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António Octávio Cintra Sociologia e problemas do desenvolvimento socio-político: uma visão dos progressos recentes 0 interesse dos sociólogos pelo desenvolvi- mento, tendo sido apressadamente suscitado pela necessidade de participar no diagnóstico e planeamento económico, não permitiu, a princípio, senão enfoques fragmentários desse campo de estudo. Mas já se pode dar como teoricamente encerrada essa primeira fase. Presentemente, caminha-se no sentido de construir uma Sociologia do Desenvolvimento autónoma, trabalhando com variáveis deter- minadas pelo próprio método sociológico e construindo modelos dinâmicos do subdesen- volvimento e da transição social. Se há um campo da sociologia em que os progressos dos úl- timos anos têm sido consideráveis, é o da sociologia do desenvol- vimento. O realce com que se notam esses progressos vem de que, nos seus inícios, que não se encontram tão distantes — a proble- mática do «desenvolvimento» e do «subdesenvolvimento» é bas- tante recente, — a sociologia do desenvolvimento veio marcada de insegurança teórica muito visível. Os estudos e problemas prin- cipais vinham, por assim dizer, na esteira das preocupações dos analistas económicos. Estes, ao armarem seus modelos explica- tivos para os fenómenos do desenvolvimento, chegavam a inú- meros impasses. Havia problemas cuja solução não podia equa- cionar-se puramente através das variáveis económicas conhecidas. N. da R. — Este artigo foi originalmente publicado na Revista Brasileira de Estudos Políticos, da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil, n.° 20, Janeiro de 1966. 90

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AntónioOctávioCintra Sociologia e problemas

do desenvolvimentosocio-político:uma visão dosprogressos recentes

0 interesse dos sociólogos pelo desenvolvi-mento, tendo sido apressadamente suscitadopela necessidade de participar no diagnósticoe planeamento económico, não permitiu, aprincípio, senão enfoques fragmentários dessecampo de estudo. Mas já se pode dar comoteoricamente encerrada essa primeira fase.Presentemente, caminha-se no sentido deconstruir uma Sociologia do Desenvolvimentoautónoma, trabalhando com variáveis deter-minadas pelo próprio método sociológico econstruindo modelos dinâmicos do subdesen-volvimento e da transição social.

Se há um campo da sociologia em que os progressos dos úl-timos anos têm sido consideráveis, é o da sociologia do desenvol-vimento. O realce com que se notam esses progressos vem de que,nos seus inícios, que não se encontram tão distantes — a proble-mática do «desenvolvimento» e do «subdesenvolvimento» é bas-tante recente, — a sociologia do desenvolvimento veio marcadade insegurança teórica muito visível. Os estudos e problemas prin-cipais vinham, por assim dizer, na esteira das preocupações dosanalistas económicos. Estes, ao armarem seus modelos explica-tivos para os fenómenos do desenvolvimento, chegavam a inú-meros impasses. Havia problemas cuja solução não podia equa-cionar-se puramente através das variáveis económicas conhecidas.

N. da R. — Este artigo foi originalmente publicado na Revista Brasileirade Estudos Políticos, da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte,Brasil, n.° 20, Janeiro de 1966.

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Duas eram, então, as alternativas. Como de tradição na his-tória da análise económica, podia o próprio economista criar ca-tegorias e variáveis de carácter social ou psicológico. Uma «so-ciologia» ou «psicologia» para uso próprio* A outra alternativaera a de recorrer ao sociólogo, na expectativa de que este já dis-pusesse, preparadas para a análise, das variáveis importantes deque ele, economista, iria valer-se. Como tais variáveis eram, eainda são, relativamente pouco exploradas, não só num sectorespecial de problemas, como os do desenvolvimento, mas na pró-pria sociologia geral, o mais provável era a decepção do econo-mista com o que se lhe podia oferecer.

Para a sociologia,, a situação era de indefinição até no própriotocante a quais seriam os problemas cruciais a suscitar-se no es-tudo sociológico do desenvolvimento e subdesenvolvimento. Seriao «problema» do «empresário» inovador? seria a determinação do«papel das classes médias na dinamização das sociedades atrasa-das»? seria o estudo da «dinâmica de aspirações» na sociedadesubdesenvolvida ?

É forçoso reconhecer que o interesse pelo campo de estudosinduzido desta forma, pela pressa de ajudar o diagnóstico e a pla-nificação económica, não permitiu mais do que enfoques fragmen-tários, bem longe do ideal de conjunto de conhecimentos sistemá-ticos e integrados.

