ANTROPOLOGIA E FRATERNIDADE · Às grandes mulheres da minha vida: ... Agradeço à Deus e a...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
ANTROPOLOGIA E FRATERNIDADE:A POÉTICA DO SERTÃO E O IMAGINÁRIO POLITICO
DE SANTANA DO ACARAÚ
CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA
FORTALEZA, AGOSTO DE 2007
Antropologia e Fraternidade Política: a poética do sertão e o imaginário de Santana do Acaraú
CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA
Orientadora: Profa. Dra. Maria Celeste Cordeiro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programade Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará – UECE, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade.
FORTALEZA, CE AGOSTO- 2007
CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA
Antropologia e Fraternidade Política: a poética do sertão e o imaginário de Santana do Acaraú
BANCA EXAMINADORA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
____________________________________________________________Profa Dra Maria Celeste Cordeiro - Universidade Estadual do Ceará - MAPPS
Orientadora
____________________________________________________________Profa Dra Simone Carneiro Maldonado - Universidade Federal da Paraíba - PPGS/PPCR
Examinador Externo
____________________________________________________________Prof° Dr° Jozenio Camelo Parente - Universidade Estadual do Ceará - MAPPS
Examinador Interno
AGRADECIMENTOSUm imenso obrigado
Àquela que, desejado,Além de ser Maria
Iluminou qual luz do diaAs incertezas do meu caminho
No escuro me deu um candeeiro Sabedoria do Celeste CordeiroQue nunca me deixou sozinho.
Agradeço à Deus e a Virgem, esposa e mãe da Casa de Nazaré, Senhora
de Belém e Rainha do sertão, e a seus reflexos na minha historia com Dionizio e
Doralice Barbosa, Cláudio Norberto Barbosa, Paulo Roberto Barbosa e Luiz Gilberto
Barbosa. Nos meus filhos do peito: Alyandra Barbosa, Marcus Vinicius Barbosa,
Rodrigo Barbosa e Thales Henrique Barbosa. Nas minhas irmãs do coração Rita
Barbosa, Anete Barbosa e Francisca Barbosa. Nas mulheres que pontilharam de luz e de
carinho o meu caminho feito pela Hildecyr e Florberta Noronha, Regina Celi Noronha,
Ir. Aldemarina, Ir. Benigna, Me. Ângela Calado e Ir. Maria Vaz... E dos reflexos de
tantos José's que me orientaram e protegeram na sabedoria, os gênios de humanidade,
de D. Vicente Zico, Pe. João da Cruz, Pe. Stélio Girão, Saad Zogheib, D. Miguel
Câmara, D. Aldo Pagotto, Prof. Teodoro Soares, Dr. Colaço Martins, José Pereira,
Dorival Spatti, Paulo Stapel, Lazaro Luna, Juscelino de Oliveira e Apolônio
Nascimento.
Aos anjos e pastores que anunciam e velam toda fragilidade fortificada
por Newton Gondim, Ivan Barbosa, Rodrigo Fialho, Vinicius Braga, Lourdes Cedro,
Leonardo Ramon, Gustavo Meireles, Maria Aparecida Barreto, Prof. Horacio Frota,
Profa Denise e Natalia Maria. Osmar Vasconcelos Filho, Francisco Parobé, Norma
Soares, Emmir Nogueira, a todos das comunidades e associações de Santana do Acarau
nos nomes de Ivina e Chico Guedes, à Igreja de Sobral nas pessoas de D. Fernando
Saburido, Pe. Francisco Junior e Pe. João Batista Frota. Prof. Eduardo Diatahy
Menezes. Nos operários da ultima hora que abraço com o mesmo carinho Sheila Brito,
Ir. Osvalda, Maria das Neves, Dra. Crislene, Rafael Luna, Geisa, Gladstone, Dorinha,
Emanuel, Anaxinando, Plínio, Hiero, Raí, Regina Monteiro, Geovanni, Zamir e
Verônica, Valdenir, Janildo e Raimundo, Marcondes, Nevinha e Álvaro... À Dra
Danielle Pitta pelas considerações imprescindíveis para a elaboração deste trabalho e a
Maria Valéria Rezende pela competente e revisão. Assim vou terminando como
comecei: agradecendo a Celeste Cordeiro, minha orientadora, pelos seus olhares que
possibilitaram a ampliação da visão do tema, pelos questionamentos, discussões e,
principalmente, pela confiança e solicitude nas horas difíceis, em que a amizade foi
confortante.
II
RESUMO
Nesta dissertação, buscamos nas categorias antropológicas do imaginário e na metodologia da Convergência Simbólica desenvolvidas por Gilbert Durand, perceber elementos da cultura sertaneja e as relações destes com as representações das instituições de poder e os espaços de participação no município de Santana do Acarau - Estado do Ceara - no nordeste do Brasil. Neste contexto estabelecemos um diálogo entre a ciência e a imagem a fim de tentar colaborar para o desenvolvimento de políticas públicas que levem em consideração o modus vivendi da gente sertaneja contribuindo para a maior qualidade das políticas de desenvolvimento no semi-árido.
Palavras-chave:
Fraternidade, Antropologia Lingüística, Configurações Simbólicas, Mito, Arquétipos,
Sertão, Imaginário, Semi-árido.
III
ABSTRACT
This study uses the anthropological categories of imaginary and the methodology of Symbolic Convergence, developed by Gilbert Durand, to perceive cultural elements of Brazilian Northeastern Sertão and their relations to the representations of local power institutions and of the spaces for popular participation, in the municipality of Santana do Acarau – state of Ceará. In this context we establish a dialogue between science and images in order to try to collaborate for the development of public policies that take in consideration the way of life of sertanejo people and to contribute to a better quality of development policies in this half-barren region.
Key words:
Fraternity, Linguistic Anthropology, Symbolic Configurations, Myth, Archetipes,
Sertão, Imaginary, Half-barren (semi-árido) region.
IV
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA I
Agradecimentos II
RESUMO III
ABSTRACT IV
SUMÁRIO V
ÍNDICE DE CATEGORIAS IMPORTANTES VII
ÍNDICE DE TABELAS E QUADROS IX
ÍNDICE DE MAPAS E FOTOGRAFIAS X
INTRODUÇÃO 1
1. O Imaginário e o Sertão. 3
2. Antropologia e Fraternidade Política. 7
CAPÍTULO 1: EM BUSCA DE UMA NOÇÃO 10
1. Encontrando Referências 12
2. Encontrando Experiências 14
3. Encontrando Simetria Nas Trocas. 17
4. Encontrando Confraternizações Simbólicas. 20
Considerações finais deste capítulo 26
CAPÍTULO 2: AS CONFIGURAÇÕES SERTANEJAS 28
1. Messianismo e Resistência 30
2. Alguns Contornos dos Escritos de Euclides da Cunha 33
3. A Semântica da Confraternização Temática 37
4. Sertanejos e Resistências 41
5. Caatinga, Juazeiro, Umbuzeiro e Jurema em configurações 44
Considerações finais deste capítulo 50
V
CAPÍTULO 3: A CASA DE AUDIFAX: UMA MAQUETE MITOLÓGICA 52
1. A Linguagem Mítica 53
2. Mito enquanto espaço de Fraternidade 56
3. Os Búfalos na Caatinga 61
4. As Tendências do Juazeiro 67
5. Entre o Alpendre e o Porão. 70
Considerações finais deste capítulo 76
CAPÍTULO 4: UM OLHAR SOBRE A CIDADE 80
1. Configurações de Nove Arquétipos. 87
2. A Semântica da Cidade 91
3. Do Refúgio às Ansiedades 97
Considerações Finais Deste Capítulo 105
CONCLUSÃO 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 116
VI
ÍNDICE DE CATEGORIAS IMPORTANTES
CATEGORIAS Capítulos Páginas
Fraternidade Introdução
Cap. 1
Cap. 2
Cap. 3
Conclusão
7
10-13; 16-17; 19-22; 26
49
56; 69; 79
107-108; 111; 115.
Antropologia Lingüística Cap. 2 28
Configuração Cap. 2
Cap. 3
Cap. 4
Conclusão
42; 49-51;
61; 64; 67; 70-78;
91; 95;
113
Mito Introdução
Cap. 1
Cap. 2
Cap 3
Cap. 4
Conclusão
6
22
40
52-58; 64-66; 71
73; 80; 88
108-110; 114
Arquétipos Introdução
Cap. 1
Cap. 2
Cap. 3
5; 7
20
37-38; 45-51;
54-56
Scheme Cap. 2
Cap. 3
Cap. 4
46
54; 70
79
Símbolos Introdução
Cap. 1
Cap. 2
Cap. 3
Cap. 4
Conclusão
4-6
22; 24-26
34; 39; 48; 50-51
54; 56; 78
88; 92; 106
108-109; 112; 114-115
VII
Sertão Introdução
Cap. 1
Cap. 2
Cap. 3
Cap. 4
Conclusão
1-3
24;
35; 37-39; 41-43; 45; 47; 49
55
79; 106
109; 115
Semi-árido Introdução
Cap. 1
Cap. 2
Cap. 3
Cap. 4
Conclusão
1-4
35-36; 40; 47; 49
52
86
109; 115
Imaginário Introdução
Cap. 1
Cap. 2
Cap. 3
Cap. 4
Conclusão
3-7
30; 32; 34; 40; 44-45; 47; 49
59; 64; 69
73; 75; 78
112
VIII
ÍNDICE DE TABELAS E QUADROS
Quadro nº 1 Primeira Parte do ÍNDICE de OS SERTÕES 35
Quadro nº 2 QUADRO COMPARATIVO: UMBUZEIRO x O SERTANEJO
42
Quadro/Tabela nº 3 MUNICÍPIOS MAIS POPULOSOS DA REGIÃO NORTE CEARENSE
85
Quadro/Tabela nº 4 ÁREAS DE ASSENTAMENTO 86
Quadro/tabela nº 5 ESPAÇOS DA CIDADE COM MAIOR FREQÜÊCIA
91
Quadro nº 6 ARQUÉTIPOS SITUADOS NA IGREJA 93
Quadro nº 7 SECRETARIA DE SEGURANÇA 96
Quadro nº 8 BANCO DO BRASIL 98
Quadro nº 9 PREFEITURA MUNICIPAL 98
Quadro nº 10 CÂMARA DOS VEREADORES 99
IX
ÍNDICE DE MAPAS E FOTOGRAFIAS
Mapa 1: COMPOSIÇÃO REGIONAL E REDE URBANA EXISTENTE – Fonte: PDR V. do Acaraú
81
MAPA 2: ESPACIALIZAÇÃO DA AGRO-PECUÁRIA E AGRICULTURA DE SEQUEIRO– Fonte: PDR V. do Acaraú
82
Mapa 3: ESPACIALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES PRODUTIVAS– Fonte: PDR V. do Acaraú
83
MAPA 4: INFRAESTRUTURA HÍDRICA – Fonte: PDR V. do Acaraú
84
MAPA 5: ESPACIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA IRRIGADA E PISCICULTURA– Fonte: PDR V. do Acaraú
84
Foto 1: Atividade com os sujeitos da pesquisa 88
Foto 2: Secretaria de Segurança Pública de Santana do Acaraú 92
Foto 3: Igreja Católica Romana, Matriz de Sant’Anna 95
Foto 4: Mapeamento coletivo com os participantes. 96
Foto 5: Câmara de Vereadores de Santana do Acaraú 100
Foto 6: Cena do Mercado Municipal 102
Foto 7: O micro-universo representado teatralmente 104
Foto 8: Registro da apresentação e entrevistas para análise 104
X
1
INTRODUÇÃO
A Poética do Sertão é uma expressão que conjuga as idéias de estética e
"terras secas" e vai direcionar o nosso olhar sobre o semi-árido, na perspectiva da forma
que manifesta um conteúdo determinante na organização do sertão. Neste sentido,
compreendemos que a estética não pode ser atribuída qualitativamente somente às obras
humanas, ou mesmo à natureza, mas anuncia o conteúdo das representações por fatores
subjetivos, emoção, sentimentos, percepção e todos os fenômenos psicológicos ligados
ao espaço coletivo, numa composição que nos leva a definir que tal espaço seja sertão.
Nesta perspectiva, procuramos compreender o sertão.
Capistrano de Abreu1 (1907) abre nossos estudos, sobre o espaço sertanejo,
trabalhando a ocupação européia, na América portuguesa. Inaugura a categoria "sertão",
por ele concebida como todo o espaço interior do Brasil colonial que, basicamente,
tinha como centro econômico, no primeiro período da colonização, somente o litoral
nordestino2 (MENEZES, 1997). Neste sentido, a conquista dos sertões brasileiros vai
revelar-se como ação fundamental para a consolidação do território e o estabelecimento
de uma nova dinâmica sócio-cultural e econômica. Para ele o sertão se opõe ao mar.
Porém, Capistrano de Abreu não descreve, necessariamente, o sertão árido
com características vegetais, climáticas e geográficas, como o definirá, mais tarde,
1 João Capistrano de Abreu, nasceu em Maranguape, CE, 23 de outubro de 1853 — Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1927. Foi um históriador brasileiro. Um dos primeiros grandes históriadores do Brasil, produziu ainda nos campos da etnografia e da linguística. A sua obra é caracterizada por uma rigorosa investigação das fontes e por uma visão crítica dos fatos históricos. 2 Capítulos de História Colonial - Capistrano de Abreu - Biblioteca Nacional, www.bn.br - Conferido do original Capítulos de História Colonial (1500 - 1800) - Capistrano de Abreu - Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro - Folha de São Paulo Publifolha - s/d.
2
Euclides da Cunha (CUNHA, 2002, p. 45) 3. Em Os Sertões, escrito em 1920, Euclides
constrói seu paradigma traçando os alicerces da consciência nacional brasileira,
trazendo à tona a maneira de ser sertaneja com imagens que conjugam o "sertão" com
"Terras Secas".
Assim, com Cunha, a categoria sertão passa a ser desenvolvida enquanto
terra árida que, mais tarde, assumirá a categoria genérica de “Terras Secas”, realidade
presente não só no Nordeste brasileiro, mas que ocupam mais de 30% da superfície do
planeta Terra, abrigando uma população de, aproximadamente, 1.6% da população
mundial4.
As populações que habitam tais regiões são caracterizadas por possuir um
baixo nível de escolaridade e poder aquisitivo, usufruem de poucos recursos
tecnológicos e ingerem uma quantidade de proteínas inferior à recomendada pela
Organização Mundial de Saúde.
O aumento da extensão das terras secas é atribuído aos fatores climáticos e,
ao mesmo tempo, ao mau uso dos recursos naturais por parte dos seres humanos. Para
reverter esse caso faz-se necessária uma mudança de comportamento do ser humano.
Ao voltar nosso olhar sobre o comportamento humano, no contexto do
semi-árido nordestino, podemos notar que a organização social no sertão não é
determinada somente por aspectos topográficos, econômicos, técnicos ou racionais, mas
essa distribuição organizacional acontece, também, através de um sistema de
significados, de lembranças históricas da tradição, que fomentam uma ética e um modo
3 Euclides da Cunha, logo no primeiro capítulo de Os Sertões, trabalha na "A entrada do sertão" as características geográficas caracterizando-a como: "Terra ignota” delineando suas primeiras impressões do espaço sertanejo (VENTURA 2002).4 Estes dados foram fornecidos por "Tecnologias Apropriadas para Terras Secas - Manejo sustentável de recursos naturais em regiões semi-áridas do nordeste do Brasil", a obra foi editada pela Fundação Konrad Adenauer em parceria com a Sociedade Alemã de Cooperação Técnica (GTZ).
3
de viver específicos. É justamente baseado nesta idéia que delinearemos o nosso
percurso de interpretação do semi-árido voltada para as representações do espaço
sertanejo.
1. O Imaginário e o Sertão.
Na perspectiva de que o sertão é um lugar dotado de significados, o título
desta dissertação apresenta um caminho desafiador: estabelecer o diálogo entre a ciência
e a imagem, a fim de tentar colaborar para o desenvolvimento de políticas públicas que
levem em consideração o modus vivendi da gente sertaneja, de modo que as políticas de
desenvolvimento do semi-árido sejam sustentáveis e, conseqüentemente, mais eficazes,
levando os sertanejos a não saírem de suas terras, mas a participarem dos processos de
desenvolvimento econômico, social e cultural de fixação no sertão.
Por este motivo, faz-se necessário apreender o imaginário social dos
sertanejos como meio de interpretação da realidade. Para tanto utilizamos a metodologia
da Convergência Simbólica construída por Gilbert Durand5.
Neste sentido, o estudo do imaginário apresenta uma metodologia própria de
abordagem que constitui um dos caminhos do conhecimento que, por sinal, foi muito
criticada pelos analistas de vertente mais positivista.
A este respeito, Gilbert Durand fundamenta a Teoria da Convergência
Simbólica, partindo da crítica a essa desvalorização do imaginário no pensamento
5 Gilbert Durand é professor emérito de antropologia cultural e de sociologia da Universidade de Grenoble. Junto com Léon Cellier e Paul Deschamps, fundou o Centro de Pesquisas sobre o Imaginário, em 1967.
4
ocidental clássico, pois, para ele, os pensadores reduzem a imaginação, conceituando-a
como mestra do erro e da falsidade (DURAND, 1997, p.21) 6.
Contrariamente a esta corrente do conhecimento, Durand estabelece que o
estudo do imaginário traz a compreensão dos dinamismos que regulam a vida social e
suas manifestações culturais, subjacentes aos modos de ser, pensar e agir das pessoas,
culturas e sociedades.
Assim, entendemos que existem várias formas de conhecer a realidade
sertaneja. Podemos escolher uma delas, lançando-nos sobre a realidade objetiva que
salta aos nossos olhos como a vegetação, os períodos de seca ou chuvosos, o tipo de
produção, a organização política, social e econômica das comunidades sertanejas, o
folclore e as possibilidades de comércio. Ou podemos preferir outra maneira, que vai ao
encontro da essência dessas realidades e perpassa o campo da fenomenologia.
Esta segunda via possibilita-nos perceber que o ser humano do semi-árido
organiza a própria vida não apenas através da razão objetiva, mas de toda uma lógica
cultural, por critérios sígnicos, através dos símbolos e dos mitos, dos seus sonhos e
projeções. Foi, justamente, esta segunda opção que escolhemos como caminho de
compreensão do conjunto de características humanas do sertanejo, sejam elas inatas ou
que se criam e se preservam ou que se aprimoraram através da comunicação e da
cooperação entre os grupos humanos, que formam as comunidades sertanejas,
acessando as suas capacidades de simbolização, própria da vida coletiva e que é a base
das interações sociais.
6 Durand comenta, na Introdução de sua mais importante obra, que "para Brunschvicg, toda a imaginação - mesmo platônica - é 'pecado contra o espírito'. Para Alain, mais tolerante, os mitos são 'idéias em estado nascente' e o imaginário é a infância da consciência” (DURAND,1997, p. ????).
5
Desse modo, compreendemos que o homo sapiens é também homo
simbolicus. Por essa estrada, Gilbert Durand, apoiado em Jung ─ que concebe a noção
de arquétipo enquanto potencialidade funcional que influencia inconscientemente o
pensamento (JUNG, 2002, p. 49) ─ e, em Bachelard ─ que concebe a imaginação como
dinamismo organizador e fator de homogeneidade na representação (1984, p. 121) ─ vai
concluir que todo pensamento é representação, porque passa por articulações
simbólicas.
No contexto desta conclusão, fica claro que Durand não nega a importância
da razão, mas, ao mesmo tempo, abre a perspectiva de que o imaginário não precisa da
razão objetiva para se impor como realidade, pois aparece na dimensão da
subjetividade.
Neste caso, a representação se revela englobando o conceito e a imagem,
dominando assim, o intelecto. Portanto, a noção de representação não é, em Durand,
uma simples produção ou tradução mental de uma realidade exterior, mas vai ao
encontro da concepção de imaginário, o qual não é visto como suposto ou inventado.
Por isso, as imagens fomentam as nossas atitudes concretas no quotidiano,
nossa maneira de ver o mundo, de nos relacionarmos com a natureza e com as pessoas.
As pressões sociais são subjacentes à imagem: os costumes, hábitos que estimulam
comportamentos e procedimentos. Este jogo se traduz em algo palpável: a cultura, que é
a maneira de relacionamento do ser humano com o universo social e o meio cósmico.
A comunicação entre as pessoas acontece através de sistemas simbólicos. E
o símbolo é uma representação de algo ausente ou impossível de ser percebido, que
concretiza o sentido, que faz visualizar uma mensagem. Neste contexto, Danielle Pitta,
assim, explica: “Os símbolos podem ser classificados em: símbolos rituais (relativos aos
6
gestos), símbolos iconográficos (imagem visual) e aqueles relativos à palavra (os
mitos)” (1995, p.15) Nosso trabalho desenvolve-se, sobretudo, neste último aspecto do
símbolo relacionado aos relatos, às narrações, “habitado pelos estilos da história e as
estruturas dramáticas – que chamamos mito”, como o caracterizou Durand (1997, p.332),
traduzidos na ação concreta: os mitos entendido enquanto atitudes cotidianas.
Assim, Durand vai verificar que “a organização dinâmica do mito
corresponde muitas vezes à organização estática a que chamamos ‘constelação de
imagens’; o método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e
no mito” (1987, p. 63). Durand define o imaginário como “o conjunto de imagens e de
relações de imagens que constitui o capital pensado do ‘homo sapiens’, é o
denominador fundamental onde vêm se arrumar (ranger)7 todos os procedimentos do
espírito humano” (1997, p.219). E, ainda: "Entende-se por imaginário, tanto o museu de
todas as imagens passadas ou possíveis quanto os procedimentos, mentais como
materiais, de produzir imagens” (PITTA, 1995, p.47).
Assim, o conceito de Imaginário com que trabalhamos não é concebido
como hipotético, fantasioso, ilusório, inventado, mas algo inerente à constituição
humana, fomentando a construção de si mesmo e do meio cósmico e social.
Portanto, durante a pesquisa, na interpretação e análise das informações,
utilizamos a metodologia da Convergência Simbólica, oferecida pela Teoria do
Imaginário, de Gilbert Durand. Para Danielle Pitta, em razão de o imaginário encontrar-
se "subjacente ao modo de ser e de agir dos indivíduos e das culturas, é através do seu
estudo que se pode chegar à compreensão do dinamismo que regula a vida social e suas
manifestações culturais” (PITTA, 199, p. 8).
7 Expressão em francês, utilizada por Durand, sem tradução exata em português.
7
2. Antropologia e Fraternidade Política.
Esta dissertação, que apresento à coordenação do mestrado em Políticas
Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará, faz parte do nosso esforço de
pesquisa sobre o princípio de Fraternidade como categoria política. Empenho este que
se junta ao de uma rede de pesquisadores, ligados a várias universidades do mundo,
coordenados pelo Prof. Dr. Antonio Maria Baggio, da Universidade Gregoriana de
Roma.
Portanto, este trabalho visa dar uma contribuição, no âmbito da antropologia
cultural, à reflexão sobre a categoria Fraternidade que, em seu sentido político, emergiu
no contexto da Revolução Francesa, ladeada pelos princípios de Igualdade e Liberdade.
Esta reflexão nos levará a uma releitura de metodologias pertinentes à
pesquisa de campo que desenvolvemos, vista sob o prisma do Princípio de Fraternidade,
provocando um diálogo entre a antropologia e a política, detectando, na
confraternização simbólica, as conexões entre os arquétipos selecionados e as
tendências do imaginário político sertanejo. Por isso, a categoria Fraternidade permeará
todo o percurso desta dissertação, qual tela onde o desenho se faz pintura, ou palco onde
a representação acontece.
Investigamos a existência, ou não, de um substrato comum de valores
políticos que possa ser trabalhado na direção de consensos, percebendo as principais
forças que atuam na semântica dos espaços públicos, da cidade de Santana do Acaraú,
município ao norte do Estado do Ceará, no Nordeste brasileiro. Nesse campo,
procuramos detectar as apreensões e ansiedades políticas, enquanto relações dos
8
cidadãos com os espaços da própria cidade, colhendo não só as ansiedades, mas os
espaços que oferecessem poder de superação da angústia coletiva.
Para alcançar estes objetivos utilizamos quatro abordagens: Análise de
discurso (literário), fazendo um exercício com a obra de Euclides da Cunha, Os Sertões,
que coadjuvamos com O Quinze, de Raquel de Queiroz e Cante lá que eu canto Cá, de
Patativa do Assaré, para percebermos os valores da cultura sertaneja do ponto de vista
euclidiano. Outro passo analisa a trilogia de Audifax Rios da qual, até o momento,
publicou os dois primeiros romances: Búfalos de Campanário e Migalhas para as
Serpentes, editados pela Editora Livro Técnico, em 2003 e 2006, respectivamente. Das
obras de Rios pudemos colher o sistema de significados, de lembranças históricas da
tradição que fomenta o modo de viver específico da sociedade de Santana do Acaraú
(CE), onde desenvolvemos pesquisa de campo, o ponto focal que escolhemos para
perceber a vida da Região do Vale do Acaraú.
Dando continuidade a nossa estratégia metodológica, durante os 13 meses
que passamos em campo, desenvolvemos as demais abordagens: a elaboração de
entrevistas com o prefeito municipal, com Audifax Rios e com três fundadores do
Conselhão, dois funcionários públicos, dois líderes religiosos cristãos, de Igrejas
diferentes, num total de dez encontros.
Na Observação Participante, além da convivência com a comunidade,
participamos de nove reuniões do Conselhão, nome dado pelos santanenses ao grande
conselho das comunidades; também estivemos presentes a quatro reuniões do Fórum
dos Assentados. Neste período efetivamos, também, as Consultas do teste AT9 entre
dois grupos. O AT9 é uma técnica desenvolvida por Yves Durand seguindo a Teoria da
Convergência Simbólica, de Gilbert Durand, na qual nos deteremos mais adiante.
