“SÓ TENHO VONTADE DE DORMIR, MAS TAMBÉM PRA QUE …‡… · and social issue: do not have a...

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO ACADÊMICO EM PSICOLOGIA JOSIANA PAULA GOMES DO NASCIMENTO “SÓ TENHO VONTADE DE DORMIR, MAS TAMBÉM PRA QUE ACORDAR?”: A HISTÓRIA DE VIDA DE PESSOAS INSTITUCIONALIZADAS EM UM HOSPITAL - UM PASSADO AINDA PRESENTE PORTO VELHO – RO 2014

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  • FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

    NÚCLEO DE SAÚDE

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

    MESTRADO ACADÊMICO EM PSICOLOGIA

    JOSIANA PAULA GOMES DO NASCIMENTO

    “SÓ TENHO VONTADE DE DORMIR, MAS TAMBÉM PRA QUE ACORDAR?”: A HISTÓRIA DE VIDA DE PESSOAS

    INSTITUCIONALIZADAS EM UM HOSPITAL - UM PASSADO AINDA PRESENTE

    PORTO VELHO – RO

    2014

  • JOSIANA PAULA GOMES DO NASCIMENTO

    “SÓ TENHO VONTADE DE DORMIR, MAS TAMBÉM PRA QUE

    ACORDAR?”: A HISTÓRIA DE VIDA DE PESSOAS INSTITUCIONALIZADAS EM UM HOSPITAL: UM PASSADO AINDA

    PRESENTE

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado / MAPSI como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia. Linha de Pesquisa: Saúde e Processos Psicossociais Orientador: Dr. José Carlos Barboza da Silva

    PORTO VELHO – RO 2014

  • FICHA CATALOGRÁFICA BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES

    Bibliotecária responsável: Eliane Barros – CRB-11/549

    Bibliotecária responsável: Eliane Barros – CRB-11/549

    N17s

    Nascimento, Josiana Paula Gomes do. “Só tenho vontade de dormir, mas também pra que acordar?”: A

    história de vida de pessoas institucionalizadas em um hospital – Um passado ainda presente. / Josiana Paula Gomes do Nascimento, 2014. 137f. : il.

    Orientador: Prof. Dr. José Carlos Barboza da Silva.

    Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR, Porto Velho, 2014. 1. Saúde mental. 2. Institucionalização. 3. Reforma psiquiátrica. 4. História oral. I. Fundação Universidade Federal de Rondônia. II. Título.

  • FICHA DE APROVAÇÃO

    “SÓ TENHO VONTADE DE DORMIR, MAS TAMBÉM PRA QUE ACORDAR?”: A HISTÓRIA DE VIDA DE PESSOAS INSTITUCIONALIZADAS EM UM HOSPITAL:

    UM PASSADO AINDA PRESENTE

    JOSIANA PAULA GOMES DO NASCIMENTO

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado / MAPSI como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia. Linha de Pesquisa: Saúde e Processos Psicossociais Orientador: Dr. José Carlos Barboza da Silva

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. José Carlos Barboza da Silva (Orientador)

    Programa de Pós-Graduação em Psicologia/MAPSI/UNIR

    Assinatura: _______________________________________

    Prof. Dra. Vanderléia de Lurdes Dal Castel Schlindwein

    Programa de Pós-Graduação em Psicologia/MAPSI/UNIR

    Assinatura: _______________________________________

    Profª. Dra. Maria Lucia Boarini

    Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UEM

    Assinatura:

    _______________________________________

    Dissertação aprovada em: 28/08/2014

  • Aos participantes desta pesquisa pela doação de

    suas histórias, matéria prima para tantas reflexões.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço a Deus pela saúde, coragem, sabedoria, principalmente, pelo dom da vida.

    Imensamente agradeço ao meu orientador Professor José Carlos pelo acolhimento a minhas

    angústias durante o mestrado, pela orientação competente, pelo apoio e incentivo à reflexão e

    ao espírito crítico em saúde mental.

    Agradeço aos professores Maria Lúcia Boarini e Luís Alberto de Mattos que estiveram no

    Exame de Qualificação trazendo apontamentos esclarecedores e fundamentais para a

    construção e finalização desta dissertação.

    A equipe de saúde mental do hospital de base Ary Pinheiro pelas valiosas informações e

    acolhimento no hospital

    Aos meus pais Manoel e Lúcia pelo amor incondicional e pelas orações constantes.

    Ao meu amor, amigo e companheiro Roberto, pelo cuidado, atenção e paciência que teve

    comigo durante todos esses anos. O teu amor me faz mais forte.

    A minha filha Maria Luísa pelos afagos, beijos e abraços carinhosos diariamente. Amo-te

    infinitamente.

    Agradeço a minha família, sempre presente em minha trajetória e crescimento.

    Aos colegas e amigos do mestrado em especial a Elizangela Codinhoto e Pedro Vasconcelos

    com quem dividi minhas inquietações iniciais sobre a temática desta pesquisa.

    As minhas amigas Fernanda e Jaqueline pelo apoio e carinho constantes, sempre juntas, longe

    ou perto.

    Aos colegas e amigos de trabalho do CAPS I de Pimenta Bueno pela força e incentivo nos

    momentos difíceis, em especial a enfermeira Vandecleide com quem aprendo diariamente

    sobre saúde mental e pela disponibilidade de ouvir.

    Aos professores do MAPSI por compartilhar o conhecimento e o incentivo a busca de novos

    horizontes.

    A CAPES pelo apoio financeiro em uma etapa do Mestrado, o qual permitiu a realização

    deste trabalho.

    A Universidade Federal de Rondônia (UNIR) pela qual tive a oportunidade de cursar dois

    cursos superiores e agora o Mestrado. Muito Obrigada!

  • Tem lugares que me lembram Minha vida, por onde andei

    As histórias, os caminhos O destino que eu mudei...

    Cenas do meu filme Em branco e preto Que o vento levou

    E o tempo traz Entre todos os amores

    E amigos De você me lembro mais...

    Tem pessoas que a gente Não esquece, nem se esquecer

    O primeiro namorado Uma estrela da TV

    Personagens do meu livro De memórias

    Que um dia rasguei Do meu cartaz

    Entre todas as novelas E romances

    De você me lembro mais...

    Desenhos que a vida vai fazendo Desbotam alguns, uns ficam iguais Entre corações que tenho tatuados

    De você me lembro mais De você, não esqueço jamais...

    (Minha vida, Rita Lee)

  • NASCIMENTO, Josiana Paula Gomes do. “Só tenho vontade de dormir, mas também pra que acordar?”: A história de vida de pessoas institucionalizadas em um hospital: Um passado ainda presente. 2014. 137 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico em Psicologia, Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, Rondônia, 2014.

    RESUMO Este estudo tem como objetivo investigar o significado que se produz em usuários de saúde mental referente à condição de estar institucionalizado em um hospital, utilizando como base de referência a Política Brasileira de Saúde Mental. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com procedimentos e técnicas da história oral. Para tal investigação foram realizadas entrevistas com cinco pessoas que vivem por longo tempo em um hospital, através das seguintes perguntas norteadoras: “Como era sua vida antes de vir para o hospital?” “Como é sua vida aqui?”, com a finalidade que eles descrevessem suas percepções a respeito do transtorno mental e de ser morador de um hospital. Também colhemos informações de suas histórias por meio da equipe de saúde mental do hospital. Os resultados encontrados apontam que a percepção do transtorno mental aparece com características próprias em cada participante, mas compartilha de uma mesma idéia, que o transtorno mental é considerado uma condição complexa, ruim e sofrida para quem vivencia. Já a longa permanência no hospital possui vários significados: prisão, ociosidade, cura do vício e pertencimento a instituição, pois vêem o hospital como um recurso que estão contando na ausência da família, mas deixam claro que não querem viver naquele ambiente por muito tempo. Têm consciência que são moradores de um hospital e que poderia ser um lugar diferente, onde eles poderiam preparar sua alimentação, ter capacidade de escolha e autonomia para cuidar de suas vidas. Constatamos que grande parte das pessoas institucionalizadas possui transtorno mental, mas são queixas e sintomas que não justificam a internação prolongada, mesmo porque estão todos de alta e trata-se exclusivamente de uma questão política e social: não tem uma família ou a família que tem não quer acolhê-los em casa; não há um serviço de residência terapêutica no Estado de RO e os poucos serviços substitutos aos antigos modelos manicomiais estão falhando, pois não estão conseguindo controlar as internações na psiquiatria do hospital. As considerações dessa pesquisa oferecem visões importantes a respeito do andamento da Reforma Psiquiátrica no nosso Estado, contribuindo para elaboração de estratégias que venham ao encontro das reais necessidades da pessoa com transtorno mental. Palavras-chave: Saúde Mental. Institucionalização. Reforma Psiquiátrica. História Oral.

  • NASCIMENTO, Josiana Paula Gomes do. "Only I want to sleep, but wake up to that?" The life history of institutionalized persons in a hospital: A past still present. 2014. 137 f Thesis (Master) - Programme Postgraduate Academic Master in Psychology, Federal University of Rondônia, Porto Velho, Rondônia, 2014.