Mesmo tendo havido esforços de construir algo mais completonão foram mais além da feitura de tipologias da sociedade desenvolvida, através da enumeração de uma série de variáveis, e dacontraposição, a tal tipologia, da correspondente à sociedade sub-desenvolvida, em geral apresentando valores opostos naquelasmesmas variáveis utilizadas para a sociedade desenvolvida. O pro-blema de transição de um a outro tipo, através de modelos explicativos, não se resolveu. Modificar-se-iam a um mesmo ritmo a&diversas variáveis caracterizadoras dos «tipos», ou não? Quaiseram as variáveis estratégicas, e quais as que não mantinham re-lações com a dinâmica do desenvolvimento? Esses e outros pro-blemas não tiveram resposta satisfatória. Outra impressão nãodeixam os trabalhos de Bert HOSELITZ: apresenta modelos des-critivos das diversas situações, mas com muito pouco contribuiem relação aos mecanismos de mudança de umas para as outras \

Outro estilo bastante frequente de teorizações, assumidopela sociologia do desenvolvimento, foi o de concentrar-se em mo-delos do tipo seguinte: o «dinamismo» da situação é dado pelasvariáveis económicas; as variáveis sociais são dependentes, fun-cionam «induzidas», podendo responder com maior ou menor pres-

1 HOSELITZ, Bert, Sodological aspects of economic growth. Free^-Presfí,Glencoe, 1960.

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teza aos estímulos das económicas. O leitor familiarizado com áliteratura neste terreno não terá dificuldades em reconhecer nestalinha os copiosos enfoques dos «obstáculos sociais ao desenvolvi-mento económico»; neles, as inter-relações e a dinâmica própriadas variáveis especificamente sociais não chegam, de modo geral, aconsiderar-se. Modelar, dentro do estilo, a contribuição de BALAN-DIER ao Traité de Sociólogie de GURVITCH ("Sociologie des régionssousdéveloppées", no tomo I, pp. 332 a 344).

No entanto, já se pode dar como teoricamente encerrada essafase. Os progressos mais recentes têm sido no sentido de construiruma sociologia do desenvolvimento autónoma, trabalhando comvariáveis determinadas pelo próprio método da sociologia na ex-plicação de problemas suscitados pelas próprias indagações quelhe é lícito fazer diante da realidade nova do subdesenvolvimentoe da transição social.

No presente artigo focalizaremos algumas das linhas prin-cipais em que se têm verificado esses progressos 2.

Como encarar, de modo tipicamente sociológico, fenómenoscomo o do subdesenvolvimento? como fazê-lo escapando às vicis-situdes que marcaram os esforços até recentemente empreendidos?O sociólogo Peter HEINTZ nos apresenta uma definição3 que cons-titui ao mesmo tempo modelo dinâmico de captação do fenómeno.Apresenta-o na forma de inter-relação de variáveis. «Define-seuma situação como de subdesenvolvimento quando: a) as aspi-rações referentes a bens de consumo são muito mais altas do queo que de facto se obtém e b) o nível económico-tecnológico é rela-tivamente baixo em comparação com o das sociedades com altosníveis de vida". (...) "As aspirações crescentes são resultado daabertura interna do sistema estratificado internacional".

A definição tem o seu núcleo na caracterização de tensão entreduas variáveis, uma "subjectiva" — as aspirações —, outra "objec-tiva", o nível económico-tecnológico. Como "antecedente" à ten-são, o fenómeno de abertura do sistema internacional. Se há ten-são, é que o "fenómeno" é instável, o equilíbrio se dará (se foro caso) em outro ponto que não o presente. O impulso inicial demovimentação do modelo vem de "causalidade externa" 4 à socie-

2 Não tencionamos fazer exposição exaustiva de todos os temas moder-namente tratados. Limitamo-nos, em grande parte, às linhas que vem desen-volvendo a equipa de sociólogos da Facultad Latino Americana de CiênciasSociales, da Unesco, no Chile, sob a direcção de PETER HEINTZ. Na revistaAN ALES da referida Faculdade (n.° 1, vol. I), encontram-se publicadosdois importantes trabalhos de PETER HEINTZ sobre problemas que aqui abor-damos: «Anomia inter-institucional, anomia individual, anomia colectiva» e «Elproblema de Ia indecisión social en el desarrollo».

s Vide PETER HEINTZ, nos artigos citados.4 BASTIDE, Roger, «La causalité externe et Ia causalité interne dans

Pexplication sociologique», Cahiers Intemationaux de Sociologie, vol. XXI, 1956.