9
Consultei oito jovens do grupo de arte e cultura da cidade; dez conselheiros de
diferentes atividades: dois militantes de partidos políticos, três assentados, um líder
religioso (cristão evangélico), dois funcionários públicos e dois comerciantes, num total
de dezoito pessoas.
Durante a convivência com as comunidades, participamos de festas e
eventos, notadamente, quatro festas juninas nas comunidades de Alvaça, Ipueirinha,
Rancho Alegre e Lagoa do Serrote, como também da festa da padroeira, Senhora
Sant’Anna, na sede municipal. Dois eventos de cunho político e social marcaram este
período: a posse das lideranças do Conselhão e o lançamento da moeda social
“Santana”.
Estas experiências foram maneiras de tentar alcançar as múltiplas imagens
formuladas pela cultura sertaneja. Convidamos, assim, o leitor a fazer um caminho,
conscientes de que somos feito crianças que querem alcançar a lua esticando os próprios
braços para o alto, como figurou Gilbert Durand: “A criança que estende o braço para a
lua tem espontaneamente consciência dessa profundidade ao alcance do braço, e se
espanta por não atingir imediatamente a lua: é a substância do tempo que a decepciona,
não a profundidade do espaço. Porque a imagem tal como a vida não se aprende:
manifesta-se” (DURAND, 1997, p. 411).
10
CAPÍTULO 1
EM BUSCA DE UMA NOÇÃO
Num ai tudo se apaga, e ela perde a noção de quanto a acerca.
(Orlando Gonçalves, Este Mundo dos Homens, p. 96)
Aonde vai [a jangada] como branca alcionebuscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
(José de Alencar, Iracema, p. 49)
O atual quadro geopolítico mundial, do ponto de vista formal, apresenta um
contínuo crescimento das democracias modernas, mas encontra-se aberta a questão da
qualidade dessas democracias, segundo a análise de Ropelato, em seu artigo Cenni su
partecipazione e fraternità (in BAGGIO, 2007, p. 168-169). Para a autora é possível
afirmar, hoje, que “a política democrática do século XX adquire definitivamente um
elemento que de agora em diante define, em termos gerais, a dimensão horizontal da
participação de massa” 8 já que, no ano 2000, chegamos a mais de 62% da população
mundial que exercitam a democracia eleitoral (BAGGIO, 2007, p.164). Com este
argumento, Ropelato sublinha que o contexto político atual indica novas perspectivas de
pesquisa que tratarão de aprofundar a questão da qualidade dessas democracias. Ao
relacionar a Democracia com as pilastras que a sustentam, Liberdade e Igualdade,
Ropelato afirma:
Se liberdade e igualdade contribuíram para determinar o conteúdo da forma democrática diante dos novos e velhos problemas que se colocam hoje em pauta, pode ser interessante verificar se existe um espaço no qual o conceito
8 Esta e todas as demais citações desta autora são traduções nossas.
11
de Fraternidade pode intervir com um aporte especifico
(BAGGIO, 2007, p. 166).
Chiara Lubich considera que a falta do desenvolvimento da Fraternidade
como categoria política condicionou negativamente a plena realização da Liberdade e
da Igualdade, e que o desenvolvimento da Fraternidade – no pensamento e na prática -
pode contribuir para dar uma afirmação autêntica aos princípios de igualdade e
liberdade 9. Uma pergunta importante, que se coloca para a nossa reflexão, gira em
torno do próprio conceito de Fraternidade. Qual é a idéia de Fraternidade que
utilizaremos neste trabalho? Como o princípio da Fraternidade irá permear esta
exposição, enquanto categoria científica, já que ainda não se consagrou um conceito
definitivo na literatura conhecida?
Oferecer uma reflexão que possa contribuir para a elaboração de uma idéia
mais precisa desse princípio é um dos objetivos deste nosso esforço. Antonio Baggio10
admite a dificuldade de conceituação da categoria Fraternidade porque esta tem
assumido diversas nuanças de acordo com o período histórico e as convicções culturais
onde se manifesta:
A Fraternidade foi vivida, como ainda hoje, na forma de ligação sectária, no âmbito de organizações veladas, ou que ladeiam níveis secretos a outros de caráter público - como a maçonaria – e que procuram potencializar a própria rede de poder econômico e político (...). Outro modo de entender a Fraternidade que opera uma forte alteração de conteúdo é a sua interpretação como fraternidade de Classe (...). Estas interpretações de Fraternidade não podem ser consideradas como ‘fraternidades diferentes’, isto é, como possíveis interpretações, ou, no aglomerado de idéias de fraternidade, mas são a sua própria negação (...) ( 2007 , p. 5).
9 Discurso feito por Chiara Lubich: “O espírito de fraternidade na política como chave da unidade da Europa e do mundo” em Innsbruck, 9 de novembro de 2001, por ocasião do Simpósio europeu denominado "Mil cidades para a Europa" – Escritos inéditos. Tradução nossa.10 A seguinte e todas as demais citações deste autor e da obra por ele organizada são traduções nossas.
12
O campo de afirmações que se abre sobre o princípio de Fraternidade é
amplo. As reflexões elaboradas por alguns autores que se têm dedicado a este tema
poderão oferecer elementos facilitadores para a compreensão deste princípio e nos
servirão no percurso desta dissertação.
1. Encontrando Referências
Baggio ressalta a manifestação histórica da idéia de Fraternidade ocorrida
durante a Revolução Francesa, na fase de 1789: pela primeira vez no período moderno a
idéia de Fraternidade é interpretada e praticada politicamente (2007, p. 5).
Nesse contexto, Baggio evidencia uma referência oficial à categoria de
Fraternidade na fórmula do juramento dos deputados da Federação Francesa, de 4 de
julho de 1790. Naquele período, a Constituinte decretou que os cidadãos deveriam jurar
que: "permanecerão unidos a todos os franceses através dos laços indissolúveis da
fraternidade". Assim, vemos surgir um conceito de fraternidade destinado a construir
uma identidade nacional. Baggio apresenta-o como efeito do movimento federativo:
(...) fazer nascer a própria França, superando as divisões entre as mil "Franças" que existiam naquele tempo. Assim a fraternidade tem um papel importante naquele ano, porque cria uma espécie de identidade nacional: os franceses são irmãos11.
11 Citação de escritos inéditos do Dr. Antonio Baggio, promotor da ‘Escola Civitas’, iniciativa do Movimento Político pela Unidade (MPPU), com o propósito de promover entre as novas gerações a cultura política da fraternidade − como caminho viável para a realização do conjunto dos ideais da política moderna: liberdade, igualdade e fraternidade − e a consciência da importância da participação pessoal na política, a partir da vivência no seu meio mais próximo: a Cidade. Por sua vez, a inspiração de fundo do MPPU é a valorização da fraternidade.
13
Esta idéia de fraternidade como categoria política, primeiro atrelada à
sedimentação do estado nacional francês, encontrará em outras experiências elementos
que lhe atribuirão um sentido mais universal:
A Fraternidade foi, ao invés, adquirindo, no curso da história, um significado universal, chegando a individuar o objeto ao qual essa pode referir-se plenamente, o objeto ‘Humanidade’- uma comunidade de comunidades – o único que poderia garantir a completa expressão também aos outros dois princípios universais de Liberdade e Igualdade (BAGGIO, 2007, p. 21).
A “Humanidade”, como objeto do olhar científico, e a comunidade humana
que pressupõe este objeto num conjunto relacional, coloca não só o princípio de
Fraternidade como referência, mas vai estimular nossa reflexão no âmbito da própria
antropologia.
Nas experiências de Franz Boas e de Bronislaw Malinowski - que publicou,
em 1922, uma etnografia antológica sobre a vida das sociedades indígenas nos
arquipélagos da Nova Guiné12 - podemos discernir um divisor de águas na história da
antropologia porque, desde então, o ofício do antropólogo nunca mais foi o mesmo:
antes de Boas e Malinowski, a maioria dos praticantes da antropologia era formada por
intelectuais - os pesquisadores-eruditos do século XIX - que escreviam sobre povos com
os quais raramente tinham tido contato. Suas descrições eram baseadas em informações
oferecidas pelos viajantes, missionários e administradores coloniais (LAPLANTINE,
1994).
Franz Boas e Bronislaw Malinowski são notáveis enquanto inauguradores
de uma antropologia que sai dos gabinetes e vai para o campo de pesquisa. Por isto,
ambos provocam uma mudança fundamental no âmbito da pesquisa antropológica. Boas
12 Trata-se da Obra “Argonautas do Pacífico Ocidental” de Malinoviwski.
14
ensina que no campo tudo deve ser anotado nos mínimos detalhes “desde o material
constitutivo das casas até as notas das melodias cantadas pelos esquimós, e isso
detalhadamente, e no detalhe do detalhe” (apud LAPLANTINE, 1994, p. 77).
Malinowski, por sua vez, não apenas refutou a "antropologia de gabinete",
ao escrever sobre os dados coletados pessoalmente em campo, como sistematizou, a
partir das suas experiências, um método de trabalho de campo que preconizava, na
introdução ao Argonautas, longos períodos de convivência do antropólogo com os
grupos estudados. O pesquisador deveria, se possível, morar nas proximidades de suas
casas, acompanhar de perto suas atividades diárias, desde as mais triviais até as mais
solenes, aprender a língua nativa para evitar intérpretes tendenciosos, enfim, absorver os
valores e sentimentos do grupo, observando cuidadosamente o que as pessoas fazem e
dizem.
2. Encontrando Experiências
Durante as pesquisas nos arquipélagos da Nova Guiné, Malinowski anota a
simetria das relações de troca, do estabelecimento das leis, e o fato de que o uso da
propriedade é garantido por um pacto de reciprocidade. Entre os Trobriandeses existem
duas populações: a costeira, que vive da pesca, e a interior, que vive da agricultura.
Esses dois grupos relacionam-se através da troca de seus produtos.
Aqui mais uma vez encontramos um sistema de serviços e de obrigações mútuas baseado em um acordo permanente entre as duas comunidades. Há um aspecto cerimonial na troca, a qual deve ser feita segundo um complexo ritual. Além disso, existe ainda um aspecto legal, um sistema de obrigações mútuas que força o pescador a retribuir sempre que recebe um presente do parceiro do interior ou vice e versa. Nenhum dos parceiros pode recusar um presente, ser parcimonioso com seu presente de volta e nem pode se atrasar. Qual é a força motivadora por trás dessas obrigações? A aldeia costeira e a do interior têm de confiar
15
uma na outra para o suprimento de alimentos. Na costa, os nativos nunca têm legumes em quantidade suficiente, enquanto o povo do interior tem sempre necessidade de peixe (MALINOWSKI, 2003, p. 25).
A relação entre as duas comunidades é vital: uma garante as proteínas e a
outra, as vitaminas, sais minerais e carboidratos. O pacto entre elas é de garantia da
vida. Nesta relação de parceria, podemos nos perguntar: onde reside o poder? Reside no
pacto. A “arma” de supervisão da fidelidade legal, do uso da propriedade, é a
reciprocidade. A concessão mútua de bens econômicos é a base do comportamento
social dos nativos. Essas trocas – segundo Malinowski – são muito bem avaliadas e
qualificadas pela supervisão de ambos os grupos.
Essa relação entre os grupos trobriandeses não é caracterizada somente pela
coerção das obrigações recíprocas. Entre os melanésios, o espírito de grupo,
solidariedade, orgulho da comunidade e do clã são traços fortes. A Kula (troca
cerimonial) tem um caráter religioso; a generosidade é fonte de prestígio social e a troca
quase sempre acontece numa relação de parentesco, entre amigos ou afins, como em
círculos concêntricos que se expandem. A propósito, a palavra Kula quer dizer Círculo.
Malinowski afirma que:
Dentro de cada comunidade os parceiros são agrupados em sub-clãs totêmicos. Destarte, a troca estabelece um sistema de laços sociológicos de natureza econômica, muitas vezes combinados com outros laços entre indivíduo e indivíduo, grupo de parentesco e grupo de parentesco, aldeia e aldeia, distrito e distrito (MALINOWSKI, 2003, p. 28).
A partir daí, a antropologia considera - além do despojamento do
antropólogo como metodologia para alcançar o “outro” - novos elementos espontâneos
de natureza antropológica como o pacto, a reciprocidade, a generosidade e como
prestígio, a parceria. Além disso, sobretudo a partir das experiências de Malinowski,
16
podem-se discernir claramente eventuais equívocos, frutos da incapacidade do senso
comum para reconhecer diferenças ou distinções entre Solidariedade e Fraternidade.
Um indivíduo abastado pode ser solidário com um menos favorecido. Esta
realidade é bem clara na conceituação que Marcel Mauss traz à tona sobre o princípio
de “esmola” no contexto da cultura dos Hauçás, na relação destes com os deuses e os
mortos:
A esmola é o fruto de uma moral da dádiva e da fortuna, por um lado, e de uma noção do sacrifício, por outro. A liberdade é obrigatória, porque Némesis vinga os pobres e os deuses do excesso de felicidade e de riqueza de certos homens que delas se devem desfazer: é a velha moral da dádiva transformada em princípio de justiça; e os deuses e os espíritos consentem que as partes que se lhes davam e que eram destruídas em sacrifícios inúteis sirvam para os pobres e para as crianças (1988, p.76).
As idéias de “justiça” e “sacrifício” atreladas a “esmola” podemos encontrar
também nas religiões hebraica, cristã e muçulmana.
Também o conceito de “solidariedade mecânica”, elaborado por Durkheim,
no contexto da divisão do trabalho social (DURKHEIM, 1999) onde os sujeitos se
identificam através da família, das associações religiosas, da tradição e dos costumes,
ainda é bem diferente da categoria de Fraternidade que estamos trabalhando. A idéia de
Fraternidade sugere a igualdade de condições entre os sujeitos, a simetria entre as
partes, que se traduz em participação e parceria no âmbito político e social e, em
comunhão, no âmbito religioso. Assim a Fraternidade contém necessariamente a
solidariedade, jamais o contrário.
Aquini, ao analisar a relação entre o princípio de Fraternidade e os Direitos
Humanos, afirma que:
17
Se consideramos as duas categorias de direito (Igualdade e Liberdade) contemplados na Declaração Universal dos Direitos Humanos o exercício da Fraternidade é aplicável a ambos... Ao mesmo tempo a Fraternidade não é reduzida ao conceito de solidariedade, porque esta última não implica a idéia de uma efetiva paridade dos sujeitos em relação e não considera como constitutiva a dimensão da reciprocidade (AQUINI, in BAGGIO, 2007, pág. 261).13
Nesta mesma direção, Baggio faz uma confrontação dos dois princípios no
âmbito da política:
(...) A Solidariedade – como muitas vezes foi historicamente realizada – consente que se faça o bem ao outro mesmo mantendo uma posição de força, uma relação ‘vertical’ que vai do forte ao fraco; a Fraternidade, ao contrário, pressupõe o relacionamento horizontal, a codivisão dos bens e dos poderes, tanto que sempre mais se está elaborando – na teoria e na prática – a idéia de uma ‘solidariedade horizontal’, que se refere à ajuda recíproca entre diferentes sujeitos, sejam estes pertencentes ao âmbito social, seja no nível da paridade institucional (BAGGIO, 2007, p. 261).
Assim, com esta distinção, poderemos discernir melhor os elementos de
Fraternidade presentes nas dimensões correntes do Mercado, do Estado e no ambiente
doméstico ou privado, espaços estes escolhidos por Jacques Godbout para repassar e
discutir os principais achados das pesquisas e reflexões sobre a dádiva na nossa
sociedade, continuando o empreendimento começado por Mauss e deixado por ele no
ponto onde o interrompeu, às portas da modernidade (GODBOU; CAILLÉ, 1999).
3. Encontrando Simetria Nas Trocas.
Estas relações, que sugerem espontaneamente um sistema social, político e
econômico, não foram uma elaboração teórica de intelectuais que organizam as relações
econômicas no gabinete, mas frutos de um sistema simbólico - e, portanto, cultural - que
atraiu os estudos de Marcel Mauss sobre as redes de dádivas tecidas no interior das
sociedades primitivas.
13 Tradução nossa.
18
É notável a primeira frase de Mauss, no Ensaio sobre a dádiva: “na
civilização escandinava e em muitas outras, as trocas e os contratos se fazem sob a
forma de presentes, teoricamente voluntários, mas na realidade obrigatoriamente dados
e retribuídos” (1988, p.51). A troca espontânea - que as civilizações citadas por Mauss
fazem questão de que seja assim entendida - tornou-se “obrigatória” por fazer parte de
um sistema social. Mas resta a representação do dom, do presente e a reciprocidade,
elementos de convergência social.
Mauss deixa bem claro que a relação de troca não acontece tão somente
entre indivíduos e, muito menos, entre coisas de valor econômico, mas além de afirmar
que o mercado é um fenômeno humano, ele não entende as trocas como fenômenos
individuais, mas sim coletivos, que estabelecem obrigações entre tribos, clãs, famílias
(MAUSS, 1988, p.53). Considera estas trocam entre si, sobretudo, amabilidades, festins,
ritos, serviços militares, danças, festas, mulheres e crianças, construindo um sistema de
prestações totais. Essas instituições apresentam elementos de simetria entre si e são
denominadas de irmandades. Como afirmou Mauss:
O tipo mais puro destas instituições parece-nos ser representado pela aliança das duas irmandades nas tribos australianas ou norte-americanas em geral, em que os ritos, os casamentos, a sucessão de bens, os laços de direito e de interesse, fileiras militares e sacerdotais, tudo é complementar e supõe a colaboração das duas metades da tribo. Os Tlingit e os Haida, duas tribos do Noroeste americano, exprimem fortemente a natureza destas práticas dizendo que ‘as duas irmandades se respeitam uma à outra’ (MAUSS, 1988, p. 56).
Mesmo se Mary Douglas (1985) insista em dizer que a dádiva gratuita não
existe e Anete Weiner “descreva minuciosamente o cálculo dos Trobriandeses para
saber se eles devem, e quando, introduzir no círculo da Kula os bens preciosos da
família, em princípio inalienáveis (...)” (GODBOUT; CAILLÉ, 1999, p. 130) o sistema
19
simbólico do dom, nestas sociedades, não perde o caráter convergente e consolidador da
comunidade, revelando o princípio de Fraternidade como elemento que amarra e une
todas as iniciativas de uma comunidade formando um sistema.
Estes sistemas possuem na sua base o caráter de reciprocidade que costura
as relações, vinculando-as. Estas ligações são fortalecidas pelas regras de dar e receber.
Assim explica Mauss:
(...) a prestação total não implica só a obrigação de retribuir os presentes recebidos; ela supõe dois outros igualmente importantes: obrigação de os dar, por um lado, obrigação de os receber, por outro. A teoria completa dessas três obrigações, desses três temas do mesmo complexo, daria a explicação fundamental satisfatória dessa forma de contrato entre clãs polinésios (...). Os Dayaks desenvolveram mesmo todo um sistema de direito e de moral acerca do dever que se tem de não deixar de partilhar a refeição a que se assiste ou que se viu preparar (1988, p. 67).
Encontram-se, também, as características das relações de dádiva primitiva
entre os modernos, sobretudo, nas análises entre os vínculos interpessoais trabalhadas
por Godbout e Caillé (1999). Nesta direção, João de Pina Cabral (2005) vai afirmar que,
após a Segunda Guerra Mundial, os departamentos mais importantes da antropologia,
como os britânicos, americanos e franceses, diante da mudança radical nas relações
internacionais, abriram suas pesquisas a novos terrenos, deixando para trás a associação
com os espaços coloniais ou sociedades “primitivas”, universalizando a disciplina e
descentrando o seu objeto.
Assim, Cabral, inspirando-se nos escritos de Emmanuel Lévinas, analisa
como a antropologia trata hoje um dos seus pontos cardeais: o conceito de “alteridade”,
no atual contexto político mundial imperialista com as mesmas forças colonialistas de
outrora. Cabral explora o conceito de crises de Fraternidade, aplicando-o ao contexto
dos conflitos humanos ligados à pós-colonialidade, em Moçambique. Ele analisa um
20
material de natureza literária, dois romances recentes, que desenvolvem o tema das
reações emocionais à guerra civil ocorrida na década de 1980. Nesse contexto, Cabral
vai associar o conceito de Fraternidade com a proximidade, a partilha comum de uma
terra, encontrando uma das motivações de crise da Fraternidade no desencontro entre as
dimensões telúrica e comunal:
Todo laço de intersubjetividade envolve a partilha de um espaço comum. Assim, quando o apego telúrico (o sentimento de pertencer a uma terra) e os laços comunais (o sentimento de pertencer a um povo) entram em conflito um com o outro, ocorre necessariamente uma crise de fraternidade (2005, p. 237).
Assim, para Cabral, o que faz nascer a crise de fraternidade na relação entre
os laços telúricos e comunais é o poder simbólico e a distribuição diferenciada de
recursos que este determina dentro do espaço comum.
Nesse sentido, para Bourdieu (1989), os instrumentos de poder simbólico
são essencialmente instrumentos de conhecimento e de construção do mundo objetivo,
que se manifestam através dos mais diversos meios de comunicação (língua, cultura,
discurso, conduta), garantindo àqueles que os possuem a manutenção e o exercício do
poder. Neste caso, o desequilíbrio das forças ocasionam as crises de Fraternidade.
4. Encontrando Confraternizações Simbólicas.
As relações possuem uma lógica precisa com poder de fomentar um sistema
de reciprocidade simbólica. Isto acontece pela própria capacidade humana de associar-
se. Alguns antropólogos afirmam que os animais, inclusive o ser humano, devem ser
estudados não individualmente, mas em interação com seus parceiros. Por exemplo,
Feuerbach entende "que o gato é essencialmente rateiro, a taturana que vive de
21
euforbiáceas, taturana euforbiácea, e o pulgão que vive de folhas, pulgão de folhas, e
que assim sejam chamados" (in GADAMER, 1984, p. 144).
Entretanto, os animais não estão relacionados somente com a
alimentação, mas com parceiros que lhes oferecem segurança e proteção − como a
mãe, o parceiro sexual − e o território.
Nesta direção, Fritjof Capra estabelece a concepção sistêmica da vida,
pautada numa visão da realidade baseada na consciência do estado de inter-relação
e interdependência essencial de todos os fenômenos - físicos, biológicos,
psicológicos, sociais e culturais. Por tal ponto de vista, todos os fenômenos devem
ser estudados a partir de suas relações. Uma árvore, por exemplo, ao ser
transformada em fenômeno relacional, deixa de ser raízes, caule, galhos, folhas e
frutos, passando a ser um fenômeno de troca de oxigênio e ambiente para uma
variedade de espécies, com as quais estabelece trocas específicas (CAPRA, 1982, p.
259).
Dessa forma, o que é observado nos seres vivos em geral é observado
no ser humano que comumente está relacionado com parceiros e, se quisermos
enxergá-lo por inteiro, não podemos isolá-lo do seu meio social, pois, como lembra
Feuerbach, “seria melhor denominar o "EU" de "EU-TU" e o homem de "HOMEM
DO MUNDO" ou da "NATUREZA” (in GADAMER, 1984). Então, se o ser humano é
compreendido desta maneira, é-lhe inerente a capacidade de perceber o outro e o
meio cósmico.
Estas conclusões abrem uma discussão delicada no âmbito da antropologia
tradicional que parte do pressuposto do confronto natureza/cultura. Mas, a perspectiva
metodológica de pesquisa que nos propomos segue as teorias estruturadas por Morin,
22
Bachelard e Durand os quais fazem a inversão, abandonando a perspectiva da disjunção
natureza/cultura para defender a sutura natureza/cultura (MORIN, s.d.; BARCHELARD,
2003; DURAND, 1997).
Esta dimensão do conhecimento, como vimos, vem ao encontro do princípio
de Fraternidade como uma categoria antropológica. Pois, se o ser humano é
intrinsecamente relacional, as produções humanas − como o conhecimento, as
elaborações simbólicas, os mitos e as realidades humanas mais palpáveis como a
política, a arte e a economia − poderão obedecer a esses ordenamentos. Deste modo, a
percepção coloca o ser humano em abertura para o outro e, na mesma linha, o símbolo,
dotado de convergência, está sempre voltado para algo ou alguém.
Nesta idéia, encontra-se a fenomenologia do conhecimento que se contrapõe
à perspectiva racionalista cujo esforço é o de construir conceitos fechados e que, muitas
vezes, não admite a pluralidade de interpretação dos objetos. Por sua vez, as teorias
empiristas colocam a percepção como fonte privilegiada do conhecimento, mas a
formula no campo da abstração, do pensamento, enquanto que no âmbito da
fenomenologia ela se diferencia de uma análise racionalista por perceber o objeto como
um diamante de sete faces, que não se olha no todo, mas uma a uma as faces que o
compõem.
Ainda assim, a teoria empirista admite a dialógica na constituição do
próprio conceito: percebendo-se uma face, esta pode ser redimensionada pelo
conhecimento da outra face, ou perspectiva, pois a percepção vai acontecer no momento
da relação entre as coisas. Nesta direção, Gaston Bachelard afirma:
Um filósofo que formou todo o seu pensamento atendo-se aos temas fundamentais da filosofia das ciências, que seguiu o mais exatamente possível a linha do racionalismo
23
ativo, a linha do racionalismo crescente da ciência contemporânea, deve esquecer o seu saber, romper com todos os hábitos de pesquisas filosóficas, se quiser estudar os problemas propostos pela imaginação poética. Aqui o passado cultural não conta; o longo trabalho de relacionar e construir pensamentos, trabalho de semanas e meses, é ineficaz. É necessário estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se há uma filosofia da poesia, ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem. (1984, p.01)
Por sua vez, esta imagem colocada na relação com as demais representações
revela numa perspectiva fenomenológica o conteúdo da realidade estudada.
