedade predominantemente iletrada, ao seu poder de
persuasão e a ânsia da população fustigada e injustiçada, marcada tanto pelas histórias
como pela religiosidade, vão crescendo o prestígio mais a crença em torno de João
Antônio. O número de pessoas que passou a seguir o profeta começou a preocupar as
156
CÂNDIDO, Antônio. Literatura & Sociedade, p. 119. 157
LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de
Villa Bella, Província de Pernambuco. Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco.
Recife, Tomo XI, 1904. , p. 217 – 248.
71
autoridades locais, que inquietas recorreram ao padre Francisco José Correia de
Albuquerque, que persuadiu João Antônio, o qual partiu para o sertão.158
Dois anos após o ocorrido, eis que surge o cunhado de João Antônio, João
Ferreira, que se auto proclama rei. Várias são as atrocidades cometidas por essa nova
figura, entre elas a poligamia passa a ser permitida, sendo a primeira noite de cada noiva
pertencente ao rei, os moradores em geral eram proibidos de saírem da nova
aglomeração, apenas a alguns era dado o direito de se deslocarem, sendo dessa forma
responsáveis na procura por novos seguidores.159
Condenados à privação de alimentos e ao isolamento, eram submetidos a rituais
religiosos nos quais conseguiam “ver” a Dom Sebastião, por meio de uma bebida
estimulante e alucinógena. “[...] Ali, todos beberam um líquido, dado pelo Rei, ao qual
chamavam Vinho Encantado, certa composição de jurema e manacá: tem a propriedade
do álcool e do ópio, ao mesmo tempo”.160
Com o tempo, João Ferreira começou a disseminar a ideia de que para a vinda
do tão esperado desejado, seria necessário que as Pedras do Reino fossem banhadas em
sangue por meio de sacrifícios, como meio de convencimento afirmava que todos
aqueles sacrificados renasceriam para a glória de novos tempos. Quem era aleijado,
voltaria andando, quem era pobre, teria riquezas, quem era negro, se tornaria branco,
quem era doente se tornaria sadio, até mesmo os cachorros assassinados voltariam como
dragões para assim destruírem os poderosos.161
Estava acordado, em uma única ação, D. Sebastião ressurgiria, os justos seriam
recompensados e os cruéis poderosos seriam punidos. O dia 14 de maio de 1938 foi a
data nomeada para o início da chacina.162
Os primeiros sacrifícios se deram de maneira voluntária. De acordo com a
narrativa, o pai do próprio João Ferreira ofereceu a cabeça para ser decapitado, na
configuração do episódio havia pais e mães que ofertavam a vida de seus filhos. No
entanto, muitas pessoas acabaram involuntariamente assassinadas em nome da fé louca
158
LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de
Villa Bella, Província de Pernambuco. Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco.
Recife, Tomo XI, 1904. , p. 217 – 248. 159
Idem. 160
Em SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 67.
A narrativa é semelhante à descrita por Antônio Attico Leite, em LEITE, Antônio Attico de Souza.
Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, Província de
Pernambuco. Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco. Recife, Tomo XI, p. 217 –
248, 1904. 161
Idem. 162
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.
72
e exacerbarda do Sebastianismo. Segundo Quaderna, personagem de Ariano Suassuna,
em conformidade com a descrição de Antônio Attico Leite, assim caracteriza o
acontecimento:
[...] no dia 14 deste mês Maio – oh que dia infeliz e horroroso! – o Rei,
depois que deu muito vinho a todos, declarou que “El-Rei Dom Sebastião
estava muito desgostoso e triste com seu Povo”. “E por quê?”, perguntaram
os homens, muito aflitos, e as mulheres todas muito chorosas. “Porque são
incrédulos! Porque são fracos! Porque são falsos! E finalmente porque o
perseguem, não regando o Campo Encantado e não lavando as duas torres da
Catedral de seu Reino com o sangue necessário para quebrar de uma vez este
cruel Encantamento!”, proferiu o Rei. Ah, meu Amo e meus Senhores! O que
depois disso se seguiu é horrível!163
Conforme a visão memorialística de Leite, no decorrer de três dias muitas vidas
foram ceifadas, homens, mulheres, crianças e cães, 53 almas banharam as Pedras do
Reino, com seu sangue. Com o tempo a putrefação dos corpos tornou o lugar
insuportável aos sobreviventes, o que acarretou o deslocamento do acampamento.164
No dia 17 de maio, um dos seguidores do feroz rei, Pedro Antônio, irmão do
primeiro profeta João Antônio, amotina-se contra João Ferreira, dizendo que em
conversa com D Sebastião, este exigia o sacrifício do próprio rei. João Ferreira é então
assassinado, por seus próprios seguidores. Pedro Antônio “sobe ao trono”, no entanto,
seu reinado não duraria mais de um dia, pois distante dali, o aglomerado sertanejo era
traído.
Um vaqueiro, de nome José Gomes, pertencente à família dos Vieira que ali se
instalara, assustado com os terríveis acontecimentos, foge em busca de ajuda na
tentativa de impedir a continuidade da insanidade que tão próximo assolava as vítimas
de um louco fanático. Segundo o relato de Attico Leite, o estado ao qual retorna a
fazenda do comissário Manoel Pereira é deplorável, quase irreconhecível:
De repente aproxima-se, e ajoelha-se diante do comissário um indivíduo [...]
a quem a primeira vista não era fácil reconhecer-se, por achar-se imundo,
andrajoso, desfigurado, e assustado, como se viesse fugindo de uma dessas
prisões subterrâneas, em que os poderosos barões da idade média
costumavam por a pão e água os seus mais rancorosos adversários.
O indivíduo, que se achava aos pés do comissário [...] Era José Gomes, o
vaqueiro que, há mais de vinte dias, desaparecera, abandonando a fazenda
Caiçara, e agora prorrompia em suplicantes vozes:
“⸺ Valha-me meu amo, e perdoa-me pelo amor de Deus”. 165
163
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 78. 164
LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de
Villa Bella, Província de Pernambuco. 165
Idem, p. 227.
73
Ao final de mais um fatídico e derradeiro dia, sob a liderança do novo rei, o
povo é surpreendido pela tropa do fazendeiro Manoel Pereira da Silva, Major da Guarda
Nacional.166
Embora em desigualdade, a tropa encontrou resistência por parte dos
sebastianistas, que lutaram seminus, armados de facões e cacetes, até a morte de Pedro
Antônio, sob os gritos inflamados de “Salve El-Rei D. Sebastião!”. Houve baixa de
ambos os lados, inclusive os dos irmãos do comissário Cypriano e Alexandre Pereira,
tendo o próprio Manoel saído ferido da batalha.167
Entre os devotos sobreviventes, as mulheres foram soltas, os órfãos distribuídos
entre aqueles que concordassem em criá-los, já os homens enviados à prisão,
terminando seus dias por lá, em esquecimento.168
O episódio com um misto entre a religião, política e loucura, serviu de base para
o início de um ciclo de lendas que retratam e marcam a história do Sertão. Como já
mencionado, autores buscaram retratar o povo e o cotidiano do Nordeste brasileiro. Dois
nomes se destacam, José Lins do Rego e Ariano Suassuna.
Enquanto Bentinho, personagem de Lins do Rego, é o bisneto do traidor do
“Santo”, como é retratado na obra, Quaderna é o bisneto do fanático, tido como louco.
É interessante analisar que embora os lados sejam contrários, tanto em Pedra Bonita
quanto em Pedra do Reino, julgam-se ambos. No entanto, a ideia de Quaderna é limpar
a honra de seus antepassados, buscando o reconhecimento de sua família. Já Bentinho
procura se livrar da maldição que acredita carregar em sua família, já que foi por culpa
de seu antepassado, traidores de “homem santo”. “[...] Teria que aparecer um novo
santo na Pedra, teria que aparecer uma criatura da família Vieira, que desse o corpo e a
alma para o santo purificar [...] Daquela casa saíra um Vieira há quase cem anos para
trair o santo da Pedra Bonita”.169
Em José Lins do Rego e Ariano Suassuna, embora o primeiro apresente um
cenário marcado pelas questões sociais e politicas que envolve a rede de poder e
166
Segundo Antônio Attico Leite “O Comissário, Major Manoel Pereira Silva, mais tarde coronel e
comandante superior dos municípios de Flores, Iganzeira e Villa Bella, era um dos mais belos caracteres
que tem tido os sertões e desta província”, havendo um tecer de elogios e como sua figura era uma
representação de toda a honra que um indivíduo possua nas esferas de sua vida. Um “libertador” a altura.
LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de
Villa Bella, Província de Pernambuco, p. 231. 167
Ibidem, p. 239. 168
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Editora
DOMINUS S.A., 1965. 169
RÊGO, José Lins. Pedra Bonita - 7ª ed – Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
74
exploração no Nordeste, ambos partem de uma linguagem poética, diferentemente da
linguagem utilizada por Attico Leite, ou ainda a de Euclides da Cunha, em Os Sertões.
No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações
graníticas da costa de alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada,
dominante, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo
anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas e pique. No
âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário – a
Pedra Bonita.
Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades
religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali
congregou toda a população dos sítios convizinhos e, agrimpando-se à pedra,
anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei d.
Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas
pela ação miraculosa do sangue de crianças, esparzido sobre ela em
holocausto, o grande rei inrropia envolto de sua grande fulgurante,
castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os
que houvessem contribuído para o desencanto.
Passou pelo sertão um frêmito de necrose... 170
2. O Nordeste suassuniano:
Grande influenciador da visão de mundo que Ariano Suassuna abraça e cria para
si, Euclides da Cunha narra o episódio da Pedra do Reino, em uma curta passagem,
como exemplo do fanatismo sertanejo em oposição ao texto “Monte Santo”, onde a fé é
utilizada como mecanismo para bons resultados.
Em oposição aos dois episódios também podem ser encarados como um embate
entre a fé oficial e a fé popular, onde o primeiro é marcado pelo sangue, a crueldade o
segundo estaria ligado aos esforços de um pároco, auxiliado pela população local com o
intuito de colaborar para a preservação da espiritualidade do povo. Sobre o “Monte
Santo”, narra Euclides:
No fim do século passado, porém descobriu-a um missionário – Apolônio de
Todi [...] Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos
trabalhos e o auxilio franco que lhe déramos os povoadores dos lugares
próximos. [...] por fim, o sermão terminal da penitencia, exortando o povo a
que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já que vivia em tão
grande desamparo das coisas espirituais [...] disse que de hoje em diante não
chamariam mais serra de Piquaraçá, mas sim Monte Santo”.171
Mesmo diante de todo rigor e cientificidade que marca a obra euclidiana, fruto
do positivismo da época, o relato de Os Sertões é marcado por tropeços de seu autor, se
170
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Editora Três, 1984, p. 63. 171
Ibidem, p. 63.
75
comparado ao registro histórico. Primeiramente, ao relatar o derramamento de sangue
do povo em Pedra Bonita, Euclides da Cunha faz referência somente ao assassinato de
crianças, enquanto o que é conhecido é que entre os assassinados estão não somente
eles, mas também mulheres, homens e até mesmo cães.
Em uma entrevista ao Canal Futura, Ariano Suassuna revela seu contato e
fascínio pela narrativa dos acontecimentos de Pedra Bonita, através do texto de Antônio
Attico Leite.172
Segundo o autor, o pensamento inicial para a escrita da Pedra do Reino
seria uma coletânea de contos, partindo da ideia do artista Aloísio Magalhães que
aconselhou Ariano Suassuna a aproveitar “[...] as histórias que costumava contar para os
amigos”.173
Na produção dos contos, Quaderna era tratado como uma figura secundária,
Ariano Suassuna tinha por intuito dar voz à história de Sinésio, contudo, ainda segundo
o autor, Quaderna se impôs ganhando cada vez mais espaço, tomando o romance para
si.174
É totalmente aparente o mundo alucinado da personagem central, algo
compreensível na obra de Ariano Suassuna, que sempre declarou ter um apreço pelos
loucos, diante da originalidade que esses apresentam em sua visão de mundo.
Quaderna se define, apesar da condição de preso, como o verdadeiro Rei do
Brasil, herdeiro de uma nobre linhagem, sendo a paterna a de maior estirpe, a qual tem
início com os eventos de Pedra Bonita.
[...] eu, Dom Pedro Diniz Ferreira Quaderna, sou o mesmo Dom Pedro IV,
cognominado, “O Decifrador”, Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe,
Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do
Brasil [...] sou nada mais, nada menos, do que descendente, em linha
masculina e direta de Dom João Ferreira-Quaderna, mais conhecido como El-
Rei Dom João II, “O Execrável”. 175
Quaderna é o palhaço-narrador, mestre de cerimônias, que nos apresenta um
palco da vida, onde os mais variados personagens desfilam suas histórias, em uma
ciranda armorial.
172
CANAL FUTURA – “Sala de Aula/ Sebastião Encantado”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=lzPDkPujWWA Acesso em: 04 de mar de 2018. 173
CARRERO, Raimundo. “Ariano, O Enigmático, e as revelações da “Pedra do Reino””. Diário de
Pernambuco. Recife: Caderno 03 (o arquivo não possui paginação, pois trata-se de um recorte do arquivo
pessoal de Ariano Suassuna, concedida pelo professor Carlos Newton Júnior, professor de estética da
UFPE). 174
Idem. 175
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 33 -
34.
76
A narrativa tem início no ano de 1938, segundo Quaderna, o “Século do Reino”.
Porém, o princípio dos acontecimentos nos remete a uma tradição advinda do século
XVI, com o desaparecimento de Dom Sebastião, rei de Portugal e como ela ganhou
força no sertão do país, através do movimento Sebastianista.
A ideia do messianismo é algo presente desde a Antiguidade em diversas
religiões, inclusive politeístas, há registros já na Pérsia por meio do zoroastrismo. No
mundo ocidental ela é concebida e consolidada através da profecia do nascimento do
escolhido, na crença judaico-cristã, o filho do Deus Yavé. A partir daí, dois outros mitos
messiânicos se destacam, refletindo a força do Cristianismo, a do Rei Arthur, na Grã
Bretanha e a de D. Sebastião, no mundo ibérico.
O estudo e curiosidade de temas relacionados a tal movimento social tem
mexido com a imaginação dos mais variados grupos, desde historiadores, literatos,
folcloristas a estudiosos da cultura popular.
Uma ideologia que se apresenta como maniqueísta, com interpretações quase
sempre, igualmente maniqueístas. Em uma definição de fronteiras, entre “nós” e os
“outros”, sendo “nós”, aqueles que enxergamos por dentro, crentes de uma fé maior,
lutando, ou a visão de quem está de fora, tendo os participantes do movimento com o
olhar negativo de loucos, sanguinários, fanáticos, bandidos, ou positiva de maneira
paternalista, como ingênuos, místicos etc.176
O mito possui caráter transcendental e consegue penetrar na alma humana,
passando a fazer parte da cultura de um povo, que diante das desesperanças e sacrifícios
criam um novo mundo, cercado de fantasias. “[...] as crenças messiânicas e milenaristas
alimentam-se da – e continuamente realimentam a – cultura popular, reinventando-se
durante os surtos, sem nunca apagar-se completamente da memória dos aflitos”.177
O messianismo se manifesta em um conceito de coletividade e mútuo interesse
dos indivíduos envolvidos, onde, na grande maioria das vezes, se busca suplantar as
tragédias da vida e a procura por justiça.
Embora tal dicotomia abale diversas regiões e grupos em todo o país, ao longo
de sua história, sendo ou não de caráter sebastianista, o Nordeste foi um terreno fecundo
176
ZALUAR, Alba. “Os Movimentos 'Messiânicos' Brasileiros: Uma Leitura” In: Anpocs, O Que se Deve
Ler em Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Cortez/Anpocs (1986), p. 146. 177
Idem, p. 142.
77
para tais ações, graças a elementos sociais, políticos, geográficos e econômicos, como já
relatado anteriormente.178
Trata-se de um espaço onde a massa subalternizada de sertanejos, excluídos do
universo político e social, concentra nos movimentos religiosos de caráter popular um
escudo, ainda que inconsciente, um respaldo místico que poderia legitimar a
“desordem” social.
A sociedade sertaneja guarda em sua religião traços próprios, de uma posição
mais prática oriunda do cotidiano, que aquela litúrgica e erudita, que se torna apenas
resquício no dia a dia. Assumindo uma posição marginalizada do mundo oficial, em que
a Igreja e seus sacerdotes estavam distantes das regiões periféricas, o povo abraçava os
“homens santos”, que representavam em sua figura e linguagem as calamidades vividas
e presenciadas e o alívio dos males.
