“A GENTE TEM QUE SE HUMILHAR”: A ATUAÇÃO DA IGREJA · A gente tem que se humilhar: a...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Clécio Jamilson Bezerra dos Santos
“A GENTE TEM QUE SE HUMILHAR”: A ATUAÇÃO DA IGREJA
MUNDIAL DO PODER DE DEUS EM JUAZEIRO DO NORTE
Natal
2017
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Clécio Jamilson Bezerra dos Santos
“A GENTE TEM QUE SE HUMILHAR”: A ATUAÇÃO DA IGREJA
MUNDIAL DO PODER DE DEUS EM JUAZEIRO DO NORTE
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, para obtenção do Título de Mestre em
Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes
Junior.
Natal
2017
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Santos, Clécio Jamilson Bezerra dos.
A gente tem que se humilhar: a atuação da Igreja Mundial do Poder de
Deus em Juazeiro do Norte / Clécio Jamilson Bezerra dos Santos. - 2017.
100f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais. Natal, RN, 2017.
Orientador: Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Junior.
1. Pentecostalismo. 2. Igreja Mundial do Poder de Deus. 3. Teologia da
Prosperidade. 4. Sofrimento. 5. Classificações. I. Lopes Junior, Orivaldo
Pimentel Lopes. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 279.125
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes - CCHLA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
A Banca Examinadora da Defesa de Dissertação de Mestrado, em sessão pública realizada em
29 de agosto de 2017, considerou o candidato Clécio Jamilson Bezerra dos Santos
___________________________________________________________________________.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Júnior (Orientador)
Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assunção (Membro interno)
Profa. Dra. Renata Marinho Paz (Membro Externo)
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“A GENTE TEM QUE SE HUMILHAR”: A ATUAÇÃO DA IGREJA
MUNDIAL DO PODER DE DEUS EM JUAZEIRO DO NORTE.
Resumo
Em seu livro Neopentecostais ([1999] 2010), o sociólogo Ricardo Mariano, assim como
fazem outros autores, propõe uma tipologia do pentecostalismo brasileiro, enfatizando,
sobretudo, as principais características da “terceira onda” do pentecostalismo (FRESTON,
1993), denominada por ele de “neopentecostalismo”, e o tom de novidade que caracteriza sua
emergência. Imersa nesse mesmo contexto está a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD),
denominação fundada em 1998 a partir de uma cisão da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD) na década de 90. Em detrimento dos diversos templos que ela possui, neste trabalho
eu me dediquei a uma reflexão crítica acerca de aspectos de sua atuação na cidade de Juazeiro
do Norte - CE, analisando sua presença no contexto religioso local e a situando diante do
protestantismo nacional. A IMPD em Juazeiro do Norte apresenta as típicas características de
uma igreja neopentecostal, podendo ser considerada, a priori, pertencente a tal segmento e
equiparando-se à IURD, seu maior expoente. Apesar disso, a partir de pesquisa de campo
preliminar efetuada entre 2012 e 2014, composta pela participação em cultos no templo
central da IMPD na cidade e realização de entrevistas com os seus membros, eu percebi
divergências entre a caracterização típica do neopentecostalismo, especialmente no que se
refere à Teologia da Prosperidade (TP), e discursos e práticas peculiares apresentados pela
Igreja local em torno da categoria “humilhação”, concebida mediante sua correlação com o
tema do sofrimento. Frente a isso, questionei o emprego da tipologia pentecostal vigente no
meio acadêmico para a leitura da atuação da Igreja em Juazeiro do Norte, levando em conta as
relações de convergência e de contraposição entre elementos dessa denominação e aqueles
presentes no meio pentecostal e cristão de forma geral. Interessado em compreender a
presença da “humilhação” na IMPD, ao longo do trabalho, eu problematizo a adequação,
pertinência e possíveis limitações do uso das classificações usualmente empregadas ao
pentecostalismo no meio acadêmico para a leitura da referida igreja.
Palavras-chave: Pentecostalismo. Igreja Mundial do Poder de Deus. Humilhação. Teologia da
Prosperidade. Classificações.
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“WE HAVE TO HUMILIATE OURSELVES”: THE WORK OF THE
‘IGREJA MUNDIAL DO PODER DE DEUS’ IN JUAZEIRO DO NORTE.
Abstract
In his book Neopentecostais ([1999] 2010), the sociologist Ricardo Mariano, like other
authors, proposes a typology of Brazilian Pentecostalism emphasizing strongly the main
characteristics of the "third wave" of Pentecostalism (FRESTON, 1993) - it was named by
him as "neo-Pentecostalism" -, and he also emphasizes the tone of novelty that characterizes
its emergence. Immersed in this same context is the ‘Igreja Mundial do Poder de Deus’
(IMPD), denomination created in 1998 from a split of the ‘Igreja Universal do Reino de Deus’
(IURD) in the decade of 90. To the detriment of the several temples it has, in this research I
have decided to focus on create a critical reflection about the aspects of its work in the city of
Juazeiro do Norte - CE, analyzing its presence in the local religious context and comparing it
to national Protestantism. IMPD in Juazeiro do Norte presents the typical characteristics of a
Neo-Pentecostal church, which can be considered, a priori, belonging to this segment and
equating it with IURD, its greatest exponent. Nevertheless, from a preliminary field survey
conducted between 2012 and 2014, composed by participation in cults in the central temple of
the IMPD in the city and interviews with its members, I noticed differences between the
typical characterization of "neo-Pentecostalism" - especially with regard to Prosperity
Theology (TP) -, and peculiar discourses and practices presented by the local Church around
the category "humiliation", conceived through its correlation with the theme suffering.
Against this, it is questioned the use of Pentecostal typology in the academic environment for
an analysis of the Church's activity in Juazeiro do Norte, taking into account the relations of
convergence and opposition between elements of this denomination and those present in the
Pentecostal and Christian milieu in general. Interested in understand the presence of
"humiliation" in the IMPD, I problematize the adequacy, pertinence and possible limitations
of the use of the classifications usually utilized to Pentecostalism in the academic
environment for the analysis of the previous mentioned church.
Key words: Pentecostalism. Igreja Mundial do Poder de Deus. Theology of Prosperity.
Classifications.
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Agradecimentos
Resultante de trabalho de pesquisa e reflexão, esta dissertação contou com a
participação de muitas pessoas, que direta e indiretamente contribuíram para o sucesso no
transcurso dos altos e baixos que compuseram sua elaboração. Mesmo não sendo possível
agradecer a cada uma em particular, a todas eu dirijo minha gratidão.
Primeiramente, aos meus pais, Dona Socorro e Seu Cícero, que mesmo distantes do
ambiente da universidade são meus maiores alicerces. Suas vidas são inspiração para
perseguir meus objetivos e superar todo e qualquer obstáculo. Eu não seria o que sou sem o
amor que eles dedicam a mim.
Agradeço aos fieis, pastores, obreiras, obreiros e demais pessoas com as quais
compartilhei conversas, afetos e experiências, pela disponibilidade e tempo dispendido em me
receber no templo central da Igreja Mundial em Juazeiro do Norte. Especialmente às obreiras
Meire, Francisca e Valdenia que me ajudaram a entender a trajetória da Mundial na cidade.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que
fomentou a pesquisa da qual resultou esta dissertação. Ao Departamento do curso de
graduação e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, cujos professores me proporcionaram momentos ricos de aprendizado,
discussão e reflexão significativamente relevantes para minha formação. Em especial, à
Secretaria do PPGCS, nas pessoas de Otânio e Jefferson, sempre solícitos e dedicados.
Aos colegas de pesquisa Anderson e Andrezza, com os quais eu partilhei do interesse
por religião e também pelas vivências e saberes partilhados; aos colegas de curso que me
acompanharam durante o mestrado: Carol, Juliana, Sidney, Zeneide, Fátima, Michael,
Eudivânia e Erika. Por todos os momentos, dentro e fora da universidade, sou imensamente
grato. Especialmente a Marlla, que mesmo distante esteve comigo nos melhores e piores
momentos da construção deste trabalho e em outros momentos únicos e inesquecíveis.
Às pessoas que me acolheram na cidade de Natal, pelo cotidiano, laços fraternos e
pelos afetos compartilhados, em especial Luciano, Elaine, Valéria, Gilberto, Mana, Leonardo
e Gleison, pelo suporte nas tarefas cotidianas e pelas celebrações nos fins de semana.
Às amizades fixadas no Cariri antes e durante o curso de mestrado. Priscila, Itamara e
Erivan, por terem me inspirado nas primeiras etapas da iniciação científica, pelo saber
partilhado e pelo suporte nas discussões e pesquisa ainda durante a graduação. À minha turma
de graduação da Universidade Regional do Cariri, em especial Dayara, Renatinha, Clara pela
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amizade fraterna e sincera e aos amigos de turmas posteriores, principalmente Anny e
Jamerson, pelas celebrações vivenciadas aos fins de semana em suas residências.
Com amor, a Ana Paula, Jucilene e Emerson, que há tempos me despertam os mais
sinceros sorrisos e a certeza de que tenho com quem contar; a Natália e Izaias, pelas conversas
duradouras, pelas vivências partilhadas e pelo ombro amigo na dor e na alegria; e a Ruanna e
Amanda, que de João Pessoa e Recife partilharam comigo das aventuras e desventuras da vida
na pós-graduação.
Aos integrantes do Movimento Ocupa URCA 2016 por redesenharem o cotidiano da
universidade, por intervirem na atuação pacata do corpo estudantil, pelos ensinamentos sobre
a vida dentro e fora da universidade; pelos afetos inéditos, pelo toque dos corpos, pela face
humana do erro e do insucesso; pelo potencial de renovar nas pessoas, especialmente em
mim, a esperança e a certeza de que a luta muda a vida.