A cultura ocidental nos educou a ver as coisas, a natureza, as
representações, os deuses, numa perspectiva individualizada. Por exemplo, a imagem
cristã de Deus foi, por séculos, a imagem aristotélica do "ser", portanto, distante,
individual e estático. Há algumas décadas a teologia cristã vem aprofundando a imagem
de Deus relacional, uno e trino, relação em si e com o cosmo.
Assim, acontece com outros elementos vistos por nós como dissociados,
mas que, olhados com maior perspicácia, revelam o contínuo movimento em função de
compor certa unicidade.
Essa unicidade é gerada pelas relações e pelas conexões. Portanto, o nosso
olhar pode visualizar primeiramente o uno e depois o fragmentado, ou seja, a percepção
deve partir do ponto de vista do uno para alcançar a relação existente entre os
elementos.
É nesta relação que se encontra a epifania da mensagem. Muitas vezes, não
a percebemos porque consideramos as coisas separadas, uma organização de coisas
estanques.
24
Roberto Da Matta traz a idéia da relação para o campo da antropologia
social, e mesmo antagonizando os elementos, ele os confronta para perceber melhor o
próprio objeto. Para ele:
(...) a partir dos conectivos e das conjunções poderíamos ver melhor as oposições, sem desmanchá-las, minimizá-las ou simplesmente tomá-las como irredutíveis. Afirmo - continua ele - visto ser isto um ensinamento básico da antropologia social que pratico que o estilo brasileiro se define a partir de um "&", um elo que permite balizar duas entidades e que, simultaneamente, inventa o seu próprio espaço. Vislumbrando a relação como um valor e como uma positividade, pode-se enxergar muito melhor a natureza da própria oposição (...) (1991, p. 28).
Cirlot, ao analisar a essência do símbolo, evidencia-o como algo relacional e
coloca a dinâmica do símbolo, o seu nascimento e dinamismo, nas seguintes
considerações analíticas:
a) Nada é indiferente. Tudo exprime algo e tudo é significativo. b) Nenhuma forma de realidade é independente: tudo esta em relação. c) O quantitativo se transforma em qualitativo em certos pontos essenciais que constituem a significação da quantidade; d) tudo é seriado; e) existem correlações de situações entre as diversas séries e de significado entre estas séries e os elementos que integram (Cirlot, 2002, p 32) 14.
Nesta direção concorre Gilbert Durand quando trabalha a convergência dos
símbolos. O significado do símbolo converge a outro elemento. Assim, Durand coloca o
símbolo em movimento, ressaltando a relação (DURAND, 1993).
Portanto, a natureza semântica do símbolo não se encontra velada somente
em si próprio, mas o seu significado acontece na relação. Numa análise é importante
perceber a relação para conhecer a distinção e a unicidade provocadas pelas conexões.
14 Tradução nossa, como em todas as citações deste autor.
25
A analogia procede por reconhecimento de semelhança entre relações diferentes quanto aos seus termos, enquanto a convergência encontra constelações de imagens semelhantes termo a termo em domínios diferentes de pensamento. A convergência é uma homologia, mais do que uma analogia. A Analogia é do tipo A é para B o que C é para D, enquanto a convergência seria, sobretudo, do tipo A é para B o que A é para B. Encontramos, de novo, o caráter de semanticidade que está na base de todo símbolo e que faz com que a convergência se exerça, sobretudo, na mentalidade de elementos semelhantes mais do que numa simples sintaxe (DURAND, 1993, p.43).
Lévi-Strauss, ao introduzir a obra de Marcel Mauss “Ensaio Sobre a
Dádiva”, dá relevância à relação entre os campos psicológico e sociológico,
evidenciando que um não está relacionado a outro, no âmbito de causa e efeito, mas que
o indivíduo traduz em si uma estrutura psico-sociológica, delineando uma
complementaridade entre uma e outra. É neste contexto que ele torna o conceito mais
preciso, o que é importante para a nossa reflexão:
(...) é da natureza da sociedade expressar-se simbolicamente nos seus costumes e nas suas instituições... As condutas individuais normais nunca são simbólicas por si mesmas: elas são os elementos a partir dos quais se constrói um sistema simbólico, que não pode ser se não coletivo (in MAUSS, 1988, p. 15)
Esta realidade coletiva é o lugar onde acontecem as composições
simbólicas, sejam elas narrações, sonhos, obras de arte. Estas acontecem na
dimensão da coletividade. Assim, Cirlot especifica a sintaxe simbólica quando
afirma que:
Os símbolos, toda vez que se manifestam, não aparecem isolados, mas se unem entre eles dando lugar às composições simbólicas, bem desenvolvidas no tempo (narrações), no espaço (obras de arte, emblemas, símbolos gráficos) ou no espaço e no tempo (sonhos, formas dramáticas) (...). A associação de elementos combina o significado deles. Portanto, a serpente coroada representa o coroamento das forças instintivas ou telúricas. Muitas vezes os emblemas se baseiam sobre a união em um determinado campo de vários símbolos simples (2002, p.49).
26
Podemos, então, dizer que esses símbolos confraternizam, já que
formam um sistema simbólico pela convergência de um para com o outro,
configurando uma relação de fraternidade. Por este motivo, esses símbolos
constroem modelos, paradigmas e arquétipos sociais que evidenciam a realidade
semântica que nos possibilita detectar a lógica da estrutura profunda das relações
sociais, invisível a olho nu, mas formalmente organizada nos recônditos do
inconsciente coletivo.
Considerações finais deste capítulo
Nosso trabalho desenvolve-se no âmbito da ciência antropológica, que teve
seus marcos importantes em Franz Boas e Bronislaw Malinowski, enquanto
inauguradores de uma antropologia que se envolve diretamente no campo de pesquisa,
concretizando o “Encontro com o Outro” enquanto relação pesquisador-objeto, com
suas conseqüências − estranhamento, educação do olhar para o diferente − abrindo a
ciência para os grandes temas, como a questão da alteridade e do etnocentrismo.
Assim, com as experiências de campo de Malinowski, pudemos
compreender que a viagem feita pelo antropólogo às terras do “outro”, seja este
entendido como as sociedades tribais - os primeiros "objetos" de estudo da antropologia - ou os
grupos inseridos nas sociedades urbanas contemporâneas, deveria conter um grande
despojamento de si mesmo, uma vocação para a identificação humana, apesar das
agruras e dificuldades que o contato em campo impõe.
Somente assim, ao final desta viagem ao coração das culturas estrangeiras, o
antropólogo poderá voltar para “casa” trazendo o Outro "revivificado" aos olhos dos
leitores de suas etnografias. Esta metodologia do despojamento e da inserção, conhecida
27
como "observação participante", nos oferece pistas para descobrirmos formas simétricas
na relação entre pesquisador e sujeito pesquisado, qualificando a atitude do pesquisador.
Desta maneira Malinowski indica a abertura, a universalidade componente da noção de
Fraternidade que utilizamos no campo de pesquisa e que queremos sintetizar nesta
dissertação.
Assim, neste capítulo, pudemos colher três elementos metodológicos
importantes para a reflexão da Fraternidade, como categoria antropológica: o encontro
com o Outro, a síntese participativa de convergência recíproca entre pesquisador e
objeto e a metodologia do despojamento para alcançar esse Outro.
Nesta direção, a Fraternidade vem entendida como o movimento vinculador
entre os membros de uma comunidade. O sistema simbólico do dom, como expusemos,
nas sociedades e grupos estudados por Malinowski, Mauss e nas pesquisas modernas
trabalhadas por Godbout e Caillé, não perde o caráter convergente e consolidador nos
grupos sociais, revelando o princípio de Fraternidade como elemento que amarra e une
todas as iniciativas de uma comunidade, num sistema de troca material e imaterial.
Neste sentido, os sistemas simbólicos seguem o mesmo movimento de
confraternização simbólica. Assim, a categoria de Fraternidade que trabalhamos nesta
dissertação assume o caráter de abertura universal, espaço de participação,
reciprocidade e simetria entre os elementos participantes, tanto no espaço mítico como
nas configurações dos sistemas simbólicos.
28
CAPÍTULO 2
AS CONFIGURAÇÕES SERTANEJAS
Terra nebulosa, nebulosamente apontada nos fantásticos mapas da mitografia.
(Olavo Bilac, últimas conferências e Discursos, p. 155).
Vimos, no capítulo anterior, que o princípio de Fraternidade não só
apresenta valor histórico e político, mas, através das pesquisas e experiências de
clássicos da antropologia, pudemos discerni-la como valor cultural.
Assim, dando continuidade à nossa reflexão, consideramos que a
Linguagem, como dimensão da condição humana, vem sendo objeto de estudos da
antropologia por formar um conjunto de recursos simbólicos que entram na
constituição do sistema social. Esses recursos simbólicos são constituídos pelas
representações individuais de mundos reais ou possíveis. Neste sentido, vamos
buscar uma compreensão da identidade sertaneja, no campo da Antropologia
Lingüística, não somente como um modo de pensar, mas, sobretudo, como uma
prática cultural, isto é, como uma forma de ação que ao mesmo tempo pressupõe e
realiza maneiras de estar-no-mundo. Nossa análise parte do pressuposto da
linguagem como aprofundou Marianelli, ao observar os estudos de Simone Weil
para quem “a linguagem é um fundamento, a ‘convenção’ base da sociabilidade
humana” (apud MARIANELLI, in BAGGIO, 2007, p. 80). Desse modo, tentaremos
perceber a cultura inerente aos sertanejos procurando acessar esta base da
constituição das relações sociais.
29
Para isso, esta busca acontecerá através da linguagem que se manifesta
por meio da articulação vocal − que aprofundaremos mais adiante − ou do uso da
palavra escrita. Neste momento, trabalharemos o uso da palavra escrita,
examinando algumas imagens apresentadas por Euclides da Cunha, em sua obra
épica Os Sertões (1920), que emergem como delineadoras dos alicerces da
consciência nacional brasileira, trazendo à tona a maneira de ser sertaneja.
Cada narração escrita deve ser compreendida no seu contexto; no caso
da obra Os Sertões, perceberemos alguns elementos da cultura da gente do sertão
nordestino, apreendidos por Euclides da Cunha durante as vicissitudes das batalhas
de Canudos. Em sua obra, o autor manifesta elementos importantes da identidade
política, social e cultural do sertanejo, através de imagens.
A experiência de Canudos se dá com uma motivação religiosa em um
contexto em que a Igreja Católica Romana encontrava-se estreitamente ligada ao
poder político. Ainda que se houvesse acabado de delinear uma maior distinção
institucional entre a República, proclamada em 1889, e a Igreja Católica Romana,
esta permanecia muito ligada aos poderes coronelísticos e afastada das populações
mais distantes dos grandes centros de então.
Neste contexto podemos aferir que, se a categoria Sertão é dotada da
idéia de oposição a Mar, torna-se emblemática a diferenciação feita por Roger
Bastide:
A própria religião modifica-se quando passa de uma zona para outra [do litoral para o sertão]. À beira mar, eis o grande apelo místico das igrejas cintilantes de ouro, das cabeças dos querubins alados, ou das cariátides voluptuosamente retorcidas sob o altar dos santos. No sertão, a religião é tão trágica, tão machucada de espinhos, tão torturada de sol quanto a paisagem; religião da cólera divina, num solo em que a seca encena imagens de juízo final, e em que os rubicundos anjos barrocos, negros ou brancos, cedem lugar aos anjos do extermínio. O penitente, vergastado pelas disciplinas, lava com sangue os pecados do
30
mundo, e o profeta substitui aqui o padre (BASTIDE, 1959, p.17).
Assim, no contexto da vida religiosa sertaneja, sintetizada acima por
Bastide, numa totalidade em que os deveres doutrinários dos cristãos católicos
resumiam-se aos sacramentos, com pouca ou inexistente formação ao seguimento
oficial dos preceitos, os fies católicos de então eram aliviados, esporadicamente,
por alguns sacerdotes que enveredavam pelas regiões difíceis dos sertões a celebrar
as desobrigas, no máximo uma vez por ano, abrindo assim as possibilidades para o
surgimento da vida religiosa católica popular e o aparecimento dos beatos.
Justamente neste espaço aberto pela ausência de uma religião institucionalizada, a
fala do imaginário dominante desaparece e o imaginário popular emerge mais
fortemente, revelando sua pungente capacidade interpretativa e criadora.
1. Messianismo e Resistência
Desse modo, era comum nos sertões o aparecimentos dos beatos, que
emergem não apenas devido a fatores religiosos mas, em geral, numa situação
política e econômica caótica geradora de uma atmosfera social desesperadora que
suscita nestes beatos respostas messiânicas ao quotidiano com nítidas
31
características de Juízo Final.15 A este propósito, escreve Maria Isaura Pereira de
Queiroz:
O messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do Bem sobre o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do Paraíso Terrestre, tratando-se, pois de um líder religioso e social (...). Obviamente que esse líder não é uma pessoa qualquer, mas sim alguém que revelou ter qualidades pessoais extraordinárias, provadas por meio de faculdades mágicas que lhe dão autoridade; trata-se, pois de um líder essencialmente carismático (QUEIROZ, 1977, p. 27).
Nesta perspectiva, apresentada por Maria Isaura Queiroz, podemos
discernir que o movimento sertanejo, ao redor do cearense Antônio Conselheiro, na
vila de Canudos (BA), teve uma forte conotação messiânica, pois este, desde a
década de 1870, era conhecido no sertão nordestino por suas prédicas
caracterizadas pelas profecias de “juízo final”. Sua aparência física semelhante à
dos profetas bíblicos e o seu discurso atraiam, ao seu redor, a gente miserável do
sertão.
O Professor Eduardo Diatahy Menezes, por ocasião dos 100 anos da
destruição da comunidade e do Movimento de Canudos (1887-1987), assim
escreve:
15 Expressão pautada pelos escritos religiosos Judaico-Cristãos que anuncia um salvador para uma situação social limite. Por exemplo, nas profecias de Isaías: "O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e uma luz brilhou para os que habitavam o país tenebroso. Multiplicaste o povo, aumentaste o teu prazer. Vão alegrar-se diante de ti, como na alegria da colheita, como no prazer dos que repartem despojos de guerra. Porque como no dia de Madjiã, quebraste a canga de suas cargas, a vara que batia em suas costas e o bastão do capataz de trabalhos forçados. Porque toda a bota que pisa com barulho e toda capa empapada de sangue serão queimadas, devoradas pelas chamas. (...) Porque nasceu para nós um menino, um filho foi dado: sobre seu ombro está o manto real, e ele se chama "Conselheiro Maravilhoso" (...) Grande será seu domínio, e a paz não terá fim sobre o trono de Davi e seu reino, firmado e reforçado com direito e a justiça, desde agora e sempre. O zelo de Javé dos exércitos é quem realizará isso". (Isaías, 9). Já o livro do Apocalipse, coloca a pessoa de Jesus como guerreiro que vem formar um novo exército de santos e garantirá a todos que atenderem a sua mensagem de salvação a imortalidade por mil anos: “(...) parecia um filho de Homem, vestindo uma longa túnica; no peito, um cinto de ouro; nos cabelos brancos como lã, como neve; os olhos pareciam uma chama de fogo; os pés eram como bronze de forno, cor de brasa; a voz era como um estrondo de águas torrenciais; na mão tinha sete estrelas; de sua boca saía uma espada afiada, de dois cortes; seu rosto era como um sol brilhando ao meio-dia (...). Não tenha medo eu sou o Primeiro e o Último. Sou o Vivente. Estive morto, mas estou vivo para sempre. Tenho as chaves da morte e da morada dos mortos". (Apocalipse, 1). Estes escritos estavam bem presentes nos discursos de Antônio Conselheiro e criaram, ao seu redor, uma atmosfera apocalíptica através das imagens do Juízo Final.
32
No vasto e generalizado abandono das populações sertanejas e no vazio produzido no campo religioso por uma Igreja que em grande parte perde o seu carisma e adere aos privilégios do poder é que surge para o povo do sertão nordestino a imensa figura do Peregrino e Profeta Antônio Vicente Mendes Maciel. A sua ação ocupa cada vez mais os espaços disponíveis, invadindo o domínio do sagrado com sua palavra e seu exemplo, e o campo econômico com a fuga da mão de obra tradicional que se transforma em seu séqüito. Dentro da cultura do fim do mundo e de uma religiosidade que realiza percursos dialéticos entre Arché e eschaton ele concretiza seu sonho utópico. Isso desperta apreensões e conseqüente ação controladora tanto das elites baianas (hierarquia eclesiástica, potentados rurais e políticos) quanto das autoridades centrais. Mesmo em âmbito local articulam-se poderosos e autoridades (civis e do clero) no sentido de reprimir aquela experiência "fanática" e "perigosa" para a ordem instituída (MENEZES, 1987, p.12)
Por isso, o Conselheiro foi hostilizado desde o início da experiência
político-religiosa da Comunidade de Canudos, em 1893, em um lugarejo
paupérrimo, nas margens do rio Vasa-barris, no sertão baiano. O Conselheiro,
como era conhecido, renomeou o lugar dando-lhe o nome de Monte Santo16·. Em
pouco tempo um fluxo constante de romeiros para lá se dirigiu.
Em seus discursos, o Conselheiro rejeitava a República, considerava-a
coisa satânica por ter instituído o casamento civil. Para ele tratava-se, então, de
constituir outra sociedade, onde os princípios dogmáticos da religião seriam
estritamente obedecidos. É neste contexto que vai se delinear toda a experiência da
comunidade alternativa de Canudos, que procurou fazer opções em meio a uma
situação de extrema pobreza, para sanar a própria miséria econômica e religiosa.
16 O monte vai emoldurar o chão sagrado da experiência de Canudos, refazendo-se, simbolicamente, a Jerusalém celeste: monte = do alto, de cima aspecto assenssorial e desce sobre o mundo como experiência divina - Monte Santo. Um escrito em Lactâncio, do século IV, sobre o grupo religioso que tinha diante de si, demonstra a atmosfera que se cria no campo mítico quando formado o grupo de fiéis em torno do novo messias eles passam a sentir-se perseguidos pelas autoridades a quem consideram como o Anticristo ou de estar a serviço do próprio demônio. Refugiam-se em algum lugar - a Nova Jerusalém - e preparam-se para resistir ao Mal. Ali se dará a batalha final. Não se importam em morrer porque o messias lhes garante vida eterna caso sejam atingidos. Viverão ao lado do senhor por outros mil anos: "Esse louco - o Anticristo - na sua cólera implacável conduzirá um exército e cercará a montanha onde os justos procurarão refúgio. E quando esses se sentirem cercados, clamarão pelo Senhor por auxílio e Deus há de ouvi-los e enviar-lhes-á um libertador (...) e toda uma multidão de ateus será aniquilada e correrão rios de sangue." (verbete Montagna, in CIRLOT, 2002, p.318 )
33
Foi este o objeto do olhar de Euclides da Cunha, enviado pelo jornal O Estado de
São Paulo, em setembro de 1897, para cobrir os acontecimentos das batalhas de
Canudos. Posteriormente, Euclides da Cunha transformou os relatos de Canudos
em tema do livro que foi publicado, em 1902 , sob o título de Os Sertões.
Em sua obra, Cunha viu também a oportunidade de estudar e conhecer o
Brasil. Concentrou sua atenção em revelar o conflito entre o litoral brasileiro da
época − urbano, pré-industrial, semi-capitalista, europeizado, predominantemente
branco e racionalista − contra o sertão mestiço, povoado por uma "sub-raça"
miserável e sujeita. Achava que a campanha contra Canudos simbolizava, de certa
forma, a tentativa de "civilizar o Sertão".
2. Alguns Contornos dos Escritos de Euclides da Cunha
O conjunto de imagens, proposto por Euclides da Cunha em seu épico, Os
Sertões, constrói a sua maneira de perceber o Sertão nos vários aspectos da vida social,
política e cultural, pois é por meio do imaginário – como o concebe Durand (1997,
p.57) - que o ser humano enfrenta a angústia original decorrente da emergência da
consciência do tempo e da morte, ou seja, as elaborações imaginárias são defesas contra
a consciência do limite da "finitude". Limite este experimentado, em campo, por Cunha
e transformado em substância literária, portanto, em imagem. Assim sendo, seus
escritos não foram somente um relato jornalístico, ou histórico e geográfico, mas uma
necessidade do espírito humano de representar uma experiência vivida.
34
Neste caso, não só o autor construiu os sertões, mas foi também
construído por estes. Prova disso é o caráter de denúncia que tomam os seus
escritos contra as injustiças feitas à comunidade de Canudos. Neste mesmo
sentido, analisemos as últimas palavras de Os Sertões:
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rangiam raivosamente cinco mil soldados (CUNHA, 2002, p. 532).
Não obstante este trecho ser o desfecho final dos episódios acontecidos em
Canudos, esse tom vai permear toda a obra, pois Euclides da Cunha publicou Os
Sertões cinco anos após a destruição do arraial. Portanto, ele escreveu este famoso épico
partindo desta imagem desoladora. As imagens dramáticas das batalhas de Canudos vão
determinar suas percepções do sertão e do sertanejo.
Neste entrecho, o desejo fundamental do imaginário é reduzir a angústia
existencial ligada às experiências negativas do tempo, pois as produções imaginárias,
enquanto manifestações da função simbólica, segundo Durand, têm fundamentalmente
duas funções: a de organizar o universo sócio-cultural criando sentido para o mundo, e
garantir a “reequilibração” antropológica (DURAND, 1993).
Diante dos sofrimentos atrozes provocados pela guerra de Canudos,
Euclides da Cunha transformou os fatos em substância literária, cheios de imagens
e símbolos, para, assim, organizar na sua interioridade os espasmos vividos, pois −
segundo a metodologia da convergência simbólica − ao representar um fato, uma
angústia, o ser humano, pelo próprio poder do cogito, passa a dominar a situação
representada. Daí, Cunha evidenciar o combate em toda a sua obra porque, como
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bem afirma Gilbert Durand: “(...) figurar um mal, representar um perigo,
simbolizar uma angústia, já é, pelo poder [maîtrise] do cogito, dominá-los” (1997,
p.135).
Nesta perspectiva, farei um recorte para percebermos o significado que
Euclides da Cunha atribui ao sertanejo, na sua relação com a natureza, e as
vicissitudes deste frente à realidade do semi-árido. Na primeira parte da sua obra,
Euclides da Cunha descreve a terra sertaneja como espaço geográfico, relevo e
clima prenhes de semântica. Vejamos, no quadro abaixo, a seqüência dos capítulos
distribuídos por Euclides da Cunha. Reproduzi a primeira parte do índice de Os
Sertões para perceber como se configuram os temas.
Quadro nº 1
Primeira Parte do ÍNDICE de OS SERTÕES
TÍTULO PAG TÍTULO PAG
Introdução – Adelino Brandão
13 Cap.IV
As secas 48
Nota preliminar 17 Hipóteses sobre a gênese das secas 49
A terra
Cap. I
As caatingas 52
Preliminares 21 O juazeiro 56
A entrada do sertão 27 A tormenta 58
Terra ignota 27 Ressurreição da Flora 58
Em Caminho para Monte Santo
29 O umbuzeiro 59
Primeiras impressões 31 A jurema 60
Um sonho de geólogo 34 O sertão é um paraíso 60
Cap. II
Do alto de Monte Santo 37
Manhãs sertanejas 61
Do alto da Favela 39 Cap. V
Uma categoria geográfica que Hegel não citou.
62
Cap. III
Do clima 41
Como se faz um deserto 65
Higrômetros singulares 45 Como se extingue o deserto 68
O martírio secular da Terra 70Índice de CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Ed. Martim Claret, 2002.
36
Enquanto nos capítulos I, II, e III o autor traça aspectos técnicos do espaço
geográfico, no IV capítulo expõe características específicas da flora do semi-árido
baiano. Observemos que na reprodução do índice no quadro acima, na seqüência
destacada em negrito, cada tema dá sentido ao outro; concatenados, estes apresentam
uma seqüência lógica e a confraternização entre eles revela uma mensagem. Essa
seqüência vem inaugurada pela seca, seu nascimento e sua caracterização, depois situa
a vegetação apresentando duas componentes que não se congregam ao acaso,
configurando uma paisagem cuja fisionomia é uma composição que será nosso objeto
de estudos no âmbito da confraternização simbólica: a Caatinga e o Juazeiro.
Em seguida, Cunha não segue a seqüência da descrição da vegetação, mas
apresenta uma ruptura entre uma narração e outra. Este corte descritivo acontece com a
narração da “Tormenta”, a chuva. Poderia continuar a descrição da vegetação de modo
linear: as caatingas, o juazeiro, o umbuzeiro e a jurema, mas não o faz; interrompe,
repentinamente, este traçado e narra uma tormenta.
Após a tempestade, ele retoma a explicação da vegetação, apresentando o
umbuzeiro e a jurema contextualizados numa nova paisagem, não mais de seca, mas
dentro de uma relação de reciprocidade entre tempo e espaço. A dimensão do tempo
emerge quando Cunha coloca os dois vegetais após terem sofrido o princípio ativo da
“Ressurreição da Flora”. Enquanto dimensão espacial, o umbuzeiro e a jurema são
inseridos numa totalidade transformada em “Manhãs Sertanejas”.
Esta disposição dos temas, apresentada por Euclides da Cunha, revela-nos
uma opção literária que configura um conjunto de imagens. Após a interrupção, com a
tormenta, o autor mistifica as árvores: o umbuzeiro vem apresentado como árvore
37
sagrada, a jurema manifesta o arquétipo da mãe, inseridos em um sertão transfigurado
num paraíso de delícias chegando à plenitude nas manhãs sertanejas.
