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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
RELIGIOSIDADE POPULAR
Peregrinação e vínculos de solidariedade na Romaria Pirapora do Bom Jesus
Por
ANTONIO CARLOS DOS REIS
São Paulo
2012
I
ANTONIO CARLOS DOS REIS
RELIGIOSIDADE POPULAR
Peregrinação e vínculos de solidariedade na Romaria Pirapora do Bom Jesus
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Edson Pereira Lopes.
São Paulo
2012
II
R375r Reis, Antônio Carlos dos
Religiosidade popular: peregrinação e vínculos de
solidariedade na Romaria Pirapora do Bom Jesus/Antônio
Carlos dos Reis – 2012. 112 f.; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.
Orientador: Prof. Dr. Edson Pereira Lopes
Bibliografia: f. 105-107
1. Catolicismo 2. Religião popular 3. Romaria 4. Peregrinação,
Solidariedade I. Título
LC BL53
CDD 248.29
III
ANTONIO CARLOS DOS REIS
RELIGIOSIDADE POPULAR
Peregrinação e vínculos de solidariedade na Romaria Pirapora do Bom Jesus
Aprovado em ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Prof. Dr. Edson Pereira Lopes (Orientador)
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________
Profª. Dra. Lídice Meyer Pinto Ribeiro
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________
Profª. Dra. Patrícia Pazinato
Faculdade Teológica Batista de São Paulo
IV
DEDICATÓRIA
À minha esposa, Fátima Reis, fiel companheira e
inspiração para meus estudos.
Às minhas filhas, Nathália e Isabella.
V
AGRADECIMENTOS
A Deus, razão de ser e existir, que me iluminou nesta empreitada.
Aos meus pais, que transmitiram educação e caráter, base para minha vida.
À minha esposa, Fátima Reis, e minhas filhas, Nathália e Isabella, amores da minha vida.
Ao amigo e orientador, Prof. Dr. Edson Pereira Lopes, por tratar-me como pesquisador e por
me mostrar com paciência os difíceis caminhos, mas gratificantes da vida acadêmica.
À banca examinadora, Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, Profª. Dra. Lídice Meyer Pinto
Ribeiro e Profª. Dra. Patrícia Pazinato, pelas orientações, correções e sugestões quanto ao
projeto de pesquisa. Às críticas e sugestões contribuíram para o amadurecimento deste
trabalho.
Aos professores do Programa de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, por contribuírem e embasarem os meus conhecimentos,
possibilitando a presente pesquisa.
Ao amigo Marcus Mancuso, pela dedicação nos trabalhos de filmagem e fotos da romaria.
A Alexandre da Silva Chaves, amigo de todas as horas, cuja participação foi especial; pela
inestimável contribuição nos diálogos interdisciplinares e indicações bibliográficas.
A José Parada, nosso querido historiador, pelas entrevistas sobre a romaria e a cidade de
Franco da Rocha.
Aos romeiros que contribuíram de maneira especial em todo o processo da romaria, com
entrevistas, fotos, vídeos e participação desde a saída até o retorno da romaria.
Ao Sr. Gentil de Palma (Tino Palma), fundador da Romaria Pirapora do Bom Jesus, por
disponibilizar seus registros históricos e seu tempo conversas informais.
Ao Jair Mendes Góes, grande amigo, pelo companheirismo e atenção especial durante a
elaboração desta dissertação.
Aos meus alunos do Colégio BEFAMA – Escola Estadual Benedito Fagundes Marques, onde
leciono Filosofia, pela consideração e participação nesse processo pesquisa.
À Prefeitura e Câmara Municipal de Franco da Rocha, especialmente ao prefeito Marcio
Cecchettini, vereadores e funcionários por terem me incentivado nesta jornada.
A todos, meus sinceros agradecimentos.
VI
EPÍGRAFE
É preciso dizer, desde já, que a experiência religiosa da não-
homogeneidade do espaço constituiu uma experiência primordial, que
corresponde à uma fundação do mundo.
Mircea Eliade
Um homem deve julgar suas obras pelos obstáculos que superou e as
dificuldades que suportou, e, por tais padrões, não fico envergonhado
dos resultados.
E.E. Evans-Pritchard
VII
RESUMO
A tradicional Romaria Pirapora do Bom Jesus, cujas origens remontam a 1942, é uma das
mais importantes manifestações populares no munícipio de Franco da Rocha, São Paulo.
Tomando-a como recorte empírico, esta dissertação tem como objetivo compreender dois
aspectos da religiosidade popular: o primeiro consiste em verificar sua importância no
processo de formação política e social de Franco da Rocha, contrapondo-se a ideia de que a
Romaria é uma tradição religiosa “ultrapassada” em relação ao processo de modernização. O
segundo objetivo trata de interpretar a Romaria como um ritual de peregrinação por meio do
qual os romeiros compartilham um conjunto de valores tradicionais, estabelecendo uma
identidade coletiva, conhecida como “festeiros”. Sustenta-se a hipótese de que esta romaria
tem como função social condensar vínculos de solidariedade entre os romeiros, sendo
interpretada aqui como “depositária de valores culturais”, reatualizados pelos romeiros por
ocasião das “festas” ou ritos de peregrinação. A fim de interpretar estes elementos, esta
dissertação privilegia um diálogo interdisciplinar entre Ciências Sociais e Ciências da
Religião, de modo que seja possível fazer uma leitura da experiência religiosa; além disso,
busca-se fundamentar esta discussão com dados históricos.
Palavras-chave: Catolicismo, religião popular, romaria, peregrinação, solidariedade.
VIII
ABSTRACT
The traditional pilgrimage Pirapora do Bom Jesus, that has its origins in 1942, is one of the
most important popular manifestations of Franco da Rocha city, in São Paulo. Having it as an
empirical cut, this dissertation has the objective of understanding two aspects of popular faith:
the first one consists in checking its importance to the process of political and social
formation of Franco da Rocha, going against the idea that a pilgrimage is an “obsolete”
religious tradition in front of this modernization process. The second objective about
interpreting the pilgrimage as a peregrination ritual by which the pilgrims share a pack of
traditional values, establishing a mutual identity, known as “festeiros”. The hypothesis that
this pilgrimage has as social part condensing bonds of solidarity between the pilgrims, being
interpreted here as “depositary of cultural values”, re-updated by the pilgrims for celebration
occasions or peregrination rites. Having the objective of interpreting such elements, this
dissertation privileges an interdisciplinary dialogue between Social Sciences and Religious
Sciences, so that it’s possible to make a lecture of the experience. Besides, it reaches to
substantiate this discussion with historical datas.
Key-words: Catolicism, Religiosidad popular, romaria, peregrination, solidarity
IX
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mapa situando Franco da Rocha ............................................................................. 53 Figura 2 - Dr. Franco da Rocha . .............................................................................................. 55 Figura 3 - Busto do Dr. Franco da Rocha . .............................................................................. 55
Figura 4 - Complexo do Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha, 1960 .............................. 56 Figura 5 - Estação Juquery, fundada em 1888 ......................................................................... 56 Figura 6 - Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição . ........................................................... 57 Figura 7 - Cartaz de divulgação da Romaria Santa Cruz dos Valos, 2011 . ............................ 60 Figura 8 - Romaria Santa Cruz dos Valos, 2011 ...................................................................... 61
Figura 9 - Romaria Santa Cruz dos Valos -Trajeto, 2011 ........................................................ 61 Figura 10 - Romeiro e seu cavalo ............................................................................................ 79
Figura 11 - Autoridades municipais e organizadores da Romaria Pirapora do Bom Jesus no
momento da saída . ................................................................................................................... 82 Figura 12 - A benção do padre autorizando a saída da Romaria . ............................................ 86 Figura 13 - Pesquisador ao lado do fundador da Romaria (Sr. Tino Palma) e um antigo
romeiro . ................................................................................................................................... 87
Figura 14 - Cavaleiros se preparando para saída da Romaria ................................................. 88 Figura 15 - Realização do trajeto inicial .................................................................................. 88
Figura 16 - Saída pelas ruas de Franco da Rocha . ................................................................... 89 Figura 17 - Trânsito na saída da Romaria ................................................................................ 89 Figura 18 - Santuário do munícipio de Pirapora do Bom Jesus .............................................. 91
Figura 19 - Quadro representado o mito do "encontro" com o Bom Jesus .............................. 92 Figura 20 - Memorial das Romarias em Pirapora do Bom Jesus . ........................................... 93
Figuras 21 - Imagens do Bom Jesus no interior do Santuário (detalhes) ................................ 94 Figura 22 - Cartaz de programação da "Festa do Bom Jesus" em Pirapora ............................ 95
Figura 23 - Ruas de Pirapora durante a festa do Bom Jesus..................................................... 95 Figura 24 - Folheto distribuído durante a festa do Bom Jesus . ............................................... 96
X
LISTA DE ANEXOS
ANEXO 1 - ESCRITURA DE DOAÇÃO DE TERRAS PARA A IGREJA . ..................... 109
ANEXO 2 - CERTIDÃO DE PROPRIEDADE DE TERRAS DO JUQUERY ................... 110 ANEXO 3 - HISTÓRICO DA PRIMEIRA CAPELA DE 1908 ........................................... 111 ANEXO 4 - OFICIALIZAÇÃO DA ROMARIA . ............................................................... 112
XI
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
CAPÍTULO 1 – REVISITANDO O DEBATE ACERCA DA “RELIGIÃO”. ....................... 21
1.1 Os conceitos de religião e experiência religiosa. ....................................................... 21
1.2 Da universalidade da religião à particularidade do popular. ..................................... 37
CAPÍTULO 2 – CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-RELIGIOSA DE FRANCO DA ROCHA. . 46
2.1 A tensão entre catolicismo oficial e catolicismo popular ............................................... 48
2.2 Manifestações religiosas em Franco da Rocha ............................................................... 53
2.3 A Romaria Pirapora do Bom Jesus ................................................................................. 66
CAPÍTULO 3 – PEREGRINAÇÃO RITUAL E OS VÍNCULOS DE SOLIDARIEDADE .. 71
3.1 Os Vínculos de solidariedade ......................................................................................... 72
3.2 Estrutura da peregrinação ritual: Viagem-chegada-retorno............................................ 81
3.3 O Santuário de Pirapora do Bom Jesus .......................................................................... 90
3.4 Declínio das romarias. .................................................................................................... 97
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 105
ANEXOS ................................................................................................................................ 108
12
INTRODUÇÃO
Localizado a 38 km da capital paulista, o município de Franco da Rocha, além de ser
um dos símbolos de urbanização e modernização de uma região antes rural, conta ainda com
uma forte presença religiosa popular, cujas formas basilares remontam às suas tradições
rurais. Este município desenvolveu-se numa região conhecida como Juquery,1 sendo
caracterizada por vários bairros tipicamente rurais e pela presença de manifestações religiosas
populares, intrinsecamente relacionadas com a história de sua formação social.
Assim, esta dissertação tem como objetivo geral compreender o processo de
formação da religiosidade popular, especialmente o chamado “catolicismo popular” em
Franco da Rocha de modo que seja possível verificar um conjunto de tradições basilares que
torna comum a construção de uma identidade religiosa. Para dar conta dessa questão, a
pesquisa foi delimitada numa manifestação religiosa do catolicismo popular, conhecida como
Romaria Pirapora do Bom Jesus (doravante Romaria), cuja fundação data-se de 1942. Sua
origem pode ser encontrada num processo de emancipação político-administrativo
conquistado pelo município de Franco da Rocha em relação ao município de Mairiporã, em
1944.
Como já enunciado, as romarias são manifestações religiosas tradicionais, cujos
eventos são centrados nos símbolos do catolicismo popular, típico da religiosidade brasileira.
Estes eventos populares costumam reunir pessoas que saem do centro da cidade pela manhã e
peregrinam até os locais sagrados destinados a fim de prestarem cultos, devoções aos santos,
pagar promessas, pedir graças, curas e agradecimentos. No caso da Romaria Pirapora do Bom
Jesus, a peregrinação percorre um trajeto de aproximadamente 75 km, partindo do centro de
Franco da Rocha ao Santuário localizado no município de Pirapora do Bom Jesus. Por esta
característica, a Romaria ultrapassa fronteiras regionais, visto que a ideia de peregrinação
rompe com fronteiras e sacraliza tais espaços. Os elementos religiosos e culturais que
compõem este trajeto serão chamados aqui de “peregrinação ritual”.
Outro aspecto que deve ser ressaltado é a dimensão política, fato que se deve à
circulação de diversos atores sociais, tais como autoridades políticas municipais, estaduais e
federais, a presença de famílias de prestígio social na região, sem mencionar sua importância
1 O nome “Juquery” é de origem tupi, “yu-querê-y”, “rio do espinho que dorme”, em alusão a uma planta
espinhosa abundante nas margens do rio (PADARA; LOUZADA, 2006, p. 13). Juquery foi elevado a distrito em
13
no calendário politico do município. Institucionalizada pela fundação da Associação dos
Romeiros de Franco da Rocha em 1989, a Romaria é um importante depositário de tradições e
valores culturais.
Tomando a Romaria como recorte empírico, a pesquisa tem como objetivo específico
explorar a atribuição que os romeiros fazem da peregrinação ritual, visto que por meio desta
manifestação festiva, é possível caracterizar a formação de vínculos de reciprocidade e
“solidariedade” entre os romeiros. Vista como performance ritual, a peregrinação é um modo
de “reatualização” de uma tradição que da perspectiva dos romeiros devem ser preservadas,
visto que lhes são atribuídas valores sagrados.
Esta pesquisa procura dar conta de um conjunto de problemas, tais como: que
relações há entre a Romaria e a formação religiosa da cidade de Franco da Rocha e que lugar
a religião ocupa no processo de modernização da cidade? De que modo a Romaria estabelece
vínculos de solidariedade entre os romeiros no que diz respeito à memoria histórica da
cidade? Como a Romaria pode ser vista como depositária de um conjunto de valores
tradicionais e constituidora de uma identidade coletiva?
Estas questões são fundamentais para esta reflexão e resulta nas seguintes hipóteses:
o catolicismo popular é mais central ao processo de desenvolvimento do município de Franco
da Rocha do que geralmente se atribui. A primeira hipótese é de que manifestações religiosas
populares, e mais especificamente a Romaria, contribuíram para a formação de uma
identidade coletiva e que a mesma não deve ser vista como “sobrevivência” de uma tradição
ultrapassada em meio ao processo de modernização. Recorrendo a uma abordagem histórica e
entrelaçando com a descrição da peregrinação ritual, percebe-se que esta manifestação
religiosa popular não é antagônica ao processo modernização, como se costuma pensar o
modo dualístico.
Como extensão da primeira, a segunda hipótese busca demonstrar a dimensão desses
valores compartilhados pelos romeiros: esta hipótese sustenta que a peregrinação ritual pode
ser lida como um repertório de elementos simbólicos por meio das quais os romeiros
constroem redes de reciprocidade não apenas entre os santos, mas também entre si ao
compartilharem elementos básicos dos valores tradicionais. Estes elementos integradores
serão chamados de “solidariedade”. A peregrinação ou festa é um modo de “reatuzalizar” a
memória histórica dos valores e tradições.
14
Entretanto, é preciso chamar atenção para o fato de que os termos “religiosidade” e
“religião popular”, além de serem ambíguas e polissêmicas, não são tidos pela literatura
sociológica como sinônimas, podendo mesmo abarcar uma variedade de símbolos e práticas
religiosas construídas pelo povo à parte de uma produção institucionalizada, dita “oficial”.
Desse modo, tais termos podem ainda evocar uma ideia de “falso” e “desviante” em relação
ao normativo, de modo que o adjetivo “popular” passa a ter um sentido pejorativo. Ainda cabe
destacar que “religiosidade” para alguns autores se relaciona ao aspecto da experiência
individual, como “forma particular de participar e experimentar a religião pré-constituída e
supraindividual” (SILVA, 2010, p. 14), ao passo que “religião” implica numa coletividade.
Portanto, ao utilizar-se o termo “catolicismo popular” em nossa abordagem como referência à
manifestação popular como as romarias, não partilhamos da mesma leitura que pressupõe a
religião popular como uma “distorção”.
Estas tensões já foram devidamente problematizadas por diversos autores, entre eles,
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968), Cândido Procópio de Camargo (1973), Carlos
Alberto Steil (1996) e Pedro Ribeiro de Oliveira (1997). Estes autores buscaram propor uma
variada tipologia com objetivo de explicar o fenômeno religioso no Brasil. Queiroz (1968, p.
107), por exemplo, descreve as características de um tipo de catolicismo que se desenvolveu
em algumas regiões do Brasil: práticas religiosas típicas da religião rural são classificadas
como “catolicismo rústico” em oposição ao “catolicismo urbano”, característico dos modos de
vida na cidade. Ambos, entretanto, são colocados por esta autora, dentro de uma classificação
mais ampla como “catolicismo popular”. Já Oliveira (1997, p.47), define catolicismo popular
como “um conjunto de representações e práticas religiosas autoproduzidas pelas classes
subalternas, usando o código do catolicismo oficial”. Para este autor, o catolicismo popular,
embora constituído de elementos diversos, teria como centro a figura do “santo”. É nesse
sentido que utilizaremos a noção de “catolicismo popular” com o propósito de abranger as
manifestações populares, como a Romaria.
Quanto ao município de Franco da Rocha, muitas pesquisas já o tomaram como
objeto de estudos. Entre estas pesquisas listam-se trabalhos sem pretensões acadêmicas ou
rigor científico e produções acadêmicas. Entre as pesquisas não acadêmicas constam trabalhos
como a historiografia “oficial” de José Parada e Clélia de Fátima Louzada (2006), cujo
objetivo é condensar uma história “documental”, privilegiando uma abordagem sobre
desenvolvimento econômico e social; há também um trabalho, cujo texto jornalístico e sem
rigor técnico, realizado por Adauri Alves (2008) trata dos “cem anos de catolicismo em
15
Franco da Rocha” (de 1908 a 2008). Pode-se dizer que ambos detêm-se numa leitura
cronológica “oficial” do processo de formação de Franco da Rocha, guiados por uma
preocupação da história do progresso, destacando seus símbolos da modernidade e do
desenvolvimento urbano.
Entre os trabalhos acadêmicos, listam-se relevantes pesquisas que se dedicaram aos
variados aspectos do município de Franco da Rocha, desde os aspectos políticos aos
religiosos, como por exemplo, uma tese em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de
São Paulo (USP) de Iná Rosa (2005), que investiga a morfologia urbana da cidade de Franco
da Rocha; uma dissertação de mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP) de Paulo Silvino Ribeiro (2010), que estabelece uma relação entre ciências médicas
e as ciências sociais no século XIX, tomando como referência as produções cientificas do
médico psiquiatra, Franco da Rocha; consta ainda uma dissertação de mestrado em Ciências
da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), de Alexandre da Silva
Chaves (2011), que se dedica a analisar a transição rural-urbana por meio do pentecostalismo.
Estes trabalhos, cada um a seu modo e perspectiva teórica, contribuíram para produção de
conhecimento acerca da formação política, social, econômica do município. Com exceção do
trabalho de Chaves, cujo diálogo transversal resvala em algumas questões, há poucos
trabalhos que versem especificamente sobre catolicismo popular ou romarias. Cabe, assim,
propor a possibilidade explorar esta temática mais detidamente: eis o objetivo desta pesquisa.
Pesquisar a Romaria como uma manifestação do catolicismo popular é relevante para
este trabalho, pelo fato de contribuir para compreensão da religião como aspecto da vida
social e cultural do município de Franco da Rocha: por meio desta manifestação religiosa é
possível entender a construção de vínculos sociais e um conjunto de valores culturais.
Buscando elementos interpretativos nas Ciências Sociais e História das Religiões
(sociologia, antropologia e fenomenologia), esta dissertação pretende estabelecer um diálogo
interdisciplinar, de modo que não isole de seu contexto histórico o referencial teórico
privilegiado: trata-se da abordagem fenomenológica, tendo Mircea Eliade como o principal
articulador. Tal interesse deve-se à linha de pesquisa na qual está inserida este trabalho:
“estudos multidisciplinares do campo religioso brasileiro”. Assim, busca-se contribuir para
produção acadêmica em Ciências da Religião.
Desse modo, busca-se compreender a construção empreendida pelas ciências sociais
e humanas acerca do conceito de “religião” e “experiência religiosa”. Esta
interdisciplinaridade é construída a partir dos estudos clássicos, elencando autores como: o
16
sociólogo Émile Durkheim (1989) para pensar a religião como “comunidade moral”; os
antropólogos Marcel Mauss (2003) e Victor Turner (2005) para pensar a função dos rituais, e
Clifford Geertz (1989) para pensar a noção de religião como “sistema cultural”; o teólogo
Rudolf Otto (2007) e o historiador das religiões, Mircea Eliade (1972, 2001) para pensar a
experiência do homem religioso.
A noção de “homem religioso” elaborado por Eliade, embora contenha uma
preocupação teórica de abarcar uma universalidade do fenômeno religioso, será tomado aqui
de modo muito particular: tentar descrever de modo específico à experiência religiosa dos
romeiros e seus modos de atribuição de sagrado no cotidiano. Qual o sentido de ser romeiro
ou “festeiro”? Que valores atribuem aos rituais de peregrinação? Como descrever estas
experiências do homem religioso sem reduzi-las?
O procedimento metodológico adotado nesta pesquisa consiste na análise de dados
qualitativos resultantes da observação participante e entrevistas com seus principais
organizadores, bem como na utilização de documentos históricos publicados em revistas,
jornais e livros produzidos ao longo da história da Cidade. As entrevistas foram construídas a
partir de diálogos informais, não se restringindo a estrutura de um modelo específico. Além
disso, a proximidade de relações que tenho com romeiros da cidade (funcionários públicos e
amigos), facilitou a inserção em campo e a informalidade na obtenção dos dados. Ademais, é
preciso destacar que por estas relações, não me viam como “pesquisador”, mas como um
potencial romeiro. Por questões éticas adotamos o seguinte procedimento: com exceção das
pessoas que autorizaram a citação de seus nomes, alguns nomes são fictícios ou abreviados de
modo a não identificá-las.