    ABSTRACT

    This study aims to investigate the meaning that occurs in users of mental health regarding the condition of being institutionalized in a hospital, using as basis the Brazilian Mental Health Policy. This is a qualitative research, with procedures and techniques of oral history. For such research interviews with five people who live a long time in a hospital, through the following guiding questions were asked: "How was your life before coming to the hospital?" "How is your life here?", in order that they describe their perceptions about mental disorder and being a resident of a hospital. Also harvest information from their stories through the mental health staff in the hospital. The results show that the perception of mental disorder appears with different characteristics in each participant, but shares the same idea, that the mental disorder is considered a complex, bad condition and suffered for those experiences. Already a long stay in hospital has several meanings: prison idleness, healing from addiction and belonging to the institution, because they see the hospital as a resource who are counting on the absence of the family, but make it clear they do not want to live in that environment for too long. That residents are aware of a hospital and that could be a different place where they could prepare their food, have the ability to choose and autonomy to take care of their lives. We found that most people have institutionalized mental disorder but are complaints and symptoms that do not justify prolonged hospitalization, even because they are all high and it is only a political and social issue: do not have a family or a family that has do not want to welcome them home; there is a service of therapeutic residence in the State of RO and the few replacements to the old asylums models are failing services because they are unable to control admissions in psychiatry hospital. The considerations of this research provide important insights regarding the progress of psychiatric reform in our state, contributing to developing strategies that meet the real needs of people with mental disorder. Keywords: Mental Health. Institutionalization. Psychiatric Reform. Oral history.

  • LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    APS - Atenção Primária à Saúde

    CAPS - Centro de Atenção Psicossocial

    CAPS ad - Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas

    CAPS i - Centro de Atenção Psicossocial Infantil

    CEP - Comitê de Ética da Pesquisa

    CNES - Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde

    DENASUS – Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde

    ESF - Estratégia Saúde da Família

    IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

    MAPSI – Mestrado em Psicologia

    MLA - Movimento de Luta Antimanicomial

    MTSM - Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

    NAPS - Núcleo de Atenção Psicossocial

    NASF – Núcleo de Apoio a Saúde da Família

    OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

    OMS - Organização Mundial de Saúde

    ONG – Organizações Não Governamentais

    PEAD - Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e

    outras Drogas

    PVC - Programa de Volta para Casa

    RAPS - Rede de Atenção Psicossocial

    RAS - Rede de Atenção à Saúde

    SBT - Sistema Brasileiro de Televisão

    SRH - Serviço Hospitalar de Referência

    SRT - Serviço Residencial Terapêutico

    SUS - Sistema Único de Saúde

    TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    UAS - Unidade de Acolhimento

    UPA - Unidade de Pronto Atendimento

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO................................................................................................................... 11

    1 - O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA................................... 17

    1.1 - POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NO BRASIL

    ..................................................................................................................................... 25

    2 - A REDE DE ATENÇÃO A SAÚDE: OS NÓS QUE SE INTERLIGAM........................ 36

    2.1 A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (RAPS)............................................... 41

    2.2 A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE PORTO VELHO .......................... 48

    3 – O TRAJETO PERCORRIDO: QUESTÕES METODOLÓGICAS ................................. 54

    3.1 ABORDAGEM QUALITATIVA........................................................................... 54

    3.2 HISTÓRIA ORAL ................................................................................................. 56

    3.3 O CAMPO DA PESQUISA ................................................................................... 58

    3.4 PARTICIPANTES DA PESQUISA ....................................................................... 60

    3.5 INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS PARA COLETA DAS INFORMAÇÕES

    ..................................................................................................................................... 61

    3. 6 ANÁLISE E COMPREENSÃO DAS INFORMAÇÕES ....................................... 63

    4 - UMA POSSÍVEL ANÁLISE.......................................................................................... 66

    4.1 A CONSTITUIÇÃO E A VIDA EM FAMÍLIA ..................................................... 67

    4.2 SENTIMENTO EM RELAÇÃO À FAMÍLIA........................................................ 71

    4.3 PERCEPÇÃO EM RELAÇÃO AO TRANSTORNO MENTAL ............................ 76

    4.4 O SIGNIFICADO DA LONGA PERMANÊNCIA NO HOSPITAL....................... 79

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 86

    REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 90

    APÊNDICES ..................................................................................................................... 100

    ANEXOS........................................................................................................................... 130

  • 11

    INTRODUÇÃO

    Quando resolvi pesquisar sobre a institucionalização da loucura nos dias atuais,

    recorrendo a história oral de vida para trazer as informações, não tinha ainda me dado conta

    de quantas vidas iria encontrar por vezes, já esquecidas. Após algumas semanas de

    elaboração do projeto para enviar ao Comitê de Ética da Pesquisa – CEP percebi que essa este

    tem muito a ver também com minha história, com a história de vida da minha família e de

    tantas outras. Digo isto, e, às vezes, brinco no meu local de trabalho, em um CAPS, que eu

    tenho um pezinho na loucura, portanto não é à toa o gosto pelo trabalho no serviço de saúde

    mental. Cresci ouvindo relatos dos meus pais e tios sobre o meu bisavô que morreu louco

    amarrado em uma árvore. Contavam essa história e eu ficava imaginando e criando diversas

    fantasias na cabeça e me perguntava afinal o que é ser louco? Mas não muito longe da minha

    realidade, no quintal da casa da minha avó, meu tio se suicida, resultado de uma depressão

    grave que os médicos da época não conseguiram “curar”. E assim, outros casos na família

    também surgiram: uma tia com depressão pós-parto, perdurando após 38 anos de consumo de

    medicação para controlar; outro tio com um diagnóstico indefinido, mas ao que tudo indica

    seja uma psicose, devido seus delírios diários.

    Estou narrando esses fatos para comprovar que grande maioria das famílias, nas

    quais convivo e conheço, tem um familiar com diagnóstico de algum tipo de transtorno

    mental1 e em minha família não foi diferente. A maneira de lidar com a loucura talvez seja

    distinta, como vamos constatar nos relatos trazidos pelos participantes desta pesquisa. Isto

    demonstra que as famílias criam maneiras singulares de vivenciar a loucura do seu “ente

    querido”. Só para finalizar a história iniciada sobre minha família e referente à maneira como

    lidamos com isso, cresci convivendo com meus tios por perto e por diversas vezes

    observamos sua vivência ora na realidade ora na fantasia, mas nem por isso nos parecia

    diferente dos demais tios considerados “normais”. Sempre foram tratados com mais cuidado e

    atenção, por isso sempre estiveram o mais próximo possível da família. O nosso olhar embora

    leigo no assunto, na época, foi sempre de estar por perto. Ainda sou chamada, como os

    demais primos, a sobrinha do “doidinho”, mas isso nunca nos incomodou, na verdade isso se

    1De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) os transtornos mentais e comportamentais são condições caracterizadas por alterações doentias de pensar ou do humor e do comportamento associadas à angústia expressiva ou deterioração do funcionamento psíquico global (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001).

  • 12

    tornou motivo para nos unir cada vez mais e aprender a conviver com a diferença entre as

    pessoas. Demorei a perceber os motivos da necessidade de compreender a vida de pessoas que

    vivem em uma instituição, longe da família. Ao analisar mais a fundo, conversando com

    colegas do mestrado e durante as entrevistas com os participantes da pesquisa, essas respostas

    foram surgindo, no sentido de responder questionamentos e inquietações feitos desde criança

    referentes à como é vivenciar o transtorno mental e como é a dinâmica familiar dessas

    pessoas.

    No decorrer da minha vida acadêmica em psicologia, o anseio por compreender a

    vivência de pessoas com transtorno mental foi aumentando, e as escolhas de estágios

    penderam para o campo da saúde mental. Este foi um momento singular na minha formação,

    pois foi possível promover a confrontação entre aquilo que vinha construindo por experiência

    de vida, no campo teórico e sua aplicabilidade em uma prática concreta, mostrando-se por

    vezes confusa, inquietante, angustiante e inusitada, ainda mais por deparar-me com uma

    realidade ainda muito dura para as pessoas com transtorno mental.

    O estágio em saúde mental foi realizado em um CAPS no município de Porto Velho

    no ano de 2011, o que me possibilitou estar em contato diariamente com pessoas com

    transtorno mental, especialmente com suas histórias de vida e, sobretudo, com seus relatos de

    “crises” e “surtos” vividos em alguns momentos da vida e, por esse motivo, terminavam

    internados na psiquiatria do hospital de base Ary Pinheiro. Por diversas vezes tive

    oportunidade de ir a este hospital visitar pacientes que ora ou outra ficavam internados neste

    local.

    O hospital Ary Pinheiro é público e mantido pelo governo do Estado, é um hospital

    de alta complexidade subdividido por alas com várias especialidades. A ala de psiquiatria fica

    localizada no último bloco (aos fundos) do hospital. Este local recebe pessoas em surto/crise

    psicótica que permanecem no hospital até se estabilizarem. No entanto, há também pessoas

    que são moradores do hospital que em algum momento da vida foram parar lá, mas nunca

    saíram e permanecem institucionalizados.

    Essa experiência re-configurou meu universo de percepções o que permitiu refletir

    sobre o significado de minha profissão, como tal, me motivou a estar desenvolvendo esta

    pesquisa.

    A partir deste contexto, resolvi pesquisar o significado que se produz em usuários da

    saúde mental referente à condição de estar institucionalizado em um hospital, a partir de sua

    história de vida. Para tal investigação foram ouvidas pessoas que vivem por longo tempo

  • 13

    neste hospital público em Porto Velho - RO com a finalidade de, por via descritiva, relatassem

    suas percepções a respeito do transtorno mental e de ser morador de um hospital.

    A relevância desta pesquisa se pauta na necessidade de explicitar a contradição entre

    a inclusão social e a segregação, que comporta a privação total dos direitos políticos

    reconhecidos ao resto da população. Atua para relembrar que embora exista uma lei que

    ampara essas pessoas, elas ainda continuam confinadas em hospitais em internações

    prolongadas, demonstrando os motivos históricos, político-econômicos e socioculturais num

    contexto no qual a pessoa fica isolada da sociedade, aonde é decretada sua morte civil, em um

    lugar em que o tempo parece estagnado.

    Outro fator relevante é demonstrar a forma encontrada pela sociedade de lidar com

    aquelas pessoas fora da norma instituída, então a segregação foi a maneira encontrada para

    resolver o “problema”. Essas pessoas acabam ficando pela metade, pois a institucionalização

    tira a humanidade, reduz o ser a um objeto, a uma coisa. A instituição psiquiátrica o condena

    ao internamento por um longo período, ou melhor, à morte em vida, pois impossibilita o

    retorno ao convívio social, por falta de resolutividade nas ações terapêuticas, pela

    cronificação da doença e/ou por dificuldade de readaptação social.