3. A Semântica da Confraternização Temática
A compreensão da confraternização dos temas revelou-nos não só a
estrutura de um sistema narrativo correlacionado entre as séries de títulos, mas
também a semântica de base da configuração temática formulada pela
confraternização, isto é, o significado da série: antes da tempestade, nota-se o
princípio contrário à vida orgânica, contra a qual lutam a Caatinga e o Juazeiro, a
terra mãe sendo torturada:
Ajusta-se sobre os sertões o catitério das secas; esterilizam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado, ruge o nordeste nos ermos; e como um silício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos (...) (CUNHA, 1995, p. 54).
Nos escritos de Euclides da Cunha, as secas tomam a força agregadora da
imagem do monstro, que representa a força cósmica em relação imediata com o caótico,
com as forças não formais, qual delineamento de um arquétipo presente como imagem
de angústia. Para Cirlot, no plano psicológico, as imagens do monstro aludem às
dimensões mais inferiores da geologia espiritual (CIRLOT, 2002, p.321). Esta imagem da
seca, qual monstro que atenta contra a vida, é evidenciada na agressão sofrida pela
Caatinga. As formas espinhadas vão simbolizar enfrentamento e o caráter seco e
retorcido vai revelar-se como imagem da força e da virilidade.
Neste caso, saltam aos nossos sentidos os arquétipos do monstro que alude à
angústia e à ansiedade, de um lado, e, de outro, o espinho que guarda a imagem
38
arquetípica da espada, portanto, a força e a virilidade. Tais imagens foram,
sobremaneira, empregadas ao aplicarmos o teste AT9 17 nos grupos da cidade de
Santana do Acaraú, que aprofundaremos mais adiante.
Assim, a caatinga:
(...) com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobram-se-lhe na frente léguas e léguas, imutáveis no aspecto desolador: árvore sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, encruzados, apontado rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante (...). Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo aspérrimo. Mas nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, às vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados - sobre o depauperamento geral da vida (...) (CUNHA, 1995, p.56).
Ao mesmo tempo, Cunha trabalha a categoria de Resistência, que vai
permear toda a sua obra. Contra o monstro coloca-se a virtude heróica, dando
significado para as napáleas e cactos que “entram na categoria de fontes vegetais”; as
folhas secas do juazeiro tomam cor de ouro e ao anoitecer seus frutos dão a ilusão de
círios enormes. Nota-se aqui o arquétipo da luz contra as trevas.
Na imagem do sertão paradisíaco, o autor coloca dois elementos: o
umbuzeiro, como arquétipo masculino, e a jurema, que exprime o arquétipo da mãe. Por
terem sido contextualizados após a intervenção da tormenta, dos relâmpagos, ambos
17 Teste Arquétipo de nove elementos, criado pelo psicólogo Yves Durand, a partir da obra do antropólogo Gilbert Durand, como instrumento metodológicos de pesquisas sobre o imaginário, do tipo projetivo, para revelar o tipo de estrutura do imaginário em indivíduos e ou/grupos. Através de nove (9) estímulos arquetipiais, o sujeito testado elabora um desenho e um texto, criando quase uma “obra total” a ser analisada com a finalidade de verificar a presença das estruturas descritas na teoria de Gilbert Durand.
39
revestem-se de transcendência, visto que, na lógica dos símbolos, os raios são dotados
de virtude espiritual que desce dos céus a terra.
O umbuzeiro torna-se a árvore sagrada, profundamente enraizada com a
cultura do sertão, notando-se, aqui, o encontro do divino com o profano, do céu com a
terra, síntese cósmica e, sobretudo, símbolo do ser humano sertanejo: religioso, astuto,
criativo e inteligente, valente, sempre em posição de enfrentamento:
É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto - e veio descaindo, pouco a pouco numa intercadência de estios flamívomos e invernos torrenciais, modificando-se à feição do meio, desinvoluindo até preparar-se para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas, das reservas guardadas em grande cópia nas raízes (CUNHA, 2002, p.59).
A jurema aparece como liderança afetiva, feminina, fecunda nas flores em
cachos e que, como mãe, acolhe os caboclos, fornecendo-lhes, gratuitamente, a bebida
que os revigora, oferecendo-nos a idéia de refúgio e proteção.
Euclides da Cunha vai trabalhar a sucessão do evento paradisíaco no tema
Manhãs sertanejas que toma a força de final feliz, numa cascata de elementos vitais
como os pássaros, os frutos, e o perdão doado - sem mágoas - pela travessia de
sofrimentos, onde tudo é paraíso, canto e festa, onde tudo tem valor por estar iluminado
pelo sol e brilhante pela luz. Assim como para a maior parte das culturas dos povos, o
sol é de princípio ativo, neste caso aparece também dotado de virtude heróica:
Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor, engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam-se os ares numa palpitação de asas, célebres ruflando. - Sulcam-nos as notas
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de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes (...) enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeão pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta(...). Assim se vão os dias (CUNHA, 2002, p. 61).
Assim, o imaginário de Euclides da Cunha construiu um todo semântico,
prenhe de significados. Nesta disposição, vemos que os elementos simbólicos
confraternizam formando um sistema que se organiza oferecendo luzes para o
conhecimento do agir sertanejo.
As narrações e as alegorias do quarto capítulo de Os Sertões e o modo como
estão dispostas se revelam como uma espécie de maquete mitológica de tudo aquilo que
aconteceu em Canudos e da cultura daquelas mulheres e homens sertanejos.
O autor caracteriza o ser humano forte do semi-árido como portador das
virtudes da caatinga e do juazeiro, do umbuzeiro e da jurema, estabelecendo uma
dicotomia entre o ser humano sofrido do semi-árido e o sofredor do litoral: “O
sertanejo é, antes de tudo, um forte - escreve Euclides - não tem o raquitismo
neurastênico dos mestiços do litoral” (CUNHA, 2002, p. 118). 18
Nesta contradição entre o árido e o banhado, Cunha vai caracterizar o
sertanejo como combatente. A imagem da batalha de Canudos infundiu-lhe tanta força
que em tudo ele vai exprimir luta, combate e guerra. A natureza versus natureza, o
sertanejo versus natureza, o sertanejo versus o monstro da seca.
18 Neste sentido, Jean-Eduardo Cirlot define o terreno árido como expressão do clima anímico “é sinal de virilidade, de enamoramento, de predomínio do elemento fogo. O símbolo do Rei marinho é muito claro quando este personagem invoca 'quem me libertará das águas e me levará ao estado seco, será recompensado com riquezas eternas'. As águas simbolizam a existência degradada, submetida ao tempo, ao efêmero, expresso pela umidade (feminino). O estado enxuto é uma representação da imortalidade; portanto, os espíritos ansiosos em obter ou em recuperar a própria força vão para o deserto, uma paisagem de perfeita sequidão, portanto, o homem de caráter enxuto, ao contrário do que parece e do que se acredita, é um ser de intensa passionalidade (...)” (Dizionario dei simboli, 2002, p.487).
41
4. Sertanejos e Resistências
No combate, Cunha vê o sertanejo como cavaleiro chucro e deselegante.
O Vaqueiro vai descrito num perfil heróico:
O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo, exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro, calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas as pernas e subindo até as virilhas articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado - é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo (2002, p. 119).
Mas, este guerreiro, comparado aos cavaleiros da idade média, é
evidenciado com sensibilidade na disputa. No tópico Em Desafios, Euclides da Cunha
reporta um repente no qual - em notas de rodapé - vai ser evidenciada a estrutura
heróica na ritualização da competição. Esta tendência agregadora é uma imagem cuja
matriz são os cavaleiros da Idade Média.
Nos intervalos travam-se os desafios. Enterreiram-se, adversários, dois cantores rudes. As rimas saltam e casam-se em quadras muitas vezes belíssimas. Nas Horas de Deus, Amém,/Não é Zombaria, não!/Desafio o mundo inteiro Cantar nesta função!/O adversário retruca logo, levantando-lhe o último verso da quadra: Pra Cantar nesta função,/Amigo, meu camarada,/Aceita teu desafio/O fama deste sertão!É o começo da luta que só termina, quando um dos bardos se engasga numa rima difícil e titubeia, repenicando nervosamente o machete, sob uma avalancha de trisos saudando-lhe a derrota. E a noite vai deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as barras venham quebrando e cantem as sericóias nas impueiras, dando o sinal de debandar ao agrupamento folgazão (CUNHA, 2002, p. 129).
42
Em nota de rodapé, encontramos na obra, que ‘destalado’, ‘brabo e corado’,
‘bala e onça’, ‘detabocado’, e outros são termos comuns significando todo o indivíduo
forte e hábil (CUNHA, 2002, p. 129).
Cunha narra as estratégias do sertanejo para perceber a natureza e as
possibilidades de chuva, caracterizando-o como estrategista, conhecedor da terra e,
essencialmente, religioso. Nota-se, aqui, a semelhança narrativa quando ele
descreve as virtudes do Umbuzeiro já contempladas nestas páginas, mas que
retomo para uma maior clareza, enquanto descrição de uma tendência cultural que
delineia uma configuração que denominamos Umbuzeiro. Euclides da Cunha
demonstrará a preparação do sertanejo para o combate com a natureza. Ele oferece a
imagem da seca como um rival do ser humano do sertão que o enfrenta e de quem não
foge, remetendo-nos à resistência dos últimos instantes de Canudos. Vejamos o
seguinte quadro comparativo:
Quadro nº 2UMBUZEIRO O SERTANEJO
“Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez de talhe mais vigoroso e alto - e veio descaindo, pouco a pouco numa intercadência de estilos flamívomos e invernos torrenciais (...)”
“Aguarda paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e, no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último. Aquele dia é para ele o início dos meses subseqüentes. Retratam-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário, o sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças. A seca é inevitável.”
(...) modificando-se à feição do meio, desinvoluindo até preparar-se para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas, das
“Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e
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reservas guardadas em grande cópia nas raízes.
É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros (2002, p.63).
tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas. (...)Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve - a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras(...)(CUNHA, 2002, p. 132).
Assim começa a batalha, o fogo maltrata a terra, os golpes da natureza
voltam-se contra o ser humano, tudo é combate sem tréguas: luz e sombras nefastas
colocam o sertanejo como vítima.
Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes (...). Mas os céus persistem sinistramente claros; o sol fulmina a terra, progride o espasmo assombrador da seca.
(...) A natureza não o combate (o sertanejo) apenas com o deserto. Povoa-a contrastando com a fuga das seriemas (...)
(...) Mas, o sol se esconde no poente, a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a, de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar de novo, à tarde, com intermitência, dolorosa (CUNHA, 2002, p.134).
Nesta perspectiva, é interessante notar que Raquel de Queiroz segue a
mesma tendência de representação do ser humano no sertão quando, em 1930, escreveu
seu primeiro romance, O Quinze, que retrata a seca de 1915.
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Nessa obra, a autora mostra sem amenidades a realidade crua e dura do
sertanejo, de modo a polir com nitidez a gravidade da realidade limite, da evidência da
morte para dar relevo ao enfrentamento do sertanejo. O imaginário de Euclides da
Cunha faz um movimento semelhante mostrando não uma noite iluminada, mas a
escuridão nefasta que afoga o ser humano.
Assim, Queiroz vai identificar o ser humano com a própria escuridão; neste
caso, sombra e gente tornam-se adjetivos a contemplar a fuga veloz da luz, gente
vencida pelo combate, gente sem luz, gente enterrada pelas cinzas da noite escura:
O sol poente, clamejante, rubro, desaparecia rapidamente com um afogado, no horizonte próximo. Sombras cambaleantes se alongavam na tira ruiva da estrada, que se vinha estirando sobre o alto pedregoso e ia sumir no casario dormente do arruado. Sombras vencidas pela miséria e pelo desespero que arrastavam passos inconscientes, na derradeira embriaguez da fome. Uma forma esguia de mulher se ajoelhou no chão vermelho. Um vulto seco se acocorou ao lado, e mergulhou a cabeça vazia entre os joelhos agudos, amparando-a com as mãos. Só um menino em pé, isolado, olhava pensativamente o grupo agachado de fraqueza e cansaço. Sua voz dolente o chamou, num apelo de esperança. E sua mão se destacou no fundo escuro da tarde apontando o casario, além. Mas, a única aparência de vida, no grupo imóvel, era o choro intermitente e abafado de uma criança. Lentamente, o menino se voltou. Ainda esperou algum tempo. Ainda repetiu seu apelo e seu gesto. Depois saiu devagar, de cabeça erguida, os olhos fitos nos telhados pretos que se espalhavam lá longe. Leve e doce o Aracati soprava. E lentamente foi se abatendo sobre eles a noite escura, pontilhada de estrelas, seca e limpa como um manto de cinzas onde luzissem faúlhas (QUEIROZ, 1974, p. 77).
5. Caatinga, Juazeiro, Umbuzeiro e Jurema em configurações.
Um último passo deste capítulo é a descoberta da manifestação, nos escritos
de Euclides da Cunha, do Regime Diurno da metodologia da Convergência Simbólica
de Gilbert Durand.
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Trata-se da elaboração de sistemas de classificação dos elementos do
imaginário. Durand os denominou de dois modos: regime diurno e regime noturno
(DURAND, 1997).
No Regime Diurno, segundo Durand, o imaginário permanece em estado de
vigília, de armas na mão, combatendo pela espada ou pela fuga diante do tempo,
tentando obter a vitória sobre o destino e a morte, neste caso, trata-se da estrutura
heróica. Estas características são muito fortes na visão que Euclides da Cunha tem do
sertanejo.
Este regime é geralmente caracterizado por imagens que se polarizam em
torno dos esquemas ascensionais, diairéticos (da separação) e do arquétipo da luz.
Raquel de Queiroz também expressa muito bem este regime quando descreve a projeção
feita por uma das personagens numa noite no sertão seco. Neste trecho, vem à luz a
estrutura mística do imaginário delineada pela atmosfera de repouso, vontade,
contemplação e fruição de vida.
Vicente fumava, à janela. Onze horas, meia noite, sabia lá? Quem pensa e fuma, depressa esquece o mundo, as horas e até o céu todo cheio de estrelas que brilham à toa, sem se preocuparem com o tempo que corre e com a manhã próxima que lhes virá apagar o lume e as arrancar da cisma... Uma multidão de coisas tumultuosas, desconhecidas, o alvoroçava - confusas recordações, uma espécie de doce saudade! Uma vontade obscura e incerta de ascender, de voar! Um desejo de se introduzir a grandes passos na imensa treva da noite, e a atravessar, e a romper esquecidos das lutas e trabalhos, e penetrar num vasto campo luminoso onde tudo fosse beleza, e harmonia, e sossego. Desejo de se integrar numa natureza diferente daquela que o cercava, de crescer, de subir, de bracejar num emaranhado de ramos, de se sentir envolto em grandes flores macias, de derramar seiva, a seiva viva e forte que o incandescia e tonteava. Mas, o cansaço o amolentava (QUEIROZ, 1974, p.79).
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No sonho acordado, a personagem projeta uma imagem que fomentará um
enfrentamento da situação concreta e objetiva de seca e de morte. Os termos "ascender",
"voar", "grandes passos" e "romper" são características do Regime Diurno e do
arquétipo da Luz contra as Trevas. Neste sentido, Gilbert Durand salienta:
O scheme19 ascencional, o arquétipo da luz uraniana, e o scheme diairético parecem, de fato, serem o fiel contraponto da queda, das trevas e do compromisso animal ou carnal. Estes temas correspondem aos grandes gestos constitutivos dos reflexos posturais: verticalização e esforço de levantar o busto, visão e por fim, tato manipulatório permitido pela libertação postural da mão humana (DURAND, 1997, p. 124).
Assim, um exemplo forte das características do Regime Diurno acontece
quando Euclides da Cunha descreve a força velada existente no sertanejo:
(...) É o homem permanentemente fatigado (...). Entretanto toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta-lhe o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto (...) (CUNHA, 2002, p.116).
Em seguida, ele descreve esse sertanejo em gestos ascensionais, de elevação
e enfrentamento:
(...) e a cabeça firma-se-lhe alta sobre os ombros, possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte, e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta
19 Gilbert Durand explica que o Scheme “é a generalização dinâmica e afetiva da imagem. Ele faz a junção entre os gestos inconscientes da sensória-motricidade, entre as dominantes reflexo (que dizem respeito à reflexologia) e as representações. Trata-se da dimensão mais abstrata da imagem, mais próxima da intenção e do gesto, do que da representação. Por exemplo: o reflexo postural (verticalidade da postura humana), induz dois schemes: o da verticalização ascendente, e o da divisão (visual ou manual); ao reflexo da deglutição, correspondem os schemes da descida (percurso interior dos alimentos) e do aconchego na intimidade (o primeiro alimento do homem sendo o leite materno, acompanhado da relação afetiva que é a amamentação) ( 1997, p.61).
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inesperadamente, o aspecto dominador de um titã, acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de forças e agilidade extraordinárias (CUNHA, 2002, p. 116).
Os trechos acima indicam a força e o desejo de mudar o ambiente, isto é, o
meio cósmico e social. Esta atitude é também concebida por Patativa do Assaré que vai
visualizar o vaqueiro com as virtudes heróicas nos versos Eu e o Sertão (ASSARÉ, 2002,
p.154):
Sertão do Bumba Meu BoiE da harmônica de oito baxo,O teu fio sempre foiCorajoso, Cabra macho;O tempo nunca destróiA fama do teu heróiDe pernêra e de jibão,Caboclo que não resignaCorrê dentro da caatinga,Na pega do barbatão.
Neste caso, o movimento do imaginário não é de acolher doando um novo
significado para a realidade objetiva, conforme o regime noturno, mas de enfrentamento
para mudar a realidade objetiva. Percebe-se esse perfil, também presente na projeção
feita por Raquel de Queiroz, na caracterização que Euclides da Cunha fez do sertanejo
numa descrição da atitude mítica e da gestualidade.
Como vimos nas elaborações semânticas de Cunha, a Caatinga e o Juazeiro
vão configurar enfrentamentos caracterizados pelos arquétipos da espada (espinhos), e
do juazeiro na idéia do combate da luz contra as trevas. Outra forma de transformação
que lida com a realidade vai ser configurado pelo Umbuzeiro e a Jurema.
O Umbuzeiro, qual “árvore sagrada do sertão” vai reunir as idéias de
adaptação do ser humano com o semi-árido, da sutura homem-natureza-cultura, como
vimos, no quadro comparativo em que analisamos a semelhança descritiva entre o
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Umbuzeiro e as práticas de adaptação do sertanejo ao sertão euclidiano. Qual símbolo
da inculturação, o Umbuzeiro vem caracterizado pela virilidade quando relacionado
com o significado da Juremeira. Assim, a Jurema é apresentada pelo autor com o
arquétipo da mãe, liderança afetiva, feminina. No trecho abaixo, Raquel de Queiroz
evidencia esta tendência na cultura sertaneja, quando narra a projeção do personagem
Vicente, mitificada na gestualidade de Chico Bento.
Encostando-se ao tronco, Chico Bento se dirigiu aos esfoladores:
− De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?
Um dos homens levantou-se, um fartum sangrento envolvendo-o todo:
−De mal de chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus.
Chico Bento cuspiu longe, enojado:
− E vosmecês tem coragem de comer isso? Me ripuna só de olhar (...)
O outro explicou calmamente:
− Faz dois dias que a gente não bota um-de-comer de panela na boca (...)
Chico Bento alargou os braços num grande gesto de fraternidade:
− Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira para os urubus que já é deles. Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado no meu surrão!
Realmente a vaca já fedia, por causa da doença.
Toda descarnada, formando um grande bloco sangrento, era uma festa para os urubus vê-la lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens. E para comemorar o achado executavam no ar grandes ondas festivas negrejando as azas pretas em espirais descendentes. E o bode sumiu-se todo (...)
Cordolina assustou-se:
− Chico, que é que se come amanhã?
A generosidade matuta que vem na massa do tronco e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou:
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− Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados roerem osso podre (...) (QUEIROZ, 1974, p. 79).
No trecho acima, de O Quinze, nota-se a realidade objetiva da morte e a
intervenção das virtudes típicas da configuração de Jurema: refúgio e proteção. Doa-se
ao momento outro significado, que transforma um ambiente de fome num momento de
fraternidade, mudando a aridez para uma realidade de fartura e de harmonia, justamente
como havia projetado a personagem Vicente que desejava integrar-se numa natureza
diferente daquela que o cercava. A expressão da autora: “Chico Bento alargou os braços
num grande gesto de fraternidade” vai explicitar a imagem do colo, do arquétipo da
mãe, caracterizadas pela configuração de Jurema, que trabalharemos no próximo
capítulo.
Assim, podemos perceber que as situações-limite vivenciadas nas secas e
lutas do sertanejo trazem, mais fortemente, à composição da tradição, da história e da
cultura do ser humano do semi-árido a consciência da própria finitude. Na experiência
da seca e das lutas − largo contexto de miséria cósmica, em que tudo grita morte − a
realidade objetiva além de ser materialmente dilaceradora é também desprovida de
significado.
Essa situação dramática, porém, vai criar no sertanejo a necessidade de dar
sentido, de tornar a realidade objetiva prenhe de significados. Esta elaboração de
sentido para o universo sertanejo vai acontecer seguindo um trajeto antropológico
próprio do sertão.
Neste caso, através dos escritos de Euclides da Cunha, pudemos perceber,
na estrutura do imaginário do sertanejo, atitudes míticas caracterizadas pelos regimes
diurno e noturno da teoria da convergência simbólica de Gilbert Durand.
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Nosso estudo da linguagem escrita, apresentada por Euclides da Cunha,
revelou que o ser humano sertanejo apresenta mais fortemente as características do
regime diurno, organizando o universo ao seu redor através da elaboração por
antítese, pensamento da luz contra as trevas, a ascensão contra a queda numa
atitude conflitual entre o ser humano e o mundo. Este conjunto de significados, que
particularizam atitudes do sertanejo, vai compor uma tendência, que denominamos
“Configuração da Caatinga”, uma espécie de arquétipo local, assim facilitando
nossas referências e entendimento que permearão nossa reflexão nos próximos
capítulos.
Considerações finais deste capítulo
Nossa reflexão foi permeada pela noção de associação semântica que
denominamos ‘Confraternização simbólica’ como princípio que tende a organizar os
símbolos e estabelecer as bases de agrupamentos entre os elementos, compondo um
sistema de representações, que oferece a disposição necessária para as funções a que
esses se destinam: arranjar-se numa dinâmica de confraternização temática como aqui
fizemos.
Neste sentido, nossa percepção ateve-se a esse movimento para alcançar a
relação existente entre os temas e as imagens apresentadas por Euclides da Cunha, em
sua obra Os Sertões, colhendo a mensagem gerada pelas conexões.
Neste movimento de confraternização entre os temas e as configurações
pudemos colher:
a) Que as imagens apresentadas por Euclides da Cunha em Os Sertões
figuram idéias que, pelo poder da convergência, formam símbolos;
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b) Que a semântica da configuração da Caatinga revelou seus reflexos
locais como categoria de resistência e enfrentamento:
► Na caatinga - espinhados, gravetos estalados em lanças apontando
rijamente no espaço;
► Estes se referem aos arquétipos da espada e do sertanejo dotado de
virtude heróica: cavaleiro, combatente. Nesta relação
Personagem/Sertanejo - Espada - Monstro (este último apresentados por
Euclides da Cunha e Raquel de Queiroz através de imagens
potencializadoras do monstro da seca e da morte), colhe-se a angústia e
as formas de resistência, reveladas nesta primeira parte com as
características do Regime Diurno da Teoria da Convergência Simbólica,
de Gilbert Durand.
Nesta mesma direção, colhemos a semântica do Juazeiro e do Umbuzeiro.
Porém o Juazeiro com características do confronto Luz versus Trevas, dimensão
espiritual, e contrastes ideológicos. O Umbuzeiro é colocado em relação com Jurema.
Contextualizada, a configuração do Umbuzeiro manifesta-se como passagem entre as
configurações da Caatinga, Juazeiro, de um lado e a configuração de Jurema, de outro.
A configuração do Umbuzeiro ressalta a inculturação e a adaptação ao meio e a sutura
entre o ser humano e a natureza. A configuração de Jurema é delineada pelo arquétipo
da mãe, harmonização das oposições, liderança afetiva, refúgio e proteção.
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CAPÍTULO 3
A CASA DE AUDIFAX: UMA MAQUETE MITOLÓGICA
(...) fantasia.Há nesta atividade criadora um dom e um sentido que permitem apreender as formas da realidade, e no espírito gravar, graças a uma visão e a uma audição atentas, as variadas imagens da realidade existente; a isso acrescenta-se uma memória capaz de conservar a lembrança do colorido mundo destas imagens multiformes.
Friedrich Hegel
Estávamos em Santana do Acaraú, cidade do norte do Ceará, no semi-árido
do Nordeste brasileiro, para o encerramento das festas da padroeira Senhora Sant'Anna.
Realizada no mês de julho, tornou-se muito procurada pela população do Vale do
Acaraú, sobretudo pela sofisticação que vem adquirido a festa profana com a
participação de bandas musicais famosas.
Nosso propósito era observar as festas da Cidade, como o fizemos,
percorrendo algumas comunidades locais − como Alvaçan-Goiabeiras, Ipueirinha,
Bonfim, Lagoa do Girau − durante as festas juninas, para perceber a circulação do mito,
os gestos de convergência e, assim, colher, nas elaborações simbólicas, um canal de
confraternização que possa ser fomentado pelas medidas e pelo poder de coesão da
comunidade.