Agradeço a todos os professores do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Regional do Cariri que estiveram presentes na minha formação durante a
graduação: Cícera Silva, Carlos Tolovi, Roberto Marques, André Álcman, Leandro Oliveira,
Sávio Cordeiro, Davi Simões, José Carlos, Márcio Renato, Rocildo Alves, Roberto Siebra,
Antônio Santos, Gislene Farias e Graça Cabral (em memória). De forma afetuosa, à Paula
Cordeiro, que me incentivou a sempre acreditar em mim e nos outros, pelos ensinamentos e
pelo encanto com o qual vê e vive a vida.
Ao Professor Luiz Assunção do PPGCS/UFRN, que acompanhou de forma atenta e
dedicada minha pesquisa desde sua fase mais rudimentar, participando da minha banca ainda
na seleção, na qualificação e na defesa. Obrigado!
Com afeto, à Professora Renata Marinho, que tem estado presente em minha formação
desde os primeiros anos da graduação. Pelo encanto despertado em mim pela pesquisa, por ter
contribuído significativamente para o meu ingresso no mestrado, para meu desenvolvimento
enquanto pesquisador e no desfrute de oportunidades, vivências e ensinamentos que sempre
levarei comigo; pela sua competência, dedicação e atenção, pelo investimento e crença em
mim, dirijo toda minha gratidão!
Finalmente, ao meu orientador Professor Orivaldo, que me inquietou, incentivou e
inspirou a trilhar novos caminhos na pesquisa e neles me norteou com suas reflexões,
discussões e questionamentos; por ter partilhado do seu saber, por sua confiança,
generosidade e paciência, sou imensamente grato!
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Aos meus pais,
Socorro e Cícero.
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“E vou viver as coisas novas
Que também são boas
O amor, humor das praças
Cheias de pessoas
Agora eu quero tudo
Tudo outra vez”
(Belchior, 1979)
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13
1.1 Estrutura e modelo de trabalho .................................................................................. 17
1.2 Recursos e procedimentos metodológicos .................................................................. 20
2 CAPÍTULO 1 - ENTRE O “NEO” E O “PÓS-PENTECOSTALISMO”: A IGREJA
MUNDIAL DO PODER DE DEUS NA TRAMA DAS CLASSIFICAÇÕES .............. 24
2.1 Campo religioso: concepções gerais e preliminares .................................................. 24
2.2 A emergência do pentecostalismo face à hegemonia católica .................................. 28
2.3 Um breve histórico do pentecostalismo no Brasil: as três ondas ............................. 29
2.4 Terceira onda: “neopentecostalismo” ou “pós-pentecostalismo”? ......................... 31
3 CAPÍTULO 2 - O CONTEXTO RELIGIOSO JUAZEIRENSE E A ATUAÇÃO DA
IGREJA MUNDIAL DO PODER DE DEUS ................................................................. 37
3.1 Juazeiro do Norte e o Cariri cearense ........................................................................ 37
3.1.1. A religiosidade no Cariri ...................................................................................... 38
3.1.2. Padre Cícero, o milagre e o movimento de Joaseiro ............................................ 41
3.1.4. A religiosidade popular e as romarias de Juazeiro .............................................. 43
3.2 Práticas religiosas divergentes em um cenário tipicamente católico ...................... 49
3.2.1. A atuação protestante evangélica em Juazeiro do Norte...................................... 52
3.2.2 Uma retrospectiva dos censos sobre religião ........................................................ 54
3.2.3 O declínio de adeptos do catolicismo e a ascensão pentecostal em Juazeiro ....... 55
3.3 Breve histórico da Igreja Mundial do Poder de Deus no Brasil .............................. 59
3.3.1 O censo de 2010 e a mudança no padrão de migração ........................................ 59
3.3.2 Origem e primeiro templo da Igreja Mundial do Poder de Deus .......................... 60
3.3.3 A Igreja Mundial do Poder de Deus em Juazeiro do Norte .................................. 63
3.4 O templo sede da Mundial em Juazeiro do Norte .................................................... 66
3.4.1 Um encontro: a reunião no templo sede ................................................................ 67
3.4.2 Momentos, elementos e características da reunião ............................................... 70
3.4.3 Cura e Prosperidade: análise da música O Choro ................................................ 74
4 CAPITULO 3 - “A GENTE TEM QUE SE HUMILHAR”: ANÁLISE DA
“HUMILHAÇÃO” NA IGREJA MUNDIAL DO PODER DE DEUS ......................... 78
4.1 A Igreja e seus fieis ...................................................................................................... 78
4.2 Guerra Espiritual e Teologia da Prosperidade ......................................................... 79
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4.3 O sofrimento como humilhação .................................................................................. 81
4.4 A humilhação na reunião da Mundial de Juazeiro ................................................... 84
4.5 Em linhas gerais ........................................................................................................... 91
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 93
6 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 97
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1 INTRODUÇÃO
A formação de novos grupos religiosos no Brasil está inserida em uma ampla
dinâmica de transformações do campo religioso nacional, fenômeno que não é recente, mas
que se acelerou, tornando-se mais evidente durante a década de 80, quando ocorreu o boom de
igrejas neopentecostais no país. A ascensão desses grupos religiosos, e sua presença não só na
esfera religiosa, veio a repercutir nos meios de comunicação e acadêmico, despertando
interesses difusos acerca desse fenômeno.
Neste trabalho, eu busquei analisar a atuação da Igreja Mundial do Poder de Deus
(IMPD) em Juazeiro do Norte-CE, tendo como foco a compreensão da noção de
“humilhação” 1 enquanto um dos elementos constituintes de suas práticas e crenças religiosas.
Pretendeu-se problematizar o emprego da tipologia pentecostal, proposta por Ricardo Mariano
e utilizada também por outros autores, na classificação da IMPD enquanto igreja
neopentecostal, questionando a adequação, pertinência e possíveis limitações do seu uso.
Aspectos do campo empírico, apreendidos a partir de atividades de campo, denotam
haver na cidade um cenário religioso de hegemonia católica e de obscurecimento das práticas
e crenças de outras religiões que atuam naquele contexto. Frente a isso, este trabalho associa-
se a um corpo de abordagens acerca do fenômeno religioso em Juazeiro do Norte que busca
apreendê-lo a partir de outros referenciais que não somente o catolicismo, ou seja, que não
considerem como tema de pesquisa somente aspectos hegemônicos do campo empírico.
Dentre as religiões que atuam na cidade e cuja análise pode ser considerada uma saída
às abordagens referenciadas no catolicismo, tem-se, por exemplo, o protestantismo, aquelas
de matriz afro-brasileira, entre outras. Além disso, pode-se tomar como relevante as
subdivisões e distinções internas a cada um desses segmentos, como, por exemplo, a
subdivisão do catolicismo em ortodoxo e popular, do protestantismo em igrejas de imigração,
de missão ou pentecostais, e daquelas de matriz afro-brasileira, como umbanda e candomblé.
Com esta empreitada não tenho como pretensão de desmerecer a gama de trabalhos
sobre Juazeiro que enfatizam uma abordagem pautada no catolicismo e em seus elementos,
bastante rica, diga-se de passagem. Os trabalhos desenvolvidos a partir desse viés são
extremamente significativos por reforçarem a importância de considerar a influência do
1 O termo “humilhação” é uma categoria de origem nativa utilizado pelas lideranças da Igreja Mundial
do Poder de Juazeiro do Norte para se referir a experiências do fiel diante das tribulações da vida neste
mundo. Ela será empregada enquanto “categoria analítica”, cujo significado será apresenta a seguir.
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catolicismo, juntamente com a Igreja Católica, na composição de aspectos culturais, sociais e
políticos que constituem a localidade.
A atuação de outros grupos religiosos, que contrasta com o cenário citadino de
consolidação do catolicismo, faz com que seja oportuna a reflexão acerca da ênfase atribuída
à caracterização católica que se estabeleceu sobre a cidade, ora apresentada como “Terra do
Padim Ciço e da Mãe das Dores”2. A opção pelo estudo de uma igreja do protestantismo
denominado “neopentecostal” em Juazeiro do Norte, além de constituir uma perspectiva
alternativa aos estudos do fenômeno religioso na cidade, atenta para a presença que essas
igrejas vêm ocupando no quadro religioso nacional nas últimas décadas.
Em seu livro Neopentecostais ([1999]2010), Mariano define o neopentecostalismo
como a mais nova “onda” (FRESTON, 1993) do protestantismo pentecostal brasileiro,
destacando as suas principais características e o histórico das igrejas a ela pertencentes.
Pioneira desse segmento é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), podendo ser
apontada como o seu maior expoente e cuja fundação marca o surgimento da terceira onda
pentecostal no país. Em contraste com outras versões do pentecostalismo, ela contém as
características centrais dessa nova versão.
Dentre as características destacadas por Mariano na definição das igrejas
neopentecostais, recebe maior relevância neste trabalho a pregação enfática da Teologia da
Prosperidade (TP). Operando com base em tal teologia, as igrejas desse segmento difundem a
possibilidade de se prosperar em todos os âmbitos da vida, almejando para este mundo um
“paraíso” prometido, até então, após a morte. Paralelamente, os empecilhos que impedem o
desfrute de uma vida próspera são concebidos como artimanhas do Diabo e de seus demônios,
contra os quais se deve travar incessante “guerra espiritual” 3.