    Em relação ao tempo que pacientes psiquiátricos ficam institucionalizados,

    Guimarães (2006) investigou as estruturas de sustentação temporal em pacientes indigentes,

    com história de mais de vinte anos de internação em manicômio, que não possuíam

    marcadores de tempo, apontando para a predominância de um tempo que embora “morto”, se

    impõe na ausência de conectores convencionais (calendário e relógio), através de nostalgia,

    silêncio eloqüente, um distanciamento que oscila entre uma imediata justificação ou aversão

    ao tema. Os participantes da pesquisa denunciam uma temporalidade interceptada, uma

    presença faltante, marcada pela vivência institucional, mas também por resquícios de um

    passado pessoal, onde o futuro, defendido pela atenção psicossocial exige o “re-aprendizado”

    das formas de lidar com os mecanismos temporais que caracterizam a passagem do tempo na

    sociedade extra muro.

    A internação dos pacientes, muitas vezes, vem em resposta a uma necessidade social

    de isolar e excluir aqueles que conflitavam a ordem. Assim, qualquer rompimento com os

    padrões hegemônicos como família, trabalho e razão, tornam-se incompreensíveis aos olhos

    dos outros, impondo a necessidade de afastar aquele que supostamente não cabe no convívio

    social (MACHADO, 2003).

    Para Andréa Máris Campos Guerra et al. (2003) a imagem social da pessoa com

    transtorno mental é assimilada à de um indivíduo perigoso, incapaz de inserir-se socialmente

  • 14

    e de exercer a sua cidadania, e acrescenta que é necessário que a população tenha mais acesso

    às informações sobre a rede substitutiva e a luta antimanicomial, de forma a se constituir uma

    nova referência social para o tratamento da pessoa com transtorno mental, bem como

    questionar a imagem instituída sobre o mesmo e revê-la em suas bases.

    O imaginário social ainda é repleto de representações que consideram o transtorno

    mental de cunho orgânico, isto é, ela estaria dentro da pessoa e desconsidera as demais

    condições sejam circunstanciais ou não. Consequentemente essas representações acabam por

    influenciar as trajetórias de vida e determinam os destinos (PEREIRA, 1997).

    Nesse sentido a construção da Reforma Psiquiátrica Brasileira pautada

    principalmente na reformulação da assistência em saúde mental e do apoio de movimentos

    sociais, em especial, do Movimento de Luta Antimanicomial (MLA) que estimulou iniciativas

    significativas e foi responsável por contribuições à superação da lógica manicomial e à

    construção de novos lugares sociais para a pessoa com transtorno mental. No entanto, baseada

    nesta proposta, a idéia de desinstitucionalização ocupa lugar central, sendo freqüente seu

    reducionismo à reforma de serviços ou desospitalização.

    A criação da Lei nº. 10.216/2001 (BRASIL, 2001a), que rege a política nacional

    brasileira de saúde mental e a reforma psiquiátrica, propõe a criação de uma rede substitutiva

    ao antigo modelo dos hospitais psiquiátricos, na tentativa de inserir estes pacientes no

    convívio social e familiar, mas ainda não alcançou um dos seus objetivos principais - a

    extinção da institucionalização da loucura. Uma vez que frequentemente tomamos

    conhecimento, por meio da mídia, de instituições mantenedoras de pessoas em verdadeiros

    cárceres privados, quando não as encontramos em hospitais da região, em situações

    desumanas, fechados em uma repartição designados a eles, sem nenhuma possibilidade de

    contato social. Muitas vezes esses sujeitos são tratados como um simples número de

    prontuário, como se não tivessem um nome, uma história, sendo assim violentado em sua

    dignidade, tirando o que ainda lhe resta: a individualidade, um passado e uma história de vida.

    Podemos apanhar como exemplo a reportagem do Conexão Repórter (SBT) exibida

    em janeiro de 2013 que apresentou “a casa dos esquecidos”2. Durante um ano o programa

    havia recebido denúncias de que o hospital psiquiátrico Vera cruz, de Sorocaba-SP, estava

    tratando seus internos sob condições precárias e desumanas. A partir dessa informação, o

    programa realizou um documentário que mostrou os bastidores desse local caracterizado por

    abandono e violência.

    2 Disponível em: http://www.sbt.com.br/conexaoreporter/ Acesso em 25 de Jan. de 2014.

  • 15

    Já em março de 2013 a TV Alamanda3 apresentou uma reportagem, inclusive sobre o

    local da nossa pesquisa, o hospital de Base Ary Pinheiro, em que presos são mantidos

    acorrentados também na ala psiquiátrica. A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos

    Advogados do Brasil (OAB-RO) foi quem denunciou a condição da instituição. Durante

    vistoria foi constatado que os presos ficam acorrentados junto aos leitos.

    Segundo a comissão, os pacientes em situação de regime de pena são mantidos

    acorrentados 24 horas por dia, mesmo o hospital não sendo uma instituição para cumprimento

    de pena, o que levou esta comissão a pedir a soltura dos pacientes mantidos acorrentados, pois

    relataram que essas pessoas não podem permanecer submetidas a constrangimentos. A

    Comissão de Direitos Humanos constatou a precariedade no atendimento aos pacientes com

    problema psiquiátricos e também a superlotação do local.

    Mas essa realidade não é isolada apenas a alguns estados, pois de acordo com uma

    audiência pública da Comissão de Seguridade Social e Família4 realizada em 2013 em

    Brasília, há 11 mil pessoas morando em hospitais psiquiátricos no País. São

    aproximadamente 10.570 pacientes internados há mais de um ano em 162 instituições

    psiquiátricas brasileiras.

    Na audiência Alfredo Schechtman, do Departamento Nacional de Auditoria do SUS

    (DENASUS), divulgou que, conforme pesquisas realizadas pelo órgão em 2011, 101 de 189

    instituições psiquiátricas mantêm estrutura inadequada, seja em relação a recursos humanos,

    equipamentos ou planos de atendimento individualizado dos pacientes. Dos hospitais

    pesquisados, 75% são privados, com fins lucrativos ou beneficentes, e 25% públicos. Entre

    janeiro de 2010 e janeiro de 2011, 1.250 pessoas morreram nessas instituições, sendo que

    metade delas não tiveram a causa da morte bem definida.

    Para Kilsztajn, et al (2008) os hospitais psiquiátricos no Brasil, tradicionalmente,

    eram e continuam sendo responsáveis tanto pela residência como pelo atendimento

    terapêutico a pacientes que apresentam transtornos mentais.

    3Disponível em: http://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2013/03/presos-sao-mantidos-acorrentados-em-ala-psiquiatrica-de-hospital-em-ro.html. Acessado em 22 de fevereiro de 2014. 4Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/SAUDE/445980-INTERNACAO-E-OBSTACULO-NA-REFORMA-PSIQUIATRICA,-DIZEM-DEBATEDORES.html. Acessado em: 22 de fevereiro de 2014.

  • 16

    Isso ocorre porque a cultura manicomial ainda está enraizada no conjunto de

    representações sociais sobre o transtorno mental, apesar de leis, discussões no âmbito

    nacional sobre o assunto, avaliações e críticas do caminho tomado na busca de

    transformações.

    Ainda há um caminho longo e árduo para a mudança do imaginário social do

    transtorno mental, principalmente porque a sociedade acredita que isolar e excluir é a maneira

    ideal para chegar a “cura” do transtorno mental, mas a dinâmica de funcionamento e de

    assistência, destes locais, não cria e não propicia modificações que levem o paciente a

    encontrar sentido para a vida como também, o reencontro das trajetórias pessoais (PEREIRA,

    1997).

    A dissertação resultante desse trabalho investigativo de mestrado foi construída em

    quatro seções incluindo descrição do método e a discussão das informações colhidas.

    A primeira seção discute aspectos importantes da história da institucionalização da

    loucura, que culminaram no modo que a sociedade atual lida com a questão da saúde mental.

    Destaca os fundamentos que regem a discussão e a consolidação das políticas de saúde no

    Brasil, com destaque para a Reforma Psiquiátrica brasileira.

    Na seção seguinte tratamos da rede de atenção à saúde e a rede de atenção

    psicossocial, enfatizando a realidade do Estado de Rondônia e mais especificamente a cidade

    de Porto Velho, capital do Estado. Destacamos as instituições e programas que a compõem,

    além da maneira como elas podem se caracterizar, observando as legislações em vigor sobre

    tal temática.

    A estratégia metodológica por nós utilizada é explanada na terceira seção,

    descrevendo e fundamentando os passos realizados para concretização desse processo de

    pesquisa, por meio dos procedimentos elencados.

    Por último encontramos a análise dos dados obtidos, fazendo relação com o

    referencial teórico adotado, assim como uma síntese da pesquisa nas considerações finais.

  • 17

    1 - O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA

    “Pra mim estar aqui é uma coisa muito ruim, porque aqui estou presa, não tem cabimento, esse lugar aqui não é pra mim,

    porque eu não tenho essa loucura que eles dizem que tenho” (P1)

    A institucionalização5 é considerada um processo de congelamento de procedimentos

    ou de comportamentos, quer tenham ou não importância social relevante. Ela representa, num

    grande número de casos, a promoção de formas espontâneas e desorganizadas de associações,

    que existem face à comunhão de pessoas em relação a projetos e a objetivos comuns, a formas

    de organização formalmente constituídas. Demonstra a passagem de organizações informais a

    organizações formais (INFOPÉDIA, 2014).