Quanto à observação participante, busca-se somar a estes dados uma etnografia da
peregrinação ritual e do universo de suas práticas, de modo que torne possível uma “imagem”
de sua dinâmica e das tensões. Recorre-se ainda a uma abordagem histórica a fim de
contextualizar geograficamente o município de Franco da Rocha. Tais recursos metodológicos
são ferramentas pelas quais se busca confirmar as hipóteses propostas.
Segue abaixo um trecho de meu registro de campo com objetivo de explicitar minha
inserção no trajeto com os romeiros:
Na primeira semana do mês de agosto de 2011, já era possível ouvir os
comentários sobre a organização da romaria a Pirapora do Bom Jesus. No
dia 05 de agosto às 7hs horas da manhã, numa sexta-feira, em frente o Paço
17
municipal da cidade de Franco da Rocha, os romeiros começam a chegar e
se organizam em grupos por afinidades: por um lado os cavaleiros, do outro,
os charreteiros, ciclistas, motociclistas e os caminhantes que seguiriam a pé.
Após a chegada de todos, passa-se para o momento tão esperado, o momento
da partida que se inicia com a bênção do padre, sendo esta uma forma de
autorização, passando então sob a bênção e proteção de Deus, de Nossa
Senhora e do Bom Jesus, conforme expressam os romeiros. A sagrada
peregrinação tem como destino a cidade de Pirapora do Bom Jesus,
localizada a 75 km de Franco da Rocha. Neste momento, antes da saída,
conversei com o fundador da Romaria, o senhor Tino Palma, perguntando-
lhe sobre a importância da romaria para sua vida. Ao que responde: “a
romaria é uma coisa muito boa, não tem enguiço nenhum (bagunça). Nós,
todos os anos saímos daqui e vamos até Pirapora para agradecer ao Bom
Jesus. Eu gosto muito, fico emocionado, sinto que todos são uma mesma
família, já há muitos anos estamos juntos nesse evento”. Enquanto
conversávamos, pude observar que ele estava emocionado e as lágrimas
desciam sobre o seu rosto e era justamente no momento da saída. Confesso
que também chorei, fiquei emocionado, talvez porque naquele momento ao
som das músicas eu relembrava tempos passados da história de minha vida
com meus pais em outras romarias... Eu e um amigo Marcus Mancuso
(fotógrafo), caminhamos juntos com os romeiros desde a saída até o retorno.
Apesar da finalidade não ser a mesma (pagar promessa), sentimos naqueles
momentos como co-participantes em todo o trajeto. Eu que tive uma
educação tradicional católica e já participara de outras romarias, pude
relembrar: lembrei-me, quando criança, quase todos os anos participava com
meus pais nas romarias até Aparecida do Norte e também participava de
peregrinações locais e regionais, procissões como comemoração do dia do
padroeiro ou a procissão do nosso Senhor morto na sexta-feira da paixão nas
paróquias católicas nas cidades onde morei. Mas, o meu amigo fotógrafo, me
disse que era a primeira vez que participava de uma romaria e que estava
gostando. Logo no início da peregrinação, Mancuso percorrendo em meio à
multidão, buscou fotografar tudo na possibilidade filmar o evento, pois dizia
estar muito interessante. Enquanto fotografava, eu registrava em minhas
anotações as conversas, falas, orações e buscava descrever os sinais e gestos,
como um esforço de desnaturalizar um conjunto de práticas que me haviam
sido naturais. Quando não entendia perguntava e os romeiros me
explicavam. Nas paradas para descansos e alimentação ficava atento aos
acontecimentos, sempre buscando registrar o que realmente estava
relacionado com o evento em torno dos rituais de peregrinação. Os romeiros
possuem fortes raízes da educação católica tradicional e nas diversidades
culturais da religiosidade popular o santo é tido como mediador e protetor,
que os espera lá no santuário acolhendo os cumprimentos das promessas.
Quase todos possuem promessas a serem pagas, mesmo que sejam as mais
simples. Os sinais são visíveis. Romeiros levam velas de aproximadamente
um metro, imagens de santos de devoções, recipientes de água e outros
objetos para serem benzidos pelo padre no Santuário. Observei alguns
romeiros que caminhavam descalços e outros que entravam no Santuário de
joelhos como forma de pagar promessas. Durante o trajeto, conversávamos
com os romeiros e era notável o objetivo, o desejo de cumprir suas
promessas nessa viagem. Os sentimentos de esperança em alcançar seus
objetivos eram notáveis nas conversas paralelas, expressões corporais. Para
os romeiros, o espaço e o tempo são vistos e experimentados como “ritos de
passagens”, constituindo-se em uma passagem do espaço e tempo profanos
para espaços e tempos sagrados.
18
Dia 05, a tarde no santuário.
Ao chegarem ao Santuário de Pirapora, os romeiros se adentram e se
ajoelham aos pés do Bom Jesus e rezam agradecendo pelo trajeto e pelas
bênçãos e graças recebidas durante os anos anteriores e também do presente
ano. Após ficar um tempo no espaço sagrado, se dirigem aos alojamentos e
se arrumam, para mais tarde se reunirem nos bares, restaurantes ou em
algum show na praça central e arredores da cidade de Pirapora do Bom
Jesus. No dia 06 e 07 voltam ao santuário para assistir as missas, confessar
seus pecados para o padre e comungar nas cerimônias celebradas (missas).
Segundo os romeiros, esses três dias se constituem em um tempo diferente,
pois param um pouco para refletir sobre a vida e repensar alguns fatos que
aconteceu no passado e ao mesmo tempo buscam novas perspectivas de
vida, novas formas, novos caminhos, isto é novos modos de viver. Enfim
esses dias em que ficam em Pirapora, proporcionam novas reflexões sobre a
vida passada, presente e futura na concepção dos romeiros. Na volta a
Franco da Rocha, os grupos se dividem em pequenos blocos e programam o
retorno em diversos horários. Quando perguntei o porquê, eles responderam
que muitos fazem promessa de ir a pé ou a cavalo, mas voltar de carro
devido ao desgaste com a viagem sofrida e a difícil acomodação, às vezes
precárias e não confortáveis. Ao chegarem a Franco da Rocha, se dirigem
cada um para as suas residências, como se fosse a hora de suspender o tempo
sagrado e se organizarem para o tempo cotidiano, voltar aos compromissos.
Segundo alguns romeiros, muitos voltam espiritualmente renovados, cheios
de esperanças e com aspectos de mudanças, transformação em suas vidas,
principalmente nos laços com a família; outros dizem não sentir mudanças
nenhuma, talvez apenas no grupo de amizade com aumento de novos
amigos; outros dizem que não pretendem mais voltar, afirmando não ter sido
uma boa experiência. Apesar do declínio nos últimos anos, a romaria é uma
manifestação da religiosidade popular capaz de solidarizar a vida dos
romeiros, pois o homem religioso experimenta o sagrado atribuindo a
mistérios para além do cotidiano (Caderno de Campo, 07 de agosto de
2010).
Estruturalmente, a pesquisa divide-se basicamente em três etapas: no primeiro
capítulo busca-se revisitar o clássico debate em torno da noção de “religião”, a fim de situar a
construção das principais abordagens teóricas e “religião popular”, na busca de caracterizar o
objeto em questão. Trata-se de uma contextualização histórica destes conceitos, com objetivo
de compreender as principais problemáticas e contribuições. A noção de religião proposta por
Mircea Eliade, por exemplo, é colocada em diálogo com outras perspectivas, de modo que
seja possível pensá-la num contexto especifico da experiência religiosa. Para pensar esta
questão, este referencial teórico possibilita compreender a dinâmica da experiência religiosa,
por meio da qual o homem religioso interpreta seu mundo. A Romaria é interpretada como
um meio da religião popular revisitar e atualizar o tempo mítico, o tempo do homem religioso.
A necessidade de voltar sempre às representações como forma de retorno às origens e
19
aproximação com o sagrado, é um modo de comportamento do homem religioso. Conforme
Eliade (2001), esta é uma das funções da religião.
O segundo capítulo pretende construir uma contextualização histórico-geográfica sob
a qual se desenvolve a Romaria Pirapora do Bom Jesus, perguntando-se acerca de seus
aspectos sociais, econômicos e políticos. Insiste-se na possibilidade do catolicismo popular
ser considerada um elemento fundamental para a formação de Franco da Rocha. Tratar-se
ainda de contextualizar um breve histórico do catolicismo desde os acordos entre Igreja e
Estado, formando o padroado e todo o processo de formação de práticas religiosas populares
no Brasil. Discorre-se também sobre as tensões entre estas manifestações populares e os
modos como os modelos oficiais os veem. No caso do município de Franco da Rocha, as
“festas” são manifestações populares reproduzidas pelo catolicismo popular com respaldo dos
líderes oficiais da Igreja e das autoridades políticas, mas isso não significa ausência de tensão.
Se o catolicismo popular é basilar na formação de Franco da Rocha, não faz sentido
colocá-la a parte dos processos modernos de transformação, como algo que representa um
suposto “retrocesso”: busca-se fundamentar a hipótese de que manifestações religiosas
populares de catolicismo é mais central a esse processo do que geralmente se admite. Neste
caso, a Romaria pode ser lida como patrimônio histórico-cultural de uma população em um
determinado espaço e tempo, cuja tradição orienta e dá sentido à vida: é nesse sentido que a
designamos como depositária de valores culturais. Nela, manifesta-se um conjunto de valores
tradicionais: a reciprocidade entre santos e romeiros, as relações entre religião e política, os
vínculos familiares, as redes de solidariedades. São estes valores que se mantém na base de
formação do município, servindo-lhe como coesão e orientadora dos sentidos. Por fim,
destaca-se a Romaria como recorte empírico para compreensão dessa dimensão do
catolicismo popular, a partir da hipótese de que ela pode ser lida como depositária de valores
culturais tradicionais: por meio destes valores constroem redes de reciprocidade e
solidariedade.
O terceiro capítulo se dedica a explorar as práticas religiosas, isto é, os rituais de
peregrinação, interpretando-os como uma performance ritual, por meio da qual constroem-se
os vínculos de reciprocidade, não apenas com os santos de devoção, mas também entre os
romeiros. Elementos como o trajeto, as promessas, os cânticos e as rezas implicam num
repertório de rituais capazes de estabelecer novas relações sociais.2 A hipótese de que a
2 A Romaria Pirapora do Bom Jesus em Franco da Rocha começa seus preparativos para saída no dia 5 do mês
de agosto de todos os anos, conforme a tradição. A peregrinação, com as tradicionais paradas para descanso,
20
Romaria tem como função social estabelecer um conjunto de valores partilhados pelos
romeiros soma-se com a ideia de que é por meio dos rituais que estes valores tradicionais são
“revisitados”, isto é, a Romaria enquanto “festa” reatualiza a tradição por meio de ritos. Trata-
se de propor um olhar micro sobre estas relações e perceber a performance ritual dos “corpos
devotados”. Em suma, o objetivo é articular as questões apresentadas nos capítulos anteriores
e explorar algumas facetas da tradicional Romaria Pirapora do Bom Jesus e sua relação com a
história do município de Franco da Rocha, aproximando-se, assim, da hipótese formulada, de
que é possível observar na peregrinação ritual um conjunto de características, cujo rito é capaz
de fortalecer vínculos e redes de solidariedade entre os romeiros.
Embora tradicional, a Romaria tem passado por um declínio nos últimos anos, fato
que tem preocupado suas lideranças e os romeiros. Uma das causas atribuídas pelos romeiros
é o crescimento dos evangélicos no município de Franco da Rocha, colocando a Romaria num
novo contexto de competição com outros símbolos religiosos na cidade. Entretanto, essa
questão é apenas sugerida para o desenvolvimento de pesquisas posteriores.3
Cabe ressaltar que os três capítulos estão estruturados em torno de dois eixos
comuns: demonstrar o processo de formação do catolicismo popular em Franco da Rocha e o
modo como a Romaria pode ser lida como depositária de valores tradicionais, possibilitando a
construção de vínculos de solidariedade entre os romeiros.
destina-se ao Santuário localizado no município de Pirapora do Bom Jesus, à aproximadamente 75 km de Franco
da Rocha, sendo programada para retorno no dia 7 de agosto. Busca-se descrever estes trajetos e o modo como
os romeiros a concebem.
3 O trabalho de Alexandre Chaves (2011) aponta também para esta questão. Percebe-se, cada vez mais, um
campo religioso em constante mutação e concorrência. Estas novas relações religiosas constituídas no município,
dinamizam a pluralização de manifestações religiosas, como por exemplo, a crescente “Marcha para Jesus” e a
“Cruzada da Paz”, promovida pelos evangélicos pentecostais e neopentecostais. Estas questões poderão ser
retomadas em trabalhos posteriores. Faremos apenas alguns apontamentos.
21
CAPÍTULO 1 – REVISITANDO O DEBATE ACERCA DA “RELIGIÃO”.
1.1 Os conceitos de religião e experiência religiosa.
O conceito de “religião” – assim como o adjetivo “popular” – tem suscitado um dos
maiores debates nas ciências sociais, uma vez que tais conceitos, para além da objetividade
que se pretendia, estavam “carregados” de impressões temporais e valorativas de seus
respectivos teóricos. Como observado por Emerson Giumbelli (2000), a noção de “religião”
elaborada pelas ciências sociais é constructo também de seu contexto histórico e cultural, tais
como os modelos teóricos implicados no positivismo, no evolucionismo cultural, no
paradigma da secularização, na fenomenologia, etc. Dito de outro modo, tais modelos
emergiram em determinados momentos históricos e foram moldados pela necessidade de
explicar um conjunto de problemas relativos à presença da religião no mundo moderno.
Referindo-se ao paradigma da secularização – e pertinente ao problema em questão –
Giumbelli argumenta que esta noção de religião “adquire sentido específico no processo
mesmo da emancipação do secular” (GIUMBELLI, 2000, p. 25).
Embora os vários modelos teóricos acerca da religião tenham contribuído para o
desenvolvimento do debate, o mesmo não se pode afirmar acerca dos consensos – talvez não
se possa esperar – visto que tais modelos aplicam-se a fenômenos dinâmicos. Desse modo, há
de se considerar, que não é fácil prover uma definição satisfatória para o que se entende por
religião, contentando-se apenas com modelos temporários e sujeitos à problematização.
Tomada como “uma das representações que os homens fazem do mundo e de si
mesmos” (HOURTAT, 1994, p. 26) ou como um “sistema cultural” (GEERTZ, 1989, p. 67),
a religião constituiu-se, para as ciências sociais, num fenômeno importante para a
compreensão da sociedade, visto que seu “sistema de crenças” possibilitava a compreensão
não apenas de seu conteúdo, mas também de uma variedade de funções sociais, como por
exemplo, a coesão social, manutenção de valores, construtora de ordem e moralidade,
depositária de símbolos culturais, etc., temas clássicos nos trabalhos de pioneiros como Émile
Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-1920).
Considerando o acumulado de discussões a esse respeito, o objetivo deste capítulo é
revisitar brevemente à problemática em torno da noção de religião elaborada pelos principais
modelos teóricos nas ciências sociais, especialmente os “clássicos” – presentes efetivamente
na constituição das Ciências da Religião – possibilitando assim, a construção de um diálogo
22
interdisciplinar para o empreendimento que esta dissertação se propõe a realizar, ou seja,
compreender a relação entre o catolicismo popular e a formação do município de Franco da
Rocha, especialmente os aspectos sociais presentes na Romaria Pirapora do Bom Jesus, como
por exemplo, os vínculos de solidariedade entre os romeiros.
Para tanto, este capítulo busca, em primeiro lugar, entender a construção de duas
abordagens teóricas acerca do fenômeno religioso: a primeira elaborada por Émile Durkheim,
sociólogo francês e pai da sociologia da religião; e a segunda elaborada pelo teólogo alemão,
Rudolf Otto (1869-1937), cuja perspectiva é relacionada à fenomenológica e desenvolvida
pelo historiador das religiões, o romeno Mircea Eliade (1907-1986). Tomando-os como
contraponto, pretende-se aqui aproximá-los numa chave interpretativa que possibilite uma
leitura da experiência religiosa e da construção de símbolos sagrados nas práticas religiosas
populares.
Complementando a esta discussão, empreende-se a seguir uma breve discussão acerca
do conceito de “religião popular”, de modo que torne claro o uso recorrente na presente
pesquisa. É possível discorrer sobre religião popular sem levar em consideração o que
efetivamente se entende por religião ou mesmo por popular? Nesse sentido, a fim de tornar o
uso do termo “religião” apropriado aos objetivos desta pesquisa no que diz respeito ao
catolicismo popular, empreende-se uma breve contextualização histórica destes conceitos.
Desse modo, será justificado, em ambos os casos, a utilização dos conceitos e os meios pelos
quais serão abordados.
Os séculos XVIII e XIX foram marcados pela consolidação das Ciências Sociais como
disciplina científica. Entre as preocupações que ocupavam seus principais pensadores,
constava a necessidade apresentar objetividade em relação a seu objeto de estudo, a saber, a
vida social. No que diz respeito à religião como um fenômeno social, os esforços
concentraram-se numa tentativa de verificar suas origens a fim de reconstituir os modos de
vida que precederam o mundo “civilizado”. Isso não significa que esta questão não tenha sido
especulada em outros momentos históricos, mas que, especificamente estes estudiosos
estavam convencidos de que as ferramentas técnicas e metodológicas utilizadas pelas ciências
naturais – biologia, por exemplo – poderiam de modo análogo, serem aplicadas na análise da
vida social, e, assim, lançar luz sobre as questões de suas origens, bem como as “leis
universais” de sua evolução cultural.
No que diz respeito à consolidação e legitimação da Sociologia (ou Antropologia)
como “ciência”, para além da especulação “filosófica”, o principal modelo e rigor científico
23
foram tomados das então ciências naturais praticadas por evolucionistas biológicos, como
Charles Darwin. Tal como ficou conhecido, o darwinismo pressupunha que a evolução
correspondia a determinadas “leis” fixas e “naturais” pelas quais a vida biológica teria
universalmente evoluído. Tratava-se de sucessivas fases de desenvolvimento regidos por uma
única lei natural.
Foi exatamente este modelo científico das ciências naturais e suas leis universais que
foram importados para análise da vida social, tornando-se conhecida, por exemplo, pela
exposição de Auguste Comte (1798-1857) acerca da lei dos “três estados”.
Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas
diversas esferas de atividade, desde seu primeiro voo mais simples até
nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental a que se sujeita
por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente
estabelecida, quer na base provas racionais fornecidas pelo conhecimento de
nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes dum
exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma de nossas
concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa
sucessivamente por três estados diferentes: estado teológico ou fictício,
estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo (COMTE, 1978,
p. 3-4).
Segundo Comte, a humanidade teria passado por sucessivos estágios universais,
obedecendo a leis fixas e universais, sendo eles: o estado teológico-fictício, entendido como a
“infância” da humanidade. Neste estado de evolução, o homem tende a explicar a realidade
por meio da linguagem fantasiosa ou mitológica. O segundo estado seria o metafísico-
abstrato, onde a realidade passa a ser conceituada, como por exemplo, pelo pensamento
filosófico. Por sua vez, o terceiro estado, conhecido como positivo-científico, corresponderia à
fase “adulta” da humanidade, de acordo com o qual a realidade é interpretada pela razão
cientifica e técnica. É por meio desta forma de pensar que a humanidade pode ser levada ao
“progresso”, destino inevitável de sua evolução social.
Na fileira da antropologia do século XVIII e XIX, este modelo ficou conhecido como
“evolucionismo social ou cultural” e relacionado à Lewis Henry Morgan (1818-1881),
Edward Burnett Tylor (1832-1917) e James George Frazer (1854-1941) (CASTRO, 2008).
Influenciados pelo evolucionismo darwiniano e pelo positivismo comtiano, estes autores,
pressupunham que a humanidade havia também passado por estágios sucessivos de evolução
social até chegarem ao estado “civilizado”. Tendo obedecido a uma evolução unilinear, a
24
humanidade teria necessariamente passado pelo estado de “selvageria”, sucedido por um
estado de “barbárie”, e, consequentemente rumo à “civilização”. As crenças e ritos dos mais
variados povos eram colocados numa escala hierárquica, a fim de medir o desenvolvimento
intelectual do homem. Neste contexto, práticas religiosas consideradas “primitivas” e
encontradas no mundo civilizado, eram tidas como “sobrevivências” de estágios anteriores
que ainda resistiam como “superstições” e “crendices”, devendo ser superadas. Tendiam a ver
a religião como um sistema “falso” no modo de conceber o mundo, portanto, um problema
para desenvolvimento social do homem moderno. Além disso, acreditavam num progresso
moral da humanidade, pressupondo os valores da civilização europeia como o topo desta
evolução.
As teorias evolucionistas culturais já foram devidamente refutadas por antropólogos
como Franz Boas (2007) numa série de artigos e conferências e por Claude Lévi-Strauss, que
as classificou como “falso evolucionismo” (LEVI-STRAUSS, 1980, p. 55). O que interessa
na presente discussão é o modo como à noção de religião e a preocupação em explicar suas
origens esteve submetida neste contexto à ideia de “evolução”. Eram, portanto, as chaves
explicativas adotadas pelos primeiros cientistas sociais.
Em suma, pensava-se na religião como um dos estágios do desenvolvimento humano,
relegando-a a um estágio inferior e “primitivo” em relação ao pensamento científico moderno
e civilizado. Por conta disso, travou-se uma verdadeira guerra contra a religião, denunciando-
a como algo que impedia o “progresso” e, como tal, deveria ser superado pelo mundo
moderno.
Entretanto, entre meados do século XIX e durante o século XX, pesquisas
etnográficas, antropológicas, arqueológicas e históricas, levantaram novas questões,
reacendendo os debates sobre a religião e sua função social, entre os quais, os trabalhos da
escola sociológica francesa, na figura de Émile Durkheim e na área de História das Religiões,
na figura do romeno Mircea Eliade, tendo-se tornado modelos clássicos. As obras de ambos
os autores, embora por caminhos metodológicos diferentes, inovaram e redirecionaram os
estudos sobre o fenômeno religioso, desvinculando-as do etnocentrismo predominantemente
europeu.