A interpretação popular que o povo faz da religião, modificando-a de acordo
com seus interesses e vivências, não é um processo novo. Em O Queijo e Os Vermes,
por meio da figura de Monocchio, Ginzburg demonstra como a posição da Igreja não
estava de acordo com o interesse das camadas populares e evidencia uma autonomia,
ainda que inconsciente, em relação ao seu modo de pensar:
[...] uma cultura popular original e autônoma, permeada por valores
religiosos. Nessa religião popular, concentrada na humanidade e pobreza de
Cristo, teriam sido fundidos, de forma harmoniosa, o natural e o sobrenatural,
o medo da morte e o impulso em direção à vida, a tolerância às injustiças e a
revolta contra a opressão.179
Na obra O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de
Janeiro, 1830-1900, da historiadora Martha Abreu, é claro como o encontro dos ritos
oficiais em uma sociedade predominantemente iletrada, em um contexto singular, toma
rumos próprios gerando novas releituras do catolicismo.180
Ao longo de suas 17 edições, o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do
Sangue do Vai-e-Volta, sendo a última no ano de 2017, póstuma ao seu criador, altera
178
Dentre os movimentos religiosos-populares de caráter milenarista e messiânico o Nordeste abriga a
“Revolta de Juazeiro”, Ceará (1914), que embora não possuísse raízes sebastianistas, trabalhava com a
ótica de um “messias” carismático, tido como defensor da população, o Padre Cícero, popular “Padim
Císo”. Movimento da Serra do Rodeador (1817 – 1820) e o de Pedra Bonita (1835 – 1838) ambos no
estado do Pernambuco. Por último, sendo um dos mais conhecidos movimentos religiosos e populares da
história nacional, “Canudos” (1896-1897), no estado da Bahia. 179
GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes, p. 14. 180
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-
1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
78
uma tradição em relação às demais. Pela primeira vez a Editora José Olympio, não foi a
responsável pela publicação, e sim a Nova Fronteira.
Ariano Suassuna sempre se considerou, e foi considerado, um autor de trabalhos
inacabados. Poemas, peças teatrais e sua própria obra-prima, estiveram em um constante
processo de reescrita e transformações, uma necessidade que o autor carregou consigo,
segundo o próprio, na tentativa de dar o melhor de si.
Em sua primeira edição, A Pedra do Reino foi escrita de maneira direta, sem
qualquer espécie de divisão. Somente trazia os folhetos que caracterizavam o estilo
ligado ao cordel. Posteriormente, o autor passou a dividi-lo em livros, do primeiro ao
quinto. Por último, com o intuito de abarcar com seu romance todas as características
artísticas, o tornando a mais completa ideia de armorial, Ariano Suassuna intitula as
partes de “prelúdio”, “chamada”, “galope”, “tocada” e “fuga”.
[...] eu escrevo e reescrevo muito [...] eu procuro dá o máximo de mim, eu só
entrego uma obra pra publicar, quando eu acho que eu fiz, o máximo de mim.
Assim mesmo, A Pedra do Reino foi publicado [...] se você pegar uma
primeira edição da Pedra do Reino, o romance é escrito direto, depois eu
dividi em cinco livros, e atualmente se você olhar essa edição aí e as edições
mais recentes [...] mas agora procurando ligar ao espirito da música eu
chamei “prelúdio”, “galope”, “chamada”, “Derrepente” “Tocada” e
“Fuga”.181
Ainda segundo Carlos Newton Júnior, tanto a primeira quanto a segunda edição
estariam desprovidas do agrupamento de folhetos em livros, sendo somente a partir da
terceira tal alteração.
Em uma situação de auto reflexão, A Pedra do Reino, embora busque reunir todo
o trabalho de uma vida, nas diversas esferas da arte humana e da vivência do indivíduo,
apontando problemas ligados a questões religiosas, filosóficos, da vivência humana,
sociais e políticos, causa posteriormente em seu autor um embate de sentimentos.
Ariano Suassuna, ao declarar que comete equívocos históricos e julgamentos
emotivos, respalda-se nas futuras engulhas da história, transformando a Pedra do Reino
em uma obra introdutória do seu trabalho póstumo, Romance de Dom Pantero no Palco
dos Pecadores.
Em uma obra na qual defende a história de sua família e a tradição do país em
uma releitura do Nordeste brasileiro, sua cultura e história, Ariano Suassuna se vê entre
equívocos. Dentre os momentos de dores do escritor, constatar que a representação de
181
PROGRAMA IMAGEM DA PALAVRA. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QoKMFszPz-A Acesso em: 01 de Dez de 2016.
79
sua Ilumiara não atende a seus anseios e suas interpretações de vida, sempre mutáveis
lhe causam profunda reflexão e vazio. 182
[...] Cometi um erro histórico em A Pedra do Reino... Eu digo em A Pedra
que a Guerra de Princesa e Canudos são similares. Está errado!... Em
Princesa, era a burguesia urbana contra a burguesia rural (representada pelo
meu pai); enquanto em Canudo, era a burguesia urbana contra o pobre, mas
eu não conseguia enxergar isso. Ainda bem que, em literatura, existe licença
poética!183
É consenso entre críticos e estudiosos que A Pedra do Reino é uma das
importantes obras da literatura do Nordeste e Brasileira. Após seu lançamento, Ariano
Suassuna declara em seu Almanaque Armorial do Nordeste a alegria de ver sua obra
recriada nas mãos de diversos artistas e ser ela inspirada na arte do Nordeste.184
Posso dizer, honestamente que, hoje, um dos maiores motivos de orgulho que
tenho, como escritor, é o fato de meu romance A Pedra do Reino estar
inspirando a criação de inúmeros quadros, talhas e desenhos, feitos por
artistas do Nordeste, assim como recebendo em prosa, em música e em verso
a homenagem de nossos Poetas [...] Para um escritor como eu, ver seu livro e
seus personagens recriados, reinterpretados assim, é algo novo e, as vezes,
estranho.185
Para Albuquerque, é o Nordeste, dentre outras coisas, fruto da estereotipização,
tanto no que diz respeito a imagens positivas quanto negativas. Um processo de
recriação, diante das transformações do país e ruínas da região nordestina, desencadeada
a partir da crise social que assola a região.
182
Ariano, em referencia à arte rupestre brasileira, “[...] passou a chamar [...] de “ilumiaras” [...] [para]
identificar conjuntos artísticos diversos, surgidos a partir da integração de vários gêneros (pintura,
escultura, arquitetura etc.) e que pudessem ser compreendidos como locais de celebração da cultura
brasileira [...] ao caracterizar toda sua obra como uma “ilumiara”, portanto deixava claro que cada parte
dela, mesmo que mantivesse a sua unidade e seu valor de obra independente, comporia um conjunto
artístico maior, uma espécie de “obra total”. NEWTON JÚNIOR, Carlos. A Pedra do Reino e A Ilumiara.
In: SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Vai-e-Volta. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 17ª ed. 2017. 183
NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O Cabreiro Tresmalhado: Ariano Suassuna e a Universalidade
da Cultura. São Paulo: Palas Athena, 2002. p. 31. 184
O Almanaque Armorial do Nordeste é uma coluna semanal escrita por Ariano Suassuna no Jornal da
Semana, em Recife, entre dezembro de 1972 a junho de 1974. Uma espécie de diário público, onde o
autor em seu primeiro escrito diz que carregado de incertezas irá publicar uma diversidades de temas sem
estar preso, o que fará semanalmente é “[...] conversar e pensar em voz alta, no maior descuido e
liberdade possíveis [...] Assim, minha vida, minhas opiniões, minhas atitudes e minhas ideias , perante o
mundo, serão mais ou menos retratadas aqui, aos poucos [...] neste Almanaque Armorial do Nordeste” 185
SUASSUNA, Ariano. “Almanaque Armorial do Nordeste”. Jornal da Semana, Recife. Ano I de 27 a
23/ 12/ 1972 nº 1. p. 33.
80
No processo de “invenção” da região, o autor desloca para a primeira metade do
século XX, onde os primeiros discursos acerca daquele território o descrevem como o
‘espaço da saudade’.