    O termo é utilizado para referir o processo e os prejuízos causados às pessoas pela

    aplicação opressiva ou viciosa de sistemas de controle sociais e/ou médicos de instituições

    públicas ou privadas, criadas originalmente com fins terapêuticas e razões benéficas. De

    acordo com Nogueira (2010) institucionalização é uma terminologia utilizada para apresentar

    a socialização de um grupo de indivíduos que, por diversos motivos, vieram a ser encontrar

    em uma mesma instituição. “As rotinas nela estabelecidas levam o sujeito ao estreitamento ou

    redução do senso crítico individual, causando prejuízos pela aplicação opressiva ou corrupta

    de sistema de controle social, médicos ou outros inflexíveis” (p.90).

    Para Goffman (1961) o longo tempo vivido no interior de uma instituição é o caráter

    predominante para denominar uma pessoa de institucionalizada, seguindo atividades

    programadas milimetricamente, cuja função, para além de disciplinar os sujeitos, os inibe em

    termos de desenvolvimento pessoal. Esse lugar é chamado pelo autor de instituição total,

    considerado como um local

    [...] de residência e trabalho onde um grande números de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (GOFFMAN, 1961, p.11).

    5INSTITUCIONALIZAÇÃO. In: Infopédia [Em linha]. Porto Editora, 2003-2014. Disponível em :

    http://www.infopedia.pt/$institucionalizacao>. Acessado em: 24 de abril de 2014.

  • 18

    O autor nomeia essas instituições de “totais” porque se forma de maneira a atender

    pessoas internadas em circunstâncias semelhantes, afastando-os da sociedade por um período

    de tempo e, estabelecendo uma vida fechada aos poderes de uma equipe administrativa que se

    baseia no discurso do atendimento baseado nas “regras” da instituição para atender seus

    objetivos, ela apresenta a disposição de fechamento, simbolizando o caráter total. E essa

    totalidade acarreta consequências na vivência das pessoas que estão inseridas nesse contexto

    (GOFFMAN, 1961).

    Goffman (1961) avalia essas instituições de acordo com uma característica comum a

    várias instituições - o de existir uma espécie de barreira que gera uma interrupção, um

    impedimento de contato entre o institucionalizado, o mundo exterior e a instituição. Ainda

    aponta outras características funcionais das instituições totalitárias, tais como: submissão a

    atitudes autoritárias de médicos e restantes do pessoal técnico; sedação medicamentosa; ócio

    forçado; perda de amigos e propriedades; condições do meio ambiente nos pavilhões e

    enfermarias; e principalmente a perda de perspectiva de vida fora da instituição (GOFFMAN,

    1961).

    Basaglia (1972) chama esses lugares de instituições da violência, devido à maneira e

    a necessidade de “ocultá-la ou disfarçá-la” por aqueles que detêm o poder. E inclui diversas

    instituições “[...] que vão da família a escola, das prisões aos asilos de loucos. A violência e a

    exclusão são justificadas nestes lugares em nome da necessidade, como conseqüência da

    finalidade educativa para as primeiras, e da culpa e da doença para as segundas” (p.07).

    A institucionalização pode trazer conseqüências graves à pessoa, devido à estrutura e

    rotinas inerentes a instituição, pois podem levar ao estreitamento ou redução do senso crítico

    individual. O isolamento da pessoa com transtorno mental é a peça-chave do dispositivo

    institucional que, além de neutralizar o recluso, estabelecendo relação pedagógica e

    disciplinadora, circunscreve-o em uma espécie de laboratório social e sanitário. Lugar zero de

    trocas sociais, deserto humano, ético e material (MELMAN, 2006).

    Ao longo da história da loucura6 vimos muitas formas de exclusão, utilizando como

    ferramenta de exclusão espaços fechados e isolados da comunidade, tais como: manicômios,

    guetos, aldeias de hansenianos, prisões e hospitais, algumas se mantêm e são avaliadas

    socialmente como legítimas. Essas instituições constituíram-se por muito tempo modalidades

    socialmente aceitas para atender a esta parcela da população e nesse cenário impera a idéia de

    6O termo será utilizado para referir a um momento histórico em que os transtornos mentais eram definidos como loucura.

  • 19

    separar o diferente, colocá-la em um espaço próprio, de tal modo que a sociedade se sinta

    protegida do contato com esse grupo de pessoas, geralmente consideradas indesejáveis

    (BARTALOTTI, 2006).

    Para entendermos melhor como se deu a institucionalização da loucura é necessário

    resgatar alguns momentos históricos, e desse modo entender o processo de mudança que

    ocorreu de forma lenta e gradual, mas significativa, principalmente, para a família e usuários

    do sistema de saúde mental. Implica em compreender como estão sendo aplicadas, na prática,

    as leis conquistadas com o movimento de reforma psiquiátrica e como andam as ações para

    efetivar um tratamento mais humanizado às pessoas acometidas pelo transtorno mental, como

    também políticas públicas de saúde que procuram resguardar e garantir seus direitos de

    cidadão.

    As representações sobre loucura foram historicamente construídas e, apesar de todas

    as mudanças ocorridas no decorrer do tempo, ainda mantém resquícios de concepções antigas,

    como por exemplo, a relação entre loucura e periculosidade. O afastamento dessas pessoas do

    meio social vai além do corpo físico, ocorre também com o falar e o pensar não dando

    oportunidades dessas pessoas se expressarem. De tal modo, isso ainda ocorre devido à

    concepção da sociedade moderna que para ser normal, a pessoa deve desenvolver algumas

    habilidades como trabalhar, dormir, ter momentos de lazer, se alimentar adequadamente, e

    principalmente, possuir uma rede de amigos e uma família aparentemente feliz, tudo isso

    segundo as normas sociais (GOFFMAN, 1961).

    Por isso nas últimas décadas têm sido feitas muitas discussões a respeito da loucura e

    a maneira do tratamento desenvolvido nos hospitais psiquiátricos (PEREIRA, 1997; KODA,

    2002; MACHADO, 2003; KILSZTAJN et al, 2008; GUIMARAES, 2006; COSTA, 2011),

    obtendo a designação de modelo hospitalocêntrico ou manicomial. A compreensão sobre

    normalidade bem como as maneiras de lidar com a loucura foi sendo modificada durante as

    épocas de acordo com o contexto e o momento histórico (PESSOTI, 1994).

    Na Grécia antiga, antes do século V a.C., o homem ainda não tinha conhecimento de

    suas limitações, a loucura era tida como sem razão ou simplesmente um saber divino. A

    “anormalidade” ou as diferenças dessa natureza eram atribuídas às forças divinas, ou seja,

    tudo aquilo que acontecia na vida do homem era determinado pela aspiração dos deuses

    (PESSOTTI, 1999). O louco era respeitado e visto como um sujeito dotado de saber, e tudo

    que dizia era ouvido com atenção, pois acreditavam que ele tinha a capacidade de intervir na

    vida de qualquer um. Basta assistirmos uma peça teatral ou ler alguma literatura da época para

    percebermos que a loucura se apresentava apenas como uma condição emocional episódica

  • 20

    dos personagens e não tinha nenhuma relação patológica que necessitasse de um diagnóstico,

    como esclarece Pessoti (1999, p. 16):

    Pode-se pensar, ousadamente, que na poesia heroica a presença da loucura era, até certo ponto, um mero expediente literário. Mas, ainda que assim fosse, não vale esse pensamento diante da loucura que se apresenta nos textos trágicos do século V a.C., principalmente nas peças de Eurípides. Ali, embora através da forma teatral, a loucura comparece como um estado que, mesmo incidental, é uma contingência natural da vida humana, do homem comum. Já não é um episódio dramático na vida dos heróis e decretado pelos deuses.

    Na Idade Média, um período marcado pela peste, lepra e medo de ameaças de outros

    mundos, a loucura era tida como expressão de fenômenos naturais ou algo da ordem do

    sobrenatural, era proclamada numa mistura de pavor e fascinação. Com o passar do tempo, a

    loucura passou a ser vista como domínio de espíritos maus, em função da ideologia religiosa

    que atribuía tais fenômenos ao sobrenatural, uma forma de obter o controle do

    comportamento sexual, social e moral. Por isso, tais fenômenos necessitavam ser expulsos por

    meio de práticas inquisitórias, comandada pela Igreja.

    Para Pessoti (1994) a assimilação da loucura como domínio diabólico, não é uma

    artificiosa justificação religiosa, dessa época, para a coibição às heresias ou um recurso para

    impor a ortodoxia teológica ou moral, embora também tivesse essa finalidade, mas essa forma

    de pensar tem raízes antigas no próprio entendimento doutrinário do cristianismo. No final da

    Idade Média a loucura e o louco começam a provocar um desassossego no homem medieval,

    pois “[...] tornam-se personagens maiores em sua ambiguidade: ameaça e irrisão, vertiginoso

    desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens” (FOUCAULT, 2008, p.14).

    Sendo assim a institucionalização da loucura ocorreu, a princípio, entre os séculos

    XV e XVII, quando surgiram os asilos para o enclausuramento de todas as pessoas que

    “incomodavam” a sociedade, uma forma de afastar e defender os “cidadãos de bem”. O

    sentido do enclausuramento ou internamento tinha por objetivo um claro escopo social que

    permitia ao grupo extinguir os elementos que eram considerados danosos ou heterogêneos,

    seria assim a eliminação espontânea “[...] dos ‘a – sociais’; a era clássica teria neutralizado,

    com segura eficácia – tanto mais segura quanto cega – aqueles que, não sem hesitação, nem

    perigo, distribuímos entre as prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes

    de psicanalistas” (FOUCAULT, 2008, p.79).

    Com a era da razão, conhecida como Racionalismo, a loucura deixa de ser

    relacionada com fenômenos naturais e ao campo do divino, adquirindo o status de “sem

    razão”, tornando o louco aquele que não obedece ou desconhece a moral racional. Sendo

  • 21

    assim, surge a agregação com o perigo, já que o sujeito da desrazão representa ameaça e falta

    de controle (FOUCAULT, 2008).