“Vamos agradecer à Senhora Sant'Anna por mais esta festa” - dizia o padre,
ao microfone, liderando a procissão de encerramento da festa na sede do município. O
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cortejo obedecia a uma organização em duas filas. Primeiramente, o crucifixo,
amparado por um sacristão rodeado por outros, a cuja frente um deles avançava com o
turíbulo incensando o crucificado. Os acólitos, todos adolescentes, vestiam-se de branco
e vinham ladeados por homens trajando roupas de cor vermelha, talvez a Associação do
Santíssimo Sacramento. Sucediam-nos, no cordão, os vários organismos leigos da
paróquia, muito bem apresentados com as próprias credenciais: fitas, lenços e bandeiras.
No meio do cortejo, dois sacerdotes, ladeados por assistentes, e o andor da
Senhora Sant'Anna, imagem barroca pousada sobre flores e rendas. A banda da cidade
entoava hinos, sobretudo repetia o dobrado cadenciado, de ar renascentista, do hinário
da padroeira. Atrás destes, muito mais gente que já não obedecia mais à organização em
filas, compondo uma massa homogênea de pessoas de todas as idades.
Muitos moradores debruçavam-se às suas janelas enfeitadas de branco para
acompanhar a passagem do cortejo religioso. Depois, ao chegarem à matriz, houve a
Missa.
Aquela procissão trazia, aos nossos olhos que contemplavam aquela
organização hierarquizada, nuanças de um passado que nos alertou para significados
outros: um desafio para procurar discernir, na circulação do mito, gestos profundos,
semelhantemente compenetrados e velados, como aqueles corações recolhidos que
compunham a procissão.
1. A Linguagem Mítica
Naquele momento, além das descrições, anotamos no diário de campo idéias
soltas, assim como nos vieram à lembrança, de um comentário de Gilbert Durand que
transcrevemos em sua inteireza:
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No prolongamento dos schèmes, arquétipos e simples símbolos, podemos considerar o mito. Não tomaremos este termo na concepção restrita que lhes dão os etnólogos, que fazem dele apenas o reverso representativo de um ato ritual. Entenderemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e schèmes, sistemas dinâmicos que, sob o impulso de um schème, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias. O mito explicita um schème ou um grupo de schèmes. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a idéia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico, ou como bem viu Bréhier, a narrativa histórica e lendária. É o que ensina de maneira brilhante a obra de Platão, na qual o pensamento racional parece constantemente emergir de um sonho mítico e algumas vezes ter saudade dele. Verificaremos de resto, que a organização dinâmica do mito corresponde muitas vezes à organização estática a que chamamos "constelação de imagens". O método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e no mito (DURAND, 1997, p. 63).
Estas palavras de Durand nortearam nosso olhar para aquela procissão que
nos parecia trazer para o presente a descrição de uma estrutura do passado, que
exprimia, no modo de representar os gestos religiosos, valores históricos que, durante
aquele tempo de pouco mais de uma hora, organizaram uma maquete mitológica, qual
síntese plural dos mitos circulantes na comunidade.
Como vimos nas ‘Configurações Sertanejas’, a linguagem é o
fundamento da sociabilidade humana, mas esta não é só um canal de socialização entre
os indivíduos de uma comunidade. O seguimento de nossas considerações
compreenderá a linguagem enquanto espaço de permanência das relações entre os
indivíduos e de estabilidade vital diante da fluidez do tempo. Massimiliano Marianelli, a
este respeito, afirma que “tal espaço é o lugar de formação e de sedimentação da cultura
de um povo propriamente qualificado por Weil, como mito” (MARIANELLI in BAGGIO,
2007, p.82). A ritualidade da procissão evidenciou um gesto coletivo que confrontaremos
com duas obras literárias de Audifax Rios, escritor e filho da cidade de Santana do
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Acaraú, onde desenvolvi minha pesquisa de campo. Assim, daremos continuidade à
nossa reflexão sobre a cultura no sertão, através das narrações e da tradição, como no
caso do ritual da procissão.
Os dois romances que trabalharemos, Búfalos de Campanário (2003) e
Migalhas para as Serpentes (2005), deverão compor uma trilogia, na qual cada
publicação continua a história anterior. No momento em que redigimos esta dissertação,
a terceira e última parte da trilogia ainda não foi publicada. Por serem esses romances
frutos de uma reunião das lembranças de Rios, dos fatos narrados pela tradição oral da
gente da cidade de Santana do Acaraú, entram na dimensão da articulação da
linguagem, isto é, da narrativa mítica que oferecerá uma explicação, dentre outras, dos
gestos da coletividade, ritualizados, em muitos aspectos, na festa da padroeira. Assim,
deter-nos-emos agora no âmbito da linguagem enquanto articulação, narrativa e mito.
Nesta perspectiva, é notável considerar o que Danielle Pitta afirma a respeito:
(...) o mito é carregado de significados afetivos, é ‘presença semântica’. Em outras palavras, existem dois dinamismos simultâneos em ação dentro do mito: aquele próprio à imagem em si (já que a imagem percebida em momentos diferentes nunca é a mesma), e aquele próprio à trama do discurso, que organiza as imagens uma em relação à outra (...). Isto significa que a lógica presente no mito não é a lógica clássica ocidental, binária, mas aquela constituída pelas redundâncias que permitem a expressão dos antagonismos próprios da vida como um todo (e não um só racional). O mito é então alógico. O mito é um discurso relativo ao ser (...). As repetições, as redundâncias de imagens, que alertam para significados outros (1995, p.16).
Assim, dando atenção às redundâncias das imagens apresentadas nos dois
romances de Audifax Rios, pudemos perceber características comuns às configurações
da Caatinga e da Jurema, as quais irão nortear nossas observações sobre a trama do
discurso elaborado nos dois livros desse autor: Búfalos de Campanário e Migalhas
Para as Serpente. Uma vez que a circulação do mito é um modo de descrição de um
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conjunto social, queremos perceber, nestas obras, alguns elementos delineadores da
cultura da comunidade de Santana.
2. Mito enquanto espaço de Fraternidade
Isto pode ser possível, porque o movimento circulante do mito provoca a
sedimentação da cultura e revela elementos vinculadores de Fraternidade entre as
pessoas, pois pelo efeito da cristalização das projeções imaginárias e míticas, que
lentamente vão tornando-se modos de vida codificados em conceitos socializados, como
o trabalha Durand (1987, p. 132), podem determinar um espaço de relação fundamental,
como define Massimiliano Marianelli:
O passado, em última instância entendido como o lugar de inspiração da civilização é, ao meu ver, um passado mítico: é um passado no qual toda civilização encontra um seu fundamento espiritual e no qual é reconhecível o espírito de um povo (...). Na prospectiva weiliana, portanto o mito não é somente lugar de sedimentação da cultura humanística; mas, sobretudo lugar ‘criativo’, e, portanto dimensão originária e fundamento da fraternidade entre os homens, não se trata de origem histórica, mas de algum modo arquetípica: no mito se estabelecem, seja uma comunhão de pensamentos, seja, e, sobretudo de sentimentos (in BAGGIO, 2007, p. 87)
Logo, focalizaremos não a dimensão histórica, mas a arquetípica. Por
isso, tomamos o mito enquanto fenômeno coletivo, instaurador de um espaço de
diálogos que, pelo processo de criação plural da narração mítica, liga os participantes
entre si, com poder de construir e conservar uma identidade grupal, legitimando a ação
social. Nossa análise quer alcançar justamente esse espaço de reciprocidade narrativa,
nas obras de Audifax Rios. Estas se apresentam como narrativa mítica, com uma
estrutura dinâmica de símbolos20, envolvendo arquétipos que vão se compondo em
20 Em Imaginário, Cultura e Comunicação - Métodos do Imaginário, Danielle Pitta (1995) explicita que, para Durand, os símbolos se dividem em duas partes: o significante, visível aos olhos, e o significado, velado no símbolo. No âmbito do significante, ela faz referência às três dimensões atribuídas ao símbolo por Paul Ricoeur: “(...) Cósmica (pois toma os elementos da figuração no meio ambiente), Onírica (pois tem suas raízes nas lembranças, nos gestos que emergem nos sonhos) e poética (pois, recorre à linguagem
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relato, um início de racionalidade, característica esta própria do mito, entendido como o
faz Lévi-Strauss (in MAUSS, 1974, p. 15) e não Descartes: o mito como primeiro anúncio
de racionalidade.
Audifax Rios situa as narrativas no espaço mítico de uma cidade
denominado Campanário: um lugarejo perdido no Nordeste brasileiro, que um dia se vê
invadida por uma manada de búfalos trazidos, por certo Major, de terras marajoaras, do
norte do Brasil. O Major Zegito importou búfalos da Amazônia. Os búfalos foram
saciados pela água do açude onde viviam. Por estar o açude contaminado de estranhas
drogas, os búfalos ficaram enfurecidos, invadiram a igreja, onde muitos fiéis estavam
reunidos para a Missa, apavorando-os, quebrando os altares, para, em seguida, sair
cobrindo fêmeas das mais variadas espécies.
A invasão dos animais vai causar a destruição da ordem vigente: primeiro os
búfalos entram na cidade, invadem e quebram a Igreja. Audifax Rios descreve a
destruição da Igreja com riqueza de detalhes, pondo em relevo o significado das duas
Igrejas: de encontro e desencontro do novo com o velho. Este aspecto é notório no
recurso usado por Rios: a chegada do padre novo na cidade, onde evidencia os
desencontros de mentalidades. O autor faz nítidas referências aos anos 1960, período
em que a Igreja Católica passou pela renovação do Concílio Vaticano II; situando as
duas realidades eclesiais, a do papa Pio XII e a de João XXIII, a Igreja conservadora e a
Igreja nova - respectivamente.
Em Búfalos de Campanário, porém, Rios enfatiza, sobremaneira, as
questões da Igreja em si: a quebra dos santos, dos quadros da via sacra e dos cálices
representam uma insatisfação para com o anacronismo de uma igreja, fortemente
em formação)” (1995, p.24).
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hierarquizada, visível a olho nu ainda no presente, na própria organização da procissão
da festa da padroeira de Santana do Acaraú. Indo mais em profundidade, pudemos
perceber que o ritual da procissão revelava a tradição de um mito cristalizado no tempo
e no espaço.
A hierarquia que permeava, fortemente, o recinto do templo durante as
cerimônias pré-conciliares ressaltava a desigualdade entre os fiéis. O templo era,
internamente, organizado em patamares que iam se sobrepondo até chegar ao altar. Na
medida em que o fiel se aproximava do altar, mais se elevava. Ainda existe esta
formação na estrutura arquitetônica de algumas Igrejas de Sobral, cidade polarizadora
de todo o Vale do Acaraú. Assim Rios recorda, em uma das entrevistas que nos
concedeu:
Era assim. Eu era cruzadinha, eu comungava no patamar entre os homens e as mulheres, as mulheres ficavam atrás, tinha bancada pra elas comungarem, a cruzadinha ficava no nível entre os homens e as mulheres, porque era aproveitamento de espaço, mas os homens já eram num patamar maior aí tinha mais degraus e tinha o Seminarista, não sei mais quem era o tal mas, o Coronel tava lá bem pertinho do Padre, só ele. Ele pagava pra tá ali, ele tinha uma cadeira reservada, só ele, os outros, os Congregados Marianos ficavam logo na frente, depois os Vicentinos, de lado os homens comuns, os comuns mortais e as mulheres eram bem mais atrás. Então, no Conselho João XXIII, as igrejas tiraram o fausto do altar e se preservou a questão arquitetônica, pra botar só o Cristo e o altar era de frente porque o Padre ficava de frente pro povo e o piso era um só pra dizer que todo mundo era igual (nov. 2005).
Na narrativa do primeiro romance, os búfalos ingerem uma droga e fazem
sexo com os animais na Cidade, invadem o templo paroquial, revelando a ação de
potência contra o poder moral da Cidade. Assim, o recinto templário, no momento em
que o povo está reunido − internamente organizado de baixo para cima, em baixo as
mulheres, mais acima os homens, e, no topo, os eleitos − de modo a reproduzir-se a
sociedade desigual e densamente hierarquizada de então, foi invadido e destruído pelos
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búfalos. Mas, dentre as desigualdades da cidade, a cena faz alusão ao poder que vem da
indústria, da invasão química dos Coronéis, enquanto um coronel era dono dos búfalos
e contratou a introdução de produtos químicos no açude (RIOS, 2003, p. 92-93).
Segundo Audifax Rios, esses fatos aconteceram antes da emancipação do
Município de Santana e, portanto, não existiam na Cidade as instituições políticas,
caracterizadas pelos três poderes. Existiam, sim, os coronéis, a Igreja e os militares.
Nesse contexto, a Igreja assumia seus poderes. A força política eclesiástica é nítida,
sobretudo, quando agrupamos algumas imagens apresentadas nos romances ao destacar
o campanário como aquele que está no alto da torre, a marcar o tempo dos seres
humanos. No imaginário dos santanenses, é ele, o campanário da matriz, que chama
para a salvação, para o excepcional, para a quebra da continuidade do quotidiano: o dia
diferente, o dia do Senhor. É o campanário que chama para redimir os pecados e para
anunciar a morte e a vida.
O poder temporal da Igreja é demonstrado, no texto de Búfalos de
Campanário, através da narrativa da doença dos cachorros, em que o Padre toma para si
a responsabilidade apesar de, não existindo prefeito, ser da alçada da polícia, que teria a
obrigação de solucionar. Assim comenta o Audifax:
A Igreja tinha esse poder e a palavra da Igreja era pesada. É um poder paralelo não estabelecido assim, mas que ela era até mais poderosa porque mexia com Deus, com alma, com céu, com inferno e essas coisas todas. Se reparar bem assim a batina é uma bata, ela distancia do simples mortal, do ser humano comum e gera uma série de coisas, por exemplo, a polícia despreparada, o cara senta-praça (...) hoje não, porque precisa ser preparado e tudo, mas se o cara bota uma arma, bota uma arma na mão, o cara é um semideus, aí como ele não tem cabeça pra segurar aquela arma o cara faz o diabo. Já os padres não, os padres eram estudados, sabiam inteligir e sabiam conduzir a coisa melhor, eles eram soldados de Cristo também, eles eram fardados pra distanciar dos outros, pra ficar diferente dos comuns e era
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uma coisa intocável, ninguém chegava perto, era um sacrilégio se a gente encostasse e tal (nov. 2005).
Segue-se, na mesma entrevista, a caracterização que Rios faz de D. José
Tupinambá da Frota, primeiro Bispo de Sobral, como personificação de todas essas
relações de poder da Igreja católica da época:
Aquele ali nem que a gente quisesse encostar no corpo dele... tinha muita roupa em cima, não dava. Quando eu coloco que ele já saía do banheiro fardado, era porque ele já saía do banheiro paramentado e ele andava a rigor como o Pio XII, todos aqueles paramentos. Ele ia a Santana em visita pastoral, tinha aqueles tapetes, tinha tudo, eu beijei, me ajoelhei e beijei no anel dele em 1958. Já quando o Dom José morreu foi pra lá um bispo muito legal, mas não durou, talvez por isso. Era Dom José da Mota, irmão de um grande poeta pernambucano Mauro Mota. Ele era bem liberal, era da Igreja do João XXIII que queria acabar com uma série de coisas, mas muito cedo foi embora. Aí botaram Dom Walfrido que era conservador que ficou até morrer (...). Mas, Dom José era muito conservador mesmo, não mexia só com a política, mexia com tudo, com os hábitos do pessoal (...). Mas, ele fez muita coisa em Sobral dentro daquele conservadorismo dele, como ele era um cara culto, ele tinha aquela cultura de elite, mas pro povo, assim grandes colégios e tal (...) (nov. 2005).
A hierarquia representada na procissão não diz respeito somente à pesada
organização e às relações de poder da Igreja do passado, mas traz para o presente
também a síntese da organização social vivida nas relações sociais do quotidiano.
Demonstra uma maneira de ver o mundo e assim organizá-lo, tomando-se o sistema
piramidal como um valor que fomenta hábitos. A procissão choca-se com o presente,
por trazer ao inconsciente coletivo um passado contraditório com este presente em que
há tendências de maior liberdade de expressão e participação política, mas também
denuncia tudo aquilo que expressa absolutização das relações arcaicas que insistem em
prosseguir e procuram, loucamente, formas de permanência.
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3. Os Búfalos na Caatinga
As narrações de Audifax Rios elegeram, como valor histórico e social, a
presença e o poder da Igreja, mas ressaltam, sobretudo, a constituição do poder dos
coronéis. Assim, se a Igreja exercia grande coercitividade social através da força moral,
a ponto de extrapolar para assumir as atividades do poder público, o poder dos coronéis
era apoiado na estrutura econômica. O próprio título de coronel (da Guarda Nacional),
que era comprado, exercia uma pressão social intensa sobre os indivíduos.
A distinção entre o poder exercido pela Igreja e o poder exercido pelos
coronéis tornou-se mais nítida quando agrupamos as narrações de Rios nas
configurações/categorias que formulamos no capítulo anterior. Neste caso, o poder da
Igreja se situa na semântica do Juazeiro, caracterizada pela força ideológica e moral,
com características do confronto Luz versus Trevas, dimensão espiritual e contrastes
ideológicos: o poder “invisível” moral e simbólico.
Na mesma dimensão de enfrentamento, emerge a semântica da
configuração da Caatinga − que, ao analisarmos os escritos de Euclides da Cunha,
revelou seus reflexos locais como categoria de resistência nas tendências
arquetípicas da espada e do herói, do sertanejo dotado de virtude heróica:
cavaleiro, combatente. Nesta relação, Personagem/Sertanejo – Espada versus
Monstro foram agrupadas as narrativas que revelam o poder dos coronéis, fundado
não no campo das idéias, mas da ação prática.
As lembranças de infância de Audifax Rios (em entrevista que nos
concedeu em dezembro de 2005) incluem dois velhos coronéis da Guarda Nacional,
Tomazone Ricor, e outro cujo nome não recorda e, que possuía uma bodega, no
mercado central da Cidade. Por uma intriga no comércio, esse coronel jurou nunca mais
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entrar no mercado e estabeleceu, em sua própria casa, todo o ciclo de produção
necessário para seu consumo: plantava, colhia, beneficiava, vendia e comia. E nunca
mais precisou entrar no mercado.
Enquanto Rios mergulha em suas memórias, vai, pouco a pouco, atribuindo
valores às recordações, delineando não só aspectos críticos que demonstram o juízo
pessoal de valores, mas caracterizando o próprio poder da época, manifestando o húmus
gerador do poder coronelístico na Cidade.
O coronel, normalmente ele não é um preposto, é o poder dele, ele é ditador dele mesmo, ele cria a ditadura dele, ele teve o dinheiro, sabe manipular o poder, a palavra e tal. Quando ele vê que ta com poder, ele passa por cima, manda no padre, manda na polícia, manda nisso, manda naquilo, é o poder criado por ele mesmo. É engraçado, não é aquele que foi preposto do Governador e tá lá, não. O Coronelismo todo foi feito assim no Nordeste brasileiro, o cara foi habilidoso, vislumbrou aquilo que pode; aquele substituiu um ou matou antes. Quando tinha conflito entre dois coronéis, um morre pra ficar só o outro, é uma briga de poder que às vezes é herdada, do coronel filho do velho coronel como o Coronel Lobisomem, que eu tava relendo porque eu tinha assistido o filme e foi bom reler, assim, depois porque eu já tinha lido há muito tempo. Coronel Ponciano era aquele do velho coronel, que já herdou suas terras e tal, mas esse coronel foi feito por si mesmo, ele foi pra Amazônia enricar e, da Amazônia, o cara nunca volta porque não pode voltar, porque não tem dinheiro, porque contraiu a febre amarela ou porque já morreu por lá. Ele não volta porque ele tá trabalhando pra um patrão qualquer que não dá nem o dinheiro da volta pra ele, porque ele precisa do braço escravo. Ou ele se acostuma lá ou contrai uma doença (febre amarela, malária e tudo mais), naquele tempo era assim. Esse coronel que aconteceu na realidade, Coronel João Batista, ele voltou e voltou rico, ainda por cima, o cara paga pra voltar (...) ele não, voltou rico, veio com uma mulher de lá, construiu família (dez 2005).
Audifax Rios recorda a presença de três coronéis em Santana, sobretudo no
período da seca de 1958. Neste período, já existiam, na região, alguns partidos políticos,
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nos quais Búfalos de Campanário toca muito sutilmente. Ao consultar relatos históricos
da região, percebemos que, na realidade, existiam na região do Vale do Acaraú os
grandes partidos, como a UDN e o PSB, compostos pelas elites, ainda que o PSB
tivesse uma vertente mais popular; além dessas lideranças, existiam outros partidos
menores, como o Partido Azul e o Encarnado.
Em Santana, o Partido Azul era composto pela elite e identificado pela
população como o partido dos brancos; já o Encarnado era mais popular e composto,
eminentemente, por negros. Em uma conversa com o autor, ele demonstra como era
feita a distribuição funcional dos poderes entre esses partidos, e mesmo o que corria
“por baixo dos panos”, nos porões:
Aliás, a política na época cuidava muito era da polícia, era repressão o tempo todo, a polícia era da UDN não tinha nada a ver com a agricultura. A agricultura, eu peguei uns estatutos, vou até colocar no jornalzinho da Câmara dessa vez, de um sindicato. Aquilo eu comecei a ver, era no tempo do Raul Barbosa, era PSB ou UDN, eu olhei a relação dos trinta e três participantes da primeira assembléia dessa associação rural, todos eles eram da UDN. Eu conheci todos eles, ainda têm uns dois vivos (...). Então, os da UDN nunca pegaram no cabo da enxada, tudo dono de terra. Então, essa associação foi criada porque certamente um político chegou e disse: "Tem uma verba legal, arranja aí, faz uma associação e vem buscar esse dinheiro". Então tinha alguma coisa na agricultura nesse sentido, quando tinha verba e tinha na polícia que era pra manter a ordem, a ordem que eles queriam (dez. 2005).
A atmosfera absolutista dos poderes na Região era tamanha que, em Os
Búfalos de Campanário, Rios atribui à personagem do padre a imposição dos nomes às
crianças no batismo. Esta narração, na realidade, refere-se a um fato da tradição oral do
povo do Vale do Acaraú que conta a história de um juiz erudito que passou por Sobral e
acrescentou nomes históricos aos sobrenomes familiares como: Montesuma, Pompeu,
Mont'Alverne e Sabóia.
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Essa interferência dos poderosos na vida privada vai caracterizar a notória
sociedade de aparência dos anos 50, a circulação das fardas, das túnicas, das fitas, das
credenciais. As narrativas de Audifax Rios denotam as representações que revelam a
circulação dos poderes da cidade. Tal realidade impõe-se na sala principal da casa, nos
quadros da parede, nos passeios que o Coronel dá pela cidade vestido na farda da
polícia, ou mesmo o encontro no bar, pontualmente marcado para todos os domingos,
entre os oficiais aposentados do Exército, Aeronáutica e da Marinha, fardados para o
encontro a fim de ostentar seu poder.
Assim, podemos colher no imaginário de Rios, através do mapeamento das
imagens e distinções que evidencia, por um lado, o Coronelismo e, por outro, a cidade
das alegorias, das ornamentações, das aparências, onde tudo é ostentação: da moral, das
pertenças familiares, das credenciais elitistas civis e religiosas e do herói que o autor,
como Euclides da Cunha, entrevê no vaqueiro, caracterizando a Configuração da
Caatinga:
Também, ele tem uma necessidade, ele é o protetor e tal, mas ele diferencia dos outros, ele é o herói, só que ele não tá numa casta digamos assim, é uma coisa organizada, ele é de alguma coisa, ele é do fazendeiro, ele é um funcionário proposto e tal. Mas, ele tem o mito do heroizão, ele é o desbravador, é o corajoso, aquela coisa toda e se diferencia por isso, quem não viu ele no mato pegando boi e tal, mas ele mostra isso nas vaquejadas, aí toda a Canastra vem também, ele vira canastrão, fala demais, mas ele conquista as mulheres, ele bebe as cachaças num boteco, ele bota no samba, ele é o super-herói e ele mostra todo o lado dele de ser melhor que os outros. (nov. 2005).
Nesse contexto é emblemático o que nos relatou Audifax Rios, em
entrevista, sobre as aparências reproduzidas no significado de Campanário:
Mas, no caso do Campanário, que é o caso de Santana, tem um componente que é uma cidade antiga; quanto mais antiga mais preconceito tem. Ali você nota que eu falo que sempre tem uma paz, que é a paz quente, que a cidade é quente, ali é mais pra
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dizer a história do Nordeste. Santana tem umas ruas bem largas que eram aquelas cidades antigas que tinham ruas bem largas. Sobral não, não sei que diabo foi aquilo, fizeram estreito demais, as casas são altas, primeiro tinha a questão da população, depois tinha a questão do poder que o sobradão mais alto era do Coronel. A Igreja é prédio mais alto da cidade que é pra demonstrar "O melhor aqui sou eu", tem uma série de referenciais tanto que o nome é Campanário e esse nome foi escolhido por causa da posição da Igreja que é mais alta e por causa da comunicação, ela é quem diz, o sino é quem diz que horas é que vai ser a missa, o sino é quem lhe diz a hora que você se salva, o sino lhe chama pra missa, pra você aprender o caminho da salvação. O nome Campanário é belíssimo, é onde tá a comunicação toda e o sino ali foi tocado em Morse até o cara toca em Morse (dez 2005).