[...] O Nordeste é uma espacialidade fundada historicamente, originada por
uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe deram realidade
e presença. [...] Antes que a unidade significativa chamada Nordeste se
constituísse perante nossos olhos, foi necessário que inúmeras práticas e
discursos “nordestinizadores” aflorassem de forma dispersa e fossem
agrupados posteriormente”.186
Concomitantemente ao declínio da força hegemônica do Nordeste, do mundo
rural e de suas elites, havia o antagonismo do sudeste, diante do crescimento econômico
por meio do café, dos primeiros raios da burguesia industrial e do mundo urbano.
A sociedade dava sinais de mudança, onde os embates entre a tradição e o
moderno levaram intelectuais do Nordeste a transformar o cenário arcaico pré-
capitalista, por meio do lirismo literário, na poesia da saudade, cantando a um mundo
rural seus costumes e sua herança.
[...] contribuirão decisivamente as obras sociológicas e artísticas de filhos
dessa “elite regional” desterritorializada, no esforço de criar novos territórios
existenciais e sociais, capazes de resgatar o passado de glória da região, o
fausto da casa-grande, a “docilidade” da senzala, a “paz e estabilidade” do
Império. [...] O Nordeste é gestado como o espaço da saudade dos tempos de
glória, saudade do engenho, da sinhá, do sinhó, da Nega Fulô, do sertão e do
sertanejo puro e natural, força telúrica da região.187
A década de 1930 transforma o Nordeste em espaço da denúncia. Autores como
Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos retratam um Nordeste, que
vai além das lembranças, destacando as injustiças sociais e a miséria, em um desejo de
transformação, olhando para o futuro.
Segundo Albuquerque, “[...] a influência do pensamento marxista vai ser
decisiva para a emergência desta nova forma de ver e dizer o Nordeste, seja artística,
seja politicamente”.188
Suassuna nasce nesse processo de transição da visão do Nordeste, na luta entre o
arcaico e o moderno e o envolvimento de sua família. Sua obra é marcada pelo caminho
da saudade, o cantar a um passado glorioso, a morte do pai, a construção de um reino
186
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p. 79. 187
Idem, p 46 – 47. 188
Idem, p. 208.
81
encantado em ruinas. Mas sua obra também denuncia a pobreza, se utiliza do cômico
para retratar as mazelas sociais do sertão, de uma sociedade patriarcalista, marcada pela
seca, pelas distinções sociais.
As Pedras do Reino são marcadas por meio da justaposição natural de rochas,
formando uma espécie de anfiteatro natural, portanto, divinos em sua origem. Dentro
desse espaço duas se destacam, como torres de um castelo ou de uma catedral, anfiteatro
autêntico aos cultos sebastianistas.
A pedra é de forma simbólica e funcional o elemento que acompanha o ser
humano durante seu vagar pela Terra em seu processo de evolução. Segundo o escritor e
jornalista cearense Claúdio Aguiar:
[...] Foi através dela que os possíveis seres de uma civilização anterior ao
estágio que ora conhecemos, esculpiram as mais assustadoras e
deslumbrantes formas de entidade, sobre as quais, à falta de maiores
explicações, os estudiosos levantaram as mais mirabolantes conclusões.189
É possível examinar, ressaltando em diversas esferas do percurso da humanidade
em sua construção, momentos em que as pedras pelo do caminho ganham importância e
destaque como, por exemplo, Stonehenge, A Grande Muralha da China e As Grandes
Pirâmides do Egito, as pedras por onde pisamos revelam nossas histórias.
Stonehenge, na Inglaterra, permanece um mistério até os dias atuais, suscitando
as mais diversas explicações entre a ciência e os mais inquietantes devaneios.
Relacionada ao universo místico na história da Grã-Bretanha é considerada por muitos,
anterior à população celta.
Stonehenge tal qual a Pedra do Reino, em uma das muitas explicações que
possui, liga-se à ideia do sobrenatural da figura lendária de um Grande Rei, que voltaria
para restaurar o seu reino de Glória e reestabelecer o triunfo dos mais humildes.
Uma possível releitura do messias Judaico, Jesus Cristo, que ao ressuscitar do
reino dos mortos, promete aos que seguirem o seus ensinamentos a morada eterna no
Paraíso celeste, onde não há fome, peste, doenças ou qualquer tipo de moléstia e onde a
justiça maior prevalece. Sofrer no plano terreno para alcançar algo maior na vida eterna,
onde “os humilhados serão exaltados”.190
É através de Pedras que Javé transmite suas leis ao povo judeu, posteriormente
espalhadas ao mundo cristão: “Então, disse o SENHOR a Moisés: Sobe a mim, ao
189
AGUIAR, Claudio. “O Realismo Mágico d’A Pedra do Reino”. Jornal do Commercio, Recife. 23 jan.
1972 (arquivo pessoal de Ariano Suassuna, cedido pelo profº Drº Carlos Newton Júnior). 190
A Bíblia Sagrada Livro de Ezequiel 21: 26 (Velho Testamento).
82
monte, e fica lá; e dar-te-ei tábuas de pedra, e a lei, e os mandamentos que tenho escrito,
para os ensinares”.191
Já no Novo Testamento, Jesus é apresentado pelo apóstolo Paulo como a pedra
angular da igreja, “[...] Jesus Cristo é a principal pedra [...] no qual todo o edifício, bem
ajustado, cresce para templo santo no Senhor”.192
E Cristo ergue sua igreja
simbolicamente em uma rocha, “Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta
pedra edificarei a minha igreja”.193
Ao contrário do que possa parecer em um primeiro momento, o Movimento
Armorial não nasceu grande, tornou-se grande. Distintamente do Movimento
Modernista (1922), encabeçado por intelectuais, em sua maioria pertencentes à elite
paulista.
O Armorial surge como um pequeno evento ligado a Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), pelo Departamento de Extensão e Cultura da universidade,
dirigido por Ariano Suassuna, nomeado em 1969 pelo então reitor Murilo Guimarães.
Sua gestão se estende até o ano 1973.194
O desdobramento do Movimento é um ponto que chama a atenção. Durante toda
a década de 1970, é possível ver em jornais de diversos pontos do território nacional a
receptividade encontrada, dando conta da trajetória e especialmente dos frutos daquele
novo movimento literário.
Domingo passado, 18 de outubro, na Igreja de São Pedro dos Clérigos a
Orquestra Armorial de Câmara (do Conservatório Pernambucano de Música)
apresentou um programa denominado “Três Séculos de Música Nordestina
do Barroco ao Armorial.195
Ainda segundo, Aguiar é em A Pedra do Reino que Suassuna,
[...] Aliando a nossa realidade social, política, histórica e cultural mesclada
de diversas influências, a um estado de criação ainda muito mais forte e
sedutor – o sonho de um Reino [...] SUASSUNA partiu por um estilo régio,
contando estórias de sabor épico, lírico, satírico, tragicômico, não lhe
faltando tiradas de erudição entremeadas de rasgos delirantes da nossa
literatura de cordel.196
191
A Bíblia Sagrada. Livro de Êxodo 24:12 (Velho Testamento). 192
A Bíblia Sagrada. Epistola de Paulo aos Efésios 2:20-21. (Novo Testamento). 193
A Bíblia Sagrada. O Santo Evangelho Segundo São Mateus 16:18 (Novo Testamento). 194
Nesse período Ariano, torna-se membro fundador do Conselho Federal de Cultura (1967 a 1973) e do
Conselho Estadual de Cultura do Pernambuco (1968 a 1973). 195
Jornal do Commercio. Nasceu a música da gente. Recife, 25 out. 1970, p. 6. 196
AGUIAR, Claudio. O Realismo Mágico d’A Pedra do Reino.
83
O Nordeste é o mundo para Suassuna, em suas obras, ele transfere os dramas
humanos do cotidiano, para a realidade do Sertão. Como já declarado, em entrevista,
para Ariano Suassuna, os problemas humanos se reproduzem sempre os mesmos, tendo
como divergência apenas o tempo e o espaço, portanto, os fatos que envolvem a Pedra
do Reino poderiam ter ocorrido, em qualquer parte do mundo, diante disso, é explicável
o encantamento que reveste a história, que carregado na poeira do Sertão, cria vida nas
diversas vozes que o reproduz, está aí, seja em Portugal ou em território brasileiro, o
encantamento do outro.