Atrelada a essa noção de “guerra”, a TP condiciona os sujeitos a uma postura
tipicamente aguerrida, tanto no âmbito interno aos templos neopentecostais, no que se refere
às suas práticas rituais, como no âmbito externo a elas, quando a figura do Diabo e de seus
demônios é associada a entidades e deuses de outras religiões. Além disso, no que diz respeito
ao universo simbólico neopentecostal, o sofrimento humano, valorizado positivamente pelo
cristianismo ao longo da história, passa a ser demonizado, tendo em vista a sua
incompatibilidade com a vida de prosperidade prometida pela TP.
2 Slogan comumente utilizado para se referir a Juazeiro do Norte em clara alusão a figuras relevantes
do universo catolicismo citadino. 3 A “exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo e seu séquito de anjos decaídos” é destacada por
Ricardo Mariano como um dos aspectos fundamentais do neopentecostalismo ([1999] 2010, p. 36).
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Essa distinção, a saber, de ordem teológica, é um aspecto que distancia as igrejas
neopentecostais das formações pentecostais mais antigas do Brasil, sobretudo aquelas do
início do século XX, nas quais, assim como na tradição católica e no cristianismo de forma
geral, vigorava a promessa de uma vida paradisíaca posterior à morte. Enquanto recompensa
pelo sofrimento inerente à existência humana neste mundo, a concepção de um “paraíso” pós-
morte remete a uma escatologia pré-milenarista, na qual o sofrimento indica a iminente
segunda vinda de Cristo.
Invertendo essa lógica por meio da TP, o neopentecostalismo afirma o gozo das
benesses deste mundo, não concebendo que as pessoas tenham uma vida de sofrimento. Esse
último, apesar de existente, não deve ser desejado, já que os planos de Deus para com as
pessoas objetivam a felicidade delas e, por direito, o desfrute do que há de “bom” na própria
criação. Tal perspectiva fundamenta-se em uma escatologia pós-milenarista, segundo a qual o
“reino de Deus” precede a segunda vinda de Cristo, sendo possível, portanto, usufruí-lo nesta
vida.
Acreditando, pois, no rigor das formulações de Ricardo Mariano e considerando que
elas exprimem de forma bastante preliminar o estereótipo das igrejas neopentecostais e sua
caracterização no que diz respeito à TP, entre os anos 2012 e 2014, munido de referencial
teórico-conceitual e metodologia adequada, eu realizei pesquisa de campo no templo central
da IMPD em Juazeiro do Norte, participando sistematicamente dos seus cultos, realizando
observações e, posteriormente, análises e reflexões acerca dos mesmos4.
Depois de longo período de atividades de pesquisa, percebi aspectos da atuação local
da Igreja que se apresentavam divergentes daqueles expostos na tipologia de Mariano,
sobretudo no que se refere à ênfase na TP, tema para o qual o autor dedica um capítulo do seu
livro, além de outros trabalhos acadêmicos. É no mínimo curioso que uma denominação
religiosa como a IMPD, que resulta de uma cisão com a IURD, maior expoente do
neopentecostalismo, apresente além das principais características daquele segmento, outras
que fogem à tipologia.
A partir de atividades de campo, eu pude perceber, por parte das lideranças daquela
denominação, dois tipos de atividades peculiares. Em primeiro lugar, discursos que
4 A abordagem do fenômeno religioso em Juazeiro do Norte tomando como referência a atuação
evangélica na cidade vem sendo trabalhada por mim desde a graduação, quando, como pesquisador na
Universidade Regional do Cariri (URCA), participei do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica com projeto intitulado “O agenciamento de bens simbólicos: análise preliminar dos cultos
das Igrejas Neopentecostais em Juazeiro do Norte”, elaborado e coordenado pela Professora Dra.
Renata Marinho Paz e fomentado pelo CNPq.
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enfatizavam a necessidade de o fiel “se humilhar”, instigando-o a valorização positiva da
“humilhação” e, em segundo, práticas que proporcionavam aparente esforço físico, efetivadas
principalmente, e de modo exemplar, pelas lideranças durante rituais específicos. Nesse
sentido justifica-se o emprego da categoria “humilhação”5, que assume centralidade neste
trabalho.
A hipótese que alavancou as atividades de pesquisa pressupunha que a “humilhação”,
categoria de origem nativa presente no âmbito discursivo e prático dos cultos da IMPD,
consistia em uma valorização positiva e uma apologia ao sofrimento. Nesse sentido,
apresentar-se-ia incongruente com a usual caracterização que se faz do neopentecostalismo,
haja vista que as igrejas neopentecostais propõem a superação do sofrimento por meio da
pregação enfática da TP, sendo esta concebida como um elemento distintivo em relação às
igrejas das versões mais antigas do pentecostalismo.
Partindo da evidência, obtida a partir de atividade de campo preliminar, de que há uma
divergência entre características da atuação da IMPD em Juazeiro do Norte e aspectos da
classificação neopentecostal utilizada no meio acadêmico, entre os anos de 2016 e 2017,
retomei as atividades de campo interessado em compreender em que consistia a “humilhação”
naquela denominação, que papel ela desempenharia dentro de seu universo religioso e como
referenciá-la com relação ao protestantismo.
Com base no exposto, o objetivo geral da pesquisa consistiu em analisar a
“humilhação” presente nos discursos e práticas rituais da Igreja Mundial do Poder de Deus em
Juazeiro do Norte-CE a fim de compreender o seu significado dentro daquela denominação,
indicar características da atuação da Igreja no contexto local em correlação a aspectos de sua
atuação em território nacional e, a partir disso, situá-la diante do pentecostalismo brasileiro e
da tipificação produzida no meio acadêmico.
Elencado tal objetivo, e em vista das atividades deles demandadas, pretendeu-se
compreender a aparente incompatibilidade entre a “humilhação”, elemento aparentemente
correlato à noção de sofrimento6, e o contexto denominacional da IMPD, tipicamente
neopentecostal. Com isso, almejei provocar possíveis deslocamentos nos estudos acadêmicos 5 O seu emprego neste trabalho justifica-se por sua recorrência nos discursos das lideranças da IMPD
efetivados durantes os cultos que participei, entre 2012 e 2014, no templo central dessa igreja em
Juazeiro do Norte. 6 Weber afirma que “a avaliação do sofrimento na ética religiosa tem estado sujeita a uma
transformação típica” (1982, p. 313.), passando de uma avaliação negativa, quando era associado à
possessão demoníaca, para uma avaliação positiva, quando, a partir do surgimento de “disposições
religiosas coletivas para o ‘sofrimento’” (p. 315), este passa a estar relacionado à promessa de
salvação. Aparentemente, as igrejas denominadas neopentecostais teriam resgatado aquele primeiro
aspecto, referente à sua avaliação negativa.
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dos grupos religiosos pentecostais no sentido de fornecer aproximações sem reduções
classificatórias. Para que isso fosse possível, eu segui o modelo de pesquisa bourdiano, que
toma a noção de “ruptura” como ponto de partida para o desenvolvimento da pesquisa
científica.
1.1 Estrutura e modelo de trabalho
O formato desse trabalho reflete as etapas de elaboração da pesquisa ao passo que
segue o modelo de trabalho cientifico proposto por Pierre Bourdieu (2002), a partir do qual a
atividade de pesquisa, sua elaboração e consolidação, pode ser melhor expressa na seguinte
sequência: 1) Ruptura; 2) Construção; 3) Verificação; 4) Nova Teoria. Devo aqui esclarecer
sucintamente, a fim de favorecer sua compreensão, a noção de “ruptura”, empregada segundo
a perspectiva bourdiana.
Em O Poder Simbólico (1989), especificamente no primeiro capítulo, Bourdieu
pretende uma “introdução à sociologia reflexiva” ao tratar do jogo da construção do
conhecimento científico. Concebendo a existência de dois âmbitos a partir dos quais se
processa o conhecimento nas ciências sociais - o teórico e o empírico -, afirma que
O cume da arte, em ciências sociais, está sem dúvida em ser-se capaz de pôr
em jogo muito importantes a respeito de objectos ditos
muito precisos, frequentemente menores na aparência, e até
mesmo um pouco irrisórios (p. 20).
Segundo Bourdieu, há uma distinção entre o saber científico, caracterizado por “uma
postura activa e sistemática” na construção de seu objeto, e o “senso comum”, alheio a essa
atividade e gerador de concepções superficiais sobre os fatos. O desafio da ciência consiste,
pois, em propor um método de construção dos objetos que se distancie das pré-construções do
“senso-comum”. Para o autor, “a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão
bem como na capacidade de reconstruir objectos insignificantes em objectos científicos”
(1989, p. 20), ou seja, em formular problemas de ordem sociológica.
Com relação aos dois tipos de conhecimentos supracitados – o do senso comum e o
científico – concebe-se, respectivamente, a existência de duas realidades distintas: 1) aquela
referente aos problemas sociais, às inquietações dos indivíduos em resolver os problemas
considerados críticos à sociedade (LENOIR, 1998), que variam segundo épocas e regiões e; 2)
a realidade referente à construção do objeto sociológico, fruto das inquietações do
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pesquisador em compreender a realidade social a partir da ciência. Com base nas proposições
de Bourdieu, o sociólogo, e nesse sentido o próprio cientista social, deveria romper com as
pré-construções resultantes de uma realidade primeira, da qual ele mesmo faz parte.
Uma das características da sociologia é que o profissional se encontra profundamente
imerso no seu universo de pesquisa, as relações sociais, de forma que “a familiaridade com o
universo social constitui, para o sociólogo, o obstáculo epistemológico7 por excelência porque
ela produz continuamente concepções ou sistematizações fictícias ao mesmo tempo que as
condições de sua credibilidade” (2002, p. 23). Segundo essa perspectiva, um dos seus maiores
desafios - não só para o sociólogo, mas para os cientistas sociais de forma geral -, é romper
com o “senso comum”, que consiste na primeira “ruptura” que o cientista deve realizar.