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dade: a ruptura dos sistemas coloniais. Tomando-se o símile dateoria da estratificação interna das sociedades, e passando-o aomarco internacional, pode falar-se do sistema colonial como sis-tema de estratificação de castas!, relativamente fechado; o pre-sente sistema de estratificação internacional apresentaria maissemelhanças com a estratificação de classes sociais: há perspec-tiva de mobilidade entre os estratos, as barreiras não são imper-meáveis; o sistema é relativamente aberto e inclusivo (ou seja,mundial, oposto a vários pequenos sistemas fechados, cujos cri-térios de estratificação fossem exclusivos das nações fora deles).

A mudança do tipo de estratificação internacional tem umasérie de efeitos: os estratos inferiores, que ocupam os países sub-desenvolvidos, não podem ficar imunes aos mecanismos compara-tivos peculiares à "sociedade das classes" (ou seja, a nova socie-dade internacional). A teoria sociológica fala de "grupos dereferência" para o comportamento dos indivíduos e colectividades,e, paralelamente, traz o conceito de "privação" ou "insatisfaçãorelativa". Na sociedade fechada, sem nenhuma mobilidade perce-bida, pode haver maior satisfação relativa do que na sociedadeaberta em que, percebendo-se a mobilidade, tomam-se como gruposde referência os estratos superiores e, portanto, se não houvermobilidade, isto será sentido com muito maior agudeza. Na esferainternacional, as nações desenvolvidas, dominantes e ricas de pres-tígio, são, inevitavelmente, tomadas como "grupos de referência"positivos. Justamente o que caracteriza as sociedades subdesenvol-vidas em contraposição às antigas colónias, é a "aceitação" global(não apenas da parte de alguns grupos internos a elas) de metasexternas aos valores de suas culturas tradicionais: o enriaueci-mento e melhoria do nível de vida, o poder e prestígio na órbitaexterior, etc.

A variável "nível de aspirações", dependente da "abertura™ dosistema internacional e dos consequentes mecanismos assimétricosde influência entre os países, torna-se, por sua vez, foco das ten-sões, na medida de seu desajuste com a estrutura económico--tecnológica. As sociedades arcaicas ou tradicionais apresentamestrutura económica atrasada. Entretanto, nelas não se dá o desa-juste entre a estrutura e o nível de aspirações, porque estas seencontram adaptadas aos dinamismos "infra-estruturais": a as-piração vai um pouco na frente, nunca a distância intolerável.Mesmo nos velhos sistemas coloniais, apenas os estratos superiorespoderiam sofrer o impacto do "efeito de demonstração" das socie-dades metropolitanas e torná-las seus "grupos de referência".Os estratos baixos não compartilhavam dessas aspirações, porquetinham sua própria cultura de metas e valores adaptada às possi-bilidades materiais e bastante para dar-lhes critérios de poder e

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legitimidade com que pudessem estruturar sua vida social. A irra-diação dos valores metropolitanos não se filtrava até eles: tinhamsua própria subcultura.

O subdesenvolvimento, distinto da situação de sociedade tradi-cional, começa justamente quando se dá a quebra das subculturasparticulares, impondo-se aos estratos uma cultura geral, forne-cedora de mesmos critérios e aspirações comuns a toda sociedadeglobal. Há uma conjuntura de factores neste sentido, em que sedistinguiriam a explosão demográfica, a industrialização, as mi-grações campo-cidade, o impacto avassalador das comunicações demassa (mass-media). Este último factor "massifica" as aspi-rações. Os estudos dos efeitos dos "estímulos exteriores" trazidospelos "mass media" mostram a facilidade de adopção dos objectosmateriais novos, pois não afectam grandemente a "identidade pes-soal" de quem os recebe. Na verdade, o núcleo das novas aspi-rações, comuns a todos os estratos, passa a situar-se na vontadede participar do mundo moderno, participando do mercado de bensde consumo.

Se a "cultura" se universaliza, o mesmo não se dá, ou pelomenos não no mesmo ritmo, com relação à estrutura social. À as-piração de participar no mercado de bens de consumo encontraobstáculos no quadro institucional. Se as metas culturais dão ên-fase à melhoria do nível de vida — ou seja, à participação no mer-cado de bens de consumo — a estrutura social, que regula o modode obter a participação no consumo, continua rígida e pouco ins-trumental*

B verdade que a resposta última ao dinamismo das aspirações—-que se dão no que se pode chamar o "sector de consumo" dasociedade— deverá vir do "sector de produção'1': aí está o que,no modelo de HEINTZ, se caracterizou como "nível económico-tec-nológico" desajustado com as aspirações. Ajustar-se, porém, nãoimplica simples incremento físico da produção. A estrutura socialapresenta os caminhos indispensáveis para que tal incrementopossa encaminhar-se aos focos de tensão. Ou para que, não se en-caminhando (o que acontece quando se "reinveste" o "excedente"),a tensão nem por isso atinja níveis intoleráveis. Nem se esqueçaque a própria dinamização do sector de produção depende da es-trutura social. Aqui o leitor se lembrará dos abundantes estudosdos obstáculos sociais ao desenvolvimento: a rigidez da estruturade trabalho agrícola, do sistema de propriedade; a operação dosmecanismos tradicionais de recrutamento para a actividade eco-nómica impedindo o aparecimento de empresários inovadores, etc.