[...] o ser humano não muda, o que muda são as circunstâncias em torno dele,
evidentemente ele é afetado por sua realidade, pelo seu tempo e pelo lugar
onde ele vive, mas na essência e no fundamental o ser humano permanece o
mesmo. Então eu acho que aquela história da Pedra do Reino, é uma história
capaz de atingir todos os lugares do mundo e capaz de atingir todos os
tempos que o mundo venha a viver, por que ela toca num problema humano,
que é esse desejo de se alçar acima de si mesmo, em busca de uma realidade
maior do que a realidade que nos cerca, o Sebastianismo vem daí”.197
Ao reproduzir os acontecimentos da Pedra do Reino, Ariano Suassuna entra em
um universo que vai além do sertão que conheceu em seu cotidiano. Ele transporta todo
um conhecimento e realidade humana. Ariano Suassuna constrói seu reino encantado do
sertão, entre o real e místico, um mundo em sua mente, que transpõe a realidade.
Diversas são as passagens do Romance, em que se torna clara a compreensão do autor,
em relação à transcendência da alma humana, seja no Nordeste, em Portugal ou no resto
do mundo. Em um diálogo entre os personagens Quaderna e Samuel no Folheto XXXIV:
Marítima Odisseia de um Fidalgo Brasileiro se lê:
⸺ Mas Samuel, o sebastianismo não é assunto Português?
⸺ Tanto faz dizer Português como Brasileiro, Quaderna! Por outro lado, a
história de Dom Sebastião, O Desejado, transcende os limites puramente
individualistas e nacionais para ser um Mito humano: o do homem sempre
desejoso de se transcender, alçando-se, pela Aventura, pelo delírio, pelo
risco, pela grandeza, pelo martírio, até o Divino! [...].198
Outra passagem traz referência ao casamento do profeta da Pedra do Reino, João
Antônio, que se aproveita da ingenuidade existente em todo indivíduo, para conseguir
seu objetivo:
197
“Sala de Aula/ Sebastião Encantado”. CANAL FUTURA. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=lzPDkPujWWA Acesso em: 04 mar de 2018. 198
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 214.
84
[...] o Visionário escritor, improvisado em Profeta, ensinava que quando João
se casasse com Maria, aquele Reino desencantaria, conseguiu ele, graças à
ignorância da população e à bem conhecida tendência que o espírito humano
tem para abraçar o maravilhoso e o fantástico.199
Nessa busca, com o objetivo de retratar o individuo, a alma humana nessa
composição de sertão, Ariano Suassuna vai lançar, em a Pedra do Reino, um olhar que
se volta para si mesmo, se volta para perpetuar a ideia do que a vida existe por meio da
metáfora do universo sertanejo. Segundo Quaderna:
[...] o próprio Mundo me aparece como larga estrada sertaneja, um Tabuleiro
seco e empoeirado, onde, por entre pedras, cactos e espinhos, desfila o
cortejo luminoso e obscuro dos humanos ⸺ Reis, valetes, Rainhas, cavalos,
torres, Curingas, Damas, peninchas, Bispos, ases e Peões.200
A representação emerge de alguns personagens com inicial maiúscula pode vir a
simbolizar o destaque que cada figura possui na ciranda humana da vida para Suassuna.
Toda a obra é perpassada por símbolos que retratam a imagem e criação do autor em
relação a esse sertão selvagem, místico, esse reino encantado, divino, que percorre os
tempos entre Deus e o Diabo.
Se a Pedra do Reino é a transposição do mundo mental de Suassuna, sua
interpretação da realidade torna-se a constatação de que, para o autor, a vida e os seres
humanos e suas problemáticas são um constante mistério, difícil ou impossível de ser
decifrado.
O Nordeste é em grande parte descrito como um ambiente rural, embora sua
geografia, paisagens, características sociais e cotidianas tenham se transformado, em
especial a partir do século XX. Ainda assim seu território é um espaço/tempo povoado
por um imaginário que organiza sua vivência diária a partir daquilo que o cerca.
Baseado nessa ideia, compreendemos a construção cosmogônica que o
personagem Quaderna realiza. Em seu livro intitulado O queijo e os vermes, o
historiador italiano Carlo Ginzburg, constrói a partir do relato da vida de Domenico
Scandella, conhecido como Menocchio, o retrato tanto de um período de transição,
como de uma figura que encarna tal processo.201
199
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 72. 200
Idem, p. 241. 201
GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes.
85
Quaderna, ainda que condenado, necessita ter sua história ouvida, se possível
pelo maior número de pessoas, transmitindo assim suas ideias e pensamentos,
defendendo-se das injustiças de poderosos.
Quaderna membro-fundador e sacerdote daquilo que denomina Igreja Católico-
Sertaneja, encontra suas divindades e misticismo, vinculados ao seu cotidiano. Uma
fusão entre a liturgia oficial e aquela criada pelo povo. Em uma passagem do romance,
após tomar o vinho sagrado, Quaderna, em um monólogo, espécie de profecia, discursa
a respeito do que espera do futuro e dos traidores da Pedra do Reino:
[...] Quando chegar o Século do Reino, e for anunciada a Vigília de fogo, o
Senhor enviará a Coluna de brasas sobre o acampamento e o território dos
estrangeiros e criminosos e poderosos aliados aos seus. A Onça de fogo do
Sertão destruirá seus Exércitos, despedaçando as rodas dos carros-de-
combate, e todos os traidores serão arrojados do Sertão para o fundo do Mar.
Dirão assim os Estrangeiros: “Fujamos dos Brasileiros e outros latinos, por
que o Deus do Fogo peleia a favor deles e contra nós!202
.
Essa passagem se assemelha à passagem do povo hebreu, pelo Mar Vermelho,
após a saída do Egito, fugindo da perseguição do exército do Faraó, onde, após a
passagem dos escolhidos, Deus fecha o Mar afogando os inimigos. Seriam, portanto, os
brasileiros e latinos, na visão do personagem-narrador Quaderna, os verdadeiros povos
eleitos do Senhor.
Na Bíblia Sagrada, no Velho Testamento, em seu segundo livro Êxodo, se lê sob
o título “A passagem pelo meio do mar”:
[...] E ia entre o campo dos egípcios e o campo de Israel; e a nuvem era
escuridade para aqueles e para estes esclarecia a noite; de maneira que em
toda a noite não chegou um ao outro. Então, Moisés estendeu a sua mão
sobre o mar, e o Senhor fez retirar o mar [...] e o mar tornou-se em seco, e as
águas foram partidas. E os filhos de Israel entraram pelo meio do mar em
seco [...] E os egípcios seguiram-nos, e entraram atrás deles todos os cavalos
de Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros até o meio do mar. E aconteceu
que, na vigília daquela manhã, o Senhor, na coluna de fogo e de nuvem, viu o
campo dos egípcios; e alvoroçou o campo dos egípcios, e tirou-lhes as rodas
dos seus carros, e fê-los andar dificultosamente. Então, disseram os egípcios:
fujamos da face de Israel, porque o Senhor por eles peleja contra os
egípcios.203
Em toda a obra, Suassuna evoca simbologias que sejam capazes de caracterizar o
sertão a partir do universal. Em uma esfera religiosa, esse espaço seria a longa jornada
pela qual o homem encontraria a redenção e se aproximaria de Deus. Em o Auto da
202
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 557. 203
Bíblia Sagrada. “A passagem pelo meio do mar”. Livro de Êxodo. Capítulo 14, versículos 20 – 25.
86
Compadecida, o julgamento diante de Jesus Cristo e Nossa Senhora é amenizado
devido às intempéries causadas pelo meio.
Na introdução do simbólico, a onça, expressão de força, desencadeadora de
medo e respeito, povoa toda a obra nas mais diferentes formas, mas sempre ligada ao
sobrenatural.