    Nessa mesma época, em que o mercantilismo estava em seu apogeu e pregava que “a

    população era o bem maior” devido o lucro que obtinham por meio dele, aqueles que não

    podiam contribuir com a produção e consumo, começaram a ser encarcerados sobre a

    justificativa do controle social. Do mesmo modo nesse período histórico, o mercantilismo

    colocou a economia em crescimento com crescente industrialização e urbanização das grandes

    cidades, com isso além das medidas legislativas de repressão, foi criada as casas de correção e

    de trabalho e os hospitais gerais, que eram destinados a retirar das cidades os mendigos e

    “anti-sociais” em geral, a oferecer trabalho para os desocupados, punir a ociosidade e

    reeducar a partir de uma instrução religiosa e moral (RESENDE, 2001). De tal modo, idosos,

    pessoas com deficiência, doenças venéreas e os loucos eram confinados nos porões das Santas

    Casas e nos hospitais gerais, sofriam diversos tipos de punição e tortura, tornando alvos de

    segregação “[...] a loucura e os loucos tinham múltiplos significados – de demônios a

    endeusados, de comédia e tragédia, de erro e verdade. Múltiplos e plurais eram também seus

    lugares e espaços: ruas e guetos, asilos e prisões, igrejas e hospitais” (AMARANTE, 2007,

    p.23).

    Nesse contexto aqueles que eram considerados desocupados, vadios e loucos tinham

    que ser enclausurados com a prerrogativa de manter a ordem social e esta ação não tinha

    objetivo de tratamento, mas sim de punição e preservação dos ‘bons costumes’, neste desígnio

    [...] a loucura tornou-se tão sutil a ponto de ter perdido toda forma visível e assinalável. Tem-se a impressão de que, através de um efeito distante e derivado do internamento sobre a reflexão, a loucura se retirou de sua antiga presença visível, e tudo aquilo que outrora perfazia sua plenitude real desapareceu agora, deixando vazio seu lugar e invisíveis suas manifestações certas (FOUCAULT, 2008, p.178).

    No mundo do enclausuramento, a loucura estava associada a defeitos morais, as

    pessoas eram consideradas insanas porque caíram à margem da ordem moral social, tornando

    perceptível nessa época pelo olhar da ética.

    A Revolução Francesa, que tinha como lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”

    foi um momento histórico que desencadeou várias mudanças nas esferas econômicas, sociais

    e políticas, e o enclausuramento passa a ser um erro econômico, visto que necessitavam da

    mão de obra de muitas pessoas (nessa época não era só as pessoas consideradas “loucas” que

    estavam enclausuradas, mas também os desocupados, mendigos, idosos, pessoas com doenças

    venéreas e etc.) inutilizadas dentro dos muros de instituições, para trabalharem na

  • 22

    industrialização nascente, assim ocasionando diversas transformações no campo da saúde,

    principalmente para a história da loucura. Nesse período começa um pequeno movimento de

    se voltar o olhar aos segregados, que se encontravam, sobretudo, em hospitais gerais. Esses

    hospitais eram um espaço de assistência médica, clausura, acolhimento, asilo, uma verdadeira

    mistura de atenção e exclusão (AMARANTE, 2007).

    Os hospitais, não eram exatamente uma instituição médica, nem foram criados com

    essa finalidade, por mais que isso nos soe esquisito no contexto atual. A princípio foi

    construído, ainda na Idade Média, para receber aqueles sujeitos que não tinham onde morar,

    ou seja, “[...] como instituição de caridade, que tinha como objetivo oferecer abrigo,

    alimentação e assistência religiosa aos pobres, miseráveis, mendigos, desabrigados e doentes

    [...] utilizou-se a expressão ‘hospital’ que, em latim, significa hospedagem, hospedaria,

    hospitalidade” (AMARANTE, 2007, p.22).

    Com a Revolução Francesa aumentaram também as denúncias contra as internações

    arbitrárias das pessoas com transtorno mental e seu confinamento junto com as demais

    pessoas marginalizadas socialmente, e contra as torturas cometidas muitas vezes disfarçadas

    sob a forma de tratamentos médicos, de que eram vítimas (RESENDE, 2001). Desse modo, se

    inicia um movimento de reforma em países como a França, Inglaterra e Estados Unidos, que

    culminou com a criação do manicômio: este espaço seria destinado para as pessoas com

    transtorno mental que, então, seriam separados das outras pessoas encontradas nos asilos e

    receberiam cuidado psiquiátrico.

    O manicômio surge no final do século XVIII como um local para ser “curada” a

    loucura, com ocultamento e exclusão, de acordo com a lógica criada pelo médico francês

    Philippe Pinel, para quem a loucura é uma doença e por isso deveria ser atribuída ao

    conhecimento médico, a qual representa o marco inaugural da fundação da chamada medicina

    mental ou psiquiatria. Nessa época Pinel encarregado de administrar o Hospital de Bicêtre, na

    França manda soltar os loucos “[...] como o primeiro e mais simbólico passo, as correntes são

    retiradas – a fim de restituir a liberdade que a loucura sequestrou – entrando para a história

    como o gesto de Pinel” (AMARANTE, 1996, p.50). As correntes são removidas, e as pessoas

    com transtorno mental passaram a ser cuidadas por meio da observação sistemática dos

    sintomas nos manicômios um ato que tinha o objetivo da reeducação, devendo assegurar a

    pessoa com transtorno mental a experiência real de corrigir pedagogicamente suas falhas

    (PESSOTI, 1996).

    Ele criou o primeiro método terapêutico para a loucura na modernidade, denominado

    tratamento moral, baseado em confinamentos, sangrias e purgativos, e, finalmente, consagrou

  • 23

    o hospital psiquiátrico como o lugar social dos loucos (AMARANTE, 1996; FOUCAULT,

    2008; COSTA, 2011). Esse método consistia em usar do rigor científico e da capacitação

    moral do médico para induzir a pessoa com transtorno mental a voltar à sanidade mental,

    buscando analisar e classificar seus sintomas (BIRMAN, 1978; PESSOTTI, 1996).

    A liberdade proclamada por Pinel é paradoxal uma vez que se efetivou dentro dos

    muros dos manicômios, não permitiu o direito dessas pessoas saírem, mas ficarem nessas

    instituições para tratamento, acabando por se tornar uma liberdade ilusória já que

    permaneciam enclausurados, sob a tutela do médico. E nada dessas ações diminuíram o

    estigma, uma vez que o manicômio se transformou em expressão de violência e exclusão das

    pessoas com transtorno mental.

    Para Resende (2001) essa época representou o ponto de partida da assistência

    psiquiátrica de massa e seus princípios teriam inspirado o pensamento dos alienistas

    brasileiros e moldado à organização da assistência às pessoas com transtornos mentais no

    Brasil. Ele acrescenta ainda que enquanto alguns autores consideram tal movimento uma

    revolução no tratamento a essas pessoas, outros afirmam que “os reformadores do século

    XVIII nada mais teriam promovido senão a substituição da violência franca pela violência

    velada da ameaça e das privações” (p. 26).

    Os manicômios se caracterizavam, principalmente, por acolher apenas pessoas com

    transtorno mental e oferecer tratamento médico sistemático e especializado. De acordo com

    Pessotti (1996) essas instituições já existiam antes do século XIX, e era tido como um hospital

    psiquiátrico, apesar de que sua função hospitalar ou médica era limitada a poucos, uma vez

    que a figura do médico especialista ou alienista em tratar o doente surgiria apenas no século

    XIX.

    Desenvolvida num primeiro momento no espaço manicomial, a psiquiatria a partir do

    século XIX, foi além dos limites dos hospícios sendo convidada a interferir sobre a sociedade.

    Fundado os asilos, a psiquiatria desenvolveu seu trabalho classificando e observando,

    reduzindo a pessoa com transtorno mental a condição de objeto e tornou um meio de “[...]

    moralização das massas inscrevendo-se no ideal moderno de higienização social e

    medicalização/disciplinarização da sociedade” (KODA, 2002, p. 21).

    Nessa perspectiva a psiquiatria trabalhou no sentindo de responder as exigências dos

    hospitais, tornando-se um instrumento para combater as causas da doença mental e prevenir

    seus efeitos, empobrecendo a vida mental da pessoa, bem como conclui Quinet (1997), com o

    saber psiquiátrico clássico a pessoa com transtorno mental não é tratado como ser humano,

    mas como objeto, tendo seu acesso barrado à sociedade enquanto cidadão.

  • 24

    No século XX, nasceu um tratamento ainda mais elaborado pela psiquiatria, as

    práticas como eletro choque, choque insulínico7 e lobotomias8 (LOBOSQUE, 2001). Surgem

    também os primeiros neurolépticos e com eles a exaltação farmacológica da psiquiatria, uma

    maneira mais fácil de calar a pessoa com transtorno mental e que Birman (1978) chama de

    amordaçamento bioquímico.

    Logo após a Segunda Guerra Mundial, a partir de uma série de fatores sociais,

    econômicos e políticos que foram propícios para preparar o terreno em vários países para o

    processo de construção de uma nova política de saúde mental, a desinstitucionalização surge

    como elemento da assistência psiquiátrica, decorrente desse processo de transformação

    resultado do contexto pós Segunda Guerra Mundial.

    7O objetivo do choque hipoglicêmico, assim como o do eletrochoque, era produzir uma profunda alteração das funções psíquicas superiores. Estas alterações, em verdade, podem ocorrer. Desta forma, são suprimidos os sintomas mais aparentes da doença, sem, no entanto, conseguir uma modificação de “fundo psicológico” (DOYLE, 1961). 8O que se esperava com a prática da lobotomia era diminuir os impulsos agressivos, assim como as repetições obsessivas, a partir da separação do pensamento de sua carga emocional. Estes resultados eram obtidos através de um corte lateral no lobo frontal do cérebro. Os objetivos em verdade foram atingidos, mas não como resultados de um tratamento: a “cura” alcançada pela psicocirurgia causava “pobreza imaginativa, puerilidade de concepção, inabilidade de execução” (SILVEIRA, 1992, p.26).