O factor "estrutura social" vem a ser, pois, em seus diversosgraus de rigidez ou abertura, a meditação mais importante entre o"sector de consumo", dinamizado pela abertura da sociedade do

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marco internacional, e o "sector de produção". Depende dele^seas tensões se agravam entre produção e consumo, ou se se mantêmsuportáveis.

Naturalmente, quanto mais descermos na sociedade subdesen-volvida a escala de renda, tanto mais aguda se mostrará a tensãoentre aspirações de consumo e resposta do sector produtivo. Nãoé difícil identificar aí o fenómeno que se inscreve na 'teoria daanomia", elaborada por DURKHEIM e desenvolvida por RobertKing MERTON. Tal teoria caracteriza os comportamentos resul-tantes da tensão entre as metas e aspirações culturais e os meiosinstitucionais que permitem alcançá-las5.

Nas sociedades subdesenvolvidas, os estratos inferiores, apartir da dinâmica apresentada, se acham de todo expostos àstensões anómicas. As massas migrantes do campo para a cidadesão o grupo típico para o surgimento delas.

A experiência das nações subdesenvolvidas mostra que a eco-nomia raramente pode caminhar tão célere quanto o fluxo dasmigrações, de molde a lograr-se a absorção ocupacional dos mi-grantes. Sociologicamente, a situação é das mais complexas. Omigrante não encontra, nas cidades, forma de integração na acti-vidade económica. Falta-lhe um dos "status" mais básicos, o ocupa-cional; o que o "status" ocupacional significa, socialmente, é apossibilidade de participação no mercado de bens de consumo, ouseja, uma forma de integração na estrutura social, através de umnível de vida, ou, mais precisamente, um género de vida ("género"expressando melhor a tradução da renda em padrões sociais deconsumo). Tal integração não é a qualquer estrutura social, masao "mundo moderno" que surge com a industrialização. Ela é es-timulada pela incessante presença dos "mass media" e dos efeitosapontados quando falámos da abertura do sistema internacional.Faltam também, ao migrante, outras formas de integração à socie-dade moderna, havendo-se perdido, com a própria migração, asraízes na sociedade tradicional, deixada quando se abandonou ovilarejo, a fazenda de origem. De modo geral, faltarão os "statusfamiliares", os grupos de colaterais, as pessoas de referência parao comportamento moral. Peter HEINTZ fala de "configurações in-completas de statusi": com toda justeza estamos aí em presençade forma aguda de "marginalidade social".

O que os estudos do fenómeno geral de marginalidade socialmostram é a situação de disponibilidade em que se encontram aspessoas marginais, a sua abertura muito maior aos estímulos einovações que impliquem integração e solução do problema pessoal,ou colectivo, de marginalidade. No presente caso, o impacto das

5 Vide MERTON, R. K., Social theory and social structure, «Anomie andsocial structure», I,

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aspirações de participação no mercado de consumo parece con-firmar tal hipótese: as aspirações de consumo seriam muitomaiores entre as massas recém-saídas da vida tribal, ou aldeã, doque em quaisquer outros grupos sociais. Dar-se-ia, portanto, me-canismo de causação circular: a marginalidade levando a aspi-rações de consumo muito altas, impossíveis de satisfazer pela pró-pria situação de marginalidade, esta última tornando-se por issomesmo agravada.

A falta de meio® de integração à sociedade pela ausência de"status" básicos, particularmente o ocupacional, e a presença demetas relativamente altas, configuram o quadro clássico da si-tuação anómica, com as manifestações típicas de apatia, descrença,perda de normas, desconfiança de qualquer liderança, falta deperspectiva de futuro, etc. Evidentemente, um modelo marxistade explicação encontraria dificuldades de identificar tal grupocom a classe revolucionária.