A tese de Durkheim, por exemplo, em sua magistral obra, As formas elementares da
vida religiosa (1989, p. 495) sustenta que religião desempenha um papel fundamental na vida
social, como um sistema por meio da qual a sociedade se organiza em relação às suas regras,
costumes, valores, leis, etc. Além disso, o modo como os homens classificam e constroem
25
sentidos para a realidade, ou como afirma Durkheim, “os primeiros sistemas de
representações que o homem produziu do mundo e de si mesmo são de origem religiosa”
(DURKHEIM, 1989, p. 37).
Porque, antes de mais nada, as concepções religiosas tem por objeto exprimir
e explicar, não o que existe de excepcional e de anormal nas coisas, mas, ao
contrário, o que elas tem de constante e de regular [...] Veremos, com efeito,
que, desde as religiões mais simples que conhecemos, eles [os seres
sagrados] tiveram como tarefa essencial manter, de maneira positiva, o curso
normal da vida (DURKHEIM, 1989, p. 59).
Considerando este modo de classificação do mundo ou da realidade, cuja operação
básica consiste na linguagem, uma atenção especial foi dada aos mitos religiosos. Ao
contrastar duas categorias fundamentais no fenômeno religioso, a saber, as crenças (de onde
nascem os mitos) e os ritos (relacionando-os às práticas) Durkheim define o primeiro como
“estados de opinião”, de onde se derivam as “representações”, e o segundo como “modos de
ação” (DURKHEIM, 1989, p. 67). Simplificando esta sentença, José Severino Croatto (2010,
p. 10), sintetiza ao afirmar que “o que o mito ‘disse’, o rito ‘faz’”.
Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas,
apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das
coisas, reais ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou em
dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos
traduzidos, relativamente bem, pelas palavras profano e sagrado
(DURKHEIM, 1989, p. 68).
Nesse sentido, a assertiva de Durkheim era de que não há “religiões que sejam falsas”,
pois, “todas são verdadeiras à sua maneira: todas respondem, ainda que de maneiras
diferentes, a determinadas condições da vida humana” (DURKHEIM, 1989, p. 31). Portanto,
os mitos e os ritos seriam um modo de traduzir as necessidades humanas.
As crenças religiosas são representações que exprimem a natureza das coisas
sagradas e as relações que estas mantem entre si e com as coisas profanas.
Enfim, os ritos são regras de comportamento que prescrevem como o
homem deve se comportar com as coisas sagradas (DURKHEIM, 1989, p.
72).
26
Os “estados de opinião” de onde se derivam as estruturas das narrativas mitológicas,
ou simplesmente o mito, conforme definição durkheimiana, deixou de ser visto como um tipo
“inferior” de conhecimento, passando a ser interpretado como um “modo de conhecer”, um
modo de contar história, um modo de classificar a realidade. Assim, a atenção foi voltada para
a capacidade criativa do espírito humano como um meio de classificar seu mundo, entendidos
nos termos durkheimianos como “representações”. Por sua vez, a abordagem fenomenológica
buscou ir além das representações, voltando-se para a experiência do homem religioso, isto é,
para os sentidos.
Neste aspecto, tanto Mircea Eliade (1972, 2001), que privilegia a capacidade de
imaginação na elaboração dos mitos, quanto Claude Lévi-Strauss (1989), que numa linha
durkheimiana privilegia a estrutura da linguagem em sua análise, cada um a seu modo,
pensaram o discurso mitológico, não mais como algo falso e inferior em relação aos modos de
conhecimento científico, mas como modos eficazes de conhecimento elaborado pelo homem
dito “primitivo” para classificar a realidade, situar-se no tempo e narrar sua história.
Por cumprir esta função fundamental na vida humana, Lévi-Strauss chamou o
pensamento mítico de “ciência do concreto” (1989, p. 31), destacando-a como tão eficaz para
o homem “primitivo” quanto pensamento científico o é para o homem “moderno”.
Longe de serem, como muitas vezes se pretendeu, obra de uma “função
fabuladora” que volta às costas para realidade, os mitos e os ritos oferecem
como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de
observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente
adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a
partir da organização e da exploração especulativa do mundo sensível em
termos de sensível. Essa ciência do concreto devia ser, por essência, limitada
a outros resultados além dos prometidos às ciências exatas e naturais, mas
ela não foi menos científica, e seus resultados não foram menos reais (LÉVI-
STRAUSS, 1989, p. 31).
De modo semelhante, Eliade compara a função desempenhada pelos mitos na vida das
sociedades ditas “primitivas” com a função do pensamento moderno. Para Eliade (1972, p.
23), “nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime,
enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe princípios morais; garante a eficácia do
ritual e oferece regras práticas para orientação do homem”.
Em contraposição as premissas do pensamento iluminista e as teorias que atribuíam
as origens da religião a uma incapacidade dos povos ditos “primitivos” de distinguir entre
27
“real” e “irreal”, Durkheim afirmou que a religião não poderia ser fruto de uma mentalidade
inferior ou de uma simples “ilusão”.
Na verdade, postulado essencial da sociologia é que uma instituição humana
não poderia repousar sobre o erro e a mentira: sem isso ela não conseguiria
durar. Se não tivesse por base a natureza das coisas, encontraria nas coisas
resistências que não conseguiria vencer [...] Não há, pois, no fundo, religiões
que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira: todas respondem,
ainda que maneiras diferentes, a determinadas condições da vida humana
(DURKHEIM, 1989, p. 30-31).
Ao contrário de seus predecessores positivistas – Morgan, Tylor e Frazer – que
consideravam a religião como uma visão de mundo ultrapassada e impedimento para o
progresso da humanidade, e partindo do pressuposto de que a instituição humana não poderia
ter repousado sobre erro e mentira, Durkheim, se propôs a estudar as formas mais elementares
da religião a fim de explicar a natureza religiosa do homem e compreender seus aspectos mais
universais.
Outra questão importante na concepção de religião de Durkheim é a tentativa de
distingui-la da magia, visto que esta, segundo Durkheim, embora também contenha um
conjunto de crenças, não desempenha a mesma função social da religião. Para Durkheim,
religião se distingue da magia pelo fato da religião formar uma “comunidade moral”, isto é,
por agregar em torno de uma mesma fé, fiéis e sacerdotes; ao passo que a magia teria uma
relação de clientela entre o mago e seus consultantes (DURKHEIM, 1989, p. 76-77). Esta
distinção revela-se problemática, especialmente ao observarem-se nas manifestações
religiosas populares práticas, cujas dimensões podem ser concebidas como mágicas.
Entretanto, não vem ao caso aqui discutir os problemas desta distinção, mas apenas mostrar
como Durkheim a concebia. Sendo assim, Durkheim associa a noção de religião a um
conjunto de práticas institucionalizadas e compartilhada por um grupo social, características
ausentes na concepção de magia, tidas como crenças difusas e individualizadas. Por isso,
Durkheim concebe religião como igreja, definindo-a como uma comunidade moral.
A religião é indispensável para a ideia de igreja. Sob este primeiro aspecto
há já entre magia e religião diferença essencial [...] uma igreja não é
simplesmente uma confraria sacerdotal; é uma comunidade moral formada
por todos os crentes da mesma fé, fiéis e sacerdotes [...] Uma religião é um
sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas as coisas
sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem na
28
mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem
(DURKHEIM, 1989, pp. 77-79).
Desse modo, Durkheim assinala que a religião é “coisa eminentemente social” (1989,
p. 38). Trata-se de valores criados e transcendentalizados pela própria sociedade.
Ora, foi precisamente o que procurávamos fazer: vimos que essa realidade,
que as mitologias representaram sob formas tão diversas, mas que é a causa
objetiva, universal e eterna dessas sensações sui generis de que é constituída
a experiência religiosa é a sociedade [...] Portanto, a ação que domina a vida
religiosa pelo simples fato de que ela tem por fonte a sociedade [...]
Podemos dizer, portanto, em resumo, que quase todas as instituições sociais
nasceram da religião (DURKHEIM, 1989, pp. 495-496).
Por outro lado, um contemporâneo de Durkheim, o teólogo alemão Rudolf Otto, cuja
obra constitui-se um legado para às Ciências da Religião, desenvolveu uma abordagem
inversa a de Durkheim, que consiste em privilegiar a experiência religiosa na análise que faz
do fenômeno religioso, tendo exercido, inclusive, grande influência no pensamento de Mircea
Eliade. Tal abordagem visa compreender os modos universais pelos quais os homens
atribuem sentidos às suas práticas nas diversas culturas. Pode-se ainda acrescentar, que para
esta abordagem, conhecida como fenomenológica “as diferentes religiões seriam,
simplesmente, manifestações de uma única faculdade humana e poderiam ser analisadas,
classificadas em torno de uma unidade ordenada” (SILVA, 2010, p. 11-12).
Desse modo, ao privilegiar a experiência religiosa, a perspectiva fenomenológica de
Otto busca descrever uma realidade que se mostra por meio dos fenômenos, isto é, descrever
algo em sua essência e não apenas suas “representações” como em Durkheim. Conforme
Croatto (2010, p. 25), “a fenomenologia parte necessariamente dos fenômenos religiosos
(fatos, testemunhos, documentos), contudo, explora especificamente seu sentido, sua
significação para o ser humano específico que expressou ou expressa esses mesmos
fenômenos religiosos”.
Assim, antes de perguntar-se pelo significado elaborado pelo pesquisador, Otto busca
aproximar-se dos sentidos se manifestam na experiência religiosa: ele o percebe como algo
que vai além da própria experiência, sendo que o que se manifesta como “sagrado” é em
essência o “totalmente outro”, algo que transcende à experiência, despertando-lhe um
“sentimento de criatura” que atesta sua nulidade diante do sagrado (OTTO, 2007, p. 41).
29
A semântica da palavra “experiência”, por exemplo, ajuda a compreender a dimensão
da manifestação religiosa ottiana. A palavra “experiência” é composta da preposição ex com o
verbo periri que significa “tentar”, “correr perigo”. Nesse sentido, experiência tem conexão
semântica com “perigo”, “prova” e “tentativa”. Também tem o sentido de perititia (perícia,
habilidade), scientia e notitia (conhecimento, informação). Dessa combinação resulta o
sentido de “perito”, pessoa “provada no perigo”, “experimentada”. Ex-periri também significa
“suportar”, “sofrer”, “enfrentar dificuldades”. Somente num sentido mais amplo é sinônimo
de “conhecer”, “compreender”, “sentir” e “ver” (SCHMITT, 1997, p. 14).
Conforme Stefano Martelli, grande parte da literatura que trata de práticas religiosas,
concebem a religião como “depositária de significados culturais, pelas quais indivíduos e
coletividade são capazes de interpretar a própria condição de vida, construir para si uma
identidade e dominar o próprio ambiente” (MARTELLI, 1995, p. 34).
Neste contexto, a experiência religiosa obteve considerável atenção, principalmente
pela literatura fenomenológica. Otto, por exemplo, não se preocupou com o conceito
teológico de Deus ou de religião, mas com as dimensões da experiência religiosa, por meio da
qual elaborou uma teoria acerca do sagrado. Seu argumento é que o racionalismo, típico da
filosofia iluminista e positivista sempre estudaram a religião submetendo-a a uma perspectiva
racional, o que impossibilitava a compreensão de sua própria lógica interna. De acordo com
Otto, para compreender a experiência religiosa seria necessário despir-se da lógica
racionalizante a fim de compreender os aspectos e a lógica interna da religião, que aos olhos
da razão (científica) apresenta-se como “não-racional”, sendo, compreendida apenas pela
“experiência”. Segundo Otto.
Essa tendência para racionalização prevalece até o dia de hoje, não só na
teologia, como também nas ciências da religião [...] Só que então não se
parte daqueles elevados conceitos racionais que foram nosso ponto de
partida, e sim se enxerga neles e em sua gradual “evolução” o problema
principal, para então supor que seus precursores seriam noções e conceitos
inferiores; mas o que se busca sempre são conceitos e noções, e ainda por
cima conceitos “naturais”, isto é, do tipo que também a parece no imaginário
humano comum. E com admirável energia e habilidade se fecham os olhos
para aquilo que é intrinsecamente peculiar a vivência religiosa, inclusive em
suas mais primitivas manifestações. Admirável, ou melhor, espantoso: pois
se existe um campo da experiência humana que apresente algo próprio, que
apareça somente nele, esse campo é o religioso (OTTO, 2007, p. 35).
30
Segundo Otto, as teleologias históricas, isto é, o acumulado de interpretações acerca
do fenômeno religioso desviou o verdadeiro significado original de sagrado, reduzindo-a e
aprisionando-a a conceitos desenvolvidos pelos cientistas. Para Otto, o conhecimento
científico com seus valores e predicativos naturais seriam insuficientes para explicar algo da
experiência do “não-racional”.
Este será, então, nosso intento no tocante à peculiar categoria do sagrado.
Detectar e reconhecer algo como “sagrado” é, em primeiro lugar, uma
avaliação peculiar que, nesta forma, ocorre somente no campo religioso.
Embora também tanja outras áreas, por exemplo, a ética, não é daí que
provém a categoria do sagrado. Ela apresenta um elemento ou “momento”
bem específico, que foge ao acesso racional no sentido acima utilizado,
sendo algo árreton [“impronunciável”], um ineffabile [“indizível”] na
medida em que foge totalmente à apreensão conceitual (OTTO, 2007, p. 37).
É justamente este aspecto “irracional” da religião que interessa a Otto, não porque
julga poder explicá-la, mas porque a coloca numa dimensão das experiências, cujas
ferramentas científicas são limitadas para compreendê-las. Seu objetivo é sair da ordem do
racional e pensar a partir do que se mostra irracional à razão, motivo pelo qual, Otto foi
considerado como um dos mais importantes pensadores de sua época.
Por “racional” na ideia do divino entendemos aquilo que nela pode ser
formulado com clareza, compreendido com conceitos familiares e definíveis.
Afirmamos então que ao redor desse âmbito de clareza conceitual existe uma
esfera misteriosa e obscura que foge não ao nosso sentir, mas ao nosso
pensar conceitual, e que por isso chamamos de o “irracional” (OTTO, 2007,
p. 98).
Para este autor, a noção de divindade estava muito bem demarcada nas ideias precisas
e claras, suscetíveis até de definições, aparecendo assim de forma racional, e que seria
necessário “observar que a religião não se esgota nos seus enunciados racionais e a esclarecer
entre os seus elementos, de tal modo que claramente ganha consciência de si própria” (OTTO,
2007, p. 34). Neste sentido, Otto lança mão do conceito de numinoso – termo que provem do
latim “numem”, cujo significado básico aproxima-se de algo como “força divina”,
“divindade” – para analisar a dimensão da experiência universal do sagrado.
31
O elemento de que estamos falando e que tentaremos evocar no leitor está
vivo em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne, sem o qual
nem seria religião [...] Portanto é necessário encontrar uma designação para
este aspecto vivo isoladamente, a qual, em primeiro lugar, preserve sua
particularidade e, em segundo lugar, abranja e designe também eventuais
subtipos ou estágios de desenvolvimento. Para tal eu cunho o termo
“numinoso”, referindo-me à uma categoria numinosa de interpretação e
valorização bem como à um estado psíquico numinoso que sempre ocorre
quando aquela é aplicada, ou seja, onde julga tratar-se de objeto numinoso
(OTTO, 2007, p. 38).
Desse modo, o sagrado, embora possa ser classificado e recepcionado pela
experiência, é um “totalmente outro”, uma realidade que está além da conceituação humana;
essa lhe atesta sua impotência, sua dependência. Daí sua consciência de ser o pequeno diante
do imenso que é o numinoso. Por sua vez, o numinoso na concepção de Otto, não pode ser
resumido ou “conceituado de modo rigoroso”, posto que não participa do espaço da razão,
podendo “apenas ser discutido” (OTTO, 2007, p. 38). Segundo Otto, é esta característica
“indizível” que constitui o que a religião classifica como “mistério” ou “algo a mais” (OTTO,
2007, p. 37). O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade diferente das realidades
naturais: trata-se de outra ordem de realidade. A sensação diante do numinoso é a de
experimentá-lo como mysterium tremendum et fascinans, o mistério tremendo e fascinante.
Conforme Otto (2007, p. 41), o fiel, diante do numinoso é tomado de uma sensação
inefável, de um temor e um terror que o faz sentir-se um nada, uma poeira no universo, um ser
inferior produzindo assim um sentimento de dependência total, de ser criatura.
Em suma, a concepção de religião em Otto é inversa daquela apresentada em
Durkheim. Enquanto que para Durkheim a sociedade é o objeto oculto de adoração, isto é, a
sociedade transcendentaliza um conjunto de valores éticos e morais que ela mesma elaborou,
para Otto, o sagrado é em essência outra realidade que transcende e é independente da própria
conceituação que a experiência lhe confere. Conforme Eliade, em Otto a linguagem assume
um papel limitado para descrever a experiência numinosa ou “mistério fascinante”.
É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum ou a majestas,
ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao
domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que
essa terminologia análoga se deve justamente à incapacidade de exprimir o
ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a
experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma
experiência natural” (ELIADE, 2001, p. 16).
32
Cabe ainda ressaltar como a noção de religião empregada por Mircea Eliade deve-se
em grande medida à elaboração realizada por Otto, conforme consideração a seguir.
Mircea Eliade convenceu-se do grande fascínio que o sagrado exercia sobre o ser
humano. Ao tomar como referência as contribuições de Otto, Eliade cumpriu o papel de
organizar um novo método de pesquisa da História das Religiões, dedicando-se a pesquisar,
para além do conceito de experiência cristã de Otto, o que considerou fundamental, a saber, as
modalidades das experiências religiosas de modo mais abrangente. Com isso, Eliade dá
passos para além de Otto, estendendo à concepção de sagrado a um aspecto mais amplo como
fenômeno universal.
Passados quarenta anos, as analises de R. Otto guardam ainda seu valor; o
leitor tirará proveito da leituras delas. Mas nas páginas que seguem situamo-
nos numa outra perspectiva. Propomos apresentar o fenômeno do sagrado
em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional.
Não é a relação entre os elementos entre não-racional e racional que nos
interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade (ELIADE, 2001, p. 17).
Com seu modo de pensar, Eliade voltou-se para os estudos antropológicos e
sociológicos das religiões, com o objetivo de superar a perspectiva historicista, cuja ênfase
estava numa leitura cronológica em detrimento dos sistemas mais complexos envoltos na
história humana.
Para Eliade, apostar na combinação da história com as mitologias, teologias,
filosofias, desenvolvimentos religiosos nas instituições religiosas, era um modo de pesquisar a
história das religiões, tornando-se bastante diverso daquele predominante no positivismo
comtiano ou mesmo em sua versão posterior presente em Émile Durkheim, conforme
apresentado acima. Como atesta André Eduardo Guimarães:
Nada mais contrário à hermenêutica de Eliade que a atitude de pretensa
indiferença, de impessoalidade ou de objetividade ‘neutra’, tal como o
concebe o positivismo, e posta a serviço de um racionalismo redutivista que
nega conhecer nos fenômenos religiosos o seu proprium: aquilo que são e
que revelam religiosos (GUIMARÃES, 2000, p. 232).
33
Enquanto Otto parte do conceito de numinoso para explicar a experiência religiosa,
Eliade estende o conceito para analisar as hierofanias, isto é, a “manifestação do sagrado” em
suas dimensões mais gerais e universais na cultura humana.
O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos
o ato de manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este
termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime
apenas o que está implicado em seu conteúdo etimológico, a saber, que algo
de sagrado se nos revela (ELIADE, 2001, p. 17).
Eliade cunhou o conceito de hierofania para descrever as manifestações do sagrado,
responsável, segundo ele, pela origem das religiões. Desse modo, as hierofanias, para o
homus religiosus, são reais e verdadeiras e fundamentais para compreender sua experiência
religiosa e os modos como concebem o mundo. Explorando cosmologias religiosas, Eliade
(2001, p. 18) procura demonstrar a necessidade que o homus religiosus tem de exprimir a
realidade: ele o faz por meio de uma linguagem religiosa. Em Eliade, o conceito de homus
religiosus é um modelo universal para descrever a natureza religiosa do homem, cabendo-lhe
um aplicar um método comparativo para análise dessas manifestações religiosas universais.
Os esforços de Eliade em pensar à experiência religiosa na contra mão do
historicismo e pensar o fenômeno religioso à luz dos aspectos socioculturais, da mitologia, da
psicologia, enfim, estabelece um campo complexo e fértil para investigações. Conforme
Eliade, as hierofanias são interpretadas pela experiência religiosa em contextos concretos da
vida cultural, sendo, portanto, objetos de investigação por parte do pesquisador. Em outras
palavras, a experiência religiosa pode ser tomada como “documentos históricos”, depositárias
de significados experimentados num determinado contexto histórico. Eis como Eliade define
experiência religiosa:
Um desesperado esforço por descobrir o fundamento das coisas, a realidade
última. Mas toda expressão ou formulação conceitual de tais experiências se
insere num contexto histórico e, em consequência, se convertem em
“documentos históricos” comparáveis com quaisquer outros dados culturais,
tais como as atividades artísticas, os fenômenos sociais e econômicos, etc
(ELIADE apud WIRTH, 2003, p. 173).
34
Para Eliade, o homem religioso – conceito que busca abarcar as dimensões da
natureza universal da religião – classifica e organiza o mundo valendo-se das hierofanias,
visto que por meio delas encontra-se a resposta para o seu desejo de referência, isto é, a
necessidade de situar-se no mundo. A fim de ilustrar essa necessidade da experiência
religiosa, as palavras de Rubem Alves são sugestivas:
A cultura parece sofrer da mesma fraqueza que sofrem os rituais mágicos:
reconhecemos a sua intenção, constatamos o seu fracasso – e sobra apenas a
esperança de que, de alguma forma, algum dia, a realidade se harmoniza
com o desejo. E enquanto o desejo não se realiza, resta cantá-lo, dizê-lo,
celebrá-lo, escrever-lhe poemas, comporem-lhe sinfonias, anunciar-lhe
celebrações e festivais. E a realização da intenção da cultura se transfere
então para a esfera dos símbolos [...] As esperanças do ato pelo qual os
homens criaram cultura, presentes no seu próprio fracasso, são horizontes
que nos indicam direções. Essa é a razão porque não podemos entender uma
cultura quando nos detemos na contemplação dos seus triunfos
técnico/práticos. Por que é justamente no ponto em que lê fracassou que
brota o símbolo, testemunha das coisas ainda ausentes, saudades de coisa
que ainda não nasceram... Aqui surge a religião, teia de símbolos, rede de
desejos, confissão da espera, horizonte dos horizontes, a mais pretensiosa
tentativa de transubstanciar a natureza (ALVES, 1999, p. 23-24).