[...] Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol esbraseado,
parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser arquejo de
gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados
durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração
dessa Fera estranha, a Terra – esta Onça-Parda em cujo dorso habita a raça
piolhenta dos homens. Pode ser, também a respiração fogosa dessa outra
Fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda, é que há milênios,
acicata a nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.204
É também, em sua divindade, aquela que castiga os homens, semelhantes a
diversos deuses ao longo da história da humanidade, se caracteriza pela justiça com ares
de crueldade:
[...] sob o Sol fagulhante do meio-dia, me parece, ele todo, como uma enorme
Cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras pedregosas que lhe
servissem de muro [...] estivéssemos todos nós, aprisionados e acuados,
aguardando as decisões da Justiça; sendo que, a qualquer momento, a Onça-
Malhada do Divino pode se precipitar sobre nós, para nos sangrar, ungir e
consagrar pela destruição.205
Ao contar a história de sua família, Quaderna deixa claro a representação desse
símbolo místico e de força em seu sangue e no de sua família. Ao retratar os fatos em
torno do massacre da Pedra do Reino, ocasião em que seu bisavô degola inclusive a mãe
de seu filho. A criança milagrosamente teria sobrevivido, por força de um fenômeno
miraculoso, aproxima-se da história de fundação de Roma. Nela, Rômulo e Remo
teriam sido alimentados por uma Loba. O principezinho, continuador da Sagrada
linhagem dos Ferreira-Quaderna, teria sido alimentado por uma onça. Enquanto os
fundadores lendários do antigo Império Romano foram encontrados por um pastor, que
se trata de uma figura importante para aquela sociedade, o avô de Quaderna foi
encontrado por um vaqueiro e criado por um padre, ambos personagens de destaque
para a sociedade sertaneja.
O corpo de minha bisavó Isabel só foi encontrado na manhã do dia seguinte
por um Vaqueiro [...] Assombrado, aproximou-se do lugar de onde vinha o
choro, e viu um quadro estarrecedor [...] Enroladas em suas coxas, havia duas
204
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p.31. 205
Idem, p. 32.
87
Cobras-Corais, enormes, de um tamanho como nunca se viu nessa espécie.
Lambendo e farejando o corpo, estavam duas Onças-Pintadas, que correram
assim o intruso apareceu. De cada lado do corpo, havia uma cabeça de
mulher, ambas cortadas pelo pescoço [...] O estranho, porém é que a o
menino sobrevivera e estava perto do corpo de sua jovem Mãe. [...] Mas vá a
ver que são mesmo corretas as versões, correntes aqui no Cariri, de que uma
daquelas Onças era fêmea e teria amamentado o inocente naquele primeiro
dia de vida.
[...] o Vaqueiro se apiedou do menino e levou-o [...] conduziu o inocente a
Flores, entregando-o àquele mesmo Padre Manuel José do Nascimento
Wanderley. 206
Quaderna transpõe todos seus conhecimentos para o ato de criação articulando
entre o local e o universal, dando nova roupagem aos mitos da humanidade, já que
preserva o que é para ele a originalidade e a pureza superior do Sertão. Segundo
Quaderna, a esfinge animal mitológico da Antiguidade “[...] era um cruzamento de grifo
com leoa. Ou, melhor, em termos sertanejos, um cruzamento de Onça, Cavalo e
Gavião”.207
Animais genuinamente nacionais, portanto superiores, já que de acordo com
ele seu correspondente não possuiria a dignidade dos nossos “[...] no Sertão não existem
Tigres, animal estrangeiro, onça falsificada”.208
O Espírito Santo não deveria ser representado por uma “pomba”, segundo
Quaderna um animal tão sem graça, assim como a Trindade, estaria melhor retratada
por uma Onça, o que é apresentado no interrogatório ao Corregedor: “[...] O senhor, [...]
não pode conhecer a tríplice natureza da Onça do Divino, dividida em quatro partes: a
Onça-Pintada, a Onça-Negra, a Onça-Parda e o Gavião-de-Ouro.”209
Para Quaderna nesse Sertão místico está aquilo que há entre a vida e a morte,
onde o ser humano habita, e onde tudo a sua volta simboliza a passagem do homem
sobre a Terra, um pequeno cosmos, rodeados de sinais, pois “[...] havia alguma coisa de
sagrado, escondido e aprisionado nas grades de granito de tudo quanto é pedra sertaneja
por aí afora”. 210
[...] no meu Catolicismo, os bichos servem de insígnias ao Divino são todos
rigorosamente brasileiros e sertanejos [...] na minha linguagem, nunca entram
leões ou águias, bichos estrangeiros, mas sim Onças e Gaviões [...] o Espírito
Santo é um Gavião, bicho macho e sangrador, e não essa pombinha que
sempre me pareceu meio sem graça. Segundo nossas crenças, Sr. Corregedor,
foi a Onça Malhada do Sol Divino que nos fez a mim e ao Mundo, segundo
sua própria imagem.211
206
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 83. 207
Idem, p. 448. 208
Idem, p. 41. 209
Idem, p. 401. 210
Idem, p. 67. 211
Idem, p. 562.
88
Sua visão a respeito da simbologia dos animais tem tamanho significado que a
personagem entra em desentendimento com a visão de Euclides da Cunha, por sua falta
de conhecimento e entendimento a respeito do mundo místico do sertão.
[...] diz o Tenente-Coronel Durval de Aguiar que essa terra é constituída,
toda, de “serras de pedra, naturalmente sobrepostas, formando Fortalezas e
redutos inexpugnáveis”. Euclydes da Cunha, plagiando o Tenente-Coronel,
descreve também o Sertão e fala em “alinhamentos de penedias,
caprichosamente repartidos”, que semelham, “de fato, grandes cidades
mortas”, cidades ante as quais o Sertanejo passa “sem desfitar a espora dos
ilhais do cavalo em disparada, imaginando lá dentro uma população
silenciosa e trágica de almas do outro mundo”. E é aí que eu vejo que
Euclydes da Cunha absolutamente não pode ter sido o “Gênio da Raça
Brasileira”. Veja que leviandade, a dele! “Imaginando!” Imaginando, uma
porra! Tem, mesmo! Essa população de almas do outro mundo existe,
mesmo, aqui, em nossas pedras, de noite, de dia e no pino do meio-dia!
Bastariam as Onças, os Gaviões, os Carcarás, os Veados, os Bodes, as Cobras
e os Morcegos sertanejos, para provar que o nosso Reino amuralhado de
pedras está povoado de Deuses e Demônios, de Anjos e Divindades!212
Ao buscar adaptar aquelas histórias que correm as almas humanas, Suassuna
deixa evidente na fala de Quaderna o desejo de demonstrar como sua interpretação dos
fatos e a exclusão dos estrangeiros são legítimas. Ariano Suassuna se auto declarava
Cavaleiro do povo brasileiro, defensor de sua cultura, posição sentida com acréscimos
de devaneios nas falas de Quaderna.
No Romance, a personagem deixa clara a superioridade do povo brasileiro,
justificada por sua miscigenação. Ele possui o melhor de cada nação fundadora. É um
ser original, o homem-castanho, do qual todos os sertanejos descendem.
A verdadeira raça brasileira e legítima a ocupar o trono do Brasil, “[...] legítimos
e verdadeiros Reis brasileiros, os Reis castanhos e cabras da Pedra do Reino do Sertão,
que cingiram, de uma vez para sempre, a sagrada Coroa do Brasil, de 1835 a 1838,
transmitindo-a assim a seus descendentes, por herança de sangue e decreto divino”.213
Sua ambição diante da posição do homem-castanho é ainda maior ao declarar ao
corregedor que não seria somente o indivíduo original do povo brasileiro, mas sim da
origem de toda a raça humana, segundo Quaderna declara ao corregedor:
[...] nós, Sertanejos, somos descendentes direitos do Tapuia, do “Homem
castanho inicial”, brotado da terra parda do Sertão num dia em que ela estava
umedecida [...] Aliás, acho essa ideia [...] mais lógica do que as ideias de outras
Mitologias estrangeiras. É muito mais lógico que o Homem-castanho,
emigrante daqui para a África, tenha se tornado negro, lá, pelo calor, tornando-
212
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 574. 213
Idem, p. 34.