Do ponto de vista dinâmico, característico do modelo apresen-tado, a situação de subdesenvolvimento não pára aí. A estruturatradicional da sociedade se rompeu; o desequilíbrio, que antes eratópico e circunstancial, instalou-se no cerne mesmo da sociedade,pelo menos para muitos sectores importantes dela: as massas en-volvidas na dinâmica de migrações do campo para a cidade. Aselites tradicionais da sociedade não têm meios, pela própria forçade causação "externa" do fenómeno, de impedir as rupturas quese vão produzindo. Surgem novas situações apresentando-lhes de-safios a que não poderão deixar de responder em termos de to-madas de decisão quase sempre cruciais para sua sobrevivência.A situação das massas anómicas traz, na caracterização sugestivade HEINTZ, um "potencial" de ameaça ao status quo. Todo umcampo muito importante de estudos se abre neste particular: o dastomadas de decisão da élite diante dos desafios do potencial polí-tico trazido pelas massas migrantes6.

O potencial político não se limita, porém —senão em fasesmuito iniciais—, às massas que migram. De facto, a situaçãode subdesenvolvimento encontra, no plano estrutural, segundaetapa evolutiva, talvez a que melhor defina a situação actual damaioria das áreas subdesenvolvidas.

A aceleração do desenvolvimento económico seria, dentro dalógica do modelo apresentado, uma das formas de reequilibrar asituação de subdesenvolvimento. Com isso, estar-se-ia ajustandoo nível de realidade ao de aspirações. Incrementar-se-ia o sectorde produção, dar-se-iam posições na estrutura ocupacional aosmigrantes e urbanitas novos, integrando-os, assim, na sociedademoderna e dando-lhes meios de participar no sector de consumo.

6 Vide artigos citados na nota 1.

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De facto* para desenvolver o sector de produção, a participaçãono sector de consumo não pode dar-se nos termos em que as incon-tidas aspirações germinadas em primeira fase a colocam. Apresen-tam-se muito altas, difusas, inestruturadas no tempo* Implicariamconsumo imediato, em curto prazo. A lógica do desenvolvimentoeconómico, e sua efectiva realização histórica, mostram que paracrescer o sector de produção, as aspirações devem ser rebaixadas,especificadas, estruturadas para o futuro; supõe-se, em suma, mo-delo de comportamento a que os sociólogos chamam "padrão degratificação adiada", ligando-o, muitos deles, ao tipo de éticaintroduzido pelo calvinismo na sociedade ocidental.

Mesmo sem consultar a experiência concreta dos países sub-desenvolvidos, a visão da situação de subdesenvolvimento na pri-meira fase de ruptura do status quo relativamente equilibrado,confrontando grupos novos e marginais com sectores tradicionais,mostra claramente o difícil da solução de incrementar a produçãopela estruturação e rebaixamento do tecto de aspirações de con-sumo. Todo um processo de liderança, que se desdobra de acordocom as diferentes respostas dos sectores tradicionais aos desafiosdas novas situações aparece como necessário, e com isso já es-tamos dizendo que, se essa alternativa é tomada, não o é numaprimeira fase, nem de maneira imediata. Algumas "mediações"são necessárias, desde que produzir, restringindo o consumo, seapresenta pouco viável ao menos logo após a ruptura do equilíbrioantigo.

Que ocorre então, como solução alternativa? Peter HEINTZaventa hipótese que parece bastante comprovada nas sociedadessubdesenvolvidas. Não havendo possibilidade de integração "ma-terial" à sociedade, pode dar-se integração "simbólica". As confi-gurações incompletas de "status" são preenchidas no plano sim-bólico por "status*" relativamente mais fáceis de produzir que osocupacionais, por não exigirem restrição de consumo ou "giro deprodução" para capitalizar. São esses, principalmente, os "status"educacionais e políticos.

Há, na verdade, tipo de educação cuja maturação é quase amesma de investimento económico, e que se ajusta funcionalmenteà estrutura de produção: a formação de técnicos e especialistas,o preparo para o correcto desempenho de papéis ocupacionais, apesquisa científica e tecnológica. Outro tipo é a educação cujainstrumentalidade é mínima para o sector produtivo, cumprindoantes funções integrativas (dá "posição" aos indivíduos) e simbó-licas (fornece símbolos de «posição» na sociedade): o quese entende por "saber desinteressado", por "cultura geral" seenquadra bem nesta categoria7. Não há dúvida de que é bem mais

7 Vide, em ANALES de Ia Facultad Latino Americana de Ciências So-ciales, vai. I, n.° 1, o trabalho de EDUARDO MUNOZ: «La asincronia institucionaleconomia-educación», pp. 13 a 36.

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fácil vicejar este, e não o primeiro tipo, na sociedade tradicionale na sociedade subdesenvolvida. Na própria situação colonial, emmuitos países, a metrópole não se descuidava de formar "bacha-réis" e "homens de cultura". Na situação de "transição" vividapelas áreas do terceiro mundo podem, em períodos relativamentecurtos, constituir-se grupos de intelectuais que manejam as formassimbólicas de saber prioritariamente a outros grupos. A própriamassa pode receber alguma cultura de tipo integrativo, poucoinstrumental, através de programas de alfabetização, muitas vezespatrocinados pelas próprias élites dominantes.