  • 25

    1.1 - POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NO BRASIL

    No início do século XX, sobrevêm diversas críticas às condições em que se

    encontravam o espaço asilar, pois o “[...] contínuo crescimento do número de pacientes

    crônicos internados em hospitais psiquiátricos reforçava o clamor da necessidade de

    mudança” (BARROS; BICHAFF, 2008, p.15).

    Depois da Segunda Guerra Mundial, após anos de convívio com a violência e

    destruição, um número grande de combatentes também apresentava dificuldades de adaptação

    à realidade, fato este que aumentou a demanda nos hospitais psiquiátricos. De acordo com

    Evaristo (1996) foram um milhão de internados na Europa Ocidental, suspeita-se de dois

    milhões no Leste Europeu e seiscentos mil nos Estados Unidos, vigorando assim a

    necessidade da abolição da segregação uma vez que o custo para manter essas pessoas

    internadas era alto e pairava efeitos econômicos graves sobre os países.

    Sendo assim a tendência de uma série de fatores sociais e econômicos contribuíram

    para preparar o terreno e desencadear em vários países, um processo de construção dessa nova

    política de saúde mental, uma vez que os hospitais psiquiátricos deveriam sofrer

    transformações ou ser eliminados (BANDEIRA, 1991).

    Nesse sentido surgiram os movimentos mundialmente conhecidos de “análises e

    críticas anti-institucional” que promoveram críticas e questionamentos ao tratamento

    oferecidos por algumas instituições (hospitais, manicômios e hospícios) que mantinham seus

    doentes enclausurados, proporcionando reflexões sobre a função dos hospitais psiquiátricos

    como referência de reabilitação.

    Nos Estados Unidos as reformas tratavam de propostas pautadas em bases

    administrativas e econômicas tendo como precursor Goffman; na Inglaterra com a psiquiatria

    social de Aubrey Lewis e a antipsiquiatria de Ronald Laing e David Cooper conscientizando a

    sociedade a ser mais tolerante com a pessoa com transtorno mental desenvolvendo o processo

    de desospitalização desde 1955; já na Itália iniciada por Basaglia, o movimento anti

    manicomial da psiquiatria democrática onde os fatores sociais e político ideológico

    contribuíram para o movimento da desospitalização desenvolvido já nos anos 60 do século

    XX (ROTELLI, 1990; BANDEIRA, 1991; SCATENA, 1991; EVARISTO, 1996).

    No decorrer do procedimento histórico da Reforma Psiquiátrica surge a

    desinstitucionalização como uma fundamental alternativa para desmontar as práticas de

    segregação utilizada pelos manicômios, com o objetivo de proporcionar cuidados à pessoa

    com transtorno mental de forma mais humana, utilizando principalmente a liberdade. Essas

  • 26

    intervenções tinham como objetivo reduzir ou eliminar a utilização dos hospitais

    psiquiátricos.

    Nos Estados Unidos o processo de mudanças institucionais foi assumido pelo

    governo Kennedy em decorrência do Plano de Saúde Mental, que autorizou a abertura de dois

    mil centros de saúde comunitários por todo o país, compreendida como um conjunto de

    medidas de desospitalização (AMARANTE, 2007). Essa experiência resultou em

    contribuições teóricas para o Brasil, as quais vieram por meio de Caplan (1996) que

    influenciou os programas comunitários na América Latina. Apesar de existir uma crítica às

    idéias de Caplan feita por Birman e Jurandir Freire Costa, que indica os aspectos ideológicos

    desse modelo comunitário de intervenção como sendo uma forma de controle e intervenção

    ainda maior e representando um processo de normalização e adaptação ao modelo de

    sociedade visto como normal.

    O movimento antimanicomial brasileiro teve influência do modelo italiano da

    psiquiatria democrática desenvolvida por Basaglia, pautada em uma nova compreensão da

    pessoa com transtorno mental e em suas relações sociais, rompendo com mecanismos

    responsáveis pela segregação e exclusão, levando em consideração a singularidade de cada

    pessoa e não dando ênfase apenas a sua doença, ou seja, pouco importa o diagnóstico, a

    preocupação deve ser com a pessoa, com seu bem estar (ROTELLI, 1990).

    Esse modelo de intervenção iniciado na época tinha como objetivo extinguir o uso de

    hospitais psiquiátricos, bem como qualquer instituição que mantivesse as pessoas com

    transtornos mentais privados de liberdade física e psíquica, um processo conhecido como

    desinstitucionalização. Entende-se por desinstitucionalização a desconstrução de saberes,

    discursos e práticas psiquiátricos que sustentam a loucura reduzida ao signo da doença mental

    e reforçam a instituição hospitalar como a principal referência da atenção à saúde mental

    (AMARANTE, 2007).

    Em 1978, o parlamento italiano aprovou a Lei de Reforma Psiquiátrica, conhecida

    como Lei 180 que sanciona, principalmente, o fechamento progressivo dos hospitais

    psiquiátricos (ROTELLI, 1990). Para o autor ao relatar a experiência italiana, comprova que a

    adequada desinstitucionalização em psiquiatria, deve ser um processo social, tendo o

    empenho de mobilizar como atores os sujeitos sociais envolvidos, procurando transformar as

    relações de poder entre pacientes e as instituições, lançando estruturas de saúde mental que

    substituam inteiramente a internação nos hospitais psiquiátricos.

    Então a idéia central da desinstitucionalização criada por Basaglia vai além de

    protestar contra a forma desumana da vida nos hospícios e manicômios, objetiva

  • 27

    principalmente denunciar e compreender que essa “falta de humanidade” é reflexo da questão

    social da exclusão resultante da opressão em uma sociedade capitalista (ROTELLI, 1990). E a

    partir dessa reflexão vem se construindo um novo olhar e um novo lugar para a loucura,

    sobretudo, no tratamento terapêutico as pessoas com transtornos mentais e na modificação da

    visão da loucura na sociedade.

    No Brasil, ao final dos anos 1970, teve início o processo de Reforma Psiquiátrica,

    baseada num contexto internacional9 de modificações pela superação da violência asilar e no

    bojo de transformações políticas, econômicas, sociais e culturais decorrentes da mudança do

    regime político militar para civil pela qual nosso país estava passando.

    A Reforma Psiquiátrica no nosso país teve/tem como objetivo estabelecer um novo

    status social para os sujeitos considerados doentes mentais, um meio que lhes garantam a

    cidadania, respeitando seus direitos e deveres enquanto cidadão, conseguinte, o resgate da

    capacidade do sujeito participar das trocas afetivas e sociais. É entendida

    como um conjunto de mudanças de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no dia a dia da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica foi avançando, caracterizado por vários desafios, empecilhos e tensões (BRASIL, 2005a, p.6).

    O ano de 1978 é considerado determinante e essencial do movimento social pelos

    direitos dos pacientes psiquiátricos, pois nessa época ganha amplitude o Movimento dos

    Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM, formado principalmente por trabalhadores na área

    da saúde, associações de familiares, sindicalistas e membros de associações de profissionais e

    pessoas com histórico de internação em hospitais psiquiátricos, “[...] um movimento que

    possibilitou construir uma estratégia de luta antimanicomial que a coloca na vanguarda das

    lutas por transformações sociais profundas” (DAUD JUNIOR, 2011, p.104).

    Esse movimento se instala como porta voz da pessoa com transtorno mental e

    começa a denunciar a violência dos hospícios e o mercado que se tornou a loucura, como

    também lutar contra o monopólio da rede privada de assistência em saúde mental. Lembrando

    que o movimento da reforma, a todo tempo, levou em consideração a conjuntura sociopolítica

    do país, propagando a inquietação em substituir os hospícios, considerados um ambiente

    incapaz de acolher as necessidades das pessoas com transtorno mental (NOGUEIRA, 2010).

    A partir daí, surgiram às primeiras alusões e ações para a organização da assistência a

    saúde mental. Entre 1985 a 1987 ocorreram o I e II Congresso Nacional do MTSM em SP,

    9Estados Unidos, Reino Unido, França e Itália foram os países que iniciaram os primeiros movimentos de Reforma Psiquiátrica (DESVIAT, 1999).

  • 28

    que adota o lema “Por uma sociedade sem manicômios” (BRASIL, 2005a) e neste mesmo

    tempo é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro.

    Conforme Desviat (1999) esta conferência estabeleceu as bases na saúde,

    estabelecendo princípios para um sistema nacional em saúde: a descentralização - pela

    mediação dos municípios, criação de um serviço único em saúde e o domínio sobre a

    medicina privada conveniada. De tal modo, os congressos e conferencias permitiram a

    discussão de assuntos muito importantes referente aos direitos civis, sociais e políticos do

    doente mental e as possibilidades de mudanças a partir, primeiramente, dos trabalhadores de

    saúde mental, comunidade, e por fim, da sociedade no que tange a produção e reprodução de

    mecanismos que possibilitem a inclusão dessas pessoas ao meio social.

    Nessa época duas grandes conquistas foram de grande relevância para o processo de

    reforma: a intervenção da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) em um hospital

    psiquiátrico chamado de ‘Casa de Saúde Anchieta’10 um local de perversidades e morte; e o

    surgimento do primeiro CAPS na cidade de São Paulo (BRASIL, 2005a).

    Também não podemos deixar de mencionar um fato que foi primordial para as

    conquistas no âmbito da saúde mental: a VIII Conferência Nacional em Saúde que ocorreu no

    Rio de Janeiro no ano de 1986, que contou com a participação de diferentes atores sociais

    implicados na transformação dos serviços de saúde. O conjunto dessas forças estimulou a

    reforma sanitária, que obteve sua maior legitimação com a promulgação da Constituição

    Federal de 1988, sendo também um estímulo para impulsionar o movimento da reforma

    psiquiátrica que já vinha em discussão no Brasil (BOARINI, 2011).