Para Eliade, o homem religioso tem necessidade de transubstanciar à natureza, modo
pelo qual acontece uma hierofania. São elas, as hierofanias, as produtoras desde evento; elas
rompem, causam rupturas no espaço e no tempo, tornando-os de homogêneos em
heterogêneos, isto é, a classificação implica em separação e distinção das coisas. Conceber o
mundo, tal como o homem religioso o concebe, exige-se, pensar sobre dimensões da
realidade, atribuído pelo homem religioso como “mistérios”4 e explicados por meio da
capacidade de imaginação.
Conforme Eliade, a linguagem mitológica procura dar conta destas imagens do
mundo; são por meio delas que o homem religioso descreve as hierofanias e classifica suas
experiências com o cosmos, com o mundo. Então, os mitos seriam um meio de explicar a
realidade, de contar uma história do mundo. Eliade define mito da seguinte forma:
4 É preciso levar em conta, conforme Émile Durkheim (1989), que a noção de “sobrenatural” é muito recente na
história humana e mais especificamente pelo desenvolvimento da ciência, e não estava colocada nos modos de
classificação do mundo realizado pelos povos “primitivos”. Nesse sentido, o termo “mistério” não diz respeito a
uma dicotomia “natural” x “sobrenatural”, como seriamos tentados a pensar, mas a uma dimensão do cosmos
como um todo. O fenômeno religioso ou o sagrado são elementos carregados de mistérios provocando no
homem religioso sentimentos, ora de medo, terror, ora de segurança e aconchego. Ou seja, é um modo de
explicar o que lhe cerca.
35
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o
mito narra como graças às façanhas de Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir [...] Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas
vezes dramáticas, irrupções do sagrado no mundo (ELIADE, 1972, p. 11).
Nesse sentido, o homem religioso sente necessidade de “retornar” por vezes nesse
tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é o tempo sagrado que torna possível o tempo
ordinário, a duração profana em que se desenrola toda a existência humana. É o eterno
presente do acontecimento mítico que torna possível a duração profana dos eventos históricos
(ELIADE, 1972, p.79).
Conforme Eliade, a função básica do mito para o homem religioso é dar-lhe sentidos
em relação à sua existência. Esta narrativa mítica é tomada potencialmente pelo homem
religioso como um meio de acessar a realidades das coisas. Conhecer esta realidade implica
em compreender suas origens, de modo que isso é realizado e constantemente repetido através
dos rituais. Desse modo, ao rememorar e reatualizar o tempo “primordial” e a realidade
“original” por meio dos ritos, o homem religioso acredita ser capaz de repetir o que os deuses
e heróis ou os ancestrais fizeram. Esta é umas das características do mito de origem, isto é, da
narrativa que da conta de explicar a origem do mundo. Eliade chama essa modalidade de mito
de cosmogonia: “Em suma, a origem de uma coisa corresponde à criação dessa coisa”
(ELIADE, 1972, p. 39).
O retorno à origem por meios dos rituais permite ao homem religioso eliadiano reviver
o tempo, experimentá-lo como numa dimensão original. Sendo assim, a finalidade das
comemorações festivas é relembrar a fonte de tudo; é reviver as origens. É um “voltar atrás”
até o tempo original, pois, “para o homem arcaico, conhecer a origem de uma coisa é a
mesma coisa que dominá-la” (ELIADE, 1972, p. 72). Diferente da lógica moderna, onde o
conhecimento das coisas se dá pela particularidade e de modo fragmentário, para o
pensamento mítico, a realidade das coisas podem ser acessados como um todo. Para Eliade,
não se trata de conceber o pensamento mítico como uma construção falsa ou inferior em
relação ao pensamento científico moderno, mas como modos diferentes e eficazes de se
referir às realidades (ELIADE, 1972, p. 12).
Ainda conforme Eliade (2001), este sistema de explicação do mundo implica numa
organização do caos para o cosmo, do caos para ordem, fazendo com que o homem religioso
classifique o mundo como duas realidades distintas e em oposição entre si: trata-se das
36
categorias sagrado e profano. Sua existência está constantemente relacionada com dois
modos de ser no mundo, ora vivenciando experiências profanas, ora vivenciando experiências
sagradas. Os ritos seriam meios de passar de uma realidade à outra.
Desse modo, a noção de religião em Eliade perpassa por todas estas facetas,
constituindo-se, conforme sua própria definição, numa “ontologia”, isto é, “a religião é a
solução exemplar de toda crise existencial, não apenas porque é indefinidamente repetível,
mas também porque é considerada de origem transcendental e, portanto, valorizada como
revelação recebida de um outro mundo, trans-humano” (ELIADE, 2001, p. 171). Como se
pode observar, tal conceito de religião alinha-se à perspectiva fenomenológica ao perguntar-se
por sua essência universal intrínseca à natureza humana, chamada por Eliade de “homem
religioso”.
Considerando as discussões teóricas sumariamente apresentadas, esta pesquisa
esforça-se para manter um diálogo entre o plano empírico e analítico, ou seja, entre a
manifestação religiosa popular num contexto histórico e cultural específico, como o
município de Franco da Rocha e os referenciais teóricos que permitem uma problematização e
interpretação de tal fenômeno.
Para tal empreendimento, a noção de religião elaborada por Mircea Eliade, embora
não se tenha a pretensão de discutir a experiência religiosa universal, será tomado aqui como
um instrumental teórico a fim de analisar a experiência religiosa popular, suas narrativas
mitológicas e os vínculos de solidariedade estabelecidos entre os romeiros. Sob tais aspectos,
justifica-se o interesse pelo diálogo com a perspectiva fenomenológica. Isso de modo algum
limita o diálogo com outras abordagens, que de fato, poderão contribuir ao conjunto geral das
proposições colocadas em questão.
Este diálogo interdisciplinar perpassa, por exemplo, por autores como, Clifford Geertz
(1989), cuja noção de religião como sistema cultural contribui para pensar a Romaria como
depositária de valores culturais; a antropologia da performance desenvolvida por Victor
Turner (2005) é também muito inspiradora para pensar a dimensão dos ritos na peregrinação e
a presença do corpo no contextos destas experiências; ainda é possível pensar a Romaria nos
termos de Marcel Mauss (2003), como um “fenômeno social total”, visto que tal manifestação
religiosa não pode ser compreendida de modo isolado à parte dos elementos políticos,
econômicos, sociais e culturais. São estes aspectos presentes na Romaria que se pretende
explorar, tomando como modelo a perspectiva do homem religioso, especialmente à
religiosidade popular.
37
Embora a noção de religião apresente uma série de problemas conceituais, pode-se
condensar brevemente para efeitos práticos, a sugestão de Eliane Moura da Silva (2010, p.
13): “a definição mais aceita pelos estudiosos, para efeitos de organização e análise, tem sido
a seguinte: religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres sobre-
humanos dentro de universos históricos e culturais específicos” (grifos da autora). É nesse
sentido que o conceito de religião é utilizado neste trabalho.
1.2 Da universalidade da religião à particularidade do popular.
É preciso ainda discutir a noção de religião popular que se adota aqui, visto que se
trata de uma temática das ciências sociais. Para alguns autores, como Maria Isaura Pereira de
Queiroz (1968), Carlos Rodrigues Brandão (1986) e Pedro Ribeiro de Oliveira (1997), as
expressões “religião popular” e “religiosidade popular”, embora correlacionadas num
universo de práticas religiosas como é o caso do catolicismo brasileiro, não devem ser
entendidas como sinônimas. Enquanto a noção de “religião popular” evoca uma pluralidade
de sistemas religiosos, podendo se referir a elementos de práticas católicas, protestantes,
pentecostais, religiões afros, entre outras; a noção de “religiosidade popular” está mais
relacionada a uma configuração particular dentro desses universos, como já apontado
anteriormente. Para evitar ambiguidade e generalidade, utiliza-se aqui o termo religião
popular para se referir à um universo de práticas populares dentro do catolicismo,
especificamente as romarias. Por isso o termo “catolicismo popular” aparece recorrentemente.
Uma considerável parte da literatura sociológica dedicou-se a descrever as
características do catolicismo em solo brasileiro. De modo geral, estas tipologias tornaram-se
um modo de distinguir o que seria as devoções “populares” do então chamado catolicismo
“oficial”, cujo modelo seria estabelecido pelas diretrizes de Roma, num processo conhecido
como “romanização” (VAINFAS, 2001).
Por outro lado, a tipologia “religião popular” não se restringe apenas ao catolicismo
brasileiro, como já chamamos a atenção, podendo mesmo ser encontrado também entre
estudiosos do protestantismo brasileiro, como é o caso de Antônio Gouveia Mendonça (2008),
que ao traçar uma linha histórico-sociológica da inserção do protestantismo no Brasil, aponta
para a adaptação de alguns elementos da teologia tradicional. Conforme Mendonça (2008, p.
351), “a junção das crenças indígenas sobre a ‘terra sem males’ com as crenças sebastianas
38
formou na ‘civilização rústica’ brasileira uma mentalidade messiânica”. Segundo Mendonça,
é neste contexto que a teologia milenarista protestante5 recebe novas características:
O clima propício do messianismo no Brasil, por causa de sua população
dispersa no meio rural, relativamente atômica e desfavorecida, absorveu
facilmente a mensagem pré-milenarista da maioria dos missionários,
expressando-se enfaticamente através dos cânticos que, em numero
abundante, foram sendo colocados nas mãos dos convertidos
(MENDONÇA, 2008, p. 354).
Na mesma direção de Mendonça, Lídice Meyer Pinto Ribeiro também chamou atenção
para o fato de que há poucos trabalhos em ciências sociais que explorem um tipo de
protestantismo popular, denominado pela pesquisadora como “protestantismo rural”
(RIBEIRO, 2008, p. 114). Trata-se, segundo Ribeiro, de um protestantismo cujo modo de
vida contrasta do protestantismo tradicional. Ribeiro chama atenção para uma presença
residual do catolicismo em algumas regiões rurais do país como, São Paulo e Minas Gerais,
fato que possibilitou o desenvolvimento do protestantismo rural em alguns desses bairros.
Dessa forma, os moradores desses bairros raramente tinham contato com um
pároco, passando alguns por um processo de descrédito do catolicismo
mesmo antes da chegada do protestantismo, o que se observava pelo estado
de abandono de algumas capelas de sítio. Como não havia uma religião
oficial pré-estabelecida hegemonicamente contra a qual necessitasse de
contrapor-se, o protestantismo teve espaço para reinventar-se, dando origem
a uma nova forma religiosa: o protestantismo rural (RIBEIRO, 2008, p. 17).
Trabalhos mais recentes procuram também explorar a configuração de um
“pentecostalismo rural” em contraste com um “pentecostalismo urbano”, tal como
apresentado pela pesquisa de Alexandre da Silva Chaves:
Observa-se que na acomodação da religião pentecostal num ambiente de
tradição e num contexto rural, a cultura o configura num tipo de pentecostal
diferente em seu espectro, um tipo de pentecostalismo feito de mixagem, um
5 Trata-se de uma vertente da teologia fundamentalista americana derivada das interpretações do “milênio”
descrito no livro bíblico de Apocalipse. Seus principais desdobramentos são: “pós-milenista”, consiste em
interpretar o milênio de modo literal em oposição à interpretação agostiniana, que a entendia de modo alegórico.
Estabelecem a “volta de Cristo” para o final deste período; a vertente “pré-milenista”, também a interpreta de
modo literal, entretanto, entendem que a “volta de Cristo” deve ser precedida do milênio e acompanhada por
inevitáveis catástrofes (reinado do Anticristo, questões climáticas, etc).
39
hibrido, que difere dos tipos de “pentecostalismos” existentes nos centros
urbanos (CHAVES, 2011, p. 7).
Dedicando-se a estudar os cultos afro-brasileiros, Roger Bastide (2006), enfatizou o
“sincretismo” religioso como chave interpretativa para explicar a diversidade de elementos
religiosos. A “religião popular” seria caracterizada por uma sobreposição de sistemas de
crenças variados, com a junção do catolicismo, cultos afro-brasileiros e repertórios de práticas
e crenças indígenas.
Como se pode observar, as pesquisas sobre religião popular não se restringem apenas
ao catolicismo brasileiro. Cabe ressaltar conforme Cândido Procópio de Camargo que as
várias formas de catolicismo, protestantismo ou pentecostalismo, de acordo com o caso,
“devem ser entendidas como ‘tipos ideais’, no sentido weberiano, não representando,
portanto, realidades empíricas” (CAMARGO, 1973, p. 48).
Assim, pode inferir que os modelos não são unanimes entre os pesquisadores, uma vez
que dependem da abordagem ou eixo teórico empregado. Nesse sentido, uma nota de rodapé
(nº 2) do artigo de Lídice Ribeiro é bastante sugestiva para este momento e condensa de modo
enciclopédico as variedades dessas tipologias:
O termo catolicismo popular é apenas um dos utilizados para o mesmo
fenômeno, podendo ser encontrado dessa forma em Guimarães (1974), em
Cesar (1976), Azzi (1976), Hoornaert (1976) e em Brandão (1985). Os
outros termos utilizados são: Rústico, em Queiroz (1973), Monteiro (1974) e
Brandão (1980), Tradicional-Rural, em Camargo (1973), Privatizado, em
Oliveira (1976a e 1976b) e Folk, em Araújo (1958, 1979) e Della Cava
(1977). Cabe ressaltar a existência da visão de Marco Antônio Silva Melo e
Arno Vogel, que defendem a possibilidade de ser uma característica do
catolicismo universal a de abrigar catolicidades particulares em seu seio, sem
causar uma ruptura em sua essência, não admitindo assim a separação de um
catolicismo popular e um catolicismo urbano. Esses dois tipos seriam apenas
duas formas de apresentação de um mesmo catolicismo universal
(RIBEIRO, 2008, p. 114).
Neste caso, o campo religioso brasileiro é retratado como extenso e multifacetado,
exigindo sempre novas formulações teóricas que dê conta dos processos de transformação.
Não é difícil perceber, dentro da categoria “religião popular” a existência de
movimentos milenaristas e messiânicos (MONTEIRO, 1974; QUEIROZ, 1965) e romarias
(STEIL, 1996). De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968, p. 107), o chamado
40
catolicismo popular, devido às condições históricas pelas quais passou a sociedade brasileira,
pode ser distinguido ainda entre um “catolicismo urbano” e um “catolicismo rústico”. Por sua
vez, o catolicismo “rústico” seria caracterizado pelas condições e meios de vida rural,
enquanto o “urbano” teria uma tendência de adotar a dinâmica dos estilos de vida da cidade.
Esta divisão se deu com o correr do tempo; a princípio formavam uma
unidade que era o catolicismo popular simplesmente. Mas, a medida em que
no Brasil se disseminava um estilo de vida urbano de tipo ocidental – que
podemos considerar como datando da permanência da Família Real no Rio
de Janeiro, no inicio do século XIX, – o catolicismo popular urbano foi se
distanciando de seu irmão rural (QUEIROZ, 1968, p. 107).
Como formulado por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968), a dualidade entre
catolicismo “oficial” e catolicismo “rústico” foi construída muitas vezes na condição mesmo
de oposição. Trata-se de uma questão que não é exclusivamente brasileira, mas presente em
muitos países. Da perspectiva do catolicismo oficial, legitimado como uma religião racional,
manifestações populares como as romarias são interpretadas como práticas mágicas e
supersticiosas. Carlos Alberto Steil também demonstrou esta questão em relação ao Santuário
de Bom Jesus da Lapa, na Bahia:
Os dirigentes do santuário têm procurado construir uma racionalidade para o
culto da romaria, que tentam impor aos peregrinos, apesar de suas
resistências. Seu controle sobre a organização do espaço e do tempo em
relação às atividades no santuário dá a eles uma vantagem considerável, de
forma que sua lógica se impõe, mesmo quando parece estranha e distante da
concepção dos romeiros. A partir dessa racionalidade oficial definem o que é
religioso, estabelecem objetos e áreas sagradas e procuram protegê-los da
contaminação que vem do profano, pelo comércio e pelas diversões ou pela
magia e superstição (STEIL, 1996, p. 83-84).
Com base nisso, Faustino Teixeira assinala que o catolicismo no Brasil não é de modo
algum homogêneo, sendo mais preciso pensar em “catolicismos”, havendo muitos “estilos
culturais” e uma diversidade de modos de ser e pensar.
Há um catolicismo “santorial”; catolicismo “erudito” ou oficial”, um
catolicismo dos “reafiliados”, marcado pela inserção num “regime forte” de
intensidade religiosa (CEBs, RCC) e um emergente catolicismo mediático.
Não se trata de realidades estanques e cristalizadas, mas inserem-se num
41
quadro geral marcado por relações de comunicação, de proximidades,
tensões e distanciamentos (TEIXEIRA, 2005, p. 17).
Na concepção de Cândido Procópio Camargo (1973, p. 32), o “catolicismo santorial” é
uma das formas mais tradicionais do catolicismo presente no Brasil desde o período da
colonização, e este teria enfatizado a “importância de festas e devoções populares”. Para
Teixeira:
Foi esse culto que marcou a peculiar dinâmica religiosa brasileira, de caráter
predominantemente leigo, seja nas confrarias e irmandades, seja nos
oratórios, capelas de beira de estrada e santuários. O catolicismo brasileiro
foi durante muito tempo um catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito
santo e pouco padre”. Os santos sempre ocuparam um lugar de destaque na
vida do povo, manifestando a presença de um “poder” especial e sobre-
humano, que penetra nos diversos espaços de vida e favorece, numa estreita
aproximação e familiaridade com seus devotos, a proteção diante das
incertezas da vida (TEIXEIRA, 2005, p. 17).
Conforme se depreende destas discussões, o que se entende por religião popular é
polissêmico. Cabe ainda destacar as formulações de Pedro Ribeiro de Oliveira com o objetivo
de elucidar algumas características de manifestações populares como a Romaria Pirapora do
Bom Jesus em Franco da Rocha. Conforme Oliveira (1997) o catolicismo brasileiro é
caracterizado por diversas facetas, destacando-se entre eles um tipo de catolicismo
“patriarcal”, cujas configurações remontam a uma tradição colonial; o autor ainda sugere um
tipo de catolicismo “popular”, algo próximo do que Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968)
classificou de “rústico”, difundido nas massas camponesas e rurais, bem como um tipo de
catolicismo “popular urbano”, desenvolvido na cidade.
Oliveira observa que existe um conjunto de elementos que servem de base tanto para o
catolicismo oficial como para o popular, considerando-se o determinado contexto social.
Oliveira sugere uma visão de catolicismo popular mais abrangente para se entender a
religiosidade popular ou catolicismo popular. O autor define catolicismo popular como “um
conjunto de representações e práticas religiosas autoproduzidas pelas classes subalternas,
usando o código do catolicismo oficial” (OLIVEIRA, 1997, p. 47).
Assim, é possível afirmar que estas representações e práticas de devoção em torno do
“santo” são o elemento central do catolicismo popular brasileiro, possibilitando a construção
de um sistema de reciprocidade entre o santo e o romeiro. Em torno do santo organizam-se os
42
eventos festivos de devoção popular, distinguido por Oliveira em pelo menos três aspectos: a
devoção familiar, concentrada no núcleo doméstico; a devoção da comunidade local em torno
do padroeiro e da capela, formando uma rede de solidariedade entre as famílias e romeiros; e
a devoção de âmbito regional, concentrada nas paróquias e matrizes, cuja função básica
consiste em coordenar a religiosidade articulando famílias, capelas e paróquias.
Pode-se dizer que este último aspecto condessa e coordena a devoção familiar e local
a partir das paróquias localizadas nos centros urbanos. Por exemplo: enquanto que nas capelas
rurais a ministração da palavra, a celebração do culto eucarístico, a coordenação das festas do
padroeiro local e os eventos religiosos são organizados pelos leigos, cabe ao pároco regional
coordenar as varias capelas com seus respectivos santos padroeiros, concentrando na pastoral
geral da paróquia, que possui o santo padroeiro municipal, como é o caso de Franco da Rocha
cuja padroeira é Nossa Senhora da Conceição. Em suma, as festas do padroeiro, as romarias e
as celebrações das missas são organizadas pelos grupos de leigos representantes locais, sendo
na maioria deles conhecidos pela comunidade como “festeiros”, categoria que será explorada
no terceiro capítulo. As irmandades e confrarias formadas por leigos, normalmente animam as
festividade e celebrações da vida religiosa. A tradição permanece na história e é reproduzida
pelo povo.
O culto de âmbito regional é construído a partir dos elementos anteriores, ganhando
extensão na vida da cidade. Ou seja, essa construção de sentidos condensa os aspectos morais,
políticos, econômicos, culturais e religiosos da cidade, de modo que, pode-se pensar a junção
destes elementos como um “fato social total”, conforme formulação de Marcel Mauss (2003)
ao interpretar sistema de reciprocidade de alguns povos. Isso permite pensar a diversidade de
facetas da sociedade presentes nas festas populares, possibilitando entender a construção de
significados, vínculos familiares e redes de solidariedade nas romarias.
A formação do município de Franco da Rocha está intimamente ligada com a história
do catolicismo popular, cujo universo religioso é constituído de uma diversidade de
manifestações sociais, como as festas religiosas, marcadas por práticas anuais com
levantamento de mastros da imagem da padroeira, homenagem aos santos favoritos, como
Santo Antônio, São João, São Pedro e São Paulo. De acordo com Chaves (2011, p. 62), “a
implantação do catolicismo na região [de Franco da Rocha], primeiramente se deu por
intermédio da fundação de capelas, construídas em sua maioria em propriedades dos nobres,
geralmente ao lado de sua casa”.