Simultaneamente ou não, podem produzir-se "status" polí-ticos fora dos quadros tradicionais da política, agregando as mas-sas anómicas ao redor de uma figura carismática —vinda dosquadros "intelectuais", ou mesmo da própria elite dominante —em movimento político mais ou menos avassalador: o potencialpolítico, de que fala HEINTZ, se actualiza. Os mecanismos de for-mação dos movimentos políticos em áreas subdesenvolvidas, pelapresença de líderes carismáticos, têm sido estudados com certafrequência nos últimos anos: para não irmos mais longe em cita-ções, lembraríamos aqui os trabalhos de GINO GERMANI (vide Po-lítica y Sodedad en una época de transición, ed. Paidós, Bs. Aires).

A educação e a política podem ser vistas como ordens insti-tucionais, ou seja, sectores da sociedade global capazes de dar àspessoas, ou às colectividades, posições ("status") estratificadasquanto a poder e prestígio. Do ponto de vista estrutural, portanto,se tais esferas funcionam dando "status" relativamente altos àspessoas e grupos, sem correspondência com ocupações na esferaeconómica, pode-se falar, usando caracterização de GERMANI eHEINTZ, em "assincronia institucional".

Se, pois, a educação e a política dão novos "status", estão decerto modo integrando a sociedade: de modo "fictício", não sinto-nizado com as funções de produção da vida material. Continuahavendo "marginalidade" na medida mesma da não sintonia deesferas institucionais. Agora, porém, os grupos "marginais"têm algumas posições de onde possam reivindicar do status quoo que julgam lhes seja devido a partir da ocupação das mesmas.

Se grande parte das massas permanece na situação de anomiaindividual, surgem pelo menos alguns sectores que ascendematravés dos "status novos" e passam a exigir dos grupos domi-nantes maior poder e prestígio. Dá-se, em geral, identificação,da parte dos sectores "reivindicantes" com algum símbolo colec-tivo, tal como a nação, em nome do qual se passa a justificar oataque ao "status quo" tradicional e colonialista. É interessante vercomo tais grupos, diferentemente das massas anómicas, têm aspi-rações muito mais estruturadas: não se abandona a meta de par-ticipação no mercado de bens de consumo, porém se adquire sen-tido das inevitáveis mediações que a distanciam da situação

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presente. De que mediações falamos ? Não se trata ainda da "acumu-lação" de capital, pela restrição do consumo, exigindo reestru-turação de aspirações. Isso seria verdade no caso de haverem taisgrupos conquistado o poder e estarem empenhados no êxito econó-mico da revolução politicamente vitoriosa. Se não, estando o grupoausente dos meios de poder e decisão económica, a estruturaçãodas aspirações aparece sob a forma de visualização da derrubadada estrutura presente da sociedade, da luta "anti-imperalista",, danecessidade de agremiação política, e não propriamente de padrõesde comportamento económico.

Não se podem deixar de lembrar, neste ponto, as importantescontribuições de cientistas políticos norte-americanos, entre elessalientando-se John KAUTSKY com importante ensaio publicadoem 1962, introduzindo a colectânea "Political change in underve-loped countries": tratasse de "An essay in the politics of develo-pment". As hipóteses aí levantadas estão em linha fundamental-mente concordante com as trazidas nos trabalhos de Peter HEINTZ.Para KAUTSKY, OS grupos "motores" da política de modernizaçãodas sociedades tradicionais foram os de "intelectuais", sem em-bargo da existência de outros grupos igualmente interessados emtal política. A hipótese da possibilidade de revolta autónoma dasmassas camponesas, ou dos urbanitas novos, ou da reduzida classemédia burocrática ou artesanal, não encontra confirmação empí-rica nos movimentos nacionalistas ou revolucionários modernos. Sóos grupos intelectuais perfazem uma série de condições necessáriasà liderança desses movimentos, são eles os mais aguilhoados, peladura marginalidade a que os relegam o atraso económico, a falta demobilidade ascendente, o fechamento dos quadros políticos tradi-cionais, a romperem com o status quo. Só uma sociedade novapode, na antevisão que dela têm, absorver sua alta capacitação nadirecção da actividade económica e da vida política. Por outraparte, a liderança do movimento de massas, certamente de maneiracarismática, pode, por si mesma, satisfazer as ambições de consi-deração social (indiferentes ao "status" educacional alto e à partici-pação política) dentro do marco mais amplo da sociedade. O temorque inspire à élite tradicional, o poder que esta lhes atribua, podeser suficiente para pôr fim ao processo de marginalização social,bastando vir, por acréscimo, o prestígio legitimador.