O autor admite, em seu romance, uma narração de Zuzinha Simplício da Paz
que, segundo a tradição, foi chamado à casa de Maria Guayana e recebeu uma quantia
deixada por Major Zegito para escrever a sua história. Sendo assim, ele deixou umas
sextilhas, A Saga do Major Zegito, que serviram de inspiração para Rios, na narrativa
intitulada O Desembesto Cruel dos Búfalos Marajoaras. Acessando essas sextilhas
pudemos responder com mais clareza, uma pergunta que nos fazíamos: Qual idéia é
oferecida diante da invasão dos Búfalos? E ainda mais diante dessa pergunta salta
finalmente outra muito esperada: Quem são os Búfalos? Vejamos alguns trechos:
(...) Búfalos acomodados
Na bacia do Oriente
Chafurdando a água fria
Na brasa da tarde quente
Tudo corria em paz
Sem mesmo um acidente.
A manada ganhou nomes
Heróis da mitologia
E também uns apelidos
Os craques da Galeria
Da Seleção campeã
Do futebol alegria
Assim o Touro de Creta
Era chamado de Pelé
A Corça dos pés de bronze
Era Garrincha, o Mané
E o Boi de Gerião
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Era Vavá, bom no pé.
Javalide Erimanto
Atendia por Gilmar
A Ave do Estinfale
Era Zagalo ao jogar
Cavalo de Diomedes
Nilton Santos a se chamar. (RIOS, 2003, p.140)
Os búfalos, quando chegaram a Campanário, receberam cada qual um nome.
Alguns nomes eram deuses da mitologia grega, outros da seleção brasileira de então. O
nome indica a pessoa, a assinatura indica a própria pessoa, a identidade desta. Os nomes
de todos os deuses eram de deuses ativos, que vão revelar a virtude heróica na teoria da
convergência simbólica. Ao colocar os nomes dos craques da seleção brasileira, o autor
reforça não só a virtude heróica, mas também a representação da nação brasileira, em
suas dimensões ascensionais e da vitória contra o tempo e o sentido de finitude. Veja a
semelhança do estado dos búfalos com a situação do sertanejo aflito pela seca e pela
inanição da pressão política social e econômica, em tempos de ditadura:
O conforto da boiada
Piorava a cada dia
A água ia sumindo
Aumentando a agonia
Do Major que de aflito
O que fazer não sabia.
Era tempo de eleição
De campanha eleitoral
Quando surge um candidato
Afamado general
Concorrendo à presidência
Da República Federal
Prometia este senhor
Caso eleito presidente
Proteger nossas represas
Dos raios do sol ardente
Derramando sobre a água
Um plástico diluente.
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Assim, os búfalos vão representar a força de um povo organizado, a
potência da nação propriamente dita, que não suportando uma situação de extrema
pressão, reage contra a ordem vigente, destruindo o sistema social e revelando mais uma
vez o perfil do sertanejo dentro das características da configuração da Caatinga.
4. As Tendências do Juazeiro
No segundo livro do que será uma trilogia no futuro, Rios dá continuidade
às suas narrações na obra: Migalhas para as Serpentes. Para Paulo de Tarso Pardal, as
narrações do autor, no segundo romance, assumem outra característica:
(...) Se o primeiro romance é de personagem, aqui o romance é de ambiente, de paisagem, mas paisagem de uma cidade temporalmente diferente da cidade do ‘major Zegito’. Aqui não há um só protagonista, um só personagem que ganhe textura, para que possamos estudá-lo como protagonista, mas uma série de personagens que fazem a ‘Campanário’ depois do Major, onde todos são importantes, apesar de alguns se destacarem (PARDAL, 2005, p.167) 21.
Estas observações, de Pardal, levaram-nos a focalizar nossas atenções não
só nos personagens, mas, sobretudo, em seus contextos. Neste caso, é mister entender o
ambiente mítico em que Audifax Rios exprime suas narrações: em Búfalos de
Campanário, apresenta a cidadezinha perdida na poeira da arcaica Caiçara, qual cenário
mítico da cidade de Santana e da própria região do Vale do Acaraú. Nesta obra, a
centralidade narrativa segue o desenrolar das peripécias do major Zégito e dos búfalos
que invadem a cidade.
Nesta perspectiva, em seu segundo romance, o autor coloca dois elementos
que se polarizam dentro do casarão do Padre: a personagem Ana Gerviz, irmã mais
nova do Padre e, no porão da casa, as serpentes que são alimentadas por ela. Ao
21 Trata-se de uma espécie de artigo-posfácio, denominado “Os Búfalos e as Serpentes”, no final de Migalhas para as serpentes.
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transferir nosso olhar do personagem principal para o ambiente, vamos discernir que a
ação revela-se no abraço dos elementos simbólicos que confraternizam dando sentido
para o todo, no alinhamento lógico das teorias da associação de Jung (JUNG, 1995) e da
convergência simbólica de Durand (DURAND, 1997). Por este motivo, no estudo dos
valores atribuídos às imagens da casa de Audifax Rios (RIOS, 2005, p. 18), essa vai
reunir na sala a tradição dos antepassados com os quadros de família; nela os poderes da
cidade: Igreja, na pessoa do Padre, os militares e a ordem moral à qual a personagem
Ana Gerviz se submeteu.
É esta cidade que, na primeira obra da trilogia, os búfalos invadem o espaço
comum, quebrando o lugar sagrado e o campanário da moral, das leis, garantia da
permanência dos costumes.
Em Migalhas para as Serpentes, na polarização da casa, ao porão assoma-se
a personagem de uma mulher de nome Ana Gerviz. Bonita como uma donzela das
cidades antigas do interior, mas afoita de paixão. Órfã de pai e de mãe, tragédia vivida
não só por ela, mas por seus irmãos que foram separados para viver com os parentes.
Ana tinha ido morar na casa dos tios, na capital, porém alguns anos mais tarde retornou
à Caiçara para morar com o irmão, padre da cidade, por causa dos seus comportamentos
duvidosos que colocavam a moral da família em perigo, na capital. Assim, foi acolhida
na casa de seu irmão mais velho, e sacerdote católico da cidade.
No casarão do padre, um sobrado em frente à praça, sob a escada, Gerviz
cuida das cobras que vivem nos porões da casa. Assim, dentre as várias imagens
presentes no romance, Rios coloca na centralidade das representações, a casa onde
mora, a personagem Ana Gerviz. Tudo circula ao redor da casa, tudo vive em função
do sobrado, e o seu imaginário resolve o problema da distinção de esferas entre o
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público e o privado, colocando a cidade de Santana do Acaraú dentro da casa de Ana
Gerviz.
Neste caso, a casa manifesta-se como o elemento unificador das relações. A
ela recorre o significado da proteção, refúgio, aconchego, fraternidade, mas também das
intrigas e da intimidade. O interior da casa assume significados variados de acordo com
o espaço. Por isso a casa abraça as personagens e os elementos nas suas variadas
maneiras de perceber o ambiente e comportar-se nele; como um bonsai, jardins
miniaturizados, a Casa transfigura-se na própria cidade onde tudo circula: ambiente
prenhe de significados como o explica Da Matta:
Lançando um olhar para as nossas habitações na sociedade onde estamos inseridos, forjadas pela cultura ocidental, o espaço da casa é um conjugado entre a parte pública e a privada. Por exemplo: a parte pública se constitui em salas de visitas, sala de jantar, pátio, jardim; o privado seria: os quartos, o próprio banheiro (...) (1991, p.13).
Esses espaços são dotados de significados. Basta recordar os tipos de
sentimentos que experimentamos, quando alguém mexe na gaveta da escrivaninha do
nosso quarto, onde guardamos as coisas mais íntimas; ou quando nos encontramos na
casa alheia e, para exprimir a satisfação que sentimos pela acolhida, dizemos: “Estou
me sentindo em casa”. Portanto, são inerentes à casa os sentimentos, os significados e as
relações.
Assim, verificamos que a casa vai revelar-se como realidade fundante de
todo o schème, a alma que nutre todo o sistema simbólico, a estrutura de um quadro
sustentando a tela onde o desenho se faz pintura, é o palco que possibilita a
representação, a ligação e harmonização dos elementos simbólicos que se movem com a
dinamicidade do céu qual cortina de fundo, onde os astros se movem. Esta casa é a
própria configuração da Jurema, qual representação local do arquétipo da mãe.
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Neste sentido, nos basta, no momento, termos como referência conceitual as
representações oferecidas por Euclides da Cunha, na Árvore da Jurema, que coincide
com as noções fundamentais da maternidade, portanto do colo, da acolhida, do ventre e
do chão.
5. Entre o Alpendre e o Porão.
Porém, mesmo existindo a realidade primordial da casa, com as paredes e
telhados que exprimem refúgio e proteção, dentro da casa os ambientes podem assumir
significados e configurações diferentes. Enquanto que nos espaços da casa de Ana
Gerviz, a sala e os quartos nos fazem perceber a cidade com a sua tradição, através dos
quadros dos antepassados na sala, das fardas e representações das personagens (RIOS,
2005, p. 18), no porão, descobriremos as motivações dessas representações existentes na
sala. As representações mais evidentes e palpáveis correspondem, em nossa
compreensão, à configuração da Caatinga, como as relações de poder na Igreja, a
política nas suas formas coronelísticas e militares. Ao acessarmos os porões da casa
intuiremos a configuração do Juazeiro, revelando as motivações e ideologias dos
poderes constituídos da Cidade.
Por esta razão, um escrito analítico de Gaston Bachelard nos desafiou a
olhar, ainda mais profundamente, para os espaços da casa:
Inicialmente, é preciso procurar, na casa múltipla, centros de simplicidade. Como diz Baudelaire: num palácio ‘não há um cantinho para a intimidade’. Mas a simplicidade, por vezes gabada de forma excessivamente racional, não é uma fonte muito potente de onirismo. É preciso chegar à primitividade do refúgio. E, para além das situações vividas, cumpre descobrir situações sonhadas. Para além das lembranças positivas que são material para uma psicologia positiva, é preciso reabrir o
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campo das imagens primitivas que talvez tenham sido os centros de fixação das lembranças que permaneceram na memória (1984, p. 47).
Ao delinear a caracterização simbólica da casa, percebemos que esta
apresenta uma estrutura dinâmica de imagens que oferecem segurança aos seres
humanos, o que nos levará a procurar discernir a dinâmica, a alma que motiva esta casa.
Para Bachelard, a casa é um corpo de imagens que dão ao ser humano a idéia de
estabilidade e, incessantemente, este ser humano re-imagina a casa com multiplicidade
de imagens, que se distinguidas, podem nos levar a alcançar a alma da casa, e “seria
desenvolver uma verdadeira psicologia da casa” (1984, p.36).
Assim, Bachelard, para por ordem às imagens da casa, examina dois pontos
principais de ligação:
1º A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. Ela se diferencia no sentido de sua verticalidade. E um dos apelos à nossa consciência de verticalidade. 2º A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de centralidade (1989, p.36).
Neste contexto, Bachelard apresenta na casa a relação entre os espaços do
Sótão e do Porão, constituindo uma polaridade:
A verticalidade é proporcionada pela polaridade do porão e do sótão. As marcas dessa polaridade são tão profundas que, de certo modo, abrem dois eixos muito diferentes para uma fenomenologia da imaginação. Com efeito, quase sem comentários, pode-se opor a racionalidade do teto à irracionalidade do porão. O teto revela imediatamente sua razão de ser: cobre o homem que teme a chuva e o sol. Os geógrafos sempre mencionam que em cada país a inclinação do telhado é um dos sinais mais seguros do clima (...). No porão também encontraremos utilidades, sem dúvida. Enumerando suas comodidades, nós o racionalizamos. Mas ele é a princípio o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas (Idem,Ibidem).
A relação, entre os dois eixos, sótão e porão, torna-se mais clara quando
Bachelard (1989, p.37) retoma a idéia de concentração, abrindo dois eixos
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fenomenológicos. Mas ele as coloca em relação através das teorias da psicanálise de
Jung, através da qual é dado o exemplo do 'homem prudente' que ao ouvir um barulho
no porão (inconsciente), corre para o sótão para ver o que está acontecendo; como não
há ladrões no sótão, conclui ser a presença deles pura suposição. Porém, na realidade,
este ser humano não teve a coragem de enfrentar o porão. Tal reflexão bachelardiana
levou-nos a aprofundar os significados do porão, colocado por Rios, onde moram as
serpentes que a personagem Ana Gerviz alimenta com migalhas, e a descobrir as
angústias e os temores existentes na casa.
Nosso autor compõe a polarização em dois eixos. Um deles é a imagem de
Ana Gerviz na janela no alpendre da casa, do alto, a bordar seu eterno enxoval, vendo a
cidade: “Gerviz levantava o olhar ante a amplidão da praça, chamada pelo povo de rua
sete, recontava de cabeça as sete carnaubeiras de copas arredondadas e farfalhantes”
(RIOS, 2005 p.13). O outro eixo é o porão da casa, onde Gerviz descia todos os dias para
alimentar as serpentes.
Nesta direção, é importante perceber duas características que Bachelard
evidencia no porão: primeiramente, a sua localização. Como já vimos, o imaginário de
Rios colocou a casa no centro das suas narrações, esta se localiza não só no centro da
cidade, mas enquanto imagem confunde-se com a própria cidade, que vive em função
do casarão. Ele descreve, ali, um porão com as serpentes que indicam força. Neste caso,
Bachelard afirma: “Se a casa do sonhador estiver situada na cidade, não é raro que o
sonho seja o de dominar, pela profundidade, os porões circunvizinhos” (1989, p. 39).
Notamos, a este propósito, as redundâncias próprias do mito: tanto a
imagem dos búfalos quanto a das serpentes resultam na idéia de potência. A localização
central da casa na cidade indica dominação; ao colocar as serpentes como potência no
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porão, ela vai sublinhar a dominação pela profundidade. Bachelard, ao analisar o
problema literário de Henri Bosco ao descrever o além-porão, conclui:
Trata-se de concretizar numa imagem central um romance que é, em sua linha básica, o romance das intrigas subterrâneas. Essa metáfora desgastada é aqui ilustrada pelos porões múltiplos, por uma rede de galerias, por um conjunto de celas com portas freqüentemente trancadas a cadeado. Aí se meditam segredos, preparam-se projetos. E, sob a terra, a ação caminha. Estamos realmente no espaço íntimo das intrigas subterrâneas (1984, p.40).
A polarização, entre os eixos do alpendre de Ana Gerviz e o porão das
serpentes, é caracterizada pela configuração do Juazeiro enquanto delineador do
confronto Luz versus Trevas, dos contrastes ideológicos. Vejamos nos escritos de Jorge
Tufic, ao introduzir a obra de Audifax Rios, a inerência das imagens de luz e trevas
atreladas à relação de Ana com as serpentes:
Campanário seria o caminho da salvação de Gerviz, para ‘sozinhar’ (ali) suas fantasias de moça moderna e avançada, tolher a feminilidade libertária e sepultar de vez seus desejos numa janela fria ou no porão das cobras venenosas. Autenticada família mediante registro preventivo, prossegue o novelo, o fio da prosa. E a prosa desse aqui não dispensa o poético. Modelares são as comparações da rotina dos homens com a rotina dos bichos, peixes, águas escuras. As Intuições meteorológicas também andam de asas grudadas aos algarismos da luz e da sombra (RIOS, 2005, p.10).
Assim, Rios, Tufic e Pardal contextualizaram a relação entre Ana e as
serpentes com as mesmas tendências de representação no sentido de potência, que ora
assume as características da configuração do Juazeiro. No primeiro momento, nos
escritos de Euclides da Cunha, agora numa outra perspectiva, fomos percebendo que as
imagens de Audifax Rios em suas duas obras, Búfalos de Campanário e Migalhas para
as Serpentes, revelam o fio condutor, velado à primeira vista, de um discurso
eminentemente político, muito bem elaborado.
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O paralelo feito entre arma, representação (farda) e conhecimento, são
aspectos do poder que toma cores diferentes, manifestando suas estruturas. Neste caso,
Audifax Rios vai explicitar o saber como poder através da personagem do Chico
Orapronobis, o qual instalou um microfone no confessionário a fim de escutar as
confissões e manipular as mulheres da cidade para conseguir um pedaço das terras do
legado, doadas para a Igreja. Ele usa o mesmo artifício para manipular as doações em
proveito próprio, manifestando o poder das intrigas subterrâneas. Poder similar ao das
serpentes instaladas nos porões. Trata-se, também, de uma invasão de interioridade com
a intenção de contra-dominar, ou mesmo para minar a intimidade das mulheres do lugar.
Esta descoberta vai revelar que a situação de extrema miséria sofrida pelos
nossos sertanejos, num contexto político opressor, já descrito como valor histórico e
sociológico apontado pelo imaginário coletivo da Cidade de Santana do Acaraú, vai
delinear uma tendência comportamental curiosamente antagônica às características até
agora vistas por nós. Esta situação vai trazer à nossa reflexão as noções do Regime
Noturno da Teoria do Imaginário, de Gilbert Durand (1997).
Diante de tanta pressão social, o imaginário de Rios vai revelar uma reação
contra a ordem vigente. Como mencionamos anteriormente, tanto os búfalos como as
serpentes vão revelar potência e a ação vai ser de invasão. A este propósito, em um
passo do segundo romance, as serpentes começam a escapar do porão pela brecha da
porta, mas são severamente postas para dentro do porão e tapadas as brechas. Por este
acontecimento, a personagem Ana Gerviz manda pintar um quadro com serpentes e
coloca na sala da casa. Este movimento vai denotar que aquelas representações
conscientes são motivadas pela força e pelas potências de tudo aquilo que ocorre no
inconsciente coletivo.
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Ao reunir as imagens apresentadas pelo autor estudado em configurações,
notamos que, para além do comportamento diurno, isto é, de resistência, de luta para
transformar o meio cósmico e social, típicos da configuração da Caatinga, tanto em
Búfalos de Campanário, quanto em Migalhas para as Serpentes, são elaboradas
imagens que configuram o clientelismo, o apadrinhamento, proteção a um grupo de
pessoas e refúgio, no caso da moral e da religiosidade.
Estas características vão reunir-se em outra configuração de Jurema, que
inverte o valor afetivo: o coronel, evidente opressor, transfigura-se na imagem do
compadre. Fazendo o coronel padrinhos dos filhos, o sertanejo oprimido traz o coronel
para dentro de casa, para a proximidade, invertendo o valor afetivo e harmonizando o
contraste. Assim, segue um perfil da cultura sertaneja do compadrio, do
apadrinhamento: proteção, segurança e refúgio, encontrando, nesta re-significação, uma
maneira de resistência e sobrevivência. Nota-se que nesta dimensão não existe quebra
do sistema político e econômico, como sugere o enfrentamento da configuração da
Caatinga, mas uma adaptação por meio da re-significação.
Estas representações manifestam-se nas imagens de Migalhas para as
Serpentes, no episódio do concurso público para telegrafista para o qual as personagens
se preparavam, pois os governos autoritários de então não ofereciam outras formas de
sobrevivência no sertão senão através de um emprego público. Assim, o Estado revela-
se como refúgio numa situação de extrema pobreza. Nesta situação, a personagem do
Capitão, que ensinava para os outros como utilizar o código Morse para concorrer com
ele no concurso, passando-se por solidário com os concorrentes, já tinha se colocado de
acordo com padrinhos na Capital para ser aprovado no concurso.
76
Outra imagem é a das personagens do padre antigo e do recém-chegado, que
querem doar as terras do legado para os pobres, fazendo manifestar-se, então, uma série
de apadrinhamentos, as relações religiosas ambíguas em que o sacristão manipula para
ser beneficiado. Ao verificar este aspecto, demo-nos conta de que este episódio é muito
semelhante a algumas narrações dos caboclos assentados de Santana do Acaraú. A
propósito, Igreja como refúgio manifesta-se não só espiritualmente, mas, em alguns
casos no status de quem segue a vida sacerdotal, pois ser padre significa ascensão
social.
Estes gestos que parecem motivar o estabelecimento da ordem vigente
podem nos sugerir a tendência gestual vista por Euclides da Cunha no Umbuzeiro:
caracterizado por ele na ação de adaptação. Esta adaptação não se revela de modo
passivo, mas ativo. De recriação, ou re-significação. Para Cunha, o umbuzeiro
'modifica-se a feição do meio' e prepara-se para a resistência reagindo, desafiando as
secas. Notadamente, usou expressões ativas do umbuzeiro.
Neste momento, salta aos nossos olhos com mais evidência o
entrelaçamento das relações de poder. Cada uma com identidade própria, o poder dos
búfalos e o das serpentes. Os búfalos são força física, o poder das ameaças externas. As
serpentes são poderes que se confundem com nossas angústias. Estão nos porões. A
complementaridade entre os dois poderes potencializa-os, configura a dominação ou
indica o aprofundamento da dominação. Sua banalização.
Considerações finais deste capítulo
Enquanto o Regime Diurno, que caracteriza o Arquétipo da Caatinga,
coloca os contrários em confronto evidenciados pelas imagens do guerreiro, dimensão
77
ativa explicitada pela idéia de potência; o Regime Noturno, localmente reproduzido pelo
arquétipo da Jurema, não deixa de ser ativo, mas o exercício acontece no combate à
angústia por conversão e eufemização para dar novo significado, harmonizando os
contrastes.
Nesta atitude imaginária básica do Regime Noturno, nota-se a dominante da
estrutura sintética quando, na coincidência dos opostos, estabelece a dialética dos
antagonismos a fim de harmonizar os contrários. Assim, podemos detectar a lógica da
estrutura semântica de permanência deste sistema traduzida em hábitos e costumes que
se prolongam no tempo. Este, por sua vez, encontra os esquemas gestuais de relação de
pontos de fixação diante da fluidez do tempo. Assim, o inconsciente coletivo formaliza
e legitima as instituições.
Nestas instituições encontramos a constituição do significado das relações
históricas que compõem a tradição do Vale do Acaraú. É justamente nesta linha que as
instituições entram na lógica da racionalidade de valores.
A configuração de Jurema manifesta-se na própria casa de Ana Gerviz
como elemento unificador: a Casa é a própria tendência agregadora da Jurema, a qual
engendra o simbolismo arquetipal da casa porque abraça todos os elementos simbólicos
que estudamos. Qual realidade fundante de todo o esquema, nutre o sistema
caracterizado pela dimensão matricial alimentadora, pela inclusão dos elementos
simbólicos que combatem a angústia pela conversão e a eufemização dos valores,
provocando a união, o abraço dos elementos.
No âmbito da ação delineada pela configuração da Caatinga, no decorrer de
toda a narração, o imaginário de Audifax Rios conduziu as instituições da cidade para o
esvaziamento de significados: é emblemático o suicídio de uma das personagens,
78
enforcada no mastro da bandeira nacional, portanto símbolo da pátria; e no cálice da
igreja paroquial foram encontrados os seus órgãos genitais: uma provocação ao poder
moral da Igreja. Profanando o sagrado, os símbolos civis e religiosos as imagens do
autor vão questionar as estruturas de representação simbólica que funcionam como
pontos de fixação social diante da fluidez do tempo.
A casa de Ana Gerviz revela-se como força agregadora: a reunião de
diferentes espaços, diferentes significados, de relações que delineiam configurações
específicas. Nas duas obras o autor vai evidenciar, na centralidade dos eventos, o
sentido de potência, colocando a invasão dos búfalos à cidade de Campanário na
centralidade de toda a primeira obra e, do mesmo modo, as serpentes na segunda obra.
Todas as realidades giram ao redor da casa, onde existe o porão das serpentes, e os
acontecimentos são sempre migalhas que servem para alimentar as serpentes.
Essa redundância nos levou a observar a centralidade das duas imagens, que
colocadas em relação com seus contextos, faz-nos colher uma idéia e uma ação. A idéia
é de potência e a ação é de invasão, penetração, assim existindo uma totalidade que foi
invadida. Com estes dois elementos alcançamos o schème da narração mítica, as
dimensões primeiras da narração mítica, a idéia primordial da re(a)presentação e,
portanto, a alma do discurso.
Neste capítulo, pudemos alcançar a dimensão da linguagem enquanto
narração mítica. Massimiliano Marianelli interpretou o conceito de Weil de que os
mitos são considerados locais de mediações semânticas, qualificando-os como espaços
narrativos de relações onde a humanidade pode reconhecer “pensamentos”, e
“sentimentos” colocados em comum com os outros, sendo legitimados na coletividade e
caracterizando-se numa forma de racionalidade fundamental (MARIANELLI, 2007, 82).
79
Por isso, o espaço Mítico, sendo lugar de troca de sentimentos mútuos que
legitimam convicções, revela-se como ambiente apropriado para a sedimentação da
cultura de um povo. Neste espaço, pudemos discernir o princípio de fraternidade nas
suas características próprias de simetria e reciprocidade, na troca de valores que
fomenta uma identidade cultural.
80
CAPÍTULO 4
Um Olhar Sobre a Cidade
Sociedade que não se funda nos laços da amizade e da fraternidade é, também, sem compaixão (MATOS, Olgária, 2006, p.64).
Sociedade sem espaço para a amizade e para a fraternidade, na expressão de Espinosa, não merece o nome de cidade, mas antes o de solidão (Idem, p. 65).
“Um certo cavaleiro havia recebido uma importante missão: encontrar os
elementos perdidos. Os elementos eram nove. Estavam espalhados na pequena cidade.
Uma cidade comum como qualquer outra”. Assim, Luiz Carlos de Souza, um jovem que
participa da companhia de teatro da cidade de Santana do Acaraú, começou a construir
um micro-universo narrativo sobre a sua cidade. O nosso caminho está apreciando
algumas tendências da cultura sertaneja, do Nordeste brasileiro, através das imagens
oferecidas por Euclides da Cunha, em sua obra Os Sertões, perpassando também a
análise literária dos romances de Audifax Rios para perceber alguns mitos circulantes na
região do Vale do Acaraú. Aí desenvolvemos pesquisa de campo para descobrir a
semântica presente nos principais ambientes da cidade. Assim como no casarão onde
morava Ana Gerviz − ambientes diferentes apresentavam configurações diferentes −
intentamos perceber a cidade de Santana do Acaraú em seus múltiplos espaços.