As proposições de Bourdieu em prol do rigor científico na sociologia se apresentam,
no entanto, de forma demasiadamente categórica. A separação entre o que se conveio chamar
equivocadamente de “senso-comum” e o que seria a ciência “pura” se constitui não só numa
distinção entre duas formas de apreensão e produção do mundo, mas também na sua
consequente hierarquização, haja vista o status de verdade do qual é dotada a ciência em
relação a outros tipos de saberes que não o científico.
Constantemente o sociólogo deve se ver impelido a se afastar incessantemente das
noções construídas a partir do “saber imediato” e, mesmo dentro do campo científico,
diferenciar a ciência das percepções primeiras, sendo esta uma atitude inseparável da
atividade de pesquisa. No entanto, a proposta de “ruptura”, que busca reforçar o rigor
científico e “clarificar” o papel da sociologia diante da realidade, pode também endossar uma
visão colonialista sobre o conhecimento científico, expressa na disjunção entre saberes
distintos - “senso comum” e ciência -, por exemplo, ou em dicotomias como sujeito-objeto.
Ora, mesmo o conhecimento científico, quando reificado, tende a tornar-se um saber
compartilhado, comum e, portanto, um “senso comum”. Não à toa, é no próprio campo do
saber científico, referente à sociologia, que Bourdieu afirma haver um “senso comum”,
expresso no termo “sociologia espontânea” (2002). A tentativa de tornar mais clara a intenção
pedagógica da sociologia pode acabar implicando na produção de um novo habitus (1983, p. 7 Ao tratar da superação da invisibilidade que se abate sobre determinados aspectos das ciências Física
e Química, Gaston Bachelard afirma que “é em termos de obstáculos que se deve pôr o problema do
conhecimento científico” (BACHELARD, 2006, p. 165). A ciência, ao projetar luz sobre determinadas
questões, negligencia outras, deixando de formula-las e, por consequência, deixando de alçar outros
conhecimentos. A não percepção de outras questões possíveis de serem formuladas consiste em um
obstáculo de ordem epistemológica que põe em cheque a validade de determinados teorias, conceitos
ou metodologias, as quais, sendo fruto de um “espírito científico” acostumado com a confirmação de
seu saber fechado, implicam em “lentidões e perturbações” para o progresso do conhecimento
científico.
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19
65) científico que, talvez, reproduza as mesmas deficiências de uma “sociologia espontânea”
com o qual se deveria realizar também uma “ruptura”.
A noção de “ruptura” deve se afastar do ideal cientificista que concebe a ciência como
única forma válida de apreensão e produção do mundo. A Ruptura é aqui entendida mais
como a atividade de estranhamento daquilo que é familiar por meio de um novo olhar e
ferramentas de indagação, do que um mecanismo de construção do conhecimento científico
que rejeita as percepções primeiras acerca da realidade, o que viria a ampliar o “paradigma
disjuntivo” e os obstáculos epistemológicos na ciência8.
Abro mão do emprego do termo “senso comum” por considerar que, em algum
momento, o pensamento propriamente científico, tanto quanto o pensamento não científico,
estará sujeito a tornar-se inadequado à dada realidade em virtude do aspecto de falibilidade
que lhe é inerente. Assim, a noção de ruptura aqui empregada parte do princípio de que certas
convenções, quando reificadas irrefletidamente, têm de ser superadas, a fim de que não se
tornem obstáculo para o pensamento científico.
Diante de tais colocações, apresento agora a estrutura deste trabalho, os capítulos nos
quais ele se divide e, resumidamente, o conteúdo de cada um deles, sendo que, em seu
conjunto, o texto é composto por Introdução, Capítulos I, II e III e Considerações Finais,
correspondentes às já mencionadas etapas do modelo de pesquisa bourdiano, a saber, ruptura,
construção, verificação e, caso seja plausível, a formulação de nova teoria.
A Introdução, na qual consiste esta primeira parte do trabalho, é composta pela
apresentação do tema de pesquisa, sua justificativa e relevância, relacionando-as a aspectos do
campo de pesquisa e a atividades que nele realizei anteriormente. Em seguida, de forma
preliminar, formulei o problema de pesquisa e apresentei os objetivos que me guiaram até
aqui, explicando, por fim, o modelo que inspirou a pesquisa e que deu origem a este trabalho.
De maneira geral, pode-se dizer que nesta primeira etapa indiquei uma possível
ruptura com a forma como vem sendo trabalhada o questão da tipologia pentecostal.
Primeiramente, constatei a consolidação do conceito de neopentecostalismo e seu uso
recorrente no meio acadêmico, ou seja, sua reprodução9. Por conseguinte, ao perceber o
contraste entre as suas principais características e a “humilhação” presente na IMPD em
8 No que se refere aos estudos das Ciências Sociais da Religião, LOPES JUNIOR (2013) apresenta
uma discussão bastante relevante em prol da superação do paradigma disjuntivo na relação entre
ciência e religião. 9 O termo “reprodução”, aqui empregado, refere-se à noção de “objetivação”, ou seja, conceber como
“objetivo” algo que foi elaborado através de um processo subjetivo, algo que é intrínseco à tarefa de
classificação.
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20
Juazeiro do Norte, passei a tomá-lo como um conceito estranho para a apreensão e tipificação
dessa denominação.
Dedico o Capítulo I à construção do objeto, dado que uma possível ruptura com a
visão corrente acerca do neopentecostalismo requer um diálogo com interlocutores do campo
acadêmico, a partir do qual busco fundamentar teórica e conceitualmente a discussão por mim
motivada. Um segundo aspecto desse capítulo é a apresentação clara e precisa dos materiais e
métodos selecionados para o acesso do campo de pesquisa e sua posterior análise, tendo em
vista, sobretudo, o interesse de delinear o (s) significado (s) que a “humilhação” assume na
IMPD e a sua correlação com uma tipologia neopentecostal.
No Capítulo II irei discorrer acerca do campo de pesquisa e das atividades nele
realizadas, expondo uma caraterização da cidade e os aspectos do seu contexto religioso,
descrevendo brevemente o histórico da IMPD, sua fundação no Brasil e no interior do Ceará.
Nesse capítulo haverá espaço preferencial para relatar as atividades de observação em campo,
assistência aos cultos da Igreja in locus e televisionados, as entrevistas realizadas e as demais
informações acessadas a partir dos interlocutores do campo empírico.
Tendo como base o referencial teórico acessado no capítulo I para a construção do
objeto de pesquisa, no Capítulo III me debruçarei sobre o material obtido nas atividades de
campo a fim de analisá-lo. O intuito desse capítulo é verificar o objeto construído a partir dos
elementos obtidos no campo, buscando evidenciar a validade das divergências entre a
“humilhação” na IMPD e a tipificação neopentecostal. Ao tensionar aspectos do campo
empírico com aspectos do campo teórico, abre-se a possibilidade para avançar no
questionamento da teoria já consolidada sobre o neopentecostalismo, sua definição e
características.
Dado o resultado da verificação, que pode confirmar ou não a proposta de “ruptura”,
seguirei para as Considerações finais, etapa na qual realizarei um apanhado geral do trabalho.
Serão retomados os objetivos a fim de averiguar até que ponto foi possível alcança-los e, caso
a verificação tenha favorecido em alguma medida uma efetiva ruptura, tornar-se-á propício,
em estudos do fenômeno em questão, a formulação de novas propostas teóricas e
metodológicas que venham a auxiliar na realização de pesquisas futuras.
1.2 Recursos e procedimentos metodológicos
O objeto do qual trata esta dissertação foi construído a partir de uma experiência de
pesquisa de campo realizada entre os anos de 2012 e 2014 no templo sede da Igreja Mundial
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em Juazeiro do Norte. As observações aos cultos, o discurso do bispo Andrade e os rituais
realizados me instigaram a investigar os discursos e as práticas da Igreja em torno da
“humilhação”, tornando sua definição, suas dimensões e sua articulação com elementos
externos ao templo sede meu problema de pesquisa.
Ao longo do segundo semestre do ano de 2016 e início de 2017 eu realizei visitas ao
templo sede da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), localizado em Juazeiro do Norte –
CE, com o objetivo de reunir material empírico proveniente de atividades de observação e
entrevista para escrita dos capítulos subsequentes deste trabalho. Tendo em vista que eu já
havia desenvolvido pesquisa naquele templo, da qual resultou o projeto de pesquisa de
mestrado, considerei importante revisitar o material obtido anteriormente, assim como
trabalhos acadêmicos dele resultantes.
Com a escrita do texto de qualificação, concretizada no primeiro semestre de 2016, eu
havia exposto no formato textual o processo de construção do objeto de pesquisa e a
compreensão geral sobre as leituras preliminares realizadas. A etapa seguinte foi constituída
pela efetivação de atividades de campo, produção e análise de dados pertinentes ao tema com
o propósito de tornar viável a verificação do objeto construído. Nessa etapa, optei por
trabalhar com técnicas de observação sistemática e pública (CERVO, 2007; COSTA, 1997) e
entrevista semipadronizada (FLICK, 2009).