Para que se tenha ideia de como os progressos mais recentesda sociologia do desenvolvimento se verificam de maneira inte-grada com os esforços que se dão em outras áreas desta ciência,não deixaremos aqui de assinalar que o problema da "assincroniainstitucional" encontra contrapartida teórica no campo da socio-logia estrutural nos estudos ditos de "cristalização de status" 8. A

8 Sobre este tema, há, modernamente, literatura abundante. O leitorinteressado consultará com proveito:

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cristalização vem a ser dimensão não-vertical da estratificação, àqual atribuem os teóricos força de variável independente nos pro-cessos políticos. Se há estratificação vertical, ao longo das váriasdimensões de "status", há também maior ou menor consistêncianas diversas posições, ocupadas pelos indivíduos ou grupos, po-dendo ser todas igualmente altas ou baixas (caso de alta consis-tência) ou não se mesclarem, na mesma pessoa ou grupo, posiçõesaltas com posições baixas (caso de baixa consistência). Ã consis-tência ou cristalização baixa, as hipóteses, em parte confirmadas,atribuem comportamentos em geral questionadores da estruturasocial, altamente sensíveis às barreiras que esta apresente à ten-tativa de "equilibração" da configuração "desequilibrada": porexemplo, o negro educado na sociedade norte-americana, rebaixadona posição étnica, tenta equilibrar sua configuração pessoal de po-sições, seja lutando pela extinção do critério racial, que o rebaixa,seja apagando em si mesmo as "marcas" que o identificam, nadimensão étnica, com a posição inferior, através do que se conhecepor "passing" (negros com fenótipo branco mudando de cidade eingressando na "casta" branca). Os intelectuais nos países sub-desenvolvidos seriam caso típico de grupos sociais com baixo equi-líbrio nas suas configurações; de acordo com a teoria, lutariampelo equilíbrio, traduzindo sua alta posição educacional em equi-valente poder político e económico. Sentiriam, então, mais actuan-tes, os empecilhos da sociedade tradicional, com os critérios de ads-crição económica e política, sendo levados à "agressão" ("drivestawards change, even against the will of other", na caracterizaçãode Johan GALTUNG em "A structural theory of aggression", inJournal of Peace Research, n.° 2, 1964) aos grupos socialmentedominantes por esses critérios.

Já assinalámos o problema da ruptura da ordem tradicionallevando ao "subdesenvolvimento" da sociedade; a seguir, vimosa passagem da situação de anomia individual à constituição demovimentos colectivos de tipo carismático, simultânea ao apare-cimento da "assincronia" entre esferas institucionais da socie-dade e ao consequente desequilíbrio nas configurações de "status"de grupos socialmente importantes que são levados a "agredir" aestrutura social geralmente através da liderança dos movimentoscolectivos. Tudo isso constitui o que podemos chamar a face novada sociedade.

LENSKI, G., «Status crystallization, a non-vertical dimension of socialstatu's», American Sociological Review, 1954.

LANDECKER, W., «Class crystallization and class consciousness», AmericanSociological Review, 1963.

GALTUNG, J., «A structural theory of aggression», Journal of PeaceResearch, 1964, 2.

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Se tomamos o ponto de vista "interno" à face velha — a es-trutura tradicional de poder, prestígio e dominação económica, —a presença de massas anómicas individualmente, ou de forma co-lectiva 9 e o "desajuste" dos grupos "educados" (os "evolués" deque fala BALANDIER), constituem o que HEINTZ chama "ameaçaexterna" ao sistema. Este autor fala de "sistema interno" e"sistema externo". Como ficou implicado em toda a exposição, adinâmica das sociedades em transição é dada a partir de certoponto pelas diferentes soluções encontradas ao conflito de ambos ossistemas. Como os centros de decisão da sociedade são detidos pelosistema interno, pode-se dizer que a evolução do modelo será de-terminada pelas diferentes respostas que este dê aos desafios dosistema externo.

Os últimos trabalhos de CELSO FURTADO ]0 podem, talvez, ca-racterizar-se, principalmente, pela preocupação com essa proble-mática. Como responde a velha estrutura às novas solicitações?

A primeira condição que deve lembrar-se, para analisar a res-posta do sistema tradicional à ameaça potencial dos grupos novose socialmente marginais (não vai aqui nenhuma conotação valora-tiva, senão puramente técnica) é a da existência ou não de movi-mento colectivo actuante na sociedade. Naturalmente, a existênciado movimento não é variável "autónoma*', mas "induzida" por an-teriores respostas da estrutura. Houve, ou não, para usarmos ascategorias introduzidas por Peter HEINTZ, transição da anomiapuramente individual para a de forma colectiva (movimento socialidentificado com símbolo tal como "Nação", etc.) ?