    A VIII Conferência Nacional em Saúde e a I Conferência Nacional em Saúde

    Mental, que ocorreram praticamente concomitantes, são reconhecidas como um “[...] um

    marco histórico na medida em que reuniu forças na luta pela Reforma Psiquiátrica, lançando

    as bases da substituição do modelo hospitalocêntrico por uma rede substituta em ênfase na

    atenção primária a saúde” (BOARINI, 2011, p.129). De tal modo, promulgando os primeiros

    passos em direção a desinstitucionalização da loucura, portanto, dando sinais claros de como

    deve ser o acolhimento em saúde mental.

    10A Casa de Saúde Anchieta era um hospital psiquiátrico que funcionou por quase 30 anos na Cidade. Localizada na Rua São Paulo, na Vila Belmiro, os métodos de tratamento utilizados nos pacientes eram os mais variados. Confinamento, choque elétrico, espancamento entre outros. Por isso, o local ficou conhecido como Casa dos Horrores. O fim do Anchieta foi decretado em 1989, com a intervenção da Secretaria de Saúde. (História e lendas de Santos. Disponível em: . Acessado em 21 de Janeiro de 2013).

  • 29

    Na tradição basagliana a desinstitucionalização passou a indicar as diversas maneiras

    de tratar o sujeito em sua existência e em relação às condições concretas de seu cotidiano.

    Sendo assim as instituições de saúde mental deixariam de ser um ambiente de “isolamento

    terapêutico ou tratamento moral”, para tornar-se concepção de novos caminhos e

    possibilidades, buscando a socialização e criação de subjetividades (AMARANTE, 2009).

    Aos poucos foram desenvolvidas ações que demonstravam que era possível a

    construção de uma rede de cuidados em saúde que pudesse assistir a pessoa com transtorno

    mental e também sua família, substituindo o hospital psiquiátrico. Porém o grande problema

    se encontrava em como efetivar propostas e ações em âmbito nacional, contudo, ainda

    continua sendo um problema em muitos municípios do nosso país.

    O anseio de instituir uma sociedade mais equitativa e igualitária e a formação de uma

    equipe multidisciplinar na saúde pública foram fatores instigadores ao movimento de reforma

    psiquiátrica, desde a desinstitucionalização até a efetivação de políticas públicas voltadas a

    saúde mental (DESVIAT, 1999).

    No final dos anos 80 do século XX é enviado ao Congresso o Projeto de Lei

    3.657/89, criado pelo Deputado Paulo Delgado, que propõe a extinção progressiva dos

    hospitais psiquiátricos e sua substituição por outras modalidades de assistência. Isso permitiu,

    além da organização dos setores “[...] um marco político da maior importância, ao possibilitar

    ampliação, até então inédita, do debate público sobre a loucura, a doença mental, a psiquiatria

    e suas instituições, inclusive com expressiva participação da grande imprensa”

    (AMARANTE, 1996, p.19).

    A partir desse Projeto de Lei e movimentações sociais, são aprovadas em vários

    estados brasileiros as primeiras leis que definem a substituição dos leitos psiquiátricos por

    uma rede integrada de atenção a saúde mental. É na década de 1990 marcada pela assinatura

    da Declaração de Caracas (BRASIL, 2005a) e pela II Conferência Nacional em Saúde Mental,

    que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais que regulamentando a

    implantação de serviços de atenção diária, baseada a partir das experiências dos primeiros

    CAPS, NAPS e Hospitais - dia e as primeiras normas para classificação e fiscalização dos

    hospitais psiquiátricos (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 1994).

    Também foi regulamentada pela Portaria nº. 224 de 29 de janeiro de1992 as normas

    para o atendimento hospitalar em serviço de urgência psiquiátrica em hospital-geral e leito ou

    unidade psiquiátrica em hospital-geral.

    Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), regulamentados pela portaria nº 336, de

    19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002a) estabelecem serviços estratégicos, substitutivos ao

  • 30

    modelo manicomial. Tem como características porte e clientela, recebendo as denominações

    de CAPS. I, CAPS. II, CAPS. III, CAPS. i e CAPS. Ad e CAPS Ad III11. Devem estar

    preparados e capacitados para realizar atendimentos de pacientes com transtornos mentais

    severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-

    intensivo e não intensivo. E carece funcionar independente de qualquer estrutura hospitalar

    (BRASIL, 2004a).

    Os NAPS são unidades de saúde locais e regionalizadas que oferecem atendimento

    de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou

    dois turnos de 4 horas, por equipe multiprofissional. É uma das portas de entrada da rede de

    serviços para as ações relativas à saúde mental, considerando sua característica de unidade de

    saúde local e regionalizada. Atendem também a pacientes referenciados de outros serviços de

    saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressa de internação hospitalar (BRASIL,

    1992). Vale ressaltar que o Estado de Rondônia e o município de Porto Velho o qual estamos

    realizando a pesquisa não constam com tal serviço como demonstra Andrade (2013).

    O Hospital Dia na assistência em saúde mental representa um recurso intermediário

    entre a internação e o ambulatório, que desenvolve programas de atenção e cuidados

    intensivos por equipe multiprofissional, visando substituir a internação integral. A proposta

    técnica deve abranger um conjunto diversificado de atividades desenvolvidas em até cinco

    dias da semana com uma carga horária de 8 horas diárias para cada paciente (BRASIL, 1992).

    Já os serviços de urgência psiquiátrica em prontos-socorros gerais devem funcionar

    diariamente durante 24 horas e contam com o apoio de leitos de internação para até 72 horas,

    com equipe multiprofissional. O atendimento resolutivo e com qualidade dos casos de

    urgência tem por objetivo evitar a internação hospitalar, permitindo que o paciente retorne ao

    convívio social, em curto período de tempo (BRASIL, 1992).

    O estabelecimento de leitos psiquiátricos em hospital geral tem como objetivo

    oferecer uma retaguarda hospitalar para os casos em que a internação se faça necessária,

    11 Caps. I - serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população acima de 15 mil habitantes; Caps.II - Serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população acima de 70 mil habitantes; Caps.III - Serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população acima de 150 mil habitantes; Caps. i - Serviço de atenção psicossocial para atendimentos a crianças e adolescentes, constituindo-se na referência para uma população acima de 70 mil habitantes, ou outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local; Caps. ad - Serviço de atenção psicossocial para atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, com capacidade operacional para atendimento em municípios com população superior a 70 mil habitantes; Caps. Ad III Atende adultos, crianças e adolescentes, considerando as normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente, com necessidades de cuidados clínicos contínuos. Serviço com no máximo 12 leitos para observação e monitoramento, de funcionamento 24 horas, incluindo feriados e finais de semana; indicado para municípios ou regiões com população acima de 150 mil habitantes. (Portaria 3.088 Republicada em 21 de Maio de 2013)

  • 31

    depois de esgotadas todas as possibilidades de atendimento em unidades extra-hospitalares e

    de urgência. Lembrando que o número de leitos psiquiátricos em hospital geral não deverá

    ultrapassar 10% da capacidade instalada do hospital, até um máximo de 30 leitos. Deverão,

    além dos espaços próprios de um hospital geral, ser destinadas salas para trabalho em grupo

    (terapias, grupo operativo, dentre outros) (BRASIL, 1992).

    Em 2001, foi sancionada a lei Federal 10.21612 (BRASIL, 2001a), uma das grandes

    conquistas da reforma psiquiátrica, que possui como meta oferecer tratamento a pessoa com

    transtorno mental junto a sua família e comunidade, como também estabelece a proteção e os

    direitos da pessoa com transtorno mental.

    É na conjuntura da promulgação dessa Lei e da realização da III Conferência

    Nacional de Saúde Mental que ocorreu de 11 a 15 de dezembro de 2001 tendo como tema

    “Cuidar, sim. Excluir, não - Efetivando a Reforma Psiquiátrica, com Acesso, Qualidade,

    Humanização e Controle Social”, que a política de saúde mental do governo federal,

    juntamente com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica passa a ser uma política de Estado,

    recebendo mais sustentação e visibilidade, estabelecendo assim uma rede em saúde mental

    que leve em consideração a cidadania e a inclusão social dos sujeitos com transtorno mental

    (CONFERÊNCIA NACIONAL EM SAÚDE MENTAL, 2002).

    O que prioriza a Lei Federal nº. 10.216 é a proteção e os direitos das pessoas com

    transtornos mentais realizando seu tratamento no sistema único de saúde, com humanidade e

    respeito, visando alcançar sua recuperação junto a sua família, a inserção no trabalho e na

    comunidade. Já os pacientes que estão a um longo tempo hospitalizados e que se caracterizem

    em situação de institucionalizados, devido seu quadro clínico e/ou ausência de suporte social,

    terá política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial observada de perto,

    garantindo a continuidade do tratamento em serviços substitutos e de base comunitária.

    Precisamos ter bem claro a diferença de desinstitucionalização com desospitalização sendo

    que “[...] desospitalizar significa apenas identificar transformações com extinção de

    organizações hospitalares/manicomiais [...]”, ao passo que desinstitucionalizar vai bem além,

    pois “[...] significa entender a instituição no sentido dinâmico e necessariamente complexo

    das práticas e saberes que produzem determinadas formas de perceber, entender e relacionar-

    se com os fenômenos sociais e históricos” (BARROS; BICHAFF, 2008, p.20).

    Vale lembrar que até chegar à organização dessas ações foi percorrido um caminho

    longo e árduo, que demandou toda uma disposição para esquematizar todo esse processo

    12Lei Federal de Saúde Mental aprovada em abril de 2001 que regulamenta o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil (BRASIL, 2001a).

  • 32

    formando por meio de um pensamento crítico-reflexivo referente às ações em saúde e mais

    especificamente às questões da exclusão e da segregação.