Pudemos descobrir alguns significados atribuídos pelos sujeitos da pesquisa
desenvolvida no referido município.
Santana do Acaraú é uma das oito cidades que compõem o Vale22 do rio
Acaraú que reúne, em sua bacia, um grupamento de cidades limitadas pela localidade de
Barra Velha, entre os municípios de Cariré e Santa Quitéria, e o distrito de
Mutambeiras, nos limites de Santana do Acaraú23, no norte do Estado do Ceará.
22 Além de Santana do Acaraú, os municípios que formam esta região são Alcântara, Cariré, Santa Quitéria, Massapé, Forquilha e Sobral, na planície fluvial. Somam-se a estes também o município de Meruoca situado sobre os maciços residuais. Esta composição segue a lógica apresentada pelo Plano de Desenvolvimento Regional do Vale do Acaraú - PDR por estarem vinculadas política, social e economicamente. A proximidade geográfica propiciou um plano comum de desenvolvimento.23 Ver a localização da cidade no mapa da Espacialização das Atividades Produtivas, p. 83.
81
Mapa 1: COMPOSIÇÃO REGIONAL E REDE URBANA EXISTENTE
O crescimento da região foi fruto da pecuária do século XVIII. Atualmente,
apresenta um grande potencial turístico serrano, no complexo da Meruoca e Alcântaras,
além de desenvolver a pecuária de pequeno porte, a agricultura de sequeiro e o
extrativismo vegetal. A região do Vale, propriamente dita, apresenta forte potencial para
a agricultura irrigada, como também para piscicultura continental intensiva 24.
24 Ver mapa da Espacialização da Agropecuária e Agricultura de Sequeiro, p.82.
82
MAPA 2: ESPACIALIZAÇÃO DA AGROPECUÁRIA E AGRICULTURA DE SEQUEIRO
A maior força econômica na região é a indústria que representa 10,5% do
PIB estadual, contra 2,86% do PIB agropecuário. A região é polarizada pela cidade de
83
Sobral25, onde se encontra o parque industrial, reforçando a fragilidade dos demais
municípios do Vale26.
Mapa 3: ESPACIALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES PRODUTIVAS
25 Segundo o Plano de Desenvolvimento Regional (PDR) do Vale do Acaraú, a região possui 250.583 habitantes numa área de 4.349 Km2, com 8 cidades sedes municipais e 29 sedes distritais. Diz-se no PDR: "das oito sedes municipais, Sobral é o principal centro urbano, não só da região, mas também da área que abrange o Norte e o Centro Oeste do Ceará, além de toda a região limítrofe do Estado do Piauí". Fonte: PDR DO VALE DO ACARAÚ, Maio 2004, p. 3526 Esta característica torna-se evidente ao comparar os mapas da Composição Regional e Rede Urbana Existente p. 81 e da Espacialização das Atividades Produtivas p. 83 onde percebemos nítidos desequilíbrios na densidade demográfica e econômica entre as regiões rural e industrializada. Os habitantes estão distribuídos em uma área de 4.349 Km2 ,conforme os dados do IBGE em 2000, sendo os municípios de maior freqüência populacional os indicados na Tabela nº, pág. 84. Fonte: Municípios da Região Norte Cearense Mais Populosos, (IBGE 2000).
85
MAPA 5: ESPACIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA IRRIGADA E PISCICULTURA
Fonte: PDR V. do Acaraú
Quadro/ Tabela nº 3MUNICÍPIOS MAIS POPULOSOS DA REGIÃO NORTE CEARENSE
MUNICÍPIO POPULAÇÃO
Sobral 155.120
Massapé 19.158
Santana do Acaraú 12.454
Forquilha 11.619IBGE 2000
86
Escolhemos, no Ceará, trabalhar sobre Santana do Acaraú por ter
demonstrado um crescimento econômico-social razoável em comparação aos demais
municípios do Estado e por sua participação política marcante, podendo nos servir de
modelo para a média das demais cidades do Nordeste, ou seja, com características
urbanas e rurais pouco semelhantes às de um pólo aglutinador com o perfil de Sobral,
Crato ou Juazeiro, e sem os índices sociais demasiadamente baixos como os das cidades
de Ipoeiras e Poranga, na mesma região.
Por procurarmos perceber nos grupos maior coesão e níveis de consensos ou
dissensos foi importante para a pesquisa ter percebido, em Santana do Acaraú, o
crescente nível de participação política dos cidadãos na administração pública. Através
dos conselhos participativos ou conselhos populares, denominados na cidade como
"Conselhão", reúnem-se todo último sábado de cada mês, com uma média de 140
conselheiros27. Francisco Guedes, um dos fundadores do Conselhão, explica que:
Os conselhos zonais são menores que as associações comunitárias, pois a célula mãe do conselhão são os grupos de jovens, de mulheres, associação de pais e mestres, que jamais poderão ser asfixiados pelo conselhão, por isso os conselhos zonais tem constituição leve, sem presidentes e hierarquia pesada. Estes são formados por um secretário e três auxiliares. Um Zonal é o conjunto das associações, que por sua vez formam o conselhão. Não poderemos jamais definir o Conselhão, pois ele nunca será uma idéia acabada, porque ele se reveste sempre como processo que necessita de um discurso de igualdade entre todos (em entrevista a nos concedida, em 9 de Janeiro de 2007).
Assim, tem cooperado para uma maior convergência das comunidades do
município o empenho dos governos Municipal, Estadual e Federal nos projetos de
fixação e maior convivência do sertanejo com o semi-árido. Dentre estas iniciativas
destacamos o trabalhado das lideranças do município de Santana para estabelecer uma
política de maior constância na fixação e o estabelecimento de residência, com atos
públicos de efeito jurídico de doação de terras, no programa de reforma agrária dos
governos, compondo áreas de assentamentos28.
Estas áreas ficaram assim distribuídas:
27 O Conselhão foi regulamentado pela lei orgânica do município n. 300, de 30 de dezembro de 1992. É composto por um conjunto de 10 zonais, cada zonal tem um secretário que coordena o conjunto de comunidades que a formam. 28 Na Região do município de Santana ficaram delineadas as áreas de assentamento como na Tabela Assentamentos por localidade. Deixamos de fora as áreas do Pajeú com 630 hectares e 15 famílias; e Canafístula com 406 hectares e 11 famílias; num total de 1.036 hectares e 26 famílias que estão, ainda, no processo de instalação de assentamento.
87
Quadro/Tabela nº. 4 ÁREAS DE ASSENTAMENTOLOCALIDADE HECTARES FAMÍLIAS
Alvaçã - Goiabeiras 2.128,27 70
Ipueirinha/Ouricuri 1.540,83 40
Ipueirinha/Rancho Alegre 476,9 13
Bonfim /Conceição 6.755,9 223
Lagoa do Serrate 1.040,23 36
Lagoa do Girau 2.103,28 45
Santa Rita 1.294,23 44
TOTAL 15.339,64 471
DADOS DO PDR DO VALE DO ACARAÚ, 2005.
1. Configurações de Nove Arquétipos.
Retomando a narração de Luiz Carlos veremos um cavaleiro que passa por
esta cidade cumprindo a missão de encontrar os nove elementos perdidos.
Para facilitar a missão, ele (o cavaleiro) resolveu criar metas e decidiu encontrar primeiro a água. E pensou (...). Como não podia ser somente os elementos em si, mas o que estes representavam(...). Para ele a água representava vida, nascimento, e foi fácil, o elemento água estava no hospital. Agora o fogo. O que era para ele o fogo? Representava calor e, na pequena cidade havia um lugar onde o povo se reunia e discutia o rumo do município, e lá estava o fogo que nasce e se espalha. A espada estava na prefeitura, ela representava poder. O refúgio daquele povo era sem dúvidas a igreja (...) (grifos nossos, protocolo de pesquisa “A”).
A narração acima é fruto das elaborações criadas com o Teste AT9 que acontece através da sugestão de imagens do inconsciente coletivo ao inconsciente do indivíduo. Estas representações coletivas sugeridas ao sujeito são patrimônio comum a toda a humanidade, denominadas de Arquétipo, por C. G. Jung (1987, p.88). As imagens do 'Paraíso Perdido', do ‘Dragão' e do 'Círculo' são exemplares de arquétipos, ou modelos de referência mítica que se encontram nas mais diversas civilizações.
88
Do mesmo modo acontece com a imagem da 'Casa', arquétipo que se confunde com a noção da própria cidade, enquanto totalidade, como pudemos perceber na casa de Ana Gerviz.
Neste capítulo, nosso olhar vai se deter no presente da cidade de Santana do Acaraú para formarmos uma idéia de como os santanenses percebem alguns de seus espaços. Aí fiz a pesquisa de campo e trabalhei com pessoas de diversos tipos de atividades e funções sociais: assentados, estudantes, gente da zona rural e urbana, militantes nos partidos políticos, imbuídas de mandatos públicos, profissionais liberais, jovens, adolescentes e adultos.
Foto 1: Atividade com os sujeitos da pesquisa
Para os grupos formados por estas pessoas sugeri nove arquétipos, conforme
a técnica da convergência simbólica, mais precisamente no âmbito do teste denominado
Arquétipo Teste de 9 elementos (AT9) desenvolvido por Yves Durand29. Os modelos,
ou arquétipos foram: uma queda, uma espada, um refúgio, um monstro devorador,
alguma coisa cíclica (que gira, se reproduz ou progride), um personagem e/ou uma
personagem; água, um animal (pássaro, peixe, réptil ou mamífero) e o fogo. Assim,
Danielle Pitta explica o teste de Yves Durand:
Partindo do princípio que o símbolo só é significativo quando inserido em um contexto, a experimentação deverá ser feita através da criação individual (no caso) deste contexto, e para que isso ocorra, é
29 Este teste é explicado por Danielle Pitta, em Imaginário, Cultura e Comunicação – Métodos do Imaginário, 1995, escritos inéditos, p. 32.
89
necessário criar as condições experimentais. O teste AT9 irá propiciar estas condições. Deste modo, a teoria de Gilbert Durand construída através de um material antropológico, através das imagens presentes nas artes e mitologias, é verificada por Yves Durand a partir de um material psicológico, através das imagens produzidas no quadro do Arquétipo Teste de 9 elementos (PITTA, 1987, p.34).
Continuando a ler a narração de Luiz Carlos perceberemos como os
arquétipos indicados confraternizam no contexto do micro-universo que Luiz criou
revelando a imagem que ele tem dos espaços da cidade:
(...) Todos assinalados agora ele precisava encontrar algo que gira. Que elemento estranho, pensou ele, o que seria? E decidiu que era, talvez, uma espiral, onde começa e cresce infinitamente. Matei a charada! Disse ele depois de pensar bastante. È o colégio. As Crianças estudam e se formam para a vida. O próximo era uma queda! Era um elemento mais estranho ainda. Até que ele entendeu que, quando alguém cai pode ou não levantar. Era o hospital, ou seja estava no hospital. Chegou a vez do tal do animal. Este elemento podia estar em qualquer lugar. Era questão de pensá-lo como um elemento. É algo que produz e que gera lucro. E depois de dias o encontrou no banco da cidade (grifos nossos, Arquivo de pesquisa, prot. “A”).
Notoriamente, esta narração está delineada pelo processo do AT9,
configurado, primeiramente, pela apresentação ao sujeito da pesquisa de um mapa da
cidade de Santana do Acaraú. Em seguida pedimos que o indivíduo desenhasse, nos
espaços da cidade, os nove arquétipos acima referidos. No segundo momento, deveria
narrar uma história envolvendo os nove elementos nos seus espaços, criando um micro-
universo. Este exercício levou-nos a conhecer o valor atribuído aos espaços; a detectar a
ansiedade e os ambientes de retro alimentação do sertanejo santanense para superar a
angústia. Deixemos o sujeito da pesquisa concluir sua narração:
(...) Todos os elementos estavam na bolsa mágica, prontos para serem entregues de volta, só faltava o monstro que devora! Este lhe causou medo. Mas era apenas um elemento. O cavaleiro já havia andado por toda a cidade e já cansado, pensou em desistir. Já no último sentou em frente a um cemitério e meditou... meditou. Ao olhar para trás viu a porta do cemitério e lembrou que ia morrer se não conseguisse finalizar a missão. Que se não fizesse ele é que seria engolido por uma cova como por um monstro! Pronto, decifrou: o monstro devorador era o cemitério. E assim, cheio de orgulho o cavaleiro cumpriu a missão e entregou todos os elementos ao misterioso rei. Mas de uma coisa ele sabia, que aqueles elementos poderiam estar em qualquer lugar, era questão de interpretar o que eles significavam.
A narração de Luiz indica uma disposição básica, sobretudo, em seres
humanos envolvidos numa situação limite, própria do contexto de seca em que o sentido
de finitude da vida é confrontado, cotidianamente, por causa do alto nível de
90
mortalidade, baixo índice nutricional e pouca tecnologia. Assim, a cidade e a civilização
trazem uma dimensão de segurança básica em relação ao princípio da vida, por
concentrar uma organização onde o processo pelo qual os elementos culturais concretos
ou abstratos de uma sociedade, como o conhecimento, as técnicas, bens e realizações
materiais, valores, costumes, gostos, conquistas políticas etc. são coletivos e/ou
individualmente elaborados, desenvolvidos e aprimorados.
Esta mesma indicação valorativa pudemos encontrar tanto na zona rural
quanto na zona urbana da região de Santana do Acaraú. Porém, na sede da cidade de
Santana, caracterizada por certo grau de desenvolvimento tecnológico, econômico e por
diferenciação social, divisão do trabalho, urbanização e concentração de poder político e
econômico, a dicotomia entre civilização e seca tornou-se mais intensa a medida da
proximidade dos espaços com o centro da cidade.
Durante a pesquisa de campo esta idéia foi confirmada, sobretudo entre os
assentados, onde foram sublinhadas sobremaneira imagens que remontavam à seca,
fome, água, persistência e resistência. Estes elegeram o desemprego como elemento
causador da fome e a seca como uma categoria que aparece com os aspectos de miséria.
Esta seca como provocadora da fome reduz a economia e retrai a agricultura. A seca se
refere ao cemitério, como evidenciaram algumas configurações, e coloca a cidade como
espaço de proteção, conforme as indicações de vários sujeitos da pesquisa: ao
confrontar os espaços internos e externos da cidade estes compuseram imagens de
dicotomia entre estas partes, apresentando a cidade como espaço de proteção.
As características desta relação interioridade versus exterioridade da cidade
veio delineada pela configuração do Juazeiro: dicotomia luz e trevas, positivo e
negativo. Assim, escolhemos perceber a cidade conforme as configurações já referidas
neste trabalho: Caatinga, Juazeiro, Umbuzeiro e Jurema. Para avaliar alguns espaços
importantes da cidade e perceber as tendências de significados, reuni em grupos as
relações entre as imagens apresentadas aos sujeitos e os espaços, e obtive algumas
tendências.
91
2. A Semântica da Cidade
O primeiro passo foi verificar quais espaços foram mais referidos pelos sujeitos
para depois entender a semântica destes ambientes. Assim obtive o seguinte resultado de acordo
com a tabela abaixo:
Quadro/Tabela nº. 5 - ESPAÇOS DA CIDADE COM MAIOR FREQÜÊCIA
ESPAÇO TOTAL FREQÜÊNCIA PERCENTUAL
Igreja 15 12 80,0%
Secretaria de Segurança 15 10 66,6%
Prefeitura 15 07 46,6%
Banco do Brasil 15 07 46,6%
Conselhão 15 07 46,6%
Escola 15 07 46,6%
Mercado Público 15 07 46,0%
Câmara dos Vereadores 15 06 40,0%
Hospital 15 05 33,3%
Como podemos notar, no quadro acima, os sujeitos da pesquisa elegeram a
Igreja (80%) e a Secretaria de Segurança Pública (66,6%) como os ambientes mais
freqüentados. Esta estatística nos leva a perceber o valor atribuído a estes espaços, que
só se descobre quando agrupamos os arquétipos que cada sujeito atribuiu,
individualmente, aos mesmos. Este agrupamento nos leva a perceber não um dado
objetivo, quantitativo, mas o valor subjetivo, isto é, o significado dessas instituições
para a coletividade. Como já dissemos, os símbolos confraternizam compondo uma
mensagem, como um texto, uma carta, que conta uma idéia, uma concepção de um
determinado espaço.
92
Foto 2: Secretaria de Segurança Pública de Santana do Acaraú
Assim, tanto o espaço eclesial quanto o da Segurança Pública manifestaram
o mesmo princípio, a mesma imagem: a idéia de 'proteção'. Porém, ao analisarmos a
semântica atribuída a cada um desses espaços individualmente – Igreja e Secretaria de
Segurança Pública – percebemos que a concepção de proteção apresenta características
diferentes para cada um dos dois ambientes.
Vejamos, no Quadro da semântica da igreja, uma síntese que pode nos
oferecer, com maior nitidez, a noção dos agrupamentos simbólicos.
Quadro nº 6 ARQUÉTIPOS SITUADOS NA IGREJA
ARQUÉTIPO REPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO
REFÚGIO Uma cruz Refugiar o povo Para “A”
ÁGUA Um riacho que sai da igreja matriz
Para “B”
ÁGUA Rio passando pela Igreja Para “E”
ÁGUA Rio Perto da Igreja Para “F”
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ÁGUAUma gota
Dar força e energia, lavar os pecados.
Para “G”
REFÚGIOUma casa
Lugar sagrado/tem mais sombras
Para “H”
REFÚGIO Quadrado com dentro um menino
Acolher os necessitados de Deus
Para “I”
QUEDA Chuva que cai como palavra
Brotar coisas novas Para “I”
REFÚGIOQuatro bonecos
Família em busca de refúgio espiritual
Para “J”
FOGO Fogueira, Calor União com Deus Para “L”
FOGO Uma fogueira Iluminar Para “M”
ALGO CÍCLICO Um par de olhos Verificação popular Para “O”
O Refúgio: a Bíblia, em frente ao templo, para K e os demais; C, D, N nada referiram.
O espaço sagrado foi relacionado aos arquétipos da água, do refúgio, do
fogo e da vitalidade de algo cíclico. Assim, a água apontou para o sagrado como fonte
da vida e da energia que sai da igreja matriz, gota que lava os pecados, com noções de
recuperação, refazer as energias. Neste sentido, a atribuição da imagem da água
confirma o poder espiritual que perpassa as estruturas.
Neste caso, a imagem da água confirma o poder moral da Igreja que
perpassa as estruturas, o lençol freático que passa por baixo de toda a cidade. Um dos
sujeitos da pesquisa assim explica: "Igreja é a água, pois para mim a Igreja nos dá força,
nos dá energia, e lava nossos pecados” (Arquivo: MES - Pasta AT9SDA - Protocolo "G")
Dados da Pesquisa. Outro sujeito coloca a imagem da correnteza do rio que está sempre
em movimento, que vai-e-vem (CF: Arquivo MES - Pasta AT9SDA - Protocolo "B" - Dados
da Pesquisa). Esta idéia entra em consonância com a teoria de Cirlot quando trabalha a
simbologia da água:
A água não pára nem de dia nem de noite, se passa pelo alto cria a chuva e o sereno, se passa por baixo forma os córregos e os rios. A água é bem feitora do bem por excelência. Se lhe contrapõe um dique essa pára, mas se a canaliza essa escorre. Dizem que ela não luta, todavia nada a iguala em romper tudo o que é forte e duro. No aspecto dos grandes cataclismos o simbolismo da água não muda, mas se submete ao simbolismo dominante da tempestade, a mesma coisa acontece quando predomina a característica de mobilidade da água, como no pensamento de Heráclito. Não se trata da água do rio a qual 'ninguém pode tomar banho duas vezes’, mas a idéia de circulação, de leito, e de elemento em caminho irreversível (DICIONÁRIO, 2002, p.57).
94
No quadro podemos ver que 'H' colocou a imagem de abrigo, sombra que
alivia o calor. Outros colocaram o fogo, não como algo que queima, destrói e fere, mas
que ilumina: ao mesmo tempo em que aquece, clareia com poder aglutinador,
aconchego e união. A queda não é apresentada como imagem da decadência, mas como
gotas de chuva que faz germinar, brotarem coisas novas. Isto nos leva a entender que
ao espaço do templo foi atribuída a semântica do arquétipo da mãe, que se configura em
Jurema, enquanto princípio de referência.
Porém, podemos verificar que, enquanto instituição, a Igreja é percebida
com aspectos de poder moral e espiritual, na cidade. Este poder é percebido não como
algo que machuca os sujeitos da pesquisa, mas com nuanças de proteção, com as
características típicas da configuração do Juazeiro: delineada pelo confronto Luz versus
Trevas, dimensão espiritual e contrastes ideológicos.
Foto 3: Igreja Católica Romana, Matriz de Sant’Anna
95
Já o valor atribuído à Segurança Pública, mesmo sendo também de proteção,
apresenta-se com as características da configuração da Caatinga: fogo, espada. Idéias
como agressividade, luta e enfrentamento são usadas não para a destruição de um
objeto, mas para defender o sujeito no combate à ameaça. Vejamos uma síntese do
agrupamento feito dos arquétipos atribuídos à Segurança Pública.
Quadro nº 7 SECRETARIA DE SEGURANÇAARQUETIPO REPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO
ESPADAUma espada - O destacamento policial
Anticorpos do seu mundo – podem defender e ferir.
Para “B”
ESPADA Uma espada Pare “E”
ESPADA Uma espada Para “F”
FOGO Fogueira Destrói a liberdade Para “H”
ESPADAUm machado
Defesa do cidadão, força policial.
Para: “I”
ESPADAUma espada
Luta, defesa contra os bandidos.
Para “J”
ESPADA Uma espada Na delegacia Para “K”
ANIMAL Um leão Agressividade Para “L”
ALGO CÍCLICOSetas circulares
Ação negativa dos políticos, algo repetitivo.
Para “N”
REFÚGIO Uma casa Proteção Para “O”A, C, D, G e M nada referiram.
Durante a pesquisa de campo, após o exercício individual, juntei os sujeitos
em um único grupo e pedi que refizessem, agora de modo coletivo, o mesmo exercício
que fizeram individualmente. Com isto, eu objetivava saber qual a dimensão das
relações de negociação, aglutinação ou dispersão e se, no âmbito das relações de força,
as decisões eram tomadas segundo a maioria ou pelo convencimento de todos os
participantes. Assim, fomos verificar no mapa coletivo estas tendências.
96
Foto 4: Mapeamento coletivo.
Ao ver o mapa coletivo e reler o diálogo entre os sujeitos da pesquisa vimos
que fizeram, coletivamente, o mesmo movimento atribuindo aos âmbitos da segurança
pública e à Igreja a imagem de proteção, simbolizando para a delegacia uma gruta e
para a Igreja Matriz uma casa. Importante notar o diálogo entre eles:
- Então, vamos ver a Igreja é unânime do refúgio, não é?
- Eu também acho.
- Concordo, a Igreja é o refúgio do ser humano.
- E aí, botou o quê no refúgio?
- A Delegacia. Onde o preso se recupera na delegacia, isso vai acontecendo devagarinho.
- Então, vamos lá, que eu desenho uma caverna, é isso?
- Então, coloca né?
- Na Igreja, o refúgio.
- Você coloca ela como se fosse um lugar de fechado.
- Uma caverna pode ser assim, ó... uma caverna assim, ó. O senhor já viu uma caverna? E assim, faz assim.
- E uma casa que não tem como escapulir, então é uma igreja, a igreja é uma casa." (Arquivo de Pesquisa - Trasnc. Oral AT9SDA p.030)
Os grupos estudados atribuíram maior valor afetivo à proteção. Isto nos leva
a procurar o que os ameaça, onde se encontra a angústia. Neste sentido pudemos
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perceber nos espaços da prefeitura, Câmara dos Vereadores, Banco, no hospital
(enquanto SUS), uma composição simbólica que elaborou uma mensagem seguindo a
lógica: definição do espaço e a indicação da aflição. Verifica-se esta dinâmica, no
Quadro abaixo.
Quadro nº 8 BANCO DO BRASIL
ARQUETIPO REPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO
ANIMAL Um boi Reproduzir criar lucro Para “A”
FOGOSol, circulação de dinheiro
Aposentados recebem benefícios- depósitos das rendas
Para “C”
MONSTRO Um rosto de fantasma Olhos fiscalizadores Para “D”
MONSTRO Um lobo com dentes grandes
Proteger o dinheiro Para: “G”
ALGO CÍCLICOUma roda
Dinheiro vai-e-volta banco - Gira dinheiro que entra e sai.
Para “H”
ALGO CÍCLICOUma casa redonda
Trabalhar todo o território do município.
Para “I”
MONSTROUma moeda
Devorar todos os cidadãos com juros altos
Para “J”
B, E, F, K, L, M, N e O nada referiram.
3. Do Refúgio às Ansiedades
Alguns indicam a funcionalidade do Banco como a circulação da moeda, o
pagamento dos aposentados que influencia diretamente na renda, sobretudo, como
beneficio às famílias mais carentes em um contexto de baixa oportunidade de emprego.
Fiscalizar e proteger o dinheiro com as imagens dos seguranças. Saindo do campo das
funções entramos na dimensão da angústia dos juros altos, fiscalização, e cobranças de
débitos.
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Nesta linha, seguem as instituições de poder político: Prefeitura e Câmara
dos Vereadores.