Se a "anomia" ainda permanece na forma individual, a reacçãodo sistema interno é facilitada: o atendimento mais ou menossimbólico das aspirações por meio de um mínimo de melhoriasmateriais, a atracção das massas desamparadas por líder saídodas próprias fileiras da elite podem deter qualquer ameaça po-tencial à estrutura. Mesmo quando os líderes surgem da própriamassa, abundantes experiências históricas mostram que é difícilnão serem envolvidos pela elite tradicional.

Já a existência de potencial integrado em movimento de tiponacionalista, por exemplo, apresenta a essa elite desafio muitomaior. As respostas possíveis podem estender-se desde a simplescoerção até a assunção, da parte da élite, de função modernizante.A última alternativa não impede a presença dos mecanismos decoerção asseguradores de liderança ineontrastável da elite.

9 Sobre anomia colectiva, vide artigo citado na nota 1.10 FURTADO, Celso, Dialéctica do Desenvolvimento, Fundo de Cultura,

1964; A pré-revolução brasileira, Fundo de Cultura, 1962.

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Um dos aspectos mais importantes de que se reveste a dinâ-mica do subdesenvolvimento, quando se analisa o conflito do sis-tema interno com o externo, situa-se na competição entre os gruposque vivem a assincronia institucional através de suas configu-rações inconsistentes de "status*' —os quadros de intelectuaisnacionalistas ou revolucionários — e os grupos pertencentes à elitena busca de uma conquista das massas para apoio de um ou outrosistema. Toda a sorte da sociedade se joga em tal competição. Acapacidade do status quo de êxito não residirá tanto no monopólioda liderança das massas como na capacidade de aplicar o maquia-vélico "divide ut regnes": criar várias lideranças, jogá-las umascontra as outras, romper a frente monolítica pela qual lutam os"intelectuais" e "políticos". Se, entretanto, não consegue a eliteuma coesão interna, e acabam por prevalecer as facções sem sen-tido histórico, é muito provável a irrupção de movimento avassa-lador que abale os fundamentos de seu poder.

Caso o desfecho do conflito seja a vitória do movimento na-cionalista, define-se o problema do subdesenvolvimento. Seránecessária, como condição de sobrevivência do novo sistema, amobilização popular na busca de metas estruturadas a longo prazo.Se os novos quadros dirigentes são incapazes, situacional ou pes-soalmente, de lograr tal condição, ressurgirá agudamente o quadrode tensões. O fracasso dos planos de desenvolvimento, a rotinizaçãodo carisma das novas elites, os novos potenciais políticos quesurgem à margem do partido nacionalista dominante —geradospelos mesmos factores ainda actuantes que antes geraram osactuais donos do poder — são todas situações bastante prováveisde ocorrer na eventualidade de revolução nacionalista triunfante*

Ao cabo desta exposição, que não pretende haver senão aflo-rado a moderna temática abrangida pela sociologia do desenvol-vimento, cremos poder sustentar-se a ideia de que esse ramo dasociologia tem já condições de explicar, usando modelos dinâmicos,os fenómenos característicos das áreas em transição. Parece claroque a presente situação dos conhecimentos já permite o trabalhoaprofundado em modelos menos amplos, tomando fenómenos maisespecíficos que se verifiquem nas referidas áreas. Assim, porexemplo, o estudo dos diversos "modelos de decisão" das elitespolíticas, dados os problemas da "ameaça externa" à dominaçãotradicional. Ou a construção da teoria dos movimentos colectivosliderados pelos grupos intelectuais, cujas bases, entre outros,lançou KAUTSKY.

Os campos de problemas já não são definidos, arbitrariamen-te, pela solicitação dos analistas económicos. Inscrevem-se, antes,em visão integrada do processo macrossociológico de passagem dasociedade tradicional à subdesenvolvida, e dessa, a desenvolvida.

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Nessa perspectiva, a incorporação de elementos teóricos que,isolada ou sistematicamente, vêm-se acumulando nas diversasáreas da sociologia — sociologia do consumo; sociologia da difusãode inovações; estudos da estratificação social; teoria dos gruposde referência; teorias da marginalidade social; teoria dos equilí-brios macrossociológicos entre as ordens institucionais, etc.—mostra que a desejada constituição da sociologia como ciênciaempírico-dedutiva já não é projecto demasiado ambicioso, nemremoto.

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