    No período de 2001 a 2010 ocorreram alguns avanços no campo jurídico na tentativa

    de oferecer um serviço aberto e substituto ao hospital psiquiátrico. Uma das conquistas nesse

    período foi o Serviço de Residência Terapêutica composto de moradias ou casas, inseridos na

    comunidade, devendo estar localizados fora dos limites de unidades hospitalares gerais ou

    especializadas, estando vinculados à rede de serviços de saúde sendo ponto de atenção a

    aquelas pessoas com transtorno mental que possuem histórico de longa permanência em

    hospitais psiquiátricos e hospitais de custódia e que não possuem vínculos familiar e social

    (BRASIL, 2000).

    Outra ação foi o Programa De Volta Pra Casa que tem como objetivo colaborar, por

    meio de ajuda financeira, para a reintegração social dos sujeitos com transtornos mentais, ou

    aqueles que passaram muito tempo internados em instituições totais, incentivando a

    organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados,

    obedecendo a critérios definidos na Lei nº 10.708, de 31 de julho de 2003 (BRASIL, 2003).

    Em 2010 foi realizada a IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial,

    que reafirmou as premissas da Reforma e reconheceu os avanços alcançados, apontando a

    necessidade de enfrentar novos desafios, especialmente a construção e fortalecimento de

    parcerias com as políticas sociais de assistência, educação, cultura, lazer e direitos humanos

    (BRASIL, 2010a). Como trazemos aqui, a reforma psiquiátrica brasileira tem sido construída

    num processo longo, carregado de obstáculos e desafios importantes, mas que tem avançado e

    demonstrado sua possibilidade, efetividade e potência para contribuir na construção de um

    melhor projeto de sociedade.

    Foram diversas propostas e iniciativas conquistadas por meio da reforma

    psiquiátrica, com o intuito de reduzir os leitos em hospitais psiquiátricos ou substituir por uma

    rede de atenção psicossocial facilitadora do convívio social e estimuladora do exercício pleno

    de direitos civis, políticos e de cidadania, caminhando no sentindo de criar políticas públicas

    que vão em direção às normalizações do Ministério da Saúde, a fim de instituir estruturas

    claras e seguras para redução da internação em hospitais psiquiátricos.

    A luta da reforma psiquiátrica vem sendo construída pautada na assistência

    conduzida do Sistema Único de Saúde – SUS, pelos seus princípios fundamentais:

  • 33

    universalidade, equidade e integralidade. Também por meio da proposta de

    desinstitucionalização, que tem como objetivo uma abrangência que ultrapasse os limites das

    práticas de saúde e alcance o imaginário social e as formas culturalmente validadas de

    compreensão da loucura (BEZERRA JUNIOR, 2007).

    Entretanto, embora o Brasil seja um país que muito avançou no campo da Saúde

    Mental, ainda há “[...] milhares de pessoas sofrendo em situação de exclusão e aprisionamento

    nos hospícios brasileiros e de contenção feita a base de grandes doses de medicamentos”

    (SCARCELLI, 2011, p.155). E de acordo com a Organização Mundial de Saúde13 (OMS,

    2010) no Brasil, 23 milhões de pessoas (12% da população) necessitam de algum atendimento

    em saúde mental e estima-se que pelo menos 5 milhões de brasileiros (3% da população)

    sofrem com transtornos mentais graves e persistentes.

    Muitos são os desafios no âmbito da Saúde Mental no que se refere à

    desinstitucionalização, pois há dificuldades em sua expansão e até mesmo uma regressão nas

    conquistas, como por exemplo: as principais ações substitutas dos hospitais psiquiátricos

    foram incluídas na tabela de procedimentos do SUS a partir de 1991, garantindo a

    transferência de recursos do Fundo Nacional de Saúde do Ministério da Saúde para

    operacionalização desses serviços, mas sua efetivação ainda é tímida, pois há um numero

    insuficiente de serviços comunitários (Centro de Atenção Psicossocial - CAPS e Núcleo de

    Apoio Psicossocial – NAPS) implantado em todo país e muitas pessoas sequer conseguiram

    sair de hospitais psiquiátricos ou instituições asilares (NOVA, 2002). Sem falar que ainda

    persiste outro tipo de problema nesse campo, “[...] o risco da medicalização da demanda da

    Saúde Mental, quando se criam novos serviços como uma forma de captar novos recursos

    financeiros e/ou quando se tem como objetivo apenas a diminuição da internação

    psiquiátrica” (LUZIO, 2011, p.173).

    Ao refletir sobre toda a trajetória de luta, principalmente dos movimentos sociais, em

    prol da Reforma psiquiátrica e olhando hoje para a nossa realidade, é possível observar muitas

    contradições, equívocos e, até mesmo alguma angústia no trato com as questões relacionadas

    à saúde mental. São apresentadas incoerências de pensamentos entre as políticas em saúde,

    seus gestores, instituições e práticas nessa direção, como demonstram Alverga e Dimenstein

    (2006) ao levantar os seguintes pontos que dificultam o cuidado em liberdade:

    13

    ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Relatório da Organização Mundial de Saúde. 23 milhões de brasileiros têm algum transtorno mental. 2010. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/sinapses/23-milhoes-

    de-brasileiros-tem-algum-transtorno-mental/. Acessado em 27 de abril de 2014.

  • 34

    [...] a forma de alocação de recursos financeiros do SUS e suas repercussões no modelo assistencial proposto para os serviços substitutivos; aumento considerável da demanda em saúde mental (especialmente os casos de usuários de álcool e outras drogas, bem como de atenção para crianças e adolescentes); diminuição importante, mas ainda insuficiente, dos gastos com internação psiquiátrica (modelo hospitalar ainda dominante, o que reflete a política ideológica dos hospitais psiquiátricos), fragilidades em termos de abrangência, acessibilidade, diversificação das ações, qualificação do cuidado e da formação profissional, bem como um imaginário social calcado no preconceito/rejeição em relação à loucura (p. 300).

    Silva (2001) menciona que esses desafios e impasses ocorreram desde o início da luta

    em saúde mental e relembra o fato ocorrido com a Declaração de Alma Ata14que foi feita em

    1978 em que se “esqueceram” de mencionar a saúde mental. Essa falta de lembrança levou os

    países, que se baseavam nessa declaração, a deixarem a saúde mental excluída do currículo

    médico, não podendo ser incluída como prioridade porque a Organização Mundial de Saúde

    não reconhecia sua importância. Essa situação demonstra que a saúde mental uma vez ou

    outra é esquecida pela assistência à saúde o que leva a transformar toda movimentação em um

    enorme desafio, ou seja, sempre tendo muito que fazer.

    Temos a consciência que a reforma psiquiátrica no Brasil ainda é um processo em

    construção e está muito relacionada à cultura de determinado povo, como conclui Maciel

    (2012) quando relata que a reforma está basicamente pautada às condições históricas, políticas

    e econômicas de determinadas regiões e países. Ela é “[...] articulada a um conjunto de

    iniciativas operadas nos campos legislativo, jurídico, administrativo e cultural, que visam

    transformar a relação entre a sociedade e loucura” (p.75).

    Ainda não podemos afirmar que o ciclo dos asilos e das colônias tenha chegado ao

    fim, mas se tais instituições ainda constituem uma triste realidade em todos os estados do

    País, o fato é que o modelo de atendimento centralizado no enclausuramento, em hospitais

    públicos ou particulares, deixou de ser objeto da crítica solitária de alguns setores da

    psiquiatria brasileira para tornar-se algo consensual, condenado nos documentos oficiais sobre

    o assunto (DELGADO, 2001).

    Vale ressaltar que a desinstitucionalização não objetiva apenas a redução

    progressivos dos hospitais psiquiátricos, mas almeja principalmente uma transformação nos

    paradigmas nos quais foram construídos, que inclui uma modificação na concepção da pessoa

    com transtorno mental, de cura, de reinserção, de saúde e, sobretudo, de qualidade de vida e

    14A Declaração de Alma Ata foi formulada por ocasião da Conferencia Internacional sobre Cuidados Primários de saúde, reunida em Alma Ata, na República do Cazaquistão (ex-república socialista soviética), entre 6 e 12 de setembro de 1978, dirigindo-se a todos os governos, na busca da promoção de saúde a todos os povos do mundo (CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, 1978).

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    seguindo, principalmente, a lógica de descentralização do SUS, sendo constituídas redes de

    atenção psicossocial substitutivas ao modelo centrado na referência à internação hospitalar

    desenvolvendo ações bem diferentes das realizadas nos hospitais psiquiátricos.

  • 36

    2 - A REDE DE ATENÇÃO A SAÚDE: OS NÓS QUE SE INTERLIGAM

    “O ruim é que não falo com ninguém lá fora, não posso falar no telefone, nem nunca veio ninguém me visitar, a ordem do juiz era pra eu ficar aqui seis meses e já faz 3 anos que estou aqui”(P3)

    O Sistema Único de Saúde - SUS é considerado uma referência mundial em políticas

    públicas de saúde, uma rede de ações e serviços integrados que atendem a todos desde

    educação e prevenção até ações mais complexas.

    O sistema é um das maiores conquistas dos movimentos sociais. Após a ditadura

    militar nos anos 80, a sociedade conseguiu definir a partir da Constituição Federal, em seu art.

    196, que a saúde é um dever do Estado e direito do cidadão e não um produto para

    comercialização, o que permitiu desenvolver grandes avanços no sistema único de saúde

    (BRASIL, 1988).

    Criado em 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, tornou o acesso

    gratuito à saúde direito de todo cidadão. Até então, o modelo de atendimento era dividido em

    três categorias: os que podiam pagar por serviços de saúde privados, os que tinham direito à

    saúde pública por serem segurados pela previdência social (trabalhadores com carteira

    assinada) e os que não possuíam direito algum (SOUZA; COSTA, 2010).