Quadro nº 9 PREFEITURA MUNICIPAL
ARQUETIPOREPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO
ESPADAUma espada
Força / execução Emblema – passivo
Para “A”
MONSTRO
Um monstro na prefeitura invencível porque muda com o tempo
Lugar onde são planejadas as coisas Um cachorro feroz, um lobo, monstro: impermanência na fluidez do tempo.
Para “B”
PERSONAGEM
Um boneco Aprova as leis Prefeito na prefeitura
Para “C”
ALGO CÍCLICO
Um relógio prefeitura
Precisa estar carregado para que tudo gire e funcione, ir para frente.
Para “D”
PERSONAGEM Uma figura masculinaPersonagem que encontra dificuldades para resolver os problemas.
Luta contra as dificuldades
Para “L”
QUEDA
Uma folha solta Recomeço Para “M”
QUEDA
Uma nuvem caindo gotas. Parceria, abrir caminho.
Para “O”
E, F, G, H, I, J, K e N nada referiram.
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Quadro nº 10 CÂMARA DOS VEREADORESARQUETIPO REPRESENTAÇAÃO SIMBOLISMO SUJEITO
ÁGUAUma gota
Onde os vereadores discutem o problema dos assentados
Para “C”
REFÚGIO Uma cabana, ou oca Povo procura apoio Para “D”
FOGOChamas altas
Discussão quente / eliminaria porque pode ferir
Para “G”
FOGODois feixes de madeiras em chamas
Disputa entre partidos, interesse político individual.
Para “I”
MONSTROUm rosto com pernas
Proteger os interesses pessoais
Para “L”
MONSTRO Uma caricatura monstruosa antropomorfisada
Devorador grandes projetos viáveis para a população
Para “M”
A, B, E, F, H, J, K, N e O nada referiram.
Foto 5: Câmara de Vereadores de Santana do Acarau
Estes agrupamentos evidenciam a imagem de fragilidade, comum aos
espaços do Banco, Prefeitura e Câmara Municipal. A prefeitura, enquanto função, é
descrita como executora, e mesmo se é representada por uma espada, esta aparece
desfuncionalizada, como um emblema, demonstrando passividade. Imagens como a
folha solta de uma árvore, demonstrando a fluidez diante do tempo, compõem a mesma
idéia da personagem que é dificultada para resolver os problemas e, portanto, encontra
100
barreiras na execução e do relógio que indica tempo e impotência, pois precisa ter
energia para funcionar. Estas imagens confirmam a angústia demonstrada pelo monstro
na prefeitura que não é direcionado à imagem da prefeitura, mas para a alternância dos
administradores municipais no poder.
A mesma mensagem podemos captar no agrupamento da Câmara Municipal
onde é demonstrada a fragilidade da instituição pelo direcionamento de interesses que
fogem completamente do dever ser da “Casa do Povo”. Estas Imagens acusam a
angústia existente dentro da cidade: a fragilidade das Instituições Políticas do
município.
Isto acontece porque a sociedade ainda está fundamentada no poder
tradicional e carismático e não no Estado burocrático racional. Por isso, a comunidade
não reconhece os referidos espaços como ambientes de segurança e proteção do
indivíduo por estarem delineados por nuanças do período coronelístico.
Esta constatação confirma a mítica vista por Audifax Rios. As instituições
existem, mas são compreendidas pelos sujeitos como frágeis, porque no seu interior
acontece outra dinâmica do uso do poder que atua não para o bem comum, admitindo
uma dominação caracterizada pela imagem das serpentes do autor.
Outro aspecto diz respeito à representação da Câmara Municipal que,
enquanto imagem, se contrapõe às atribuições míticas do Conselhão, fazendo uma
correlação com os demais espaços de poder na cidade. Num outro grupo pudemos
observar que existe uma ansiedade nos sujeitos, pois estruturalmente a Câmara dos
vereadores representa um obstáculo para a resolução dos problemas. A personagem é o
prefeito, o qual está localizado entre os setores: hospital - correio - escola. Uns sujeitos
101
desenharam a prefeitura próxima à Igreja, entre essas duas um espaço com o rio e a
chuva. Por causa da chuva as pessoas se refugiaram no mercado público.
Todos os elementos apresentam função específica e tanto a Câmara
Municipal quanto a polícia vão ser caracterizados pelo desvio de suas reais tarefas:
polícia que não protege, mas fere, e a Câmara que não resolve os problemas, mas é
composta por alguns vereadores que só procuram votos para si - interesses pessoais e
não coletivos.
Foto 6: Cena do Mercado Municipal
Tais elementos vão caracterizar o micro-universo criado pela estrutura
heróica impura, pois existe o combate, de maneira velada, apresentando alguns
elementos do regime noturno, o refúgio adquire função de proteção da queda reforçando
os espaços populares: o mercado onde a população exerce sua autonomia econômica,
espaço coletivo de comerciantes e consumidores, reforçando a idéia de aglomerado
organizado como no Conselhão, que reivindicam os próprios direitos qualificando a luta
contra o monstro.
Deste mesmo modo, um sujeito da pesquisa coloca a personagem = prefeito
em dicotomia com o monstro = Câmara; evidenciando não um combate frontal, mas
coloca o monstro como barreira para os ideais a serem alcançados pela personagem.
102
Esta relação se fragmenta na relação entre o povo que busca autonomia, manifestada na
funcionalidade do refúgio (mercado público) e do Conselhão, que se polariza na
personagem, e de outro lado a polícia, que é representada por um animal feroz
caracterizando outro pólo ao redor do monstro. O sujeito da pesquisa que se coloca do
lado de fora, como observadora do micro-universo, também se enxerga entre o povo
manifestando traços de desejo, de maior humanização dos setores públicos e o sentido
de união correspondendo ao ideal a ser alcançado pelo herói, que organiza suas ações
numa seqüência para objetivar a realização das próprias metas.
Ainda outro sujeito reforça esta imagem quando se refere às forças da
profundidade, os pactos, a corrupção, contrapondo o Conselhão à Câmara Municipal,
qualificando o Conselhão como espaço democrático de reivindicação dos direitos e
esclarecimento do poder público de suas ações à população.
Vista como espaço de pessoas que brigam pelo poder, a Câmara é
caracterizada como “devoradora” de grandes projetos que seriam viáveis e necessários
para a população, prejudicando o desenvolvimento da cidade e, sobretudo,
prejudicando os mais humildes e inocentes.
No micro-universo criado não estão ausentes os elementos de angústia,
apresentando-se a cidade como espaço de insegurança, palco de relações de poder. Sua
configuração tende, entretanto, a ressaltar as qualidades da Estrutura Sintética
simbólica, por meio de uma mítica individuação de pólos opostos em combate,
sugerindo uma reflexão sobre valores em tensão. Paradoxalmente, porém, essas
polarizações não provocam fraturas no micro-universo criado. Portanto, estes sujeitos
apresentam uma angústia frente às relações de força que fragilizam as instituições
públicas, mas que não chegam a provocar fraturas profundas dentro da Cidade, que
103
permanece como lugar de fomentação das relações culturais, de sentimentos e
identidade.
Com outro grupo trabalhamos o teste AT9 fazendo o mesmo exercício,
porém de forma diferente. Aplicamos o teste AT9 de modo individual e, ao passar para
a parte coletiva, não pedimos que eles distribuíssem os nove arquétipos no mapa, mas
que tomando os nove arquétipos compusessem um micro-universo através de uma
apresentação teatral. Depois, seguiu-se uma entrevista com todas as perguntas que
normalmente fazemos por escrito. Tomamos uma câmera e filmamos tudo.
Foto 7: O micro-universo representado teatralmente
104
Foto 8: Registro da apresentação e entrevistas para análise
Ao analisar a filmagem percebemos que a gestualidade das personagens do
Padre e da Beata eram recolhida e apresentaram a Igreja como refúgio, confirmando a
representação dos demais sujeitos estudados anteriormente, apresentando para os
espaços a idéia de proteção.
A mesma idéia foi confirmada pela personagem do policial que assumiu a
representação de um animal: o policial ronda a cidade como um leão que anda nas
selvas. As selvas representam uma imagem de insegurança, logo confirmada pela
imagem da corrupção que toma toda a cidade prejudicando, fatalmente, a democracia
representada por uma personagem lúdica com feições de palhaço.
Em um determinado momento entra a Personagem do Prefeito: imagem do
poder institucional, demonstrada pela espada, sobe na cadeira e, com gestos
ascensionais, pede que o povo diga as suas lamentações, com promessas de resolução
dos problemas.
Neste momento de escuta a personagem estica os braços em formas
arredondadas como um vaso acolhedor e de circularidade. Neste instante, chega a
notícia do alastramento da corrupção em toda parte. O prefeito anuncia que mataram a
105
democracia, o policial ri e diz que ele a matou. “Que uma nova democracia venha”,
gritam todos.. O José e a Beata, que representam a Igreja como refúgio das almas,
indicam outros personagens que, por sua vez, apresentam a escola como lugar onde
brilha e cresce a chama do conhecimento, luz para a vida e busca de novos ideais.
Em seguida, acontece a demonstração do arquétipo da Queda, quando a
democracia morre e depois se transfigura em esperança no devir.
Todo o micro-universo criado pelas personagens confirma a fragilidade das
instituições de poder ainda caracterizadas pelo carismático e tradicional.
Considerações Finais Deste Capítulo
O exercício levou-nos a conhecer o valor atribuído aos espaços da cidade e
fora dela. Esses espaços vão compreendidos em um complexo demográfico formado,
social e economicamente, por uma importante concentração populacional agrícola,
dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural que, no caso
de Santana do Acaraú, envolve a sede municipal e os distritos.
À cidade, entendida desse modo pelos sujeitos da pesquisa, é atribuído um
considerável valor afetivo que dicotomiza os significados dos espaços da cidade e fora
da cidade. Dentro aparecem as imagens de vida e fora os símbolos da morte. Neste
último caso o sertão da seca e da morte.
Porém, existe uma angústia, também dentro da cidade. Segundo os sujeitos
esta é atribuída a impermanência da realidade presente, formalizada na fragilidade das
instituições políticas.
106
Existe uma tendência em transformar e superar esta realidade de dois
modos:
A) Através de movimentos típicos da Jurema, que se alinham ao regime
noturno da teoria da Convergência Simbólica, invertendo-se o valor atribuído aos
objetos causadores de angústia e convertendo-os em elementos de proteção ou de
esperança, eufemizando seus significados para harmonizar os contrários.
B) A outra através dos espaços de retro-alimentação apontados pelos
sujeitos como: a Igreja, dominados pela água, refúgio; da Secretaria de Segurança
Pública - delineada pela proteção e da escola como possibilidade de saída da situação de
depressão.
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CONCLUSÃO
Iniciamos esta dissertação considerando que as democracias modernas, do
ponto de vista formal, apresentam um contínuo crescimento quantitativo. Mesmo se o
significado formal de democracia é aceito por todas as vertentes ideológicas, pois a
vemos compondo slogans de diversas ideologias, até mesmo antagônicas, como a
“Social Democracia” ou “Liberalismo Democrático” fazendo parte integrante de credos
ideológicos contrapostos, como afirmou Bobbio (1990)30; questionamos a qualidade
dessas democracias, tomando como caminho a investigação do Princípio de
Fraternidade, que emergiu como categoria política no emblemático movimento da
Revolução Francesa, ladeada pelos princípios de Igualdade e de Liberdade, princípios
estes componentes da democracia moderna.
Acreditamos que a falta do desenvolvimento da Fraternidade na reflexão das
doutrinas políticas prejudicou a qualidade das atuais democracias. Por isso tomamos um
caminho para contribuir a essa reflexão através das categorias antropológicas.
Nesta via fomos descobrindo que a antropologia apresenta na sua
constituição, enquanto ciência, tendências metodológicas importantes para as nossas
observações, como o despojamento do pesquisador para a inserção nas comunidades
pesquisadas; através de alguns clássicos da antropologia pudemos perceber formas
simétricas e de reciprocidade nas relações sociais que nos ajudaram a fomentar uma
noção de fraternidade mais clara: como a abertura e a simetria entre pesquisador e
sujeitos da pesquisa, a metodologia do despojamento para alcançar o outro; as
30 BOBBIO, Norberto, “Dizionario di Politica” – Ed. TEA – Tascabili degli Editori Associati S. p. A – Torino, novembre 1990.
108
sociedades que estabelecem relações de troca e como essas trocas permeiam a
modernidade.
Por isso entendemos a fraternidade como elemento vinculador não só entre
os membros de uma comunidade, mas verificamos que também as elaborações humanas
apresentam elementos de confraternização entre si: como os símbolos e os mitos. Por
este motivo vislumbramos uma metodologia da fraternidade que nos leva a algumas
conclusões.
Ao observar os símbolos que se arranjam em configurações devemos
procurar relacioná-los de forma simétrica, colocando em pé de igualdade todas as
manifestações, por tratar-se do âmbito da subjetividade, dos valores atribuídos ao tempo
e ao espaço, sem sobrepor o maior numero de redundâncias de um tipo sobre a minoria
das manifestações diferentes. Em campo, como afirmou Boas, não existe maior ou
menor valor, mas tudo deve ser anotado detalhadamente; assim, nas confraternizações
simbólicas tudo deve ser percebido, pois deste modo poderemos compreender a
mensagem que a minoria traz para alcançarmos a plenitude da semântica manifesta na
totalidade das configurações: uma vírgula é pequena diante da frase, mas pode mudar o
significado da frase se for excluída. (LAPLANTINE, 1994 p. 77)
Deste modo podemos aferir que a fraternidade é uma tendência presente nas
relações humanas, com o meio social e cósmico, pois o ser humano visto na dimensão
relacional elabora conjugações de imagens que convergem reciprocamente. Então se o
princípio de fraternidade é constitutivo dos seres humanos enquanto fenômeno
relacional, as elaborações humanas como a política, a arte, a economia, o trabalho etc.
vão realizar cada homem e mulher à medida que estas atividades humanas forem
compreendidas e atuadas enquanto espaços de Fraternidade.
109
Neste sentido as políticas públicas no semi-árido devem levar em
consideração esta premissa, respaldando a economia humana dotada de criatividade,
aptidões, capacidades de enfrentamento, como recursos permeados pelos valores de
reciprocidade, sedimentadores das conexões entre os sertanejos.
Através do movimento de confraternização das imagens, símbolos e mitos
pudemos perceber algumas tendências da cultura sertaneja como os modos de
resistência e enfrentamento da vida diante da fluidez do tempo. A esta fluência são
colocados pontos de fixação, como os hábitos e costumes que se prolongam no tempo,
formalizando e legitimando as instituições no inconsciente coletivo.
Deste modo, convém levar em consideração as referências culturais da
coletividade para a implementação das políticas públicas no semi-árido. Estas
referências se se manifestam com maior clareza na reunião dos símbolos apresentados
pelos sujeitos da comunidade que ao agrupá-las formaram uma espécie de modelo,
referência local do ser humano no sertão.
Um segundo aspecto nota-se na imagem mítica que o sertanejo tem de si
mesmo e do mundo, definidora de suas relações com a coletividade, isto é, a
representação no nível do inconsciente objetiva uma grande força construtora da
consciência coletiva. Jung ao relacionar o inconsciente individual e o coletivo afirma
que os conteúdos psíquicos “são entidades vivas que exercem sua força de atração
sobre a consciência... Estas constituem os fatores impessoais externos, na sociedade e
na consciência coletiva. Mas assim como além do indivíduo há uma sociedade, do
mesmo modo além da psique pessoal há uma psique coletiva (JUNG, 2002, p. 124)
Portanto a imagem coletiva do vaqueiro, sintetizada na literatura clássica do
sertão e retificada em campo nos leva não só a uma definição importante sobre a relação
110
entre o inconsciente individual e coletivo, mas também a perceber a importância dos
modelos culturais – uma disposição psíquica herdada e universal - que dão
sustentabilidade para as atividades coletivas, a base onde repousa a psique consciente e
pessoal, cuja natureza é inconsciente, como o trabalha Jung: “a relação da psique
pessoal com a psique coletiva corresponde, mais ou menos, à relação do indivíduo com
a sociedade". (Idem)
É justamente nesta relação que Jung coloca o ser humano como fenômeno
relacional: “Do mesmo modo que o indivíduo não é apenas um ser singular e separado,
mas também um ser social, a psique humana também não é algo de isolado e
totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo” (Idem).
Por isso a imagem que a consciência coletiva faz do sertanejo vai objetivar a
ação de enfrentamento da realidade, trazendo conseqüências objetivas no cotidiano.
Seguindo a dinâmica do mito, da subjetividade, verificaremos consequentemente uma
realidade objetiva impulsionada por uma imagem coletiva. Neste sentido podemos
constatar o enfrentamento entre os sertanejos de Santana do Acarau na organização da
sociedade civil entre os assentados, no estabelecimento de parcerias com os gestores
estaduais, municipais, no sustento das atividades populares como o projeto de
piscicultura, ao cunhar a moeda social, “santana”, para viabilizar maior crescimento
comercial. Neste caso é notória a mobilização social existente no Município, sobretudo
nos espaços do Conselhão e do Fórum dos Assentados de Santana do Acaraú.
Deste mesmo modo é emblemática a experiência do sistema de merenda
escolar estruturada com o fornecimento da produção dos assentados que, para além das
tramitações comerciais, alimenta o pensamento político do município de participação
popular, compromisso com a Reforma Agrária e fortalecimento da Agricultura Familiar,
111
valorizando não só a própria produção do município, mas incentivando as atividades
desenvolvidas pelos jovens e pelas mulheres.
Fruto desta experiência, vemos em ato elementos do princípio de
'Fraternidade' qual categoria política, pela busca de parcerias e maior integração entre as
Secretarias Municipais e os demais setores da gestão pública, fortalecendo laços de
coesão entre os seguimentos sociais.
Estas relações coletivas elaboraram, no inconsciente individual, indicações
da cidade como um universo de proteção, segurança e de ligação entre os elementos
simbólicos. Como vimos, estas características foram evidenciadas em um determinado
contexto, isto é, alguns sujeitos da pesquisa construíram uma incoerência entre a cidade
e o espaço do cemitério, evidenciando neste último a presença do monstro que engole a
vida.
Assim, foi sublinhada a fome como instrumento político, como angústia
tenaz e a contraposição evidenciada foi o saber do sertanejo na convivência com o
espaço, com o meio. Esta realidade acontece no âmbito das relações de poder externo,
qual sistema evidente à luz do dia, com todas as características do regime diurno e,
portanto, na representação local da Caatinga.
Os sujeitos da pesquisa reconheceram os entraves para vencer a angústia na
questão do latifúndio e do coronelismo que distribui as terras de modo insatisfatório.
Assim, ele colocaram em relevo que esta distribuição na região de Santana é
caracterizada expressivamente não no acúmulo da quantidade de terras, mas na
qualidade destas, isto é, existe uma apropriação das terras boas por parte de alguns que
deixam as terras menos férteis para a população. É justamente nesta estrutura que se
desenvolve a categoria 'fome' como um instrumento de poder.
112
Assim, existe dentro da cidade grande poder de coesão e de consensos, no
âmbito da identidade cultural e do poder de organização social e política, mas ao mesmo
tempo existe uma aflição no âmbito da distribuição dos bens econômicos. Neste caso
podemos notar o combate e os modelos arquetípicos do vaqueiro, herói e combatente,
presentes no imaginário sertanejo.
As indicações dos sujeitos revelaram uma fratura na cidade não só no
campo econômico, mas também no âmbito político. As teorias políticas das
democracias modernas atribuem à alternância dos eleitos no poder um bem
democrático. Alguns sujeitos pesquisados atribuíram a figura do monstro justamente à
impermanência do executivo municipal no poder. Poderíamos considerar tal dado como
resquícios do coronelismo no imaginário sertanejo, mas tal ponderação é insuficiente no
contexto demonstrado pelos sujeitos.
Podemos ressaltar dois aspectos importantes: primeiramente a confirmação
que nossa pesquisa alcançou certas dimensões do inconsciente coletivo através dos
símbolos que não estão submetidos às teorias e à racionalidade objetiva. Esta se refere
aos valores e os apresenta livre de qualquer grade convencional.
Um segundo aspecto mostrou-se, quando pesquisei historicamente tal
evento, e descobri a confirmação da existência de uma ameaça velada ao Conselhão na
alternância do poder da prefeitura, pelo fato que o prefeito anterior rompeu com os
veículos de diálogo com o Conselhão, quase o destruindo e traumatizando as lideranças
populares da cidade. A atual gestão dialoga eficazmente com o Conselhão. Neste
sentido a “Palavra” entra como uma categoria de participação. A ausência do parlatório
desqualifica a democracia. Ao detectar esta angústia no inconsciente coletivo, faz-se
113
necessário criar instrumentos de permanência, amarrar, institucionalizar tais espaços de
Palavra, para curar esta ferida denunciada no inconsciente da coletividade.
Tal denúncia indica ainda duas situações: existem nas instituições públicas
instrumentos que garantem transparência nos negócios públicos. Mas o inconsciente
capta que, para além da burocratização da vida pública, existem forças veladas nos
porões que atentam contra o bem comum, como a presença dos grupos familiares que
privatizam o poder. Este é um valor para as elites que se contrapõe ao bem democrático,
criando uma espécie de esquizofrenia social, no sentido da aparência e do conteúdo
dessas aparências.
Neste contexto revela-se o poder das serpentes: a democracia e a alternância
no poder são um bem, mas será que acontece de fato alternância dos grupos
dominantes? A ansiedade revela-se na pergunta: até quando nos darão voz, enquanto
povo, na oportunização do uso da palavra? O Inconsciente coletivo denuncia a questão
dos pactos, acordos nos porões que produzem a manutenção do mesmo grupo no poder,
ou mesmo a angústia pela desestruturação e fragilidade institucional do Conselhão
como instrumento de participação popular.
Alguns sujeitos colocaram o monstro como a rotatividade do prefeito e,
portanto, a possibilidade de impermanência da política de participação maior do povo.
Neste caso, se é o prefeito quem dimensiona o nível de participação, podemos ter aí
uma democracia delimitada, delicada e debilitada pelas cicatrizes do coronelismo ainda
marcantes na cultura... Neste caso foi sinalizado pelos sujeitos da pesquisa um alerta
para perceber tais nuanças na distribuição atual do poder na cidade.
Nestas relações de poder percebemos esforços de tratar as angústias através
da configuração de Jurema, re-significando a ansiedade, transformando o coronel em
114
compadre, o explorador e “inimigo” em parente, numa busca de transformar os
desníveis em relações simétricas de reciprocidade.
Esta tendência gestual é uma forma de adaptação ativa ao meio que
transfigura, como fazem os mitos, a imagem do Coronel, fazendo-a passar de algoz para
uma imagem de bem feitor, elaborando um mito: a gestualidade que harmoniza os
contrastes entre pobreza e riqueza, poderosos e impotentes, exploradores e explorados.
Criando-se este mito, elabora-se um mecanismo de convivência 'pacífica' entre os
antagônicos.
Outra forma manifestou-se através das configurações do Umbuzeiro e da
Caatinga no combate pela organização social.
Ao colocarmos a Antropologia em diálogo com a Ciência Política, pudemos
acessar a cultura política31 enquanto instrumento analítico da Ciência Política dentro do
próprio conjunto de significados e propósitos no qual o sistema político de cada
sociedade esta embutido, conforme os estudos de Gabriel Almond (1956 – apud
BOTTOMORE, 1996 p. 170). Nosso esforço demonstrou que a semântica do espaço
revelou-se instrumento de percepção da Cultura política de uma sociedade e não só os
símbolos como a bandeira, o hino, a hierarquia monárquica, mas também os espaços
públicos.
Nesta direção vimos que a passagem da distribuição dos arquétipos,
solicitados nos espaços da cidade, do âmbito pessoal para o âmbito coletivo, segundo a
narração gravada e transcrita do grupo, manifestou algumas mudanças que aconteceram
através do diálogo e do convencimento moral da minoria sobre a maioria que pensava
31 O Conceito de Cultura Política data nos anos 50 e vem definido por Gabriel Almond como “um padrao particular de orientações para a ação política” (1956, p.396). Refere-se, portanto às crenças, valores e simbolos expressivos que compreendem o contexto emocional e de atitudes da atividade política. (In Bottomore, 1996).
115
diferente. Este dado aponta que entre os grupos populares a participação apresenta
elementos de Fraternidade, que leva em consideração todas as vozes, caracterizada pela
simetria e a reciprocidade e não pela imposição da maioria sobre a minoria. Estes
processos de participação qualificam o exercício da Democracia, pois esta tende a
alcançar os princípios morais estabelecidos pela cultura local, apresentando, portanto,
maior sustentabilidade política enquanto participação e exercício da cidadania.
Porém, na relação com o as instituições de deliberação, como a prefeitura e
a Câmara, foi apontada a fragilização pela apropriação destes espaços por quem nela
exerce o poder constituído. Coincidindo com as redundâncias míticas apontadas por
Audifax, que manifestou a fragilidade das instituições narrando a profanação do sagrado
e os símbolos civis e religiosos questionando as estruturas de representação simbólica
que funcionam como pontos de fixação social diante da fluidez do tempo.
Neste contexto revelam-se os espaços de consensos e coesão da
comunidade: as igrejas e o Conselhão, que reúnem os demais agrupamentos populares.
Assim, ficou claro que o caminho para a fixação do ser humano no semi-árido passa
pelo poder de decisão e da participação da comunidade.
Neste sentido, urge fortalecer os espaços de participação política e a
burocratização racional das Instituições do poder público, oferecendo-lhes maior
credibilidade e instrumentos de Justiça e Educação. Portanto, no diálogo entre a Ciência
e a Imagem no contexto do semi-árido nordestino, pudemos descobrir que o fomento da
cultura política perpassa inevitavelmente pela poética do Sertão.
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