89
se branco, pelo frio, na Europa, e permanecendo castanho no Egito ou na
Índia.214
Quaderna também declara o desejo de uma nação Castanha, livre de qualquer
influência e mando de usurpadores estrangeiros: “[...] Meu sonho, é fundir os Fidalgos
guerreiros e cangaceiros [...], com os Fidalgos negros e vermelhos do Povo, fazendo
uma Nação de guerreiros e Cavaleiros castanhos e colocando esse povo da Onça-
Castanha no poder!”215
A existência de um catolicismo castanho atrela-se a um Sebastianismo também
castanho, já que seria ele a junção do negro do ibérico. Perspectiva que caracteriza toda
a obra, a crença no retorno messiânico como já discutido anteriormente, possui raízes
antigas e tem no Cristianismo seu grande símbolo. O retorno de Dom Sebastião inspira
e justifica a fé nas extremas ações do povo, no decorrer de toda a obra, o movimento à
história. Quaderna irá sintetizar esses dois extremos em um interesse único, com base
nos ensinamentos de Clemente e Samuel: “[...] unindo eu o Sebastianismo negro de um
e o Sebastianismo ibérico de outro, numa nova espécie de “Sebastianismo castanho”
que realizasse o sonho da Pedra do Reino num futuro ainda mais ensolarado e
acastelado!”.216
Mais uma vez em uma reinterpretação, fusão das diversas informações com que
tem contato, Quaderna expõe sua visão cosmogônica, semelhante a outros povos que
creem na união entre seres divinos e animais, mas não quaisquer animais, mas naqueles
sagrados do Sertão.
Se um Deus qualquer, depois daí, trepa com uma Veada, ou de uma Deusa se
deixa cobrir por um Gavião, nasce um homem ou uma mulher, conforme o
caso. Foi, portanto, dessas trepadas da Divindades tapuias com Onças,
Gaviões, os Bodes, as Cabras, os Veados, e outros bichos, nasceram os Tapuias
castanhos, antepassados diretos dos Sertanejos, e indiretos de todos os outros
homens.217
Sendo um sujeito de considerável instrução para a época, acaba absorvendo
distintas leituras, cria sua própria releitura baseando-se inclusive em seu cotidiano.
Quaderna, em todo seu relato Pedra do Reino, mescla um misto entre o erudito e o
vulgar, havendo uma aproximação com Menocchio em muitos pontos, estando também
214
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 573 215
Idem, p. 276. 216
Idem, p. 238. 217
Idem, p. 574 – 575.
90
ligado a um mundo bucólico e a partir dele filtrando e assimilando sua interpretação de
realidade, inclusive no que se refere à esfera religiosa.
Assim, na sua linguagem densa, recheada de metáforas ligadas ao cotidiano.
Menocchio explicava sua cosmogonia tranquilamente, com segurança, aos
inquisidores estupefatos e curiosos (caso contrário, por que teriam conduzido
um interrogatório tão detalhado?).218
Próprio de comunidades rurais, em especial em um espaço que sofre as
intempéries da vida e tem a forte presença da morte no cotidiano, encontra na religião
um apoio. Seria o sertão, o caminho de espinhos para se conseguir o paraíso. “[...] Pois
este Sertão velho, Sr. Corregedor, talvez seja mesmo a terra-estranha da Morte,
dominada pelos dentes das Onças, pelo veneno das Cobras, das Lacraias e de outros
bichos”.219
Em torno desse antropomorfismo sertanejo, a morte ganha um destaque tanto na
obra, como no cotidiano do sertão, e na vida de todo indivíduo, como ser consciente de
seu fim. Suassuna já declarou em mais de uma entrevista que um poema havia dado
início ao romance, transcrito no Folheto XLIV “A Visagem da Moça Caetana”,
Quaderna encontra a morte, em tom profético em relação ao ódio e ao orgulho que
carregava em seu sangue e a respeito da vida e o que lhe aguardava em seu encontro
com o corregedor.
[...] na sala da Biblioteca uma moça esquisita, vestida de vermelho. O
vestido, porém, era aberto nas costas, num amplo decote que mostrava um
dorso felino, de Onça, e descobria a falda exterior dos seios, por baixo dos
braços [...] dando-lhe uma marca estranha e selvagem. Em cada um dos seus
ombros, pousava um gavião, um negro, outro vermelho, e uma Cobra-coral
servia-lhe de colar. Ela me olhava com uma expressão fascinadora e cruel
[...] Eu, aterrado, indagava de mim mesmo quem era ela. Mas, no fundo, já
sabia: era a terrível Moça Caetana, a cruel Morte sertaneja, que costuma
sangrar seus assinalados, com suas unhas, longas e afiadas como garras.220
No Nordeste, a morte é denominada de Caetana e toma feições de uma mulher,
em A Pedra do Reino, mais uma vez o símbolo da onça ganha formas de poder divino,
agora o da passagem do ser humano.
Suassuna representará mais de uma vez como a vivência de um povo explica sua
crença, fé e a salvação. Em o Auto da Compadecida, a personagem João Grilo defende
218
GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes, p. 101. 219
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 400. 220
Idem, 305.
91
os seus e é defendido diante de todos os desafios que o Sertão proporciona, justificando
as ações dos indivíduos. Segundo Albuquerque Júnior, trata-se de:
[...] um Nordeste construído pelo agenciamento de uma série de imagens
bíblicas presentes no catolicismo popular. Imagens que se mesclam com
rituais ibéricos medievais, com crenças e práticas de fundo animistas e
fetichistas de origem indígena, negra ou mesmo europeia, para compor este
mundo onde natureza e homem se fundem como parte da criação.221
Tanto em A Pedra do Reino, em outras obras, como em declarações durante boa
parte de sua vida, Ariano Suassuna viria expressar um embate entre o universo rural e o
urbano, um maniqueísmo que seria descontruído ao longo dos anos. Em seu
catolicismo-sertanejo, a fidalguia e a suposta coletividade do campo seriam desafiadas
pela ganância burguesa e capitalista. O povo possuiria voz e vez e Deus, ser
representado com características pouco ortodoxas, olharia pelos necessitados. Tal
vertente religiosa, segundo Quaderna, seria inclusive superior ao Catolicismo Romano:
[...] Ó Onça Tapuia, Negra e Malhada do Divino do Sertão! Esta República
dominada por Burgueses gordos é, sem dúvida, um grande mal para o
Império do Sertão do Brasil! Ela pretende minar e desmoralizar o Povo da
Onça Castanha e o nosso Catolicismo-sertanejo, esta obra-prima de Deus,
religião mais perfeita e mais antiga do que o Catolicismo Romano! Este, tem
somente vinte séculos, enquanto a nossa sagrada Religião da Pedra do Reino
foi fundada no Deserto sertanejo da Judeia, junto às Pedras do Reino do Sinai
e do Tabor! O Presidente da República, seus cupinchas e os gordos ricos,
entendem que podem governar, trair e vender o Império do Brasil a seu bel-
prazer! No entanto, o Brasil está predestinado para o Monarca Castanho do
Povo, aquele que foi legitimado constituído por Deus para fazer o bem e a
grandeza do Povo Brasileiro!222
Toda essa construção social será denominada por Albuquerque como “sociedade
do couro”. Ariano Suassuna busca retratar esse espaço duro, em que a natureza e aquilo
que ela produz se liga ao indivíduo e como este depende dela e a doma como um animal
selvagem. Em A Pedra do Reino, ele está presente, representando as armaduras que
protegem os cavaleiros do sertão, os cangaceiros e vaqueiros se encontram em meio da
população com seus bens produzidos para atender às suas necessidades.
[...] As esporas, como estrelas de fogo, retiniam suas rosetas, batendo nos
estribos e centelhas nos sapatões de couro castanho, sob as véstias e os canos
poeirentos da calças-perneiras também castanhas, mas providas de fortes
placas de reforço, costuradas a modo de joelheiras nas calças, e de ombreiras
221
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p. 189 – 190. 222
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 553-
554.
92
nos gibões. Os chapelões de couro, de largas abas dobradas e levantadas,
coroavam-se, também, de estrelas e moedas que reluziam.223
O trânsito nesse espaço em que prolifera a imaginação, reage, transformando
tudo o que é sofrimento em poesia. Embora Quaderna delire imaginando a construção
de um reino, tornando-se ele o gênio da raça brasileira. Não sendo um homem de armas
e sim das letras, encontra por meio desse caminho uma forma de alcançar seus
objetivos:
[...] Aquilo tocou fogo em meu sangue imediatamente, porque fora assim que
eu me sentira naquele dia, na Pedra do Reino ⸺ como o Rei e a encarnação
viva do Brasil. Entendi, logo, que, se eu fosse declarado “Gênio da Raça
Brasileira”, meu Castelo poético e perigoso faria de mim, não mais
individualmente, mas de modo “oficial e selado pelo Governo”, Rei do
Brasil.224
Outro episódio em que realidade e fantasia se misturam, em que percebe-se que
o delírio da personagem se fundamenta na realidade de um espaço já existente, tendo ele
portanto, consciência do mundo que o cerca, é em seu depoimento ao corregedor onde
confessa, em relação ao episódio da Estranha Cavalgada Moura, que dá abertura aos
acontecimentos místicos da história do Rapaz do Cavalo Branco, onde os fatos se
modificam por meio de seu estilo régio:
⸺ E é verdade tudo isso? Todas essas roupas fidalgas, essas bandeiras, essas
onças, esses acontecimentos estranhos, tudo isso é verdade ou é “estilo régio”?