Como o objeto do qual trato foi construído a partir da assistência aos cultos da igreja, a
observação apresentou-se como recurso mais eficiente para verificação da recorrência de
discursos acerca da “humilhação”, sobretudo nos momentos de realização dos cultos. A opção
por realiza-las durante os cultos justifica-se pela centralidade que esses assumem dentro da
própria Igreja, pelo universo simbólico ao qual dão acesso e, sobretudo, por apreendê-los em
sua dimensão ritual, mediante a qual se configuram como um ambiente em que as práticas e
crenças religiosas são realimentadas (DURKHEIM, 1996 apud SANCHIS, 2007).
Logo após eu ter adentrado no estudo de bibliografia pertinente ao tema, dei início às
atividades de campo em Juazeiro do Norte, realizadas em 2016, tendo como propósito sondar
a dinâmica dos cultos do templo sede, conhecer o quadro de suas lideranças e estabelecer os
primeiros contatos com seus membros. O foco dessa primeira etapa foi me reaproximar do
campo. Somente no início do segundo semestre do mesmo ano eu iniciei observações
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sistemáticas aos cultos, que foram realizadas a partir de duas visitas no mês agosto (dias 16 e
23), duas em setembro (dias 18 e 25) e uma em novembro (dia 24) do mesmo ano 10
.
A técnica de entrevista, por sua vez, foi escolhida com a finalidade de obter
informações para construção do histórico da igreja e acessar a apreensão dos membros do
templo acerca do objeto de pesquisa construído por mim. Os contatos regulares com o campo
possibilitaram conversas informais com membros nas quais eu propunha a realização de
entrevista. De formato semiestruturado, essa técnica também assume uma dimensão
etnográfica, pois as perguntas que compuseram o guia de entrevista foram elaboradas com
base em observações preliminares.
As entrevistas foram elaboradas tomando como referência elementos do modelo de
“entrevista centrada no problema” (FLICK, 2009, p. 154) e foram obtidas através de uso de
gravador de voz11
. O roteiro de entrevista semiestruturada foi composto por uma guia de
perguntas preestabelecidas e por perguntas de imediato, elaboradas de acordo com o fluxo da
conversa com os informantes. A escolha dos potenciais entrevistados ocorreu de forma
processual. Eu tomei como referência a hierarquia institucional, preferindo interlocutores que
ocupassem algum cargo dentro da Igreja e tomando como base o modelo de “entrevista com
especialista” (Ibid., p. 158).
Busquei direcionar as entrevistas a obreiras, obreiros e pastores, considerando estarem
eles mais próximos de discursos e das práticas oficiais da Igreja e por permanecerem mais
tempo no templo antes e após o culto, afastando-me de empecilhos relativos à realização de
entrevistas fora do espaço físico e do horário de funcionamento do templo. Para a construção
do histórico da Igreja, tomei como critério o maior tempo de pertencimento à Igreja,
preferindo realizar entrevistas com membros que frequentavam a igreja desde ou próximo à
data de sua fundação em Juazeiro. Esses entrevistados foram selecionados por indicação.
Fiz uso de três estratégias comunicativas do modelo de entrevista centrado no
problema: (1) a “entrada conversacional”, na qual eu me apresentava enquanto pesquisador,
explicava o projeto de pesquisa e expunha os meus interesses com a realização da entrevista;
(2) a “indução geral”, na qual eu confrontava o entrevistado com o problema de pesquisa e;
10
Além de participar das reuniões realizadas semanalmente no templo central da igreja, participei
também de um evento de maior abrangência e importância para seus membros, a “Concentração de Fé
e Milagres”, que contou com a presença do apóstolo Valdemiro Santiago, fundador e líder maior da
Igreja, e da sua esposa e bispa Franciléia de Oliveira. O evento aconteceu no Ginásio Paulo Sarasate,
localizado na cidade de Fortaleza, capital cearense, em 23 de agosto de 2016. Na ocasião, além de
observação, realizei algumas entrevistas. O site oficial da Igreja noticiou o evento. Disponível em:
https://www.impd.org.br/noticias/841. (Acesso em dez./2016). 11
Aplicativo de celular.
https://www.impd.org.br/noticias/841
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23
(3) a “indução específica”, que consistia em me aprofundar naquilo que foi dito pelo
entrevistado acerca do problema a ele apresentado. No geral, as perguntas elaboradas
almejavam à compreensão acerca do objeto de pesquisa de forma indireta, evitando o uso de
formulações teóricas e linguagem demasiadamente distinta da do entrevistado12
.
As entrevistas obtidas no templo sede de Juazeiro ocorreram a partir de seis visitas em
dezembro (nos dias 06, 08, 11, 18, 20 e 26) e uma visita em janeiro de 2017 (no dia 05).
Nesses dias, recorrentemente se fazia necessário assistir a todo o culto para, somente após seu
término, obter uma única entrevista. Isso ocorria porque, ao chegar à igreja, o curto período de
tempo tinham as pessoas entre a chegada ao templo e o início do culto era dedicado à oração,
geralmente de joelhos, cabeça abaixada e olhos fechados. Por vezes, quando era possível
encontrar alguém disponível para entrevista, o volume consideravelmente alto das músicas
preparatórias para o culto interferia no diálogo com o entrevistado e na gravação da entrevista.
Um dos principais empecilhos encontrados para a efetivação das observações e
entrevistas foi a relação desenvolvida por mim com a principal liderança do templo sede, o
pastor. A recepção calorosa que obtive na primeira visita realizada ao templo em 2016,
quando me apresentei como pesquisador, foi substituída pela animosidade em relação às
solicitações de interesse da pesquisa. Esses acontecimentos afetaram de forma significativa
meu desempenho na execução das atividades de campo. Malgrado os obstáculos do percurso,
foi necessário ajustar as rotas, localizar um norte e dar continuidade à pesquisa.
12
Optei por não citar os nomes dos entrevistados no texto em virtude de não terem expressado nítida e
claramente consentimento quanto à divulgação de seus nomes.
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24
2 CAPÍTULO I - ENTRE O “NEO” E O “PÓS-PENTECOSTALISMO”: A
IGREJA MUNDIAL DO PODER DE DEUS NA TRAMA DAS
CLASSIFICAÇÕES
2.1 Campo religioso: concepções gerais e preliminares
A fim de compreender, de modo amplo, porém introdutório, a atuação neopentecostal
em Juazeiro eu optei por acionar as noções de “campo religioso” e “mensagem religiosa”,
formuladas por Bourdieu (2007) com base, principalmente, na teoria weberiana da religião.
Tais noções me ajudaram a refletir sobre aspectos internos à esfera religiosa e também na
apreensão inicial da dinâmica das relações inter-religiosas que se estabelecem no contexto
religioso de Juazeiro do Norte no que diz respeito, especificamente, às disputas em torno do
monopólio da produção religiosa legítima e das tensões daí resultantes.
Pressupondo que o contexto religioso local pode ser percebido como um “campo
religioso” (2007) na medida em que ele possui uma lógica interna e se constitui como um
espaço social determinado de relações dentro da sociedade, a dinâmica dessas relações pode
ser pensada enquanto um “jogo” que possui suas regras próprias, incorporadas por agentes em
diferentes posições e com diferentes interesses, os quais convergem na luta em torno de um
mesmo capital, que é desigualmente distribuído e determinante na repartição do campo em
dois polos: dominantes e dominados.
A distribuição desigual do capital religioso, resultante de um processo histórico de
tensão entre as forças que atuam no campo, estrutura-o hierarquicamente, situando as
posições dos agentes entre “especialistas” e “leigos”. Mais do que uma simples organização,
essa divisão é o corte estrutural que situa, respectivamente, dominantes e dominados, isso por
que, na ordem hierárquica, os especialistas ocupam posição superior à dos leigos, já que estes
últimos são “destituídos do capital religioso” na economia dos “bens de salvação”.
Enquanto um corpo de especialistas organizado burocraticamente – a igreja - atua
como produtor legítimo dos bens, competindo com outros produtores – denominados
“bruxos” ou “profetas” -, os leigos, por sua vez, assumem o papel de consumidores, devido ao
fato de serem desapropriados dos mecanismos de produção legítima e reconhecendo a
“legitimidade desta desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem enquanto tal”
(BOURDIEU, 2007, p. 38).
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25
O estado das relações de força existente no campo pode ser caracterizado pela atuação
estratégica dos especialistas em reproduzir a ordem dominante no campo – o status quo – e,
nesse sentido, assumindo, comumente, a postura de conservadores, em contraste com a
postura dos ditos “profetas”, que lançam mão de estratégias de subversão da ordem a fim de
legitimarem a mensagem religiosa da qual são autores e que poderá ser acolhida ou não pelo
público leigo-consumidor.
O sucesso ou não da mensagem religiosa entre os leigos depende da homologia entre o
grupo dos produtores e o grupo dos consumidores, ou seja, a mensagem ofertada deve atender
a determinados aspectos do “habitus” dos consumidores13
. Como há uma lógica de
reprodutibilidade do campo, os agentes que nele atuam são imbuídos de predisposições
condizentes com as regras em voga, de forma que, quando advinda de grupos não dominantes,
o sucesso da mensagem religiosa depende da perspicácia destes em produzi-la mediante a
iminência de alguns aspectos, até então implícitos, no grupo dos leigos.
Concebendo-as como ferramentas de leitura, as noções bourdianas me foram uteis para
a apreensão preliminar de alguns dos aspectos do campo religioso de Juazeiro do Norte.
Porém, considerado o contexto de sua elaboração, “Gênese e estrutura do campo religioso”
diz respeito a um campo religioso que parece se resumir, quase por completamente, à
estrutura hierárquica da Igreja Católica, o que deve ser resultado da hegemonia desta
instituição na época em que o autor realizou o seu estudo e que implica em possíveis
limitações do seu uso.