43
Além disso, o catolicismo popular desenvolvido neste município possui uma
autonomia também popular, isto é, trata-se de uma manifestação religiosa resistente a
mediação racionalizada e institucional para que suas práticas religiosas possam ter sentidos. O
próprio fiel constrói sua relação com os santos, dirigindo-se a eles quando e como desejar.
Esta relação é carregada de significados: ele estabelece uma aproximação, toca-o, carrega-o,
sente-o, construindo assim uma relação com o “santinho” preferido.
Conforme Francisco Cartaxo Rolim, os santos ocupam um lugar central de destaque
na vida do povo:
Os santos penetram na vida dos que os veneram, misturando-se com seus
problemas, suas necessidades mais urgentes, nos negócios, na vida familiar,
nos casamentos, nos amores. E tudo isto, sem cerimônia, sem se precisar de
apresentação, sem intermediário. Tudo se passa entre o santo e seu devoto.
Uma certa intimidade até, sem implicar desrespeito, mas intimidade que
chega até mesmo à imposição de certas punições, como santo de cabeça para
baixo, santo fora de sua capela, santo voltado para as paredes (ROLIM,
1976, p. 159).
Nesse sentido, o santo passa a ser a concretização da crença de proteção. Nela se inclui
tanto os santos como o Cristo. Assim, Senhor do Bonfim, Bom Jesus da Lapa, Bom Jesus de
Iguape e Bom Jesus de Pirapora, são santos mediadores, protetores e são eles que
proporcionam as graças e bênçãos para a vida dos romeiros. Por isso, o significado e o sentido
de viver nas romarias e festas populares se espalham e se perpetuam nas tradições brasileiras e
em várias cidades.
Embora existam no Brasil muitos movimentos religiosos, as manifestações católicas
são características dessa religiosidade popular, como as romarias e as peregrinações onde os
romeiros expressam devoção aos santos. Neste contexto, o que ainda se destaca é o fato da
Romaria ser tradicionalmente conhecida como “festa”, o que possibilita pensá-la como
performance ritual por meio da qual as experiências são compartilhadas entre os chamados
“festeiros”. Há uma dimensão na festa que perpassa a dimensão individual, construindo
vínculos coletivos. Nesse sentido, as palavras de Chaves são tomadas aqui como exemplo do
que se pretende enunciar em relação às experiências dos romeiros nas festas religiosas:
Podemos afirmar que a cultura religiosa brasileira anseia o desenvolvimento
de uma religião mais afetuosa e aberta à mística interior. Uma religiosidade
44
que possibilita maior abertura para uma religiosidade mais dinâmica, menos
formal e litúrgica, de experiência mais individual, contudo de manifestação
mais livre e ampla possível, situando-se num tipo de sagrado indisciplinado
(CHAVES, 2011, p. 81).
A festa ou peregrinação ritual como performance é um dos modos de compreender as
relações que os atores sociais estabelecem nas romarias. Desse modo, a religião é uma
manifestação que promove a coesão social, uma forma de sustentar a religião na sociedade
como instrumento funcional (DURKHEIM, 1989). O comportamento do homem religioso
ultrapassa o momento presente, produzindo um estado de consciência coletiva e imitando o
tempo de seus deuses (ELIADE, 1972; 2001). Esta dimensão da religião – coesão social e
experiência religiosa – possibilita a construção dos laços de solidariedade, tal como presente
na Romaria Pirapora do Bom Jesus em de Franco da Rocha.
Os conceitos de “religião” e “religião popular”, tal como delineado neste capítulo,
devem ser, tanto quanto possível, relativizados na análise de situações históricas específicas.
Se a presente pesquisa toma como referencial teórico uma leitura fenomenológica da religião
não o faz com o pressuposto de uma leitura universal de tal fenômeno, mas, antes se deve ao
fato do referencial teórico eliadiano possibilitar uma leitura da experiência religiosa dos
romeiros.
Quanto ao conceito de hierofania, por exemplo, o pesquisador José Edilson Teles
(2010, p. 31-33) apontou alguns limites teóricos deste conceito em relação a seu trabalho de
campo, de modo que possibilitou a esta pesquisa relativizar e rever algumas questões, como
pensadas no início do projeto, como por exemplo, tomar a experiência religiosa dos romeiros
como um fenômeno universal.
Nesse sentido, fica claro a postura metodológica, isto é, uma relação dialogal
só é possível levando-se a sério os interlocutores, exercitando de fato o que
[Roberto Cardoso de] Oliveira chama de olhar e ouvir antropológico, do
contrário, seria fingimento, como se os resultados já estivessem “prontos”,
reduzindo a etnografia um clichê, cuja trabalho de ir a campo satisfaria
apenas um protocolo acadêmico [...] O conceito de hierofania, isto é,
manifestação do sagrado, está envolto por uma problemática conceitual-
fenomenológica que remonta ao historiador das religiões, Mircea Eliade
(2001). O próprio Eliade reconhecia esta problemática, que se deve em
primeiro lugar a tentativa de conceituar a origem ontológica ou manifestação
universal do fenômeno religioso, chamado pelo autor de essência religiosa.
Trata-se, segundo Eliade, de um fenômeno absoluto e intrínseco a natureza
humana. Eliade pretendia ir além das formulações do teólogo Rudolf Otto
(2007 [1979]) que se propôs em estudar o sagrado, denominado numinoso,
45
misterium tremedum, como experiência irracional em sua própria lógica, isto
é, o sagrado é a manifestação do Totalmente Outro, cuja lógica não pode ser
compreendida pela razão que a percebe como irracional, exigindo, portanto,
uma experimentação (OTTO, 2007, p. 52). Entretanto, Otto partia da
concepção cristã de Deus, reinterpretando teólogos protestantes como Lutero
(1483-1546) e Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Quanto à Eliade, sua
preocupação é “apresentar o fenômeno do sagrado em toda sua
complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional” (ELIADE,
2001, p. 17). Seu interesse está explicitado: “estudar o sagrado em sua
totalidade” (idem). Depois de considerar os mitos e crenças nas mais
variadas culturas e religiões, Eliade as universaliza, fato que lhe custou duras
críticas: “Conforme vimos, a experiência do sagrado que funda o mundo, e
mesmo a religião mais elementar é, antes de tudo, uma ontologia” (ELIADE,
2001, p. 171) (TELES, 2010, pp. 12, 31).
Teles sugere que ao invés de aplicar indistintamente o conceito universal ao objeto
particular, deve-se antes considerar suas especificidades, de modo que o procedimento parta
de elementos particulares do campo empírico, caso contrário, a pesquisa de campo serviria
apenas para confirmar seus pressupostos.
Em suma, de que modo à religião popular, especificamente a Romaria Pirapora do
Bom Jesus e seus rituais de peregrinação estabelece vínculos de solidariedade entre os
romeiros? Qual a importância desta manifestação religiosa popular na formação da cidade de
Franco da Rocha?
Com estas perguntas, pretende-se interpretar a Romaria Pirapora do Bom Jesus como
depositária de valores e símbolos culturais, cuja construção de narrativas dos romeiros é
atravessada por estas experiências. Nesse sentido, as narrativas, experiências e práticas
religiosas, constituem para o romeiro a fundação de um tempo sagrado, externalizado por
ocasião da peregrinação ritual. É por meio das experiências religiosas que os romeiros
estabelecem outras relações no cotidiano, como por exemplo, os vínculos de solidariedade, ou
como diria Émile Durkheim, elas constituem uma “comunidade moral” (DURKHEIM, 1989,
p. 77).
O capítulo a seguir tem como foco a construção histórica de um típico catolicismo
popular em Franco da Rocha com objetivo de pensar a Romaria como depositária de seus
valores e tradição.
46
CAPÍTULO 2 – CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-RELIGIOSA DE FRANCO DA
ROCHA.
No capítulo anterior foi empreendida uma revisita ao clássico debate nas ciências
sociais e ciências da religião acerca da noção de religião e religião popular, com objetivo de
situar os limites teórico-metodológicos em torno dos conceitos e tornar possível a proposta de
diálogo interdisciplinar.
Conforme tratado no capítulo anterior, os conceitos não devem ser utilizados
indiscriminadamente sem levar em conta o contexto histórico de suas formulações e situações
específicas onde foram aplicados.6 Assim, o termo “religião” não tem aqui um pressuposto
para descrevê-la como fenômeno universal, apenas para caracterizar um conjunto de práticas
num contexto específico, a saber, a manifestação popular na Romaria Pirapora do Bom Jesus;
do mesmo modo, o termo “popular” não tem conotação pejorativa, uma espécie de categoria
inferior na maneira de elaborar a cultura, mas uma designação que procura abarcar um
conjunto de valores partilhado culturalmente por um grupo social.
Com base nessa discussão, o objetivo do presente capítulo é contextualizar o processo
de formação de um aspecto do catolicismo popular, isto é, da Romaria no município de
Franco da Rocha, bem como breves apontamentos acerca de suas relações com os aspectos
políticos e econômicos, importantes para o desenvolvimento dessa cidade.
Tomada como eixo da discussão, a Romaria é interpretada aqui como um modo de
reforço e concentração de tradições, isto é, como depositária de valores culturais
compartilhado pelos romeiros. Esta dimensão multifacetada da Romaria e suas relações com a
história do município – é fundamental para compreender suas particularidades, como o ritual
de peregrinação, a atribuição de valores compartilhados pelos romeiros e munícipes em geral,
bem como os vínculos de solidariedade estabelecidos por estas relações.
Para compreender a formação deste catolicismo no município de Franco da Rocha é
preciso relacionar alguns elementos históricos que tornem possível sua estruturação
econômica, política e social, bem como a contextualização de manifestações religiosas
populares, típica de uma sociedade tradicional em meio aos processos de modernização, como
6 Desse modo, busca-se superar a utilização inicial que fazíamos destes conceitos no projeto inicial, percebendo
uma necessidade de problematização e relativização. Não nos basta afirmar a universalização do fenômeno
religioso – como fazíamos – mas, compreender sua dinâmica e configuração nos mais variados contextos
históricos e sociais. Por isso, a necessidade de revisitar o clássico debate e reposicionar o problema.
47
demonstrado por Alexandre da Silva Chaves (2011) em relação ao pentecostalismo rural em
seu estudo de caso, realizado em Franco da Rocha.
Ao tratar-se desse município a historiografia geralmente enfatiza-se o processo de
modernização, destacando a instalação do Hospital Psiquiátrico e a estrada de ferro como eixo
das transformações políticas e econômicas. Em contraposição a esta leitura, Chaves destaca a
presença da religião popular como um elemento imbricado no processo de transição rural-
urbano; o mesmo não se pode afirmar das historiografias que retratam a história do município,
como o trabalho de José Parada e Clélia de Fátima Louzada (2006). A presença da religião
popular, embora tradicional e elemento importante nesse processo, é eclipsada e colocada
num plano paralelo, reduzindo suas inter-relações a uma memória ultrapassada e folclórica.
Em outras palavras, trata-se de uma herança positivista que coloca em oposição os símbolos
do “progresso” superando o “atraso”, representado pela religião popular.
Esta pesquisa procura demonstrar – como enunciada em nossa hipótese – ao contrário
do que é atribuído pelo senso comum, que a relega como um evento secundário, que a
Romaria Pirapora do Bom Jesus, é fundamental para compreender a formação do município
de Franco da Rocha e um conjunto de valores tradicionais da qual é depositária. Tal
enunciado busca confirmar a hipótese de que a memória histórica da cidade relaciona-se com
os modos como os romeiros constroem vínculos de solidariedade, sugerindo que esta
manifestação popular parece ser mais central na história do município do que se admite.
A abordagem histórica empreendida neste capítulo busca, em primeiro lugar, integrar
o catolicismo popular no contexto do campo religioso brasileiro a fim de compreender suas
tensões e especificidades. Embora breve em relação à extensão do assunto, tal
contextualização torna-se necessária. Em segundo lugar, considerando que tais
especificidades relacionam-se com a história do município, é preciso destacar alguns aspectos
pelos quais a cidade é conhecida – tais como o processo de urbanização por meio da
construção do Hospital Psiquiátrico – e buscar relacioná-los de modo geral com a formação
da religião popular no município de Franco da Rocha. Com este procedimento, pretende-se
abrir caminhos para se pensar a Romaria.
48
2.1 A tensão entre catolicismo oficial e catolicismo popular
Candido Procópio de Camargo foi um dos primeiros a propor uma análise sociológica
da diversidade religiosa no Brasil, buscando compreender a diversidade e os processos de
transformação observados no campo religioso frente ao mundo moderno (CAMARGO, 1973).
Neste caso, o Brasil, por sua configuração histórica específica, possibilitou o desenvolvimento
de múltiplas faces de religiosidades, cuja análise requer uma contextualização em cada caso e
instituição religiosa. Tendo como chave interpretativa o paradigma weberiano da
secularização, Camargo propunha relacionar as transformações sociais aos modos de vida
construída pelas instituições religiosas. Ciente dessa diversidade, Camargo propõe a seguinte
questão referente ao contexto brasileiro.
A análise da situação atual do Catolicismo e de outras religiões no Brasil
depende, necessariamente, da inclusão da perspectiva histórica. Pode-se
reduzir a três fases, correspondentes a modelos diversos, o desenvolvimento
da situação religiosa do país: Cristandade católica; crise da Cristandade;
renovação do Cristianismo. Naturalmente estas etapas se superpõem de
modo parcial e constituem abstrações construídas a partir do que se
considera o mais típico e essencial para cada momento histórico
(CAMARGO, 1973, p. 31).
Assim, na história do Brasil é possível notar a construção de um verdadeiro mosaico
religioso, bem como uma constante tensão entre eles. A composição da diversidade cultural e
religiosa como as manifestações populares, foi tomando corpo no decorrer da história
brasileira, integrando-se com uma mistura de formas e elementos religiosos.
Elementos culturais vindos de fora como à religiosidade cristã dos portugueses, a
religião afro, a religiosidade ameríndia, se integraram formando um eixo sustentador de
futuras facetas do catolicismo que no decorrer do processo colonial se constitui como
“religião oficial” em oposição às práticas religiosas populares, desenvolvidas às suas margens,
classicamente chamadas de “catolicismo popular” (TEIXEIRA, 2005).
De modo geral, essa tensão entre catolicismo oficial e popular pode ser discutida por
meio do chamado processo de “romanização”, entendido como uma tentativa de
institucionalizar e uniformizar a religiosidade popular com os modelos de Roma. De acordo
com Maria Luiza dos Santos Silva:
49
A romanização do catolicismo brasileiro consistiu num movimento dirigido
pela Igreja Católica, visando sua desvinculação com a Coroa portuguesa, e
vinculando-se à Santa Sé, em meados do século XIX [...] visava substituir o
catolicismo tradicional, a partir das reformas na Igreja Católica adotando o
mesmo modelo romano do catolicismo (SILVA, 2006, p. 29).
Esse processo marcou a instauração do que se pode chamar “catolicismo
universalista”, caracterizado por uma centralização hierárquica, cujo controle exercido sobre
os leigos e associações, pretendia padronizar a teologia e os sacramentos. Modelos de
religiosidade que escapavam a este padrão eram marginalizados e considerados como
distorções da verdade. As práticas religiosas produzidas por leigos a partir da junção de
variados símbolos foram desvalorizadas e aos olhos da teologia oficial, classificados e
combatidos como “superstições”.
Como afirma Faustino Teixeira:
Não há como negar o impacto da romanização sobre a forma tradicional da
vida religiosa, mas as concepções basilares do catolicismo popular
tradicional, como o culto aos santos e a crença nos milagres, permanecem
vivas. E além disso, há uma incorporação original por parte do povo de
traços da romanização, o que evidencia o aspecto dinâmico e criativo do
catolicismo popular que se refaz continuamente (TEIXEIRA, 2005, p. 18).
Pensando no caso brasileiro, Pedro Ribeiro de Oliveira (1988, p. 121) argumenta que
“o processo de romanização foi forte, mas não o suficiente para implantar a forma romana na
grande massa de católicos”.
Referente ao Brasil, este processo histórico remonta a chegada oficial do catolicismo
com os portugueses no século XVI.7 A inserção e expansão do catolicismo em terras
brasileiras deram-se por meio dos colonizadores portugueses, sob o regime do padroado régio.
Este regime sustenta o catolicismo como religião oficial do Estado, legitimando, desta forma,
a conquista e o processo civilizador.
Pode-se pensar também como Pedro Ribeiro de Oliveira (1997), ao sugerir que o
Catolicismo se inseriu também no Brasil como religião popular concentrada nas mãos dos
7 A Igreja Católica Romana enquanto instituição e religião oficial do Estado português chegaram ao Brasil em
1500 e nestas terras começou o processo de colonização. Para isso, a Igreja utilizou-se dos mecanismos do poder
do Estado para inserir, conquistar e apossar das terras, celebrando a missa em 26 de abril em comemoração à
chegada às terras ainda desconhecidas, batizando-a como “Terra de Santa Cruz”.
50
colonos pobres, aqueles que, tinham a posse das terras, mas não possuíam escravos que lhe
possibilitassem produzir em grande escala para atender o mercado.
Concernente à tensão entre catolicismo oficial e popular, convém destacar que o
padroado em seu caráter ambíguo contribuiu para fundamentar tanto o poder real quanto
administrativo-clerical além de fonte de acesso do Estado ao poder eclesiástico, seja
legitimando-o ou oficializando-o. Foi uma forma de garantia da presença da Igreja Católica
como religião oficial universal a ser respeitada e seguida na metrópole por possessões
portuguesas.
Assim, sob o domínio dos oficiais clérigos aos poucos vai se definindo e se
estruturando no Brasil uma instituição religiosa, a Igreja Católica Apostólica Romana,
detentora de um poder entrelaçado com o Estado, caracterizando o poder civil e religioso na
sociedade brasileira. Dessa maneira, já no final do século XIX, o campo religioso brasileiro se
manifesta estruturado, sendo que em cada região foi se delineando com características
próprias da região em concordância com as culturas determinante no local, contribuindo dessa
forma para a construção de diversas faces dos catolicismos, constituindo assim um campo de
experiências religiosas multifacetadas. Assim pode-se afirmar que a estrutura católica oficial
ocupava os grandes centros com paróquias e conventos; seus representantes eram líderes
religiosos pertencentes ao clero intelectual, que por sua vez, tendiam a ver as manifestações
religiosas populares como expressões supersticiosas e crendices.
Expressões populares como as devoções aos santos elaboradas pelo povo, como São
Benedito; Nossa Senhora do Rosário e as romaria tradicionais foram, aos olhos do catolicismo
oficial, desqualificadas como supersticiosas e substituídas; o Bom Jesus, por exemplo, foi
trocado pelo Sagrado Coração de Jesus pela Igreja Oficial Romana no final do século XIX. Os
padres condenavam e consideravam profanos a dança, a bebida, e os jogos; criticavam
também o mau uso do dinheiro recolhidos pelos devotos. Tentava-se excluir elementos das
procissões, novenas e romarias, que não se enquadrassem ao que era cultuado nas paróquias
ou reinterpretá-las à luz do modelo romano.
A partir daí, pode resumir brevemente os principais desdobramentos desta tensão. No
decorrer desta particular história brasileira a Igreja se estabeleceu como instituição
unificadora na sociedade. Porém, após a independência do Brasil, teve início o modelo
ultramontano, caracterizado pelo afastamento dos leigos das organizações de manifestações
religiosas. A partir de 1840, teve início o então modelo de romanização do catolicismo, onde
a Igreja passa a ter obediência total e direta ao Papa, descartando a coroa luso-brasileira.
51
Desse modo, a Santa Sé, assume o controle da Igreja em meados do século XIX, construindo
um modelo universal de romanização.
A preocupação da Santa Sé era enraizar o modelo católico romano a partir das
reformas, baseado na administração dos sacramentos para a salvação individual, marcado pelo
clericalismo e espiritualismo fundamentalmente romanizado. Buscava-se a reorganização e
restauração da Igreja, desvinculando-se e buscando reinterpretar as crenças populares
elaboradas pelo povo, consideradas como “práticas mágicas”, “fanáticas” e “imorais”. Assim,
tais práticas foram combatidas e exorcizadas dos espaços sagrados de domínio do clero,
passando a sobreviver à margem da instituição eclesiástica (OLIVEIRA, 1997).
Desta forma, o catolicismo oficial se impõe deslegitimando um conjunto de práticas
que não se adequavam aos padrões romanos. Entretanto, a partir da proclamação da República
em 1889, quando a Igreja perde o caráter de religião oficial ocorrendo à separação da Igreja
com o Estado Civil, que se torna “laico” (SILVA, 2006, p.30).
A separação entre Igreja e Estado provocou uma necessidade de uma reorganização
das estruturas. Buscou-se também reinterpretar a devoção prestada aos tradicionais santos
protetores, como um modo “romanizar” tais práticas populares. Essa busca pelo
fortalecimento das paróquias e a centralização das festas populares no processo litúrgico da
Igreja acabou funcionando como base de sustentação do novo modo de romanização, uma vez
que o protestantismo estava crescendo no Brasil, a Igreja amplia a pastoral e busca segurar e
manter o controle sobre a religiosidade popular.
Esta breve contextualização torna-se necessária para compreender a diversidade
brasileira. O campo religioso brasileiro é caracterizado pela diversidade, onde as misturas de
práticas e crenças foram cultivadas por brancos, índios e negros, escapando do controle rígido
que se exerciam sobre eles. Foi possível desenvolver-se um catolicismo sincrético, onde os
negros, brancos e índios se encontram cada um com seus sistemas de crenças, cultos e
práticas, estabelecendo novas cosmovisões. Tornou-se comum, por exemplo, uma criança ser
batizada na capela católica e depois ser levada para benzer e ser apresentada aos orixás. No
caso da região nordeste do país e em Minas Gerais, reinava o catolicismo popular, originário
do homem da zona rural de Portugal, crescendo de forma integrada e sendo difundido nas
paróquias dos bairros ricos e nas cidades. Trata-se de um modelo de catolicismo, chamado de
“catolicismo rústico” por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968).
52
A expansão desse catolicismo popular ou rústico no Brasil se dá com a figura simples
e da força dos leigos dada a grande falta de padres, sobretudo nas regiões interioranas. Os
colonos foram os responsáveis pela expansão e estruturação das culturas religiosas que
fugiam dos domínios e padrões oficiais do catolicismo romano.