⸺ Bem, se o senhor quiser, pode imaginar somente uns cavalos pequenos,
magros e feios, uma porção de gente suja, magra, faminta e empoeirada,
arrastando por aquela estranha Estrada uma porção de velhos animais de Circo,
famélicos e desdentados, numa tropa pobre e amontoada. Para mim, porém,
somente o fecho sagrado da Poesia régia é capaz de dar a medida daquele
evento extraordinário, de caráter epopeico! De fato, Sr. Corregedor, somente
vendo esse pedaço de estrada por onde eles vinham agora é que a gente pode
imaginar bem a cena!225
É possível que o tal estilo régio, que move a transfiguração da realidade em
Quaderna, seja o espelho daquilo que Ariano Suassuna imagina para o seu Sertão. Para
Albuquerque Júnior, o escritor Ariano Suassuna também, semelhante aos seus
antecessores, trabalha com o espaço da saudade e o recria por símbolos, todavia se
difere do movimento sociológico e literário da década de 1930. Segundo o historiador,
Ariano Suassuna assumiu o seguinte papel nesse processo:
223
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 36. 224
Idem, p. 187. 225
Idem, p. 398 - 399.
93
[...] Ele participa como um dos inventores do Nordeste como o espaço da
saudade e da tradição, mas assume um trabalho ficcional, e não como um
trabalho documental, como haviam feito os tradicionalistas do romance de
trinta e da sociologia [...] Seu Nordeste popular, medievalizado, se junta
àquela produção sociológica e literária anterior [...] na invenção, reinvenção e
atualização da série de temas, conceitos, imagens, enunciados e estratégias
que instituem o Nordeste como o espaço oposto ao moderno, burguês, ao
urbano, ao industrial. Nordeste sem espaço público, sem dessacralização da
natureza, sem separação radical entre homens e coisas. Nordeste saudoso, de
um passado mítico, idílico, de pureza, ingenuidade, glórias [...] é um espaço
com saudade de uma dominação tradicional, de códigos sociais [...] a
sociedade capitalista.226
Ariano Suassuna jamais negou a sua exaltação da cultura popular, todavia ela foi
modificada ao longo dos anos, mas foi em A Pedra do Reino, fruto de décadas de
experiências e da trajetória de uma vida em que ele pode apresentar o universo que
havia em sua alma e em sua cabeça, revelando-se o interprete de múltiplas vozes na sua
composição romanesca polifônica acerca do Brasil.
226
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p.194.
94
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Torna-se impossível decifrar por meio de uma única dissertação uma obra como
a de Ariano Suassuna. O Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-
e-Volta pode ser compreendido como um trabalho que vem do interior do autor, que
carrega consigo as marcas de uma história pessoal, mas que é também a história do
Brasil, e a história do Nordeste, de seu sertão barroco, da civilização do couro, o sertão
visto, vivido, conhecido e imaginado por ele.
É uma obra memorialística, que trabalha com o espaço da saudade, que transita
entre o coletivo e o individual, em que seu personagem Quaderna reproduz as vivências
sociais de um grupo, e funde em si as diversas culturas que mesclam essa realidade,
carregada de elementos da história universal que se transportam para o local. É acima de
tudo a história da humanidade, por que como o próprio autor declara, o indivíduo jamais
muda, apenas o contexto se modifica.
O ser humano é um ser móvel que altera a si e ao espaço que ocupa. O Nordeste
de Ariano Suassuna não é mais o mesmo das páginas do Romance, mas ainda traz em si
as tradições do passado, com as transformações do presente e um olhar para o futuro.
Percebe-se nesse jogo de realidade e ficção que na construção do discurso
literário é possível reconhecer e tecer também o discurso histórico. Sendo Ariano
Suassuna fruto de um contexto social, de uma elite e de uma região em ruínas, que
guarda a origem de um povo, estigmatizada, interpretada e reinterpretada ao longo de
gerações, ele a elabora por meio da escrita das memórias a partir das influências de toda
uma vida.
A influência maior, a figura que constrói de um pai, justo e injustiçado, o Sertão
de Euclides da Cunha, a transposição do universo pedregoso da Espanha de Cervantes, a
Espanha, que ganha vida na voz de Garcia Lorca. Todos os elementos transportados e
incorporados por Ariano Suassuna na poesia, no teatro, nas artes plásticas, na literatura,
desenham uma nova visão de Brasil, do Sertão e de seu povo, pois eis que surge o
Movimento Armorial.
Ariano Suassuna se utiliza do riso, através da sátira, para apresentar ao público
sua interpretação do anfiteatro da vida. Dessa forma, critica, exalta, demonstra como
enxerga a realidade.
95
O Nordeste é para Ariano Suassuna o palco de sua criação por meio de seu povo,
um constante reinventar que justifica a sobrevivência da cultura popular, uma
miscigenação de povos e costumes que dá origem ao melhor, o homem castanho.
Suassuna se autodeclara Cavaleiro, protetor da verdadeira cultura do povo
brasileiro, tal qual outrora Dom Sebastião fora guardião da cristandade encontrando na
arte sua espada de luta.
96
FONTES E REFERÊNCIAS
FONTES
Obras e artigos de Ariano Suassuna
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial do Nordeste. Jornal da Semana, Recife.
Ano I de 27 a 23/ 12/ 1972 nº 1.
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. NEWTON JÚNIOR, Carlos (org). Rio de
Janeiro: Editora José Olympio, 2008.
SUASSUNA, Ariano. O Santo e A Porca. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.
SUASSUNA, Ariano. O Auto da Compadecida. 35ª edição. São Paulo: Agir Editora,
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SUASSUNA, Ariano. A História de Amor de Fernando e Isaura. 10ª edição. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2013.
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-
Volta. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-
Volta. 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014.
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-
Volta. 17ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
SUASSUNA, Ariano. Seleta em prosa e verso. SANTIAGO, Silviano (org). Rio de
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http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2042 Acesso: 15 de nov de
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história.
Disponível: https://journals.openedition.org/nuevomundo/1560 acesso: 17 de abr de
2018.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
97
vol. 5, n. 10, 1992, p. 200 – 212. Disponível:
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SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse da Academia Brasileira de Letras. Disponível:
http://www.academia.org.br/academicos/ariano-suassuna/discurso-de-posse Acesso: 12
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Depoimentos
Programa Roda Viva. SUASSUNA, Ariano. TV Cultura em 06/05/2002. Disponível
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Programa “Imagem da Palavra”, Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=QoKMFszPz-A Acesso em: 01 de Dezembro de
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Sala de Aula/ Sebastião Encantado. Canal Cultura Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=lzPDkPujWWA Acesso em: 04 de março de 2018.
Documentários
5º Ciclo Travessias no Sertão A Pedra do Reino: o sertão mítico e poético de Ariano
Suassuna. Academia Brasileira de Letras. NEWTON JÚNIOR, Carlos. Palestra.
Duração 72’16”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RYmpxY3Ec_U
Acesso em: 22 de maior de 2016.
AMARO, Lays & LIMEIRA, Emanuel. Anayde Beiriz e João Dantas - Um Romance
nos Anos 30 (2014). Documentário 18’ 39”. Disponível em
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MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004). Documentário,
60’24”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Xgfu4eDuzE0 Acesso: 20
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https://www.youtube.com/watch?v=AHcIY5-0I9o Acesso: 18 de agosto de 2018.
Filmes
A Compadecida. Direção: George Jonas. Baseado na obra de Ariano Suassuna. Brasil,
1969. 92 min. Colorido.
98
REFERÊNCIAS
Livro
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de
Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes.
5ª ed. São Paulo: Cortez, 2011.
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular? 8ª ed. São Paulo: Editora
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BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo: Hucitec Editora, 1987.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2ª ed. 5ª reimpressão. São
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BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500 – 1800. Trad. Denise
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CÂNDIDO, Antônio. Literatura & Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
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