Num primeiro momento, a apreensão do contexto religioso juazeirense foi passível de
ser realizada segundo a noção de campo religioso. Posteriormente, eu encontrei como
primeiro obstáculo reconhecer onde se localizava a concentração do capital religioso, ou seja,
qual o grupo que atuava exclusivamente sua produção. A Igreja Católica assumira a posição
hegemônica no domínio do capital religioso e da produção religiosa legítima, mas não
exclusivamente, pois outras organizações religiosas também atuam nessa produção, levando a
crer que o capital religioso encontra-se mais disperso no campo.
Atrelada a essa dúvida, trago a dificuldade de distinguir a cisão dual do campo entre
dominantes e dominados, apresentada na relação hierárquica entre especialistas-leigos. Diante
da atuação de outras organizações religiosas que não somente a Igreja Católica, algumas delas
13
A noção de habitus, na forma como ela é apresentada por Bourdieu, corresponde a [...] um sistema
de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a
cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a
realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...]
(1983b, p. 65).
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26
munidas também de um corpo de especialistas organizado burocraticamente, a percepção das
posições dos agentes (dominantes/dominados) se torna relativa na medida em que se escolhe
por esse ou aquele grupo religioso como referencial de análise do campo.
Apesar da Igreja Católica ainda atuar de forma hegemônica, tendo seus bens e serviços
religiosos assim como a sua mensagem bastante difundidos e consolidados no campo
religioso, a apreensão desse último não pode deixar de fora a presença de outras organizações
religiosas que, atuando na difusão das mensagens por elas produzidas, assumem uma
dinâmica interna semelhante àquela que distribuí os agentes entre produtores e consumidores.
Assim, antes de uma situação de concentração do “capital religioso”, pode-se afirmar uma
situação plural, na qual há vários centros de produção religiosa que encontram receptividade
dentre os leigos-consumidores.
Além disso, pressupõe-se que os próprios leigos não são receptores passivos das
mensagens religiosas, mas agentes ativos no processo de percepção de seus sentidos e
significados, haja vista que uma das características do campo religioso atual é o constante
trânsito (STEIL, 2001, p. 120) inter-religioso e interdenominacional de pessoas, bens e
serviços religiosos, os mais diversos, que acentua cada vez mais um pluralismo religioso e
que oferece a possiblidade de perceber as relações inter-religiosas tomando como referência o
campo da recepção da mensagem religiosa e não o de sua produção.
O enfraquecimento do domínio da religião sobre setores da sociedade e da cultura e o
problema da plausibilidade de suas explicações sobre a realidade, resultou na emergência de
novas expressões religiosas, instaurando um cenário de pluralidade religiosa, haja vista a sua
necessidade de oferecer explicações sobre o mundo. A separação entre Igreja e Estado
expressou um marco no reordenamento do campo religioso, pois tal acontecimento implicou
em uma série de mudanças não só estruturais, mas também culturais e simbólicas, que dão
corpo a um processo maior, denominado “secularização”, do qual trata Hervieu-Léger (2008).
Apesar de analisar o contexto francês, a autora aponta para questões amplas, passíveis
de serem refletidas em outros contextos. Com um cenário plural, e com a perda do caráter
institucional das religiões, as pessoas passam a gozar de maior autonomia no que se refere às
opções religiosas, já que o campo se apresenta mais diversificado em relação aos bens nele
ofertados. Esses aspectos, somados à cultura de mercado dos bens simbólicos, são colocados
aqui como pano de fundo sob o qual se desenvolveram reflexões preliminares a respeito do
quadro religioso nacional no que tange a relação entre o tradicional e o moderno, entre
“velhas” e “novas” formas de crer (STEIL, 2001).
-
27
Uma das ideias que atua como base das reflexões neste trabalho consiste em pensar no
campo religioso a partir de mudanças significativas que ocorreram como resultado de
transformações sociais, culturais e simbólicas provenientes da modernidade14
. Sob essa
perspectiva, os elementos que compõem esse campo podem ser pensados a partir da relação
entre tradicional e moderno, categorias que delimitam fenômenos como a secularização e o
caráter “a-religioso” assumido pela sociedade moderna (STEIL, 2001.).
Com base em Hervieu-Léger (2008), o processo de “secularização” é entendido como
uma tendência de que a religião não mais assuma o papel central de explicação da realidade
do ser humano em seus aspectos estruturais e culturais. A partir do cisma entre Igreja e
Estado, a religião institucionalizada passa a atuar de forma menos intensa sobre outros
âmbitos da sociedade, distinguindo-se do que era comum ocorrer anteriormente, quando a
centralidade institucional aliada ao poder estatal de interferências na estrutura social oferecia
à esfera religiosa a autonomia sobre as formas de explicar a realidade.
As novas facetas sob as quais se apresenta o fenômeno religioso a partir da cisão entre
Estado e Igreja, seguida por um processo de perda de um único princípio religioso ordenador,
lugar que era ocupado exclusivamente pela Igreja Católica, abriu espaço para o “pluralismo
religioso” que se instaurou sobre a sociedade moderna (STEIL, 2001, p. 116).
Tais mudanças indicam uma adaptação da religião à modernidade, a partir da qual se
estabelece um rico debate a respeito do diálogo entre o tradicional e o moderno a fim de
indicar possíveis continuidades e rupturas no campo religioso. No entanto, sendo ambas as
categorias de ordem analítica, não se pode estabelecer um corte histórico bastante preciso a
partir do qual uma deixou de atuar e deu lugar à outra, de forma que, no âmbito prático, elas
se encontram e se misturam.
Uma leitura adequada do campo religioso atual deve levar em conta não só elementos
já consolidados, mas também aqueles emergentes dessa situação de pluralismo religioso e a
coexistência ambos. As religiões não se constituem como sistemas fechados em si, mas o
próprio campo se reconfigura de acordo com o que lhe é demandado, de tal forma que as
14
Talvez em referência a Zygmunt Bauman, mas de maneira não muito clara, Carlos Steil apresenta a
ideia de “modernidade” associada às “promessas de ‘bem-estar social’” (2001, p. 116), afirmando seu
insucesso. Ao longo do artigo, sem explicitar sua definição, Carlos Steil apresenta seus efeitos e
afirma o seu sucesso no campo religioso ao dizer que a “pluralidade e fragmentação religiosa” são
frutos da “dinâmica moderna” (Ibidem). Concebendo o “campo religioso moderno” como um contexto
de pluralismo, sua concepção de modernidade se aproxima das formulações de Hervieu-Léger (2008),
a partir das quais a “modernidade religiosa” pode ser entendida como um processo que dá ao indivíduo
autonomia para compor seu próprio sistema de crenças.
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28
bricolagens, novos arranjos e os sincretismos podem ser considerados fenômenos-chave para
compreendê-lo.
2.2 A emergência do pentecostalismo face à hegemonia católica
Ao tratar das imagens do pentecostalismo veiculadas pelos meios de comunicação de
massa, pela hierarquia católica e pelos meios acadêmicos, Paul Freston (1993) ressalta a
“posição intelectualmente exposta do pentecostalismo” e a “incompreensão do modelo
pluralista religioso que ele implica” como dois temas sobressalientes. O primeiro diz respeito
à escassez, no que se refere ao pentecostalismo, de “quadros e contatos intelectuais” e da
ausência de sua associação com “um conceito poderoso de brasilidade”, como era feito,
respectivamente, com relação às CEB’s e à umbanda (1993. p. 19).
Naquele contexto, além de ser “popular” e “protestante”, dois aspectos que o levaram
à margem dos interesses acadêmicos no respectivo contexto, “o protestantismo rompe com a
tradição do campo religioso brasileiro e opera com os pressupostos do pluralismo”, um fator
negativo, dado o “ânimo culturalista, de manutenção do status quo religioso” que
caracterizava a postura da academia diante daquele fenômeno religioso (1993, p. 19).
Para definir o modelo religioso pluralista no Brasil, Freston o distingue da tradição
religiosa do país, afirmando que:
A tradição religiosa brasileira é sincrética, mas o modelo que se firma no
país é o modelo pluralista. A diferença é matemática: no sincretismo, as
religiões se somam; no pluralismo, elas se subtraem. O modelo sincrético é
de uma relação não-exclusiva; no Brasil nós temos um sincretismo
hierárquico, o qual combina a relação não-exclusiva com a aceitação da
hegemonia institucional católica. O modelo pluralista é de várias opções em
pugna. (1993. p. 20)
Apesar da sua remota data, a citação não é anacrônica para a compreensão geral de
algumas características do campo religioso brasileiro. Para demonstrar num exemplo o
modelo sincrético hierárquico convém mencionar casos que envolvem tensões entre as
religiões afro-brasileiras e a Igreja Católica, nas quais parece haver uma atitude passiva das
primeiras em relação à segunda, evidenciando a sua postura de manutenção do status quo do
campo religioso e, por consequência, legitimando o lugar hegemônico ocupado pela Igreja
Católica em relação a essas religiões.
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29
Diferente dessa acomodação à hierarquia do campo, o melhor exemplo de um grupo
religioso que opera com os pressupostos do pluralismo é o próprio pentecostalismo, pois a
relação que estabelece com outras religiões não é nada complacente. Ocorre, na verdade, o
inverso. Por diversas vezes, as relações do pentecostalismo com a Igreja Católica e as
religiões de matriz afro-brasileira têm se tornado caso de polícia devido sua postura bastante
hostil para com elas, ainda que, concomitantemente, cresça à custa dos seus elementos15
.