Quanto a isso, afirma Maria Isaura Pereira de Queiroz:
Do ponto de vista religioso, o povo brasileiro foi obrigado a se adaptar a
duas condições fundamentais, desde os primeiros tempos da colonização:
quantidade mínima de sacerdotes e falta de conhecimentos religiosos. A
adaptação se deu espontaneamente, e se exprimiu numa reorganização e
reinterpretação do acervo do catolicismo tradicional trazido pelos colonos
portugueses de um lado e, de outro lado, de catolicismo oficial trazido pelos
poucos sacerdotes que aqui aportaram. Neste processo, elementos novos
surgiram; elementos antigos ou pertencentes a religião oficial sofreram
transformações; dogmas e liturgias foram deformados por necessidades
locais ou pela imaginação de líderes religiosos inteiramente falhos de
qualquer instrução. Apesar das diferenças entre o culto oficial e o culto
popular, a grande maioria dos brasileiros se considera muito bons católicos,
a tradição lhes ditando o apego a esta forma de religiosidade (QUEIROZ,
1968, p. 105-106).
A história da realidade brasileira, segundo Carlos Rodrigues Brandão (1986), é uma
história da religiosidade popular e um espaço de coesão social que ocorre fora do espaço
institucionalizado. Com o processo de romanização, tentou-se reinterpretar esta religiosidade
à luz dos modelos do catolicismo oficial.
A religião popular construída e desenvolvida no campo religioso brasileiro difundiu-se
por diversas partes, regiões e cidades brasileiras. Por isso, ao tratar de fenômenos religiosos
ou movimentos particulares das cidades como romarias, é importante situar as características
locais culturais, devido às manifestações de crenças diferentes da cultura e dos modelos
europeus. No Brasil, de forma geral, esse conjunto de crenças são ressignificados e
legitimados pelas camadas populares, de modo que, grande parte da literatura convencionou
chama-lo de catolicismo “popular” ou “rústico” em oposição ao catolicismo “oficial” ou
“tradicional” (QUEIROZ, 1968; CAMARGO, 1973; MONTEIRO, 1974; STEIL, 1996;
OLIVEIRA, 1997). Assim, o catolicismo popular é lido como uma manifestação popular
resistente aos modelos institucionais ou ao processo de romanização empreendido pelo
chamado Catolicismo Oficial.
53
Ademais, as diversas práticas religiosas presentes no campo religioso brasileiro,
suscitou uma variedade de abordagens teóricas com o objetivo de torna-las compreensíveis.
Tendo isso como pano de fundo, esta pesquisa procura caracterizar o catolicismo popular e
suas influências na história do município de Franco da Rocha.
2.2 Manifestações religiosas em Franco da Rocha
O município de Franco da Rocha está localizado na região norte da capital paulista, a
38 km por estrada de rodagem e a 32 km por estrada de ferro da estação da Sé, coração da
capital paulista. Os municípios limítrofes são Campo Limpo Paulista, Francisco Morato,
Jundiaí, Cajamar, Caieiras e Mairiporã. As estradas de acesso são as rodovias Anhanguera,
Bandeirantes, Fernão Dias e Estrada Velha de Campinas. Possui em seus dados estatísticos e
geográficos área total de 143 km², com uma população de 132 mil habitantes, cercada de uma
hidrografia com o rio Juquery, reservatório Juquery, ribeirão Euzébio, ribeirão Borda da
Mata, ribeirão dos Félix, ribeirão Itaim, Tanque Velho, Cristais, Santa Inês, córrego da
Colônia e córrego da terceira colônia (PARADA; LOUZADA, 2006, p. 6-7).
Conforme Chaves (2011, p. 20), em 2009 a população era estimada em 131.366 mil
habitantes numa área de 133.9 km², o que resulta numa densidade demográfica de 931.99
Figura 1 - Mapa situando Franco da Rocha – Fonte: Google
54
hab/km². Segundo o censo de 2010, o município contava com aproximadamente 132 mil
habitantes. É ainda considerada cidade dormitório por se localizar a 38 quilômetros da capital
paulista, sendo que a maioria da população trabalha na cidade de São Paulo, utilizando o
sistema ferroviário (trem e metrô) como transporte para chegar até os locais de trabalho.
A história deste município está relacionada à biografia do Dr. Francisco Franco da
Rocha (1864-1933), médico responsável pela administração do Hospital Psiquiátrico do
Juquery entre os anos de 1893 a 1923. Seu nome seria dado em homenagem ao município em
1934.8 Filho de José Joaquim Franco da Rocha e Maria Izabel Galvão, Franco da Rocha
nasceu em 23 de agosto de 1864, na Cidade de Amparo, em São Paulo. Depois de ter
completado parte dos estudos, partiu para São Paulo e matriculou–se na extinta Escola
Americana do Professor George Nash Morton, onde se formou em 1884 (ALVES, 2008, p.
15).
Segundo consta, em 1886, aos 21 anos de idade, Franco da Rocha escreveu ao diretor
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro solicitando matrícula, sendo assim atendido
(PARADA; LOUZADA 2006; ALVES, 2008). Com orientação do professor Teixeira
Brandão, formou-se médico psiquiatra aos 26 anos, em 1890 (RIBEIRO, 2010, p. 35). Mas
desejo de voltar para sua terra, recusou um convite para ser diretor substituto da Faculdade de
Medicina e médico da Casa da Saúde Dr. Eiras, onde foi assistente durante seus estudos
(ALVES, 2008, p. 15). Além disso, “seu sonho era transformar a primitiva assistência aos
alienados em São Paulo em um sistema mais científico e humano” (ALVES, 2008, p. 15).
Ao tratar da contribuição intelectual do médico Franco da Rocha às ciências sociais,
Paulo Silvino Ribeiro assinala as motivações do médico em relação ao hospital psiquiátrico:
As condições deploráveis das instalações de tal hospício apenas reafirmavam
a necessidade do projeto de Franco da Rocha, podendo ser considerado o
primeiro nome a promover uma reforma no tratamento psiquiátrico em São
Paulo, propondo uma sistematização e organização de uma política pública
para a fundação de uma instituição como o Hospício de Juquery (RIBEIRO,
2010, p. 38).
8 Já em 1928 vários médicos teriam prestado homenagem ao Dr. Franco da Rocha. Seu busto, obra do escultor
Pinto do Couto, está fixado na entrada do Asilo de Alienados do Juquery.
55
Em agosto de 1893, o Dr. Franco da Rocha é admitido como médico no velho hospício
de São Paulo, tornando-se mais tarde o primeiro médico a ocupar o cargo de diretor (ALVES,
2008, p. 16). Neste hospital teria desenvolvido suas atividades até março de 1896.9
Assim como o Estado do Rio de Janeiro – então capital da República – o Estado de
São Paulo também se dedicou à questão dos doentes mentais. Em 18 de setembro de 1848 foi
sancionada a lei nº 12, que no seu artigo 6º autorizava o Governo a tomar providências para a
elaboração de plantas e orçamentos de um hospital onde pudessem ser abrigados os doentes
mentais para tratamento.
Como destacado por Ribeiro (2010) e Chaves (2011), o Hospital Psiquiátrico entre
outros empreendimentos urbanos, foi um dos projetos mais importantes para o
desenvolvimento do município de Franco da Rocha. O projeto do Governo do Estado de São
Paulo para instalação do Asilo de Alienados da Estação Juquery,10
passou a ser considerado o
maior Hospital Psiquiátrico da América Latina e do Brasil. Como afirmam José Parada e
9 Devido aos trabalhos de psiquiatria desenvolvidos no hospital, a Cidade passou a ser conhecida mundialmente
e o Dr. Franco da Rocha passou a ser uma referência na área, estabelecendo, inclusive, contato com grandes
nomes da psicanálise, como Sigmund Freud e suas obras relacionadas com a psiquiatria. Ainda é preciso
destacar que devido a esta relação com o Hospital Psiquiátrico, a Cidade de Franco da Rocha é conhecida
popularmente como a “cidade dos loucos”. Entretanto, para seus moradores, é carinhosamente chamada pelo
cognome de “cidade da ciência e ternura” (PARADA; LOUZADA, 2006, p. 14) por abrigar os doentes mentais
rejeitados por muitas famílias, cidade, estados e países.
10 Esta estação foi inaugurada sem festas no dia 1º de fevereiro de 1888 (PARADA; LOUZADA, 2006, p. 16).
Ainda pequena, se situava num local alagadiço, ocasionando em certas ocasiões grandes transtornos ao tráfego
ferroviário devido a grande lagoa que se formava no local. Em escritura lavrada, consta que a Parada do Feijão
era um racho que fora alugado por três anos, de 1863 a 1866, antes da inauguração da Estação Férrea de Juquery,
que foi inaugurada em 1° de fevereiro de 1888. Onde hoje está edificada a Cidade, nada mais eram que grandes
fazendas.
Figura 3 - Dr. Franco da Rocha
Foto: Marcus Mancuso (2011). Figura 2 - Busto do Dr. Franco da Rocha
Foto: Marcus Mancuso (2011).
56
Clélia de Fátima Louzada (2006, p. 20), “a cidade do Juquery só teve expansão com a
construção do hospital para alienados mentais”.
Desse modo, o Hospital Psiquiátrico, também conhecido como hospital do Juquery, é
considerado o “centro das relações sociais” (RIBEIRO, 2010; CHAVES, 2011) e meio pelo
qual processo de modernização e urbanização se tornou possível, possibilitando
desenvolvimento econômico do município de Franco da Rocha.
Entretanto, deve-se ressaltar que, concomitante a estes empreendimentos modernos de
urbanização, é possível perceber a estruturação do catolicismo popular neste município. A
religião popular não é um elemento isolado e antagônico à este processo, mas parte
fundamental dessa formação.
Figura 4 - Complexo do Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha, 1960 – Fonte: Google.
Figura 5 - Estação Juquery, fundada em 1888 - Fonte: Google.
57
Com a inauguração da primeira colônia em torno do Asilo de Alienados de Juquery, o
Dr. Franco da Rocha passou a residir com sua família. Neste complexo hospitalar construiu-se
também uma pequena capela para dar assistência religiosa aos fiéis e funcionários do hospital,
abrigando, desse modo, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que viria a ser
considerada a padroeira da Cidade. É importante destacar, por exemplo, que a imagem de
Nossa Senhora da Conceição fora trazida por uma ilustre devota, dona Leopoldina Lorena
Franco da Rocha, esposa do médico Franco da Rocha, que a colocou no altar da pequena
capela. É possível pensar a capela como um “ponto de convergência” ou mediação entre
catolicismo oficial que havia chegado com o empreendimento do hospital e o catolicismo
popular, já existente nessa região rural. Este fato possibilitou o desenvolvimento de variados
modos de devoção, peregrinações, procissões e festas em louvores à padroeira da Cidade.
Estabeleceu-se popularmente, desde então, que a Estação de Juquery (nome pelo qual
o município de Franco da Rocha era então conhecido) ficaria sob a proteção de Nossa
Senhora da Conceição. A referida capela daria em 1908, lugar à atual Igreja Matriz.
É preciso levar em conta o contexto rural em que se desenvolve a religião popular,
especialmente aquela ancorada no catolicismo rústico ou popular nas zonas rurais do
Figura 6 - Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição – Foto: Marcus Mancuso (2011).
58
município. Como será demonstrado, a Romaria Pirapora do Bom Jesus esta relacionada com
as manifestações religiosas e culturais locais.
Neste contexto rural, havia um relacionamento entre os grupos proprietários das terras
e os trabalhadores rurais. Os movimentos religiosos sempre eram organizados por líderes
festeiros dos bairros, sendo muitos deles políticos, filhos ou irmãos de autoridades políticas da
região, demonstrando assim a existência das relações entre religião e política.
O perfil dessa sociedade rural contribui para esta questão. A sociedade rural presente
nas fazendas apresenta uma característica determinante, de modo que é possível notar a
existência de grupos sociais bem definidos. Um pequeno grupo composto por fazendeiros,
sitiantes e chacareiros moradores da região, desenvolveram trabalhos voltados para a
agricultura, principalmente plantação de feijão e produção de tijolos e telhas nas olarias,
enquanto que a maioria dos trabalhadores eram representantes de famílias originárias da
região, dependentes do trabalho rural. As fazendas tinham o grupo de trabalhadores,
constituindo a maioria em pequenos grupos de fazendeiros e administradores. Parece ser uma
característica típica da sociedade brasileira.
Em conformidade com essa organização social rural, religião e política se entrelaçam,
transformando os espaços particulares em espaços públicos, mais precisamente em lugares
sagrados, possibilitando construções de capelas em diversas áreas rurais, constituindo-se em
uma topografia do sagrado, espaços definidos, reservados para a manifestação religiosa. Com
isso as festas dos padroeiros, instituídas conforme o calendário oficial católico, dos períodos
festivos, transformado em tempo sagrado. Tempo de festa é para o homem religioso rural,
tempo sagrado, com predominância dos rituais religiosos com orações, procissões, vigílias
reflexões e novenas, fortalecendo, relembrando e reatualizando o tempo sagrado.
Desse modo, as manifestações populares constroem uma série de relações sociais,
como por exemplo, as atividades politicas e religiosas. Estas relações têm passado por
transformações consideráveis nos últimos anos. Como demonstra Chaves (2011), a presença
do pentecostalismo nesta região rural tem sido um dos fatores para estas mudanças, visto que
instaura um novo tipo de relação que implica em novas opções religiosas, antes
predominantemente católicas.
As festas populares que antes agregavam em sua maioria os romeiros moradores da
zona rural passaram por transformações, principalmente devido ao êxodo rural, fazendo com
que as romarias, por exemplo, se adaptassem aos novos espaços urbanos, obtendo com o
59
tempo características da cidade. Este aspecto faz com que os romeiros sintam-se herdeiros e
mantenedores de uma tradição, em torno da qual reproduzem novos símbolos religiosos.
De modo geral, podem-se relacionar as atividades políticas e religiosas como
construções paralelas neste contexto. Por um lado, o governo civil buscando expansão e
instalação de áreas na dimensão de tratamento da saúde mental e por outro a autoridade
eclesiástica religiosa oficial empenhada na conquista de terras para construção de capelas e
paróquias objetivando desenvolver a pastoral da evangelização e dos sacramentos. Assim,
busca-se reorganizar e centralizar sob os poderes dos oficiais os movimentos populares, como
as romarias, as novenas aos santos e festas populares. Diante da visão dos líderes, precisavam
ser administrados segundo o modelo romano.
Como se pode observar, antes da implantação do Hospital Psiquiátrico – inaugurado
em 18 de maio de 1898 – e da construção da capela como representante da religião oficial, já
havia na região conhecida como Juquery11
à presença de um catolicismo popular rural,
caracterizado por diversas manifestações populares, como as rezas de São Gonçalo, a
tradicional festa Santa Cruz dos Valos, as folias de reis, as congadas, as procissões e pequenas
peregrinações locais por ocasião das festas dos padroeiros das pequenas capelas rurais. Estas
manifestações populares, cada uma com sua especificidade, contribuíram para configuração
de uma religiosidade popular.
Quanto às manifestações populares de danças e rezas de São Gonçalo presentes em
Franco da Rocha, as informações de Maria Isaura Pereira de Queiroz que trata de suas origens
e funções no Brasil, são pertinentes aqui:
Trata-se de um antigo rito religioso português, com a função de agradecer ao
santo graças alcançadas. Embora proibida pela Igreja durante o século XVIII
em Portugal, persistiu no Brasil e continua a existir hoje até mesmo em
regiões rurais consideradas modernizadas, como as do Estado de São Paulo,
e sem mudar de função [...] São práticas religiosas semelhantes a esta que
formam o acervo do catolicismo rústico brasileiro (QUEIROZ, 1968, p.
109).
Relevante contribuição à religião popular também pode ser atribuída à romaria Santa
Cruz dos Valos, organizada por devotos membros da família Hernandez que realizam esta
11
O espaço geográfico correspondente aos campos de Juquery abrangia aos municípios de Francisco Morato,
Mairiporã, Caieiras e Franco da Rocha.
60
festa tradicionalmente há mais de cem anos num dos bairros rurais de Franco da Rocha,
conhecido como bairro Mato Dentro. Trata-se de uma das festas religiosas mais populares no
município. Conforme os historiadores José Parada e Clélia de Fátima Louzada:
A realização desta festa sempre fora um fato marcante na região. Havia
congada, batuque e samba, que varavam a noite, durante oito dias [...] já
hoje, a festa ficou reduzida a apenas um dia, com procissão, celebração da
missa e quermesse, que ainda atrai os habitantes da cidade (PARADA;
LOUZADA, 2006, p. 63).
A etnografia realizada por Chaves fornece mais elementos desta festa centenária:
O símbolo da Cruz é altamente reverenciado nessa festa. O percurso da
procissão tem como ponto de partida um dos primeiros bairros da Cidade, o
de Vila Ramos. O sacerdote católico celebra uma missa, três homens dentre
os romeiros de charretes se colocam posicionados em frente à Igreja. As
imagens de Santo Expedito, Nossa Senhora de Aparecida e da Cruz, são
condicionadas sobre as charretes, romeiros (homens, mulheres e crianças)
montados a cavalos, em carros ou a pé, caminham em romaria
acompanhando todos juntos as imagens sobre as charretes e cavalos, que são
conduzidas até a Capela da Santa Cruz dos Valos, na região do Mato Dentro.
A festa da Santa Cruz, buscando cumprir o seu sentido sagrado de
comemoração da cruz, alcança alto significado social para a comunidade,
bem como para a manutenção de sua cultura local e para o sentido de vida de
seus fiéis (CHAVES, 2011, p. 71).
Figura 7 - Cartaz de divulgação da Romaria Santa Cruz dos Valos, 2011 - Foto: Marcus Mancuso.
61
O depoimento do romeiro e morador do bairro rural Mato Dentro, Sr. R.F, de 70 anos,
é revelador quanto a isso:
Os meus avós diziam que desde seus bisavós a família já participava das
rezas de São Gonçalo e das Folias de Reis. Era uma festa que gerava
felicidade, pois reunia os vizinhos e familiares para festejar o dia dos santos,
sendo muitas vezes o padroeiro da capela (Entrevista, 2011).
Figura 8 - Romaria Santa Cruz dos Valos, 2011 - Foto: Antônio Carlos Reis. Arquivo pessoal
Figura 9 - Romaria Santa Cruz dos Valos -Trajeto, 2011 - Foto Antônio Carlos Reis. Arquivo pessoal.
62
Embora tradicional, a Romaria Santa Cruz dos Valos, é mais conhecida por suas
características locais, ao passo que a romaria Pirapora do Bom Jesus, nascida na década de
1940, caracteriza-se por sua extensão intermunicipal, sendo conhecida também fora do
município de Franco da Rocha e reunindo romeiros de outros municípios vizinhos para
peregrinação. Embora posterior à romaria Santa Cruz dos Valos, constituiu-se numa
manifestação popular mais abrangente, motivo pelo qual é tomada como recorte empírico.
Eis aqui um dos elementos que reforçam nossa hipótese, isto é, interpretar a Romaria
Pirapora do Bom Jesus como depositária de um conjunto de valores tradicionais interligados
com o desenvolvimento econômico e social do município, e de certo modo, partilhados na
memória dos romeiros. Por estabelecer outros vínculos, a Romaria de Pirapora do Bom Jesus
apresenta elementos sociais importantes que se pretende explorar, especificamente no terceiro
capítulo.
Estas festas populares fundamentam-se na memória do tempo em torno das terras do
Juquery, possibilitando uma sacralização do povoado e posteriormente da Cidade. Assim fica
notável a força do “mito de origem”, meio pelo qual a religião popular torna-se depositária de
um conjunto de valores históricos. Elas constituem elementos artísticos, culturais, morais e
religiosos importantes para formação da cidade.
A formação da religião popular em Franco da Rocha deve-se às manifestações
populares anteriores ao processo de urbanização. Segundo os moradores mais antigos,
afirmam que o povo da região deslocava-se para o centro de Mairiporã a fim de frequentarem
as missas. O Sr. C.X.S, por exemplo, descreve estes deslocamentos para Mairiporã:
O povo vinha de charrete, a cavalo, a pé pelo menos uma vez ao ano, por
ocasião das festas dos padroeiros das capelas e paróquias mais próximas
assistirem missas e na semana santa a cidade ficava cheia, porque o povo dos
sítios e chácaras vinham e permaneciam a semana toda, com o objetivo de
participar de toda a liturgia da semana santa, começando com a missa no
domingo de ramos, se estendia até a missa do fogo, com a ressurreição do
senhor no domingo posterior, domingo da páscoa (Entrevista, 2011).
Antes de 1940, isto é, nos anos de emancipação politico-administrativa de Franco da
Rocha, os moradores da região do Juquery deslocavam-se para Mairiporã a fim de assistirem
as missas. Embora não houvesse paróquias na região marcando a presença da Igreja, os
moradores afirmam que nos bairros rurais haviam manifestações religiosas elaboradas pelo
povo. O terço rezado era muito popular, rezava-se em família, nas casas dos vizinhos, nas
63
pequenas capelas aos pés do padroeiro, principalmente por ocasião das festas. A já citada
romaria Santa Cruz dos Valos é uma destas manifestações.
Confirmando isso, uma senhora moradora dessa região conta que sua família
participava uma vez por ano das missas no centro de Mairiporã. A construção da capela no
complexo do Hospital Psiquiátrico, devido à proximidade, possibilitou esta e outras famílias a
participarem pelo menos uma vez ao mês. Conta-se que o padre responsável por esta capela
procurava dar assistência celebrando missas a cada seis meses nas diversas capelas
localizadas nos bairros rurais mais distantes. Ou seja, apenas um padre dava assistência na
região, possibilitando a produção de práticas religiosas populares por parte dos leigos.