O pentecostalismo assume uma posição tangente à ordem hierárquica do campo
religioso, pois sua postura desafia a hegemonia católica e suas formações são facilmente
perpassadas por elementos de outros universos religiosos. No que se trata da atuação da IMPD
em Juazeiro do Norte, pode-se pensar em uma suscetibilidade e abertura dessa denominação à
assimilação de elementos externos a ela, sendo válido inferir que esse processo possa ter
ocorrido em relação ao contexto local ou tenha sua origem na gênese da própria Igreja.
2.3 Um breve histórico do pentecostalismo no Brasil: as três ondas
Nos últimos anos, quando se ouve falar em igrejas “neopentecostais”, principalmente
em noticiários veiculados pelos meios de comunicação de massa, as noções evocadas acerca
das mesmas estão associadas, sobretudo, à intolerância religiosa e às suas práticas monetárias,
dois temas que, sem uma análise mais profunda, passam a ser acessados recorrentemente a
fim de caracterizar a atuação de tais igrejas dentro e fora dos limites dos seus respectivos
templos. Sem levar em conta a diversidade de denominações e as especificidades pertinentes a
cada uma delas, há, portanto, e isso não é nenhuma novidade, uma naturalização de
determinados aspectos da realidade social e de seus fenômenos.
Paul Freston é pioneiro na ordenação tipológica do pentecostalismo no Brasil e assume
importante papel para trabalhos posteriores por ter realizado uma síntese das tipologias mais
comuns empregadas por diversos autores acerca do pentecostalismo. Intitulada
Protestantismo e política no Brasil, sua tese de doutorado, além de oferecer um amplo quadro
de análise que correlaciona protestantismo e política no período entre a Constituinte de
15
No trabalho intitulado Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras, Vagner Silva (2007) busca
compreender as relações de “proximidade” e “antagonismo” entre as igrejas da vertente pentecostal
denominada “neopentecostalismo” e religiões afro-brasileiras, tomando para análise a destacada
atuação da IURD. Um dos argumentos principais de seu trabalho consiste na afirmação de que a
IURD, como expoente do neopentecostalismo, passa a compartilhar do léxico de significados das
religiões afro-brasileiras, introduzindo alguns dos seus elementos a fim de compor seu próprio
universo religioso.
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30
1987/1988 e o Impeachment do Presidente Collor, dispõe também de um mapeamento dos
protestantes brasileiros.
Com base nas tipologias institucionais de autores que trataram do tema anteriormente,
Freston menciona os conceitos mais comuns utilizados na classificação do protestantismo
(1993, p. 35) e que o divide em denominações históricas, estas subdividas em igrejas de
missão e igrejas de imigração (p. 42), e denominações pentecostais. Enquanto as igrejas de
imigração chegaram ao Brasil por motivos, sobretudo, socioeconômicos, as igrejas de missão
tiveram como objetivo a conquista de adeptos brasileiros, fator que as distinguem das
anteriores (p. 46). O autor elenca também as metamorfoses desse protestantismo histórico (p.
54), cujos resultados, em algum grau, distinguem as duas vertentes citadas anteriormente.
Segundo Freston, de origem mais recente, o pentecostalismo teve sua implantação no
país a partir de “três ondas” (1993, p. 64), todas originadas no decorrer do século XX. A
primeira delas se deu com a chegada da Congregação Cristã em 1910 e da Assembleia de
Deus em 1911. A segunda é dos anos 50 e início dos anos 60 e, dentre os diversos grupos que
surgem com a fragmentação do pentecostalismo, destacam-se a Igreja do Evangelho
Quadrangular em 1951, a Brasil para Cristo em 1955 e, em 1962, a Deus é Amor (p. 66). O
contexto de surgimento dessas duas ondas é, sobretudo, paulista.
Já a terceira onda, que surge em um contexto basicamente carioca, tem início no final
da década de 70 e, segundo Freston, ganha força nos anos 80, sendo a IURD, de 1977, e a
Igreja Internacional da Graça de Deus, de 1980, as suas duas mais notáveis representantes.
Em detrimento dos motivos que explicariam o surgimento de cada uma das ondas, interessa-
me mais saber quais as características atribuídas a cada uma delas, principalmente à terceira
onda, e, por conseguinte, ao pentecostalismo como um todo.
Em seu trabalho A Emergência da Pluralidade Religiosa16
, Paulo Siepierski afirma
que o pentecostalismo brasileiro pode ser caracterizado a partir do “moto da Igreja do
Evangelho Quadrangular”, segundo o qual “Jesus salva, batiza com o Espírito Santo, cura e
voltará”. Segundo Siepierski, essas quatro declarações consistem numa síntese das principais
ênfases do pentecostalismo e indicam aspectos referentes à doutrina do batismo no Espírito
Santo, à cura divina e à escatologia, além do ato de “falar em línguas”, sua marca distintiva.
Segundo Siepierski, entre as décadas de 80 e 90, o grupo que mais cresceu foi aquele
que ele denominou “pós-pentecostalismo”, que buscava se diferenciar do pentecostalismo e
16
Uma versão desse trabalho foi publicada em 1999 na Revista Reflexão e Fé, que, ao que tudo indica,
saiu de circulação. Contudo, o conteúdo do trabalho encontra-se disponível em
http://bmgil.tripod.com/spd26.html, de maneira que ao me referir a esse trabalho utilizarei o ano de
referência da revista: 1999.
http://bmgil.tripod.com/spd26.html
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foi responsável pelo maior crescimento dos evangélicos naquele período. Tal grupo não é
definido pelos limites denominacionais, ao contrário, é um fenômeno que adentra em maior
ou menor grau outras denominações. Ao demonstrar a percepção precipitada que a
“comunidade evangélica” tem sobre a sua dimensão, apesar do seu acentuado crescimento,
Siepierski afirma que “o Brasil não está se tornando protestante. O que vemos é a perda da
hegemonia católica e a consolidação de uma sociedade pluralista” (1999).
Essa nova geração de pentecostais surgiu em um contexto em que o processo de
urbanização se consolidava em grande parte do país, ou seja, havia um novo público para a
sua pregação, composto por “uma população urbana totalmente inserida na economia
capitalista” (SIEPIERSKI, 1999). Essa nova situação social implicou em mudanças na
mensagem pentecostal, principalmente no que se refere a sua escatologia, concebida por
Siepierski como “doutrina do fim das coisas” e de grande relevância para a denominação
desse novo pentecostalismo.
Esse tipo de pentecostalismo, que teve início em um Brasil em ritmo intenso de
industrialização, bastante urbanizado, inserido em uma “estrutura moderna de comunicação
de massas”, crise da Igreja Católica e crescimento de outras religiões, consiste naquilo que
Freston (1993, p. 95) denominou de terceira onda. Ao denominá-la “pós-pentecostalismo”,
Siepierski empregou o prefixo “pós” em alusão a escatologia pós-milenarista que a
caracteriza. Para designar o mesmo fenômeno Ricardo Mariano, por sua vez, optou pelo
emprego de “neopentecostalismo”, termo que se popularizou no meio acadêmico.
2.4 Terceira onda: “neopentecostalismo” ou “pós-pentecostalismo”?
No meio acadêmico, as noções correntes acerca das igrejas “neopentecostais” estão
alicerçadas, sobretudo, na obra de Ricardo Mariano, intitulada Neopentecostais: sociologia do
novo pentecostalismo (2010), na qual o autor aborda de forma ampla a tipologia das
formações pentecostais, o histórico das igrejas neopentecostais e expõe detalhadamente
aquelas que ele julga serem as principais características do neopentecostalismo no Brasil.
Tal proposta tipológica denominou cada uma das ondas do pentecostalismo descritas
por Paul Freston a partir dos critérios de “corte histórico-institucional”, e de “diferenças
teológicas e comportamentais e sociais”, dando singularidade à terceira onda em relação às
outras anteriores (MARIANO, 2010, p. 36). Nos termos de Mariano e segundo uma lógica
cronológica, tem-se que as três ondas são denominadas, respectivamente, “pentecostalismo
clássico”, “deuteropentecostalismo” e “neopentecostalismo”.
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Indicando sua presença no título do quinto livro do Pentateuco na Bíblia, o prefixo
deutero empregado por Mariano para denominar a segunda onda é usado no sentido de
“segundo” ou “segunda vez”, o que significa dizer que essa seria a segunda onda de um
mesmo pentecostalismo. A segunda onda mantém o mesmo “núcleo teológico do
pentecostalismo clássico”, mas dele se diferencia devido a um “corte histórico-institucional”
de 40 anos que separa a implantação das igrejas de cada uma delas. Um dos aspectos mais
relevantes da primeira para segunda onda, é que essa última passa a dar maior ênfase à cura
divina e inovações evangelísticas advindas do uso do rádio, tendas, cinemas, estádios, etc.
Já a terceira onda, denominada “neopentecostal”, refere-se à corrente pentecostal que
começa na segunda metade dos anos 70, se diferenciando das demais também pelo corte
histórico-institucional, mas principalmente pelas diferenças teológicas. O uso do prefixo
“neo” justifica-se por expressar sua recente formação e seu caráter inovador e, além de ser
cunhado por diversos autores, Mariano ainda afirma em nota que o mesmo já foi adotado por
órgãos de impressa e pela própria IURD.
Partindo dessas distinções de ordem classificatória, a terceira onda do pentecostalismo,
denominada pelo termo “neopentecostalismo”, é caracterizada segundo alguns aspectos que
ressaltam sua especificidade diante das demais correntes pentecostais. A “exacerbação da
guerra espiritual contra o Diabo”, a “pregação enfática da teologia da prosperidade” e a
“liberalização dos estereotipados usos e costumes de santidade” caracterizam as igrejas deste
segmento do protestantismo e levam a considerá-lo como aquilo que há de mais novo e
inusitado no campo religioso nacional até o momento (MARIANO, 2010, p. 35).
As três características supracitadas estariam reunidas e exemplificadas na IURD,
principal expoente do neopentecostalismo17
e cujo surgimento “justifica a criação de sua
tipologia” (Ibid., p. 34). Na pesquisa sobre neopentecostais, as noções formuladas por
Mariano assumem o papel de categorias analíticas que atuam na concepção a priore do campo
de pesquisa, podendo ser, sobretudo, utilizadas como ferramentas de leitura para o acesso
inicial ao tema do neopentecostalismo.
As igrejas que compõem tal onda são caracterizadas, em primeiro lugar, pela
“exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo e seu séquito de anjos decaídos” (Ibid., p.
109-147), na medida em que buscam justificar a incoerência entre um Deus bondoso e a
maldade terrena, atribuindo ao Diabo e aos seus demônios a autoria de tudo aquilo que venha
17
A representatividade do pentecostalismo de terceira onda atribuída à IURD justificava-se pelo fato
de ela ser, naquele período, a mais antiga, com maior fluxo de caixa e maior número de fieis
(SIEPIERSKI, 1997, p. 51).
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a interferir de forma negativa na “criação de Deus”, seja em qual for o âmbito – família,
relacionamentos, finanças, política, etc.
Concebido como oposto aos designíos divinos, o Diabo está presente desde muito
antes na história do cristianismo, mas, nessas igrejas, ele passa a ser figurado especialmente
nas outras religiões, justificando-se, pois, no campo simbólico, a “guerra” que se trava contra
elas. Não à toa se vê repercutir noticiários acerca de diversos casos de depreciação de
elementos das religiões afro-brasileiras ou católica por parte de lideranças ou outros membros
de igrejas neopentecostais.
A segunda característica se refere à “pregação enfática da Teologia da Prosperidade”
(MARIANO, 2010, p. 147-186.), que ganha maior atenção por ser o aspecto central que
distingue a terceira onda daquelas anteriores. De forma preliminar, a TP pode ser entendida
pela concepção que os membros dessas igrejas têm de que é admissível viver, antes da morte,
o “paraíso” que seria desfrutado somente após ela, instituindo, pois, um reino milenar neste
mundo.
As lideranças que a apregoam preconizam a possibilidade de se prosperar espiritual ou
materialmente em diversos âmbitos da vida - financeiro, familiar, conjugal, na saúde, na
atuação na igreja, etc. – já que, segundo afirma Mariano, tal teologia “valoriza a fé como meio
de obter saúde, riqueza, felicidade, sucesso e poderes terrenos” (Ibid., p. 158), se
distanciando, dessa maneira, de outras teologias cristãs que valorizam o sofrimento e
operando uma inversão em valores do pentecostalismo.
A terceira e última característica a ser destacada diz respeito à “liberalização dos
estereotipados usos e costumes de santidade” (Ibid., p. 187-223), que consiste em uma
mudança na postura das igrejas com relação aos elementos que viriam a constituir o aspecto
de santidade dos membros que as compõem, tais como normas e tabus comportamentais,
valores morais, usos e costumes, distanciando-se do estilo de vida mais ascético e
contracultural.
Se comparadas a versões mais tradicionais do pentecostalismo, essas igrejas atribuem
menor realce à doutrina comportamental no sentido de diminuir a restrição a determinados
costumes, trajes e outros elementos considerados profanos ou desvirtuados por outros
segmentos. Tais mudanças decorrem, em primeiro lugar, “das revolucionárias transformações
culturais e comportamentais [...] que varreram o Ocidente a partir dos anos 60” e, em
segundo, da “cissiparidade desenfreada do pentecostalismo” (Ibid., p. 204), que propiciou o
surgimento de uma postura religiosa menos legalista e mais flexível a valores e costumes da
sociedade, considerados até então mundanos.
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Apontando para a fluidez das fronteiras que separam cada uma das ondas, Mariano diz
que há dois problemas quanto à “distintividade teológica dos neopentecostais”. Primeiro é que
não existe uma “homogeneidade teológica” entre as igrejas neopentecostais e, segundo, é que
existe uma “crescente influência exercida pelas igrejas neopentecostais [...] sobre as demais e
a ânsia destas de absorverem e reproduzirem novas crenças e práticas de sucesso e agrado das
massas” (Ibid., p. 38). Mariano denomina esse último problema de “neopentecostalização”
das denominações não pentecostais.
A mencionada “neopentecostalização” constitui-se como um fator negativo para a
precisão das distinções teológicas das igrejas neopentecostais e, consequentemente, para sua
própria classificação. Fenômenos como esse, que não se contém nos limites das
denominações, implicam em empecilhos para a postura sistemática do pesquisador, porque
seu espraiamento por denominações distintas da de origem e até mesmo para outras esferas
que não a religiosa impõe dificuldades à atividade classificatória.
Indo de encontro ao fundamento dessa perspectiva denominacional, Paulo Siepierski
afirma que a terceira onda do pentecostalismo, denominada por ele de “pós-pentecostalismo”,
“não é um fenômeno contido por limites denominacionais, pois a semelhança do
pentecostalismo em seu início, é um movimento que penetra todas as denominações, com
maior ou menor intensidade” (1999, p. 5.). Além disso, na definição de um termo para
denominar esse fenômeno, ao invés de dar ênfase ao seu caráter inovador, como faz Mariano
ao utilizar o prefixo “neo”, Siepierski prefere enfatizar o aspecto escatológico.
A produção do artigo de Siepierski intitulado Pós-Pentecostalismo e Política no
Brasil, de 1997, concorre com o conteúdo da dissertação de mestrado de Mariano, de 1995,
período no qual esse designa a primeira e a segunda onda do pentecostalismo de
“pentecostalismo clássico” e “pentecostalismo neoclássico”, respectivamente, e a terceira de
“neopentecostalismo”. Apesar de concordar em parte com essa terminologia, Siepierski critica
o uso do termo “neopentecostal” para designar a terceira onda do pentecostalismo, afirmando
a imprecisão de seu emprego e a atitude acrítica de Mariano ao utilizá-lo.
Siepierski questiona que, “se o neoclássico é ‘neo’ por não diferir significativamente
do clássico, por que neopentecostalismo se ele difere sobremaneira do pentecostalismo que o
precedeu?” e afirma que, “Ademais, tradicionalmente o prefixo ‘neo’ tem sido relacionado
com continuidade e não com ruptura” (1997, p. 51). Em seu livro, posterior ao texto da
dissertação, Mariano modifica a terminologia que aplicava, substituindo o termo
“neoclássico” por “deuteropentecostalismo”, cujo sentido já foi explicado aqui, justificando
em nota que optou por ele “na falta de termo melhor”, mas que ele não dava a ideia de
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“segunda onda” e que o prefixo “neo” já constava na designação da terceira onda (2010, p.
31).
Parece que a crítica de Siepierski surtiu efeito contrário, já que, posteriormente,
Mariano modifica o termo “neoclássico” e não o termo “neopentecostal”, foco da crítica,
mantendo-o inalterado e atribuindo-lhe singularidade. Não obstante, Siepierski argumenta
que...
em outros lugares ‘neopentecostalismo’ é utilizado para indicar a renovação
carismática ocorrida no seio de denominações protestantes, pois ela não
diferiu significativamente do pentecostalismo anterior. Essa renovação
carismática também aconteceu na Igreja Católica, mas ali, como não havia
pentecostalismo anterior, foi designada simplesmente como ‘renovação
carismática’ (1997, p. 51).
Mariano afirma que “enquanto as duas primeiras ondas pentecostais não apresentam
diferenças teológicas significativas entre si, verifica-se o oposto quando se compara o
neopentecostalismo às vertentes precedentes” (2010. p.36). Em nota, na mesma página,
justifica a adequação do prefixo “neo” exatamente “por implicar em continuidade e, ao
mesmo tempo, novidade e mudança”, haja vista que, segundo ele, o uso do prefixo “pós”, por
expressar “ruptura radical”, transformaria o “pós-pentecostalismo” em uma nova religião.
Nesse ponto, há um mal entendido que, talvez, tenha motivado a tensão entre ambas as
perspectivas, dado que, na concepção de Mariano, assim como foram citadas, as principais
características do neopentecostalismo são três: a “exacerbação da guerra espiritual contra o
Diabo”, a “pregação enfática da teologia da prosperidade” e a “liberalização dos
estereotipados usos e costumes de santidade” (Ibid., p. 35).
Na concepção de Siepierski, no entanto, apenas as duas primeiras características são
relevantes, pois ele entende que “o abandono dos sinais externos de santidade é uma
consequência da teologia da prosperidade” (Ibid., p. 51), juntamente com o conceito de
“guerra espiritual”. Para Siepierski, ambas as características expressariam a ideia de ruptura
principalmente por que...
Os elementos protestantes do pentecostalismo – cristocentridade, biblicismo,
união da fé com a ética – estão praticamente ausentes no pós-
pentecostalismo. Isso sugere que, se o pós-pentecostalismo se distancia do
pentecostalismo, seu distanciamento do protestantismo é ainda maior,
rompendo com os princípios centrais da Reforma. O pós-pentecostalismo é
genealogicamente protestante, mas não teologicamente. E isso tem
profundas implicações sociológicas. (1997, p. 52)
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A citação evidencia em que se fundamenta a ideia de “ruptura”18
e, consequentemente,
o emprego do termo “pós-pentecostalismo” cunhado por Siepierski. Além disso, a ideia de
“pós” ainda se justifica por se referir a uma mudança