Segundo esses relatos, é possível perceber como a religião era concebida na vida do
homem do campo na zona rural. A distância entre as residências e as capelas rurais demarcava
não somente o trajeto geográfico, mas também o comportamento dos fiéis que tendiam ser
diferentes da vida na cidade. O fato de assistirem missas e participar dos eventos religiosos
esporadicamente não lhes proporcionavam conhecimentos em relação à liturgia formal
católica e nem um saber “oficial” sobre a Sagrada Escritura. Os fiéis da zona rural tinham
pouco acesso ao conhecimento bíblico catequético; a escola de catequese era dada nas capelas
aos domingos apenas uma hora pelos próprios leigos devido à falta de sacerdotes. A maioria
dos leigos eram moradores das proximidades da comunidade. Os estudos bíblicos ou cursos
teológicos preparatórios eram ministrados na paróquia do centro e nem sempre os fiéis rurais
participavam.
Dessa forma, desenvolveu um catolicismo popular fundamentado no ritual de prestar
culto aos santos de devoção. Desenvolve-se um modo espontâneo do povo rural em
manifestar sua fé, crenças e formas de se relacionar com o sagrado, onde por meio de
peregrinações, promessas, procissões, danças, música e produção artísticas, os fiéis
manifestavam seus desejos, seus sonhos suas esperanças de forma espontânea e simples.
Assim, embora houvesse a presença de uma religiosidade popular nas terras do
Juquery, é somente mais tarde, devido ao desenvolvimento da Cidade em torno da construção
do Hospital Psiquiátrico – marco do desenvolvimento econômico, social, político e religioso –
que se torna possível à inserção e o processo de evangelização pelo chamado “catolicismo
oficial”. As novas relações de mercado, as novas tecnologias e os novos conhecimentos abrem
caminhos para a construção de novas formas de vida, contrapondo as tradições antigas,
fundamentalmente as tradições religiosas, pois as transformações econômicas e políticas
provocam renovações nas estruturas tradicionais religiosas do povo. Conforme Chaves:
64
Somente após aproximadamente 250 anos de um catolicismo popular e
espontâneo, é que registramos numa antiga capela próxima a Estação-
Juquery, em 1908, a construção de uma Igreja Católica, dirigida e
estabelecida juridicamente por intermédio do catolicismo oficial. Essa se
tornaria a primeira paróquia daquele bairro e região; tornando-se também,
mais tarde, a igreja matriz do município. Enquanto não se estabeleceu
oficialmente uma paróquia, existiu na mesma região, por cerca de dois
séculos e meio, um catolicismo popular e espontâneo, que por um processo
histórico se institucionaliza (CHAVES, 2011, p. 63).
Por isso, é mais sensato conceber a presença da Igreja oficial por meio da capela no
complexo do hospital como “eixo de convergência”, isto é, como a religião institucionalizada
que busca abarcar e moldar a seu modo as variadas manifestações populares que escapam de
seu modelo, ao invés de pensá-la como “origem” do catolicismo popular no município. Desse
modo, o catolicismo popular antecede a chegada do catolicismo oficial e será cooptado por
este no processo de romanização.
O acelerado processo de urbanização, marcado pela construção do complexo do
Hospital Psiquiátrico, pela construção da estrada de ferro que liga o município ao centro da
capital paulista e a inauguração da Igreja Matriz (antiga capela) com uma estrutura e
organização do catolicismo oficial.
A rapidez do processo possibilitou uma rápida expansão e transição de uma sociedade
rural para uma sociedade moderna (CHAVES, 2011), marcada pelo crescimento e evolução
de estabelecimentos comerciais, residências e templos religiosos.
A antiga capela, atualmente ocupada pela Igreja Matriz, tornou–se a paróquia da
cidade, centralizando as atividades pastorais presentes no município, sob controle da
religiosidade oficial católica. Sendo assim, a Igreja Matriz concentra todas as atividades
pastorais praticadas pelos romeiros e moradores dos diversos bairros do município, tornando-
se neste sentido, a paróquia-matriz detentora do poder de mando, de coordenação segundo os
princípios gerais da Igreja e conforme as diretrizes pastorais gerais da instituição oficial.
Embora a paróquia busque coordenar os diversos movimentos populares, estes por sua vez,
parecem resistir o sistema de padronização do catolicismo oficial, como se observa na
organização da Romaria Pirapora do Bom Jesus.
Desse modo, o referido processo de transição rural-urbano estudado por Chaves
(2011), apresenta novos contextos para a experiência religiosa em Franco da Rocha. No
campo religioso rural o povo vive a maior parte do tempo sob os modos de vida
65
característicos da vida no campo. As capelas presentes nestes bairros rurais promovem
práticas dominicais, estabelecendo vínculos entre as pessoas. Por outro lado, na sociedade
urbana, o homem se encontra num processo inverso, ao experimentar uma multiplicidade de
contatos e de relações, tais como, os modos de vida estabelecidos pelas relações com o
capitalismo.
Enquanto que na sociedade rural a Igreja serve como um ponto de convergência, na
sociedade urbana a Igreja é um ponto de relações e serviços que se manifesta de forma intensa
na cidade dependendo das relações de mercado.
Ao citar Antônio Gouvêa Mendonça, Chaves informa:
A presença física da igreja era também uma presença jurídica, de modo que
no Brasil, a formação dos bairros, vilas e municípios está intimamente
relacionada à existência da igreja e era em torno da capela que
posteriormente eram substituídas por templos que surgiam as cidades e as
aglomerações urbanas (CHAVES, 2011, p. 65).
Em suma, é neste contexto, com ritmo acelerado de renovação e transformação que
surgiu em 1942 a Romaria Pirapora do Bom Jesus, concomitante ao processo de emancipação
politico-administrativa do município de Franco da Rocha em relação à Mairiporã, em 1944. A
Romaria condensa variados modos de vida, podendo mesmo ser vista como depositária destes
valores – religião, tradição – transformados em contextos rurais e urbanos.
Cabe ainda ressaltar o que a então Estação Juquery foi um vilarejo e distrito
pertencente ao município de Mairiporã. Só em 1944, o município de Franco da Rocha
conquistaria sua emancipação político-administrativa. Paralelo a este processo, a referida
Igreja Matriz (antiga capela) recebe, em 1941, a categoria de Paróquia Imaculada Conceição,
pelo Bispo Diocesiano Dom José Mauricio da Rocha. Desmembrada da Paróquia de
Mairiporã, a Paróquia Imaculada Conceição, foi assumida desde então por cerca de 14
padres12
que contribuíram para a formação da religião popular, muito embora, não
12
O historiador e munícipe de Franco da Rocha, Adauri Alves (2008, p. 28), relaciona os seguintes padres
correspondentes à este período: Padre Luiz Assemani (vigário de Mairiporã); José Antonio Veloso (1941);
Achiles Silvestre (Capelão da Cia. Melhoramentos); Germani Brandi (1946-1948); Pedro Stons(1948-1949);
Francisco Jorge Amaral (1949); Pedro Paulo Farhat (1949-1950); Alexandre Botinelli (1950-1955); Jose
Sagliocco (1955-1966); Avedis Kerlakian (1966-1971); Egidio Jose Porto (1971-1976); Pedro Loll (1976-1984);
Adam Swatek (1984-1986); Pedro Loll (1986); Paulo Solak (1986-2003); Adam Swatek (2003-2009). Assim,
não se perdeu no tempo o trabalho destes homens líderes da Igreja Oficial, cujos esforços hoje são reconhecidos
66
acompanhassem os peregrinos romeiros em suas romarias. É neste contexto que nasce em
1942 a Romaria Pirapora do Bom Jesus.
Pode-se concluir que a formação da diversidade religiosa do município de Franco da
Rocha está relacionada aos projetos desenvolvimentistas modernos, tais como a instalação do
Hospital Psiquiátrico e a rede ferroviária. A chegada da imagem de Nossa Senhora da
Conceição na capela do Juquery caracteriza-se por um forte elemento de devoção religiosa do
catolicismo popular e santoral, típico do catolicismo que se desenvolveu em algumas regiões
do Brasil.
Assim como a antiga capela teria sido o centro de “convergência” entre catolicismo
rural e urbano, a atual paróquia desempenha a mesma função em relação às práticas populares
católicas: por um lado, ela é o espaço sagrado onde se concentra a pastoral de todas as
capelas, sob o poder do vigário ou o pároco local, geralmente alinhado à orientação religiosa
“oficial”; por outro, manifestações religiosas populares, como os romeiros, também a
concebem como um espaço sagrado central, pois nela fica a imagem da padroeira da Cidade.
Desse modo, pode-se relacionar o desenvolvimento econômico, religioso e social do
município de Franco da Rocha como uma plataforma sobre a qual o catolicismo oficial se
organiza, buscando estruturar-se sob o modelo romano e a religião popular. Um exemplo
disso é a presença de movimentos populares no interior da Igreja, mas de forma oficializada e
sob o domínio da hierarquia católica, onde o padre é o dirigente dos movimentos. Desde
1941, sob os cuidados dos padres e leigos locais, foram criadas a “Congregação Mariana em
Franco da Rocha”, “Pia União das Filhas de Maria” e “Cruzada Eucarística”.
2.3 A Romaria Pirapora do Bom Jesus
A Romaria Pirapora do Bom Jesus em Franco da Rocha é, entre outras manifestações
populares, constructo destas relações sociais, surgindo entre leigos e desenvolvendo-se as
margens do catolicismo oficial.
Surgida na década de 1940 – especificamente em 1942 – por iniciativa de três
romeiros da Cidade, a Romaria tornou-se uma das manifestações populares mais destacadas
neste contexto.
pelo grupo de pessoas que participaram da construção da primeira capela, hoje a Matriz e onde esta a Padroeira
da Cidade.
67
Um dos principais patriarcas desta romaria, senhor Gentil de Palma, também
conhecido como Tino Palma, atualmente com 84 anos de idade, recorda-se lucidamente de
sua trajetória e das primeiras peregrinações. Nascido em 1927 no município de Itatiba, interior
de São Paulo, mudou-se para Franco da Rocha aos 5 anos de idade, onde estudou, trabalhou e
se aposentou, e vive com sua família até os dias atuais.
Conforme seu relato, a iniciativa de peregrinar num trajeto que partia do centro de
Franco da Rocha ao Santuário do município de Pirapora do Bom Jesus, teria começado por
volta de 1942 – quando tinha 15 anos de idade – ele e seus dois amigos passeavam a cavalo
nas proximidades do Hospital Psiquiátrico nos campos do Juquery. Foi nessa ocasião que seu
amigo e cunhado tiveram a ideia de ir à Pirapora do Bom Jesus, por ocasião de uma festa num
final de semana. Dessa forma, os três amigos e cavaleiros, numa primeira sexta feira do mês
de agosto, incentivados por Tino Palma, resolveram visitar o Santuário de Pirapora, visto que
já participavam de outras peregrinações religiosas na região, como por exemplo, a centenária
romaria Santa Cruz dos Valos de Franco da Rocha. Este evento, que teria começado com a
iniciativa de três romeiros, passou no segundo ano a contar com mais de quinze romeiros,
chegando ao ano de 2000, a contar com aproximadamente dois mil romeiros, segundo o
senhor Gentil Palma.
A partir daí, uma peregrinação começou a ser organizada em 1942 pelo romeiro Tino
Palma e seus dois amigos, ganhando projeção em 1944, ano que marcaria a emancipação
político-administrativa do município de Franco da Rocha. Tinha como ponto de saída a Praça
Padre Alexandre Boticeli, próximo ao complexo do Hospital Psiquiátrico, da estação de trem
e da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição (antiga capela), fundada em 1908.
Embora constituída no calendário político do município, a Romaria não é considerada
como uma pastoral da Igreja Matriz, sendo vista por esta como movimento popular. Desse
modo, como a instituição oficial não torna o evento publicamente reconhecido, os leigos
romeiros, por meio das autoridades políticas buscam se legitimar nos órgãos públicos. A
partir de 1989, a Câmara dos Vereadores votou o projeto incluindo a festa da romaria no
calendário de festividades da Cidade. O Projeto de lei nº 237/89 de 17 de agosto de 1989, no
artigo 1º estabelece que “fica instituída, no calendário oficial de festividades do Município de
Franco da Rocha, a Romaria de Franco da Rocha à Pirapora do Bom Jesus, que se realiza no
mês de agosto de cada ano” (Autógrafo - 089/89 da Câmara Municipal em 17 de agosto de
1989, presidida pelo senhor Presidente da Câmara Winderson Tadeu Anzelotte). Sendo assim,
pode-se observar uma relação entre política e religião através da Romaria: autoridades
68
políticas participam e coordenam esses eventos. A presença de autoridades políticas junto aos
romeiros pode ser observada com mais frequência, como por exemplo, em 2010 e 2011, onde
estiveram presentes prefeito e vereadores por ocasião da saída.
Reconhecida pelas autoridades políticas do município, esta Romaria, foi constituída,
conforme projeto de lei 237/89, como patrimônio cultural, constando no calendário oficial das
festividades do município. Nota-se aqui um aspecto político da Romaria, pouco ressaltado
pelo senso comum.
Por outro lado, com a necessidade de serem também reconhecidos pela Igreja, os
romeiros organizaram-se e formalizaram seus eventos festivos de forma amigável com as
lideranças hierárquicas católicas estabelecidas nos centros urbanos e representados pela
paróquia com suas práticas pastorais. A presença do padre concedendo à benção por ocasião
da saída marca um gesto simbólico de aproximação ao “autorizar” a peregrinação dos
romeiros.
Outro aspecto que chama atenção da Romaria é sua institucionalização. Criou-se então
a Associação dos Romeiros, formado por um grupo de romeiros pertencentes às igrejas
católicas instaladas nos bairros do município, sendo a grande maioria delas da zona rural.13
Muitos romeiros pertencem às igrejas de bairros rurais, como por exemplo, o Bairro Mato
Dentro, região que nos últimos tempos vem ocorrendo uma transição significativa na história
e no comportamento religioso dessa população, principalmente pela inserção do
pentecostalismo, como já demonstrado pelo estudo realizado por Chaves (2011). Para Chaves,
a presença do pentecostalismo num contexto rural instaura uma concorrência tipicamente
urbana, forçando os movimentos populares a uma institucionalização como meio de reforçar o
sentimento de pertencimento dos fiéis.
Fundada em 14 de agosto de 1987, a Associação dos Romeiros de Franco da Rocha,
por meio de seu Estatuto Social, constitui-se numa “Sociedade Civil sem fins lucrativos, sem
distinção de cor, raça, credo religioso, com duração indeterminada”. O Artigo 1º do Capítulo I
relata que a organização da romaria fica por conta da diretoria no presente ano, sendo que as
eleições para compor a nova diretoria serão de dois em dois anos. Ainda conforme o Estatuto,
os membros da Associação são divididos em três categorias, a saber, os “fundadores”,
responsáveis pela institucionalização da Romaria; os “contribuintes”, admitidos após a data de
13
Trata-se de um grupo de pessoas da comunidade local que estão espalhadas pelos diversos bairros da cidade e
de diversas classes sociais, com acentuada participação de autoridades políticas nos eventos.
69
sua fundação; e os “beneméritos”, que constituem um grupo de associados que teriam
contribuído financeiramente ou com bens imóveis, possibilitando a expansão da Romaria. Por
conta disso, esta última categoria é isenta de contribuição mensal, mas com os mesmos
direitos dos demais associados.
Desse modo, a Romaria é organizada pelos membros da Associação dos Romeiros de
Franco da Rocha em conformidade com seu Estatuto Social, presidida atualmente pelo senhor
José Ribeiro (gestão 2010-2011), um dos mais antigos romeiros do município. Conforme o
Estatuto compete-lhe, entre algumas funções, promover cursos, estudos, debates,
conferências, simpósios, festas do peão e outras atividades sociais.
As relações entre os romeiros e a esfera política municipal são partes fundamentais
neste processo de institucionalização. Pode-se mesmo afirmar, neste caso, que a esfera
religiosa – representada pelos romeiros – e a esfera política apresentam ambiguidades nestas
relações, visto que os agentes circulam entre ambas, fazendo com que suas fronteiras não
sejam absolutamente delimitadas. Sendo assim, as práticas religiosas estão ativamente
presentes no centro da vida política do município, escapando, por exemplo, da leitura que o
paradigma da secularização parece sugerir ao interpretar a presença da religião apenas na vida
privada.
Em suma, no que diz respeito à formação religiosa do município de Franco da Rocha,
a Romaria, enquanto tradição acumula um conjunto de características capazes de fortalecer os
vínculos familiares e as redes de solidariedade entre os romeiros. Como tal, a Romaria reúne
em torno de si aspectos políticos, econômicos, religiosos, isto é, elementos culturais, de modo
que podem ser pensadas como um “fato social total”, tal como formulado por Marcel Mauss
(2003, p. 187). Para Mauss, o “fato social total” é um fenômeno que engloba todas as áreas da
vida social, de modo que é impossível compreendê-la separadamente de outros aspectos. Ou
seja, a Romaria – como será explicitado mais adiante – não é um evento isolado, mas
fundamental para compreender a formação histórico-religiosa do município de Franco da
Rocha.
Concebê-la como depositária de valores culturais implica em considerá-la para além
dos limites da vida privada, colocando-a também no mesmo processo de desenvolvimento
político, econômico e social, ainda que tal processo pareça contraditório com a ideia de
“tradição”. Estas fronteiras perdem o sentido, uma vez que a Romaria ganha publicidade e
estabelece redes de reciprocidade em espaços públicos. Cabe demonstrar como estas relações
podem ser lidas no processo ritual da peregrinação e de que modo o romeiro as concebe. O
70
que se quer dizer com “vínculos de solidariedade”? Que elementos podem ser destacados na
peregrinação ritual?
71
CAPÍTULO 3 – PEREGRINAÇÃO RITUAL E OS VÍNCULOS DE SOLIDARIEDADE
Os capítulos precedentes foram dedicados em primeiro lugar às discussões de ordem
teórico-conceituais, para que possibilitasse a construção de um diálogo interdisciplinar em
torno dos principais problemas que envolvem a noção de religião; somando a esse plano
teórico, elaborou-se em segundo lugar, uma abordagem histórica com o objetivo de
demonstrar a formação do catolicismo popular em Franco da Rocha, por meio da Romaria e
suas relações com outros aspectos, como o processo de urbanização a partir do Hospital
Psiquiátrico.
Assim, fundamentou-se a hipótese de que a Romaria Pirapora do Bom Jesus, entre
outras manifestações populares, é central ao processo de desenvolvimento do município de
Franco da Rocha e pode ser concebida como um depositário de valores culturais, por meio da
qual é possível a transmissão de um conjunto de tradições ao longo de décadas. Tais valores
aparecem imbricados com a história do município e constitui uma rede de vínculos de
solidariedade entre os romeiros, motivo pelo qual, não faz sentido concebê-la como uma
“sobrevivência” de tradições “atrasadas” ou uma anomalia social diante dos símbolos da
modernidade.
Como destaca Carlos Alberto Steil em relação ao Santuário de Bom Jesus da Lapa, na
Bahia:
As romarias [...] não são sobrevivências de um sistema religioso
ultrapassado, como algumas análises funcionalistas tendem a considerá-las,
mas colocam em relação deferentes comunidades de interpretação que
atualizam o sentido de suas práticas, através da interface com outros
discursos que circulam no santuário. As romarias são importantes ainda para
compreensão das transformações que vêm ocorrendo no contexto social e
religioso, na medida em que oferecem um amplo repertório linguístico de
signos, símbolos e ritos que os romeiros manipulam para lidar com as
situações novas colocadas pela modernização (STEIL, 1996, p. 59).
Tenta-se demonstrar que manifestações religiosas populares como a Romaria é um dos
elementos culturais fundamentais na formação município de Franco da Rocha, podendo
mesmo ser interpretada como um fenômeno social.
72
3.1 Os vínculos de solidariedade
Afinal, o que se entende por “vínculos de solidariedade”? Talvez seja mais fácil
começar por uma assertiva negativa, distinguindo o que a ideia não pretende ser. Não se trata
do conceito funcionalista de “solidariedade”, segundo o qual Durkheim (2004) distingue dois
tipos de sociedades, uma “mecânica” e outra “orgânica”. A teoria funcionalista durkheimiana
procura explicar os aspectos da sociedade em termos de funções, realizados por indivíduos ou
suas consequências para a sociedade como um todo. Assim, em sociedades cujo tipo de
organização social prevalecia uma condição de “semelhança” entre as funções
desempenhadas pelos homens, Durkheim chamou de “solidariedade mecânica”; por outro
lado, a chamada “solidariedade orgânica” descreve uma sociedade cuja divisão social do
trabalho baseia-se na “diferença” das funções, característicos das sociedades industriais
(DURKHEIM, 2004, p. 29-45).
A noção de “solidariedade” utilizada aqui pretende simplesmente abarcar um conjunto
de valores tradicionais construídos e partilhados pelos romeiros. A devoção individual
partilhada no interior da família, a identidade e o sentimento de pertença religiosa, a interação
com símbolos e rituais tradicionais das festas populares, enfim, todos estes elementos são
construídos e tomados como “tradicionais” pelos romeiros. É por meio da festa ou da
peregrinação ritual que se pretende explorar alguns aspectos dessa solidariedade.
A noção de “festas” sempre esteve muito relacionada com as manifestações religiosas
populares. Como se pode observar, as práticas religiosas construídas na peregrinação ritual
estabelecem entre os romeiros uma identidade coletiva designada pela categoria de
“festeiros”, termo que evoca a ideia de solidariedade, no sentido aqui atribuído. Nisso, a
Romaria comporta um conjunto de símbolos e valores culturais a serem partilhados pelos
romeiros. Constituída de sentidos, a “festa supõe uma inter-relação, comunhão, diálogo,
comunicação e encontro interpessoal”, que por sua vez “implica reciprocidade e intimidade”
(GONZÁLEZ, 2005, p. 18).
Para Roberto da Matta (1991), as festas são fenômenos recriadores e resgatadores do
tempo, espaço e relações sociais. Assim, as festas têm como função social manter a sociedade
como tal e reforçar as formalidades sociais em torno dos símbolos coletivamente partilhados.
A organização social da festa depende de uma concepção de tempo, cuja periodicidade é
construída em termos rituais, tal como o calendário das festas religiosas. Conforme Eliade,
73
trata-se de uma “reatualização periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinos”
(2001, p. 76).
As festas comportam valores culturais e podem ser concebidas como depositária
desses valores, que da perspectiva dos romeiros devem ser preservadas. Conforme Clifford
Geertz (1989), estas manifestações populares podem ser lidas como um sistema simbólico ou
cultural, e apesar de os símbolos terem inúmeros significados, expressa o clima do mundo e o
modela mediante a experiência que lhe dá sentidos.
A concepção de religião proposta por Geertz é pertinente à ideia de solidariedade para
pensar a relação entre os romeiros: ela é concebida como “um sistema de símbolos que atua
para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral” (GEERTZ, 1989, p.
67). É nesse sentido que Geertz sugere interpretar a cultura como “teias de significados”
tecidos pelos homens (1989, p. 4). Assim, o comportamento humano é visto como ação
simbólica, de modo que a religião é concebida como “depósito” cultural.
Este sistema de símbolos cuja peregrinação ritual é um exemplo, perpassa pela
experiência e constroem “disposições” capazes de prover ao homem religioso explicações
para realidade da vida, do sofrimento, da felicidade, da morte, etc. Estas são, portanto,
disposições partilhadas pelos romeiros, estabelecendo um sistema de reciprocidade dos
valores e modos de conceber o mundo. Para Geertz, o conjunto de “disposições”, isto é, as
tendências, capacidades, propensões, habilidades, hábitos, etc., descrevem as probabilidades
de se agir de determinado modo em determinadas circunstâncias, de modo que “ser devoto
não é estar praticando algum ato de devoção, mas ser capaz de praticá-lo” (GEERTZ, 1989, p.
70).
O modo como os romeiros se comportam durante o processo tem muito haver com os
rituais, parecendo seguir uma ordem cronológica de tempo e espaço, combinando passo a
passo com os momentos da peregrinação e o sentimento de piedade torna visível no processo,
de modo que, o rito pode ser lido como “um símbolo em ação” (CROATTO, 2010, p. 329).
Este aspecto da peregrinação é tratado aqui como performance, como ritual corporal e não
apenas como representação.
Os romeiros de Pirapora do Bom Jesus, como são conhecidos pelos munícipes de
Franco da Rocha, são em sua maioria moradores dos diversos bairros deste município. Há
também um considerável número de devotos moradores de municípios vizinhos, como
74
Francisco Morato, Caieiras e Mairiporã. No geral, caracterizam-se por comerciantes, sitiantes,
chacareiros, lavradores, operários de indústrias locais e da capital paulista, funcionários
públicos, bem como autoridades políticas do município de Franco da Rocha.
Alguns dos romeiros, especialmente aqueles que moram em sítios e chácaras nos
bairros rurais distantes do centro, são auxiliados pela prefeitura municipal com transportes,
para que seus filhos possam estudar nas escolas do município. São em sua maioria, pessoas
simples e educadas nos costumes tradicionais do catolicismo popular. Assim, nesta tradição,
ensinam seus filhos desde cedo à necessidade de rezar e de agradecer aos santos de devoção
da família. Estas práticas familiares contribuem para manutenção de uma tradição religiosa.
No geral, pode-se aproximar o homem religioso eliadiano do romeiro ao destacarem-se
suas cosmologias, práticas e experiências religiosas. Como enunciado por nossa hipótese, os
sentimentos e práticas devocionais observadas em torno do caráter intermunicipal da
Romaria, possibilitam a construção de vínculos de solidariedade entre os romeiros. A
Romaria tornar-se uma “comunidade moral” por meio da qual são compartilhados
determinados valores e modos de vida que, por sua vez, perpassam por outras relações sociais,
como por exemplo, a estrutura política municipal.
Pode-se afirmar que o romeiro sente-se herdeiro de um legado tradicional,
manifestando-se de modo especial por ocasião das festas religiosas. Em seus termos, a
categoria de “festeiro” implica na identificação com os conteúdos culturais e religiosos das
festas religiosas populares: trata-se de manifestar sua devoção não apenas ao padroeiro ou
santo, mas também a memória coletiva do grupo. O santo é a memória tangível de uma
tradição familiar, intrinsecamente relacionado à história do município: a festa coletiva é um
modo de reatualizar esse “tempo primordial”.
Assim, os romeiros – cada um a seu modo – ao compartilhar estas experiências na
Romaria, revestem-na de uma sacralidade, que nos termos eliadianos, busca estabelecer um
tempo e espaço como realidade por meio de práticas rituais que constituem o sentido de ser
“festeiro”. Para Mircea Eliade:
Toda festa religiosa, todo tempo litúrgico, representa a reatualização de um
evento sagrado que teve lugar num passado mítico, “nos primórdios”.
Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal
“ordinária” e a reintegração no tempo mítico reatualizado pela própria festa
(ELIADE, 2001, p. 63-64).
75
Tradicionalmente, as romarias são festas concebidas como peregrinações, onde grupos
de pessoas caminham em direção a um santuário ou um espaço cujos peregrinos consideram
sagrado, estabelecendo com estes espaços profundas relações e experiências com o sagrado.
Em relação à Romaria de Pirapora do Bom Jesus, o Sr. R.F, afirma que ela está em
declínio atualmente, atribuindo ao fato de ter se tornado muito “social” e menos “devocional”;
de ter muita “viagem” e menos “peregrinação”; muita “conversa” e pouca “reza”; muita
“movimentação” e pouca “fé”. Estes jogos de oposições e distinções entre o que seria uma
simples agremiação social e uma manifestação devocional, dá conta de explicar, por exemplo,
as diferentes formas das gerações de romeiros interpretarem o “ser festeiro”. São diferentes
modos de atribuir valores e compartilhá-los na Romaria.
A peregrinação é uma das práticas rituais mais presentes em diversas religiões,
podendo mesmo ser concebida como um “rito de passagem”. Para Eliade, “os ritos de
passagem desempenham um papel importante na vida do homem religioso” (2001, p. 150).
Para Victor Turner, os ritos de passagem perpassam pela experiência, de modo que as
concebe como “dramas sociais”, instaurado por processos “liminares” (2005, p. 183). Assim,
nesse estado liminar, o indivíduo se encontra num “lugar entre” o estágio inicial e o final. Nos
termos eliadianos, trata-se de uma transformação ontológica, isto é, por meio do ritual passa-
se de um tempo “ordinário” para um tempo “original”, de um tempo “profano” para um
tempo “sagrado”. Pode-se ir além e dizer que a hierofania manifesta-se no corpo do devoto.
Entre os comportamentos devocionais, é possível explorar um pouco mais a noção de
rito corporal, ao observar-se uma gestualidade ou um “conjunto de técnicas corporais”, como
diria Marcel Mauss (2003, p. 401). Trata-se de performances rituais, tais como tocar os santos
e beijar seus pés ou uma réplica do mesmo pendurado em seu pescoço, ajoelhar-se, fazer sinal
da cruz, manusear um terço, uma foto ou um objeto sagrado enquanto pronuncia preces
balbuciando entre os lábios, etc. Pode-se dizer que o ritual do festeiro está implicado no
corpo: o corpo que reza e canta; o corpo que chora e ri; o corpo devotado, que se entrega
numa relação recíproca com o santo; o corpo que peregrina; o corpo sacrifício, que sofre e
agradece. Muitos deles agradecem em voz alta e pedem a proteção dos santos; despedem-se
dos familiares e amigos que assistem a saída da Romaria, entregando-se totalmente à
caminhada ritual rumo ao Santuário em Pirapora do Bom Jesus.
Perceber estes gestos corporais como produtores de um universo simbólico significar
aproximar-se do mundo concebido pelo “festeiro”. A peregrinação constitui-se num momento
festivo, de onde se deriva o sentido de ser “festeiro”. Trata-se de distinguir as “piscadelas”,
76
isto é, um conjunto de sinais cujos sentidos culturais são compartilhados por um grupo social
e que podem ser interpretados pelo observador (GEERTZ, 1989, p. 5). Ao conceber a cultura
com “teias de significados”, Geertz propõe a chamada “descrição densa”, meio pela qual a
etnografia, ferramenta básica do observador, interpreta o comportamento dos observados:
Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”)
um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com sinais convencionais
do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado
(GEERTZ, 1989, p. 7).
Assim, a interpretação que o observador faz dos observados resulta numa “construção
das construções de outras pessoas” (GEERTZ, 1989, p. 7). A peregrinação, com seus rituais
de saída, chegada e retorno é uma construção coletiva, de modo que estabelece uma estrutura
performática comum, sujeito a interpretação do observador.
Ao tratar da performance ritual no teatro, a leitura de Victor Turner possibilita
estender a discussão aos ritos de peregrinação.
O teatro e uma dessas muitas herdeiras do grande sistema multifacetado que
chamamos de “ritual tribal”, que abrange ideias e imagens do cosmos e do
caos, interdigitando palhaços e suas folias com deuses e suas solenidades, e
fazendo uso de todos os códigos sensoriais para produzir sinfonias para além
da música: o entrelaçamento da dança, de diferentes tipos de linguagens
corporais, canções, cânticos, formas arquitetônicas (templos e anfiteatros),
incensos, oferendas, banquetes ritualizados, pinturas, tatuagens,
circuncisões, escarificações, e marcações corporais de muitos tipos, a
aplicação de loções e a ingestão de poções, a encenação de tramas míticos e
heroicos retirados de tradições orais – e muito mais (TURNER, 2005, p.
184).
Conforme Eliade, para o homem religioso, há uma correspondência entre o “corpo
humano e o ritual em conjunto: o lugar do sacrifício, os utensílios e os gestos sacrificiais são
assimilados aos mais diversos órgãos e funções fisiológicas” (2001, p. 141). Esta dimensão do
corpo no ritual de peregrinação é importante, pois é através dele que o romeiro compartilha
experiências.
O caminhar como prática ritual é um símbolo da existência humana que se manifesta e
se concretiza num conjunto de ações, como a partida e o regresso, a entrada e a saída, a
77
marcha e o descanso, a saída e o retorno, a morte e a vida. Algumas cosmologias religiosas,
como por exemplo, a cristã, que considera o nascimento biológico como uma “entrada” no
mundo ao passo que a morte marca uma “saída”, cumprindo um estágio necessário, cujo
objetivo “passar” a uma realidade espiritual. Assim, os ritos demarcam o sistema de crenças
ou teias de significados.
Concebida como um rito, a peregrinação suspende a temporalidade cronológica ao
instaurar um tempo mítico, cuja performance torna-a presente em sua vida. Para os romeiros, a
peregrinação não é uma simples caminhada, mas um ritual festivo, cujo objetivo é conseguir
algo, pagar promessas ou agradecer por graças recebidas. O depoimento do Sr. R.F esclarece
isso:
Peregrinar é uma experiência santa, é uma espécie de caminhar com o santo
lado a lado; o pensamento que levo e o sentimento devem ser de piedade, por
que senão, não vale, é coisa séria. Cumprir promessa ou agradecer as graças
alcançadas é bom para a nossa vida e também de toda a comunidade. Os
santos são os nossos protetores, eles nos guardam de todo o mal, por isso
devemos louvar e agradecer todos os dias da nossa vida e respeitar como se
fosse da família (Entrevista, 2011).
Esta “experiência santa” estabelece vínculos verticais (com os santos) e horizontais
(entre os romeiros). A noção de “família” estendida para relação com os santos relaciona-se
com a ideia de solidariedade e pode ser interpretado como um elemento integrador dessas
relações. A relação entre o santo e o romeiro devoto é de amizade e reciprocidade: o devoto
sente a obrigação de agradecer a graça concedida. Quanto a esses laços, o Sr. Tino Palma
afirma:
Meus pais sempre me ensinaram a respeitar os santos e agradecer nas minhas
orações tudo na minha vida. Os santos são exemplos para nós, eles foram
pessoas que deram testemunhos de vida, sempre foram devotos dos seus
santos e transmitiram vida para nós. Por isso, devemos prestar homenagem
pra eles. Quando peregrinamos, caminhamos rumo a Pirapora e sentimos
muito bem, sentimos que a força da fé move nossa vida (Entrevista, 2011).
Além disso, percebe-se nesse relato uma necessidade que o romeiro concebe a
tradição, de modo que se sente herdeiro. Este aspecto compartilhado pelos romeiros faz com
que a Romaria estabeleça laços de solidariedade. Conforme o relato do Sr. Tino Palma:
78
A nossa família sempre teve unida, a igreja é o nosso canto de todo o
domingo, nas missas, é lá que encontramos a nossa família toda, somos
filhos de um só Deus, de Nossa Senhora Aparecida e do Bom Jesus. Lá
louvamos e agradecemos junto e planejamos nossa vida e a nossa romaria.
Sentimos que somos uma família só, com Deus e nossa senhora aparecida
(Entrevista, 2011).
Assim, a solidariedade “vertical” e “horizontal” é construída entre os romeiros por
meio das festas como um modo de compartilhar também o sistema de crenças. O romeiro P.J
relata:
Essa já é a décima romaria que eu vou, sinto a presença e o acolhimento dos
romeiros, sinto que são parte de minha família, a romaria é para mim um
momento de encontro, onde nos partilhamos as nossas esperanças e
conversamos bastante sobre os nossos problemas pessoais, da família e até
da nossa cidade (Entrevista, 2011).
O romeiro J.C também relata:
A romaria para mim tornou-se um evento que encontro os meus melhores
amigos, porque é na caminhada que conversamos sobre os nossos
problemas. Este ano foi de muita alegria, minha empresa melhorou, pedi ao
Bom Jesus e Nossa Senhora que se este ano fosse bom, que se conseguisse
pagar todas as minhas contas atrasadas, eu iria pagar uma promessa. Prometi
de levar por minha conta três pessoas que não tinha dinheiro para ir à
romaria. Estou feliz, elas estão aqui graças ao Bom Jesus (Entrevista, 2011).
Conforme o relato do romeiro R.S:
Eu vivo a festa o ano inteiro, antes do dia, fico imaginando, chego até
programar e organizar em minha mente, no dia da festa, participo com muita
emoção e alegria de estar realizando aquele momento esperado, quando
volto de Pirapora, fico pensando sobre a viagem, o trajeto feito e já começo a
pensar no próximo ano, gosto de ser romeiro todos os dias (Entrevista,
2011).
A senhora E.S, romeira há muitos anos, relata:
A romaria desde que surgiu, os meus avós, meus pais sempre participaram,
formaram um grupo de amigos, todos os anos se encontram neste evento.
79
Mas, durante a peregrinação, da saída até a chegada, cada um tem sua fé, sua
promessa e seu pedido particular, e pessoal dele (romeiro) com o santo e
Deus (Entrevista, 2011).
Por outro lado, esta relação se estende também de modo especial aos animais, tratados
como “coparticipantes” da peregrinação. O depoimento do romeiro Paulo é ilustrador:
O meu cavalo é igual meu irmão; é também da família, está sempre comigo
em todas as romarias, é meu companheiro e amigo. Pago pensão para o meu
cavalo, ele deve ser bem cuidado (Entrevista, 2011).
Para o romeiro, a peregrinação ritual instaura um tempo e espaço que delimita o
sagrado e o profano. O ser “festeiro” na cosmologia do romeiro é distinguido, portanto, como
“participante” de uma relação com o sagrado. Sendo assim, os sentidos compartilhados pelos
festeiros permite pensar a Romaria como uma “comunidade moral”, por agrega-los em torno
de uma mesma fé, tal como formulado por Émile Durkheim (1989, p. 76).
Pensar os romeiros como uma “comunidade moral” implica também em distinguir os
vários modos como seus membros e outros, supostamente não romeiros, interpretam esta
Figura 10 - Romeiro e seu cavalo - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
80
coletividade. Da perspectiva do “romeiro devoto”, há um grupo de romeiros ou de
“participantes” que não a concebem do mesmo modo, atribuindo à peregrinação apenas uma
“caminhada” ou simplesmente relacionada ao tempo cronológico, ou seja, em eventos com
começo, meio e fim. Assim, a Romaria seria considerada apenas um evento popular religioso
festivo e social, sendo vista por alguns como um evento supersticioso.
Há também um grupo de pessoas não romeiros que apontam a Romaria como uma
festa “inútil” e servindo para sujar as ruas, atrapalhar o trânsito, gastar dinheiro e defender
interesses políticos. Outros interpretam o evento como corroborando com um comportamento
antiético de oportunistas (comerciantes e políticos). Quando perguntados sobre a opinião e
participação dos padres na Romaria, os romeiros são unânimes em afirmar que os padres não
aprovam devido a Romaria estar fora das diretrizes gerais da Igreja Católica Romana.
Segundo os romeiros, os padres classificam esses eventos como “crendices populares”,
“misturas de diversas crenças” e “religiosidade sem compromisso” com os trabalhos pastorais
concentrados nas paróquias.
Esta diversidade de pontos de vistas acerca destas manifestações populares convive e
compete no mesmo espaço, construída por categorias de acusação e legitimação. Estas tensões
podem ser resumidas do seguinte modo: por um lado, há um grupo romeiros que se
autodenominam “festeiros” e atribuem valores sagrados à Romaria. Tal grupo compõe o que
se pode chamar de “devotos”. Por outro lado, há os que atribuem à Romaria uma falta de
sentido religioso “verdadeiro”, concebendo-a como um evento puramente social; outros a
veem como um pretexto para bagunça, violência, discussões e disputas de poderes entre
grupos políticos. Carlos Steil (1996, p. 66) também chama atenção para o fato de que as
romarias não devem ser lidas apenas como uma idealização das relações sociais, mas também,
devem-se verificar as diferenças e tensões entre os grupos sociais.
Observam-se diferentes modos de atribuir valores à Romaria, o que não deixa de ser
um modo de “partilhar”, visto que as tensões estabelecem também outras relações. Há,
portanto, uma disputa pelos espaços, colocando em tensões romeiros e outros grupos sociais.
Aparecem aqui às diversas concepções, pontos de vista dos cidadãos, as concepções
tradicionais religiosas, as concepções modernas desligadas dos laços místicos e das
manifestações religiosas populares.
Embora a Romaria seja vista pelo clero oficial como práticas populares e
supersticiosas, são por meio dela que os valores da Igreja Católica são reforçados, afinal, os
romeiros consideram-se católicos. Por parte dos romeiros, há uma preocupação em manter as
81
tradições religiosas, recebendo-as por meios dos sacramentos oferecidos e exigidos pela
instituição católica. Assim, batizam seus filhos de 2 a 3 meses de vida; alguns recebem uma
educação básica por meios das catequeses, considerada como os primeiros passos para receber
o sacramento da confissão; além disso, os rituais de casamento e funerais aproximam os
romeiros das relações com o clero oficial.
3.2 Estrutura da peregrinação ritual: Viagem-chegada-retorno
Quanto à peregrinação, trata-se de um trajeto percorrido por aproximadamente 75 km,
partindo do centro de Franco da Rocha com destino ao Santuário Pirapora do Bom Jesus. Um
dos primeiros organizadores da Romaria, o Sr. Tino Palma estabeleceu um cronograma que
ainda é mantido pela atual Associação de Romeiros e consiste em sair no dia 5 de agosto de
cada ano, permanecendo até o dia 8, período no qual festas religiosas são realizadas no
município de Pirapora do Bom Jesus.
Segundo depoimentos, de 1950 a 1988, a saída para peregrinação tinha como ponto
inicial a antiga capela do município, atual Igreja Matriz Nossa da Conceição. A partir de
1989, com a fundação da Associação dos Romeiros de Franco da Rocha, a Romaria passou a
fazer parte do calendário oficial dos eventos do município, transferindo seu ritual de saída
para Paço Municipal, acompanhada pela presença de autoridades políticas municipais e
religiosas. Além das estratégias e relações políticas construídas em torno desses eventos, o
Paço Municipal teria sido escolhido por ser um local central e espaçoso, de modo que pudesse
recepcionar e acomodar o grande número de romeiros, vindos dos mais variados bairros e de
municípios vizinhos.
82
A saída do Paço Municipal rumo ao Santuário no município de Pirapora do Bom Jesus
constitui-se em um momento festivo, reunindo romeiros e seus familiares, curiosos e não
romeiros. A saída é tradicionalmente realizada com a benção de um dos padres do
município,14
cuja presença representa uma mediação entre a religião oficial e a religiosidade
popular. A saída ainda é marcada por um show pirotécnico (fogos de artifícios) e a música
desempenha um papel importante nesse ritual de peregrinação.
No momento da concentração, várias músicas são executadas pelos técnicos de som e
cantadas pelos romeiros. Entre elas, a música “Romaria” composta por Renato Teixeira e
conhecida na voz de Elis Regina, “Nossa Senhora do Brasil” na voz do padre Marcelo Rossi e
“Ave Maria Sertaneja” de Luiz Gonzaga.
Nas letras aparecem justamente palavras que permitem a interação do romeiro com os
“santos”, com a “tradição”, com a “família”, com a “fé”, com a “esperança” e com os animais,
como os “cavalos”. Assim, a música aparece como elemento importante na constituição da
cultura e no ritual dos romeiros. Quanto a isso, o romeiro J.P afirma:
Durante a concentração, fico emocionado, choro muito, a música toca meu
coração, fico fora de mim, sinto uma força, fico motivado, sinto vontade de
14
Na Romaria de 2011, observado para esta pesquisa, a benção foi realizado pelo Padre Aparecido, pároco da
Igreja Bom Jesus da Paradinha, situado no bairro Vila Bela em Franco da Rocha.
Figura 11 - Autoridades municipais e organizadores da Romaria Pirapora do Bom Jesus no momento da
saída - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
83
dizer para todo mundo que amo a romaria, meus amigos, minha família,
meus santos de devoção e fico cheio de esperança e vontade de viver.
(Entrevista, 2011).
As músicas são capazes de despertar uma série de elementos performáticos, como a
emoção, as lágrimas e gestos devocionais: os romeiros demonstram por meio de sinais
corporais a força dos valores tradicionais, elementos místicos carregado de simbolismo. Segue
a letra destas músicas:
Romaria: Elis Regina (1977)
Composição: Renato Teixeira.
É de sonho e de pó
O destino de um só
Feito eu perdido
Em pensamentos
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó
De jibeira o jiló
Dessa vida
Cumprida a só
Sou caipira, Pirapora
Nossa Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida (2x)
O meu pai foi peão
Minha mãe solidão
Meus irmãos
Perderam-se na vida
À custa de aventuras
Descasei, joguei
Investi, desisti
Se há sorte
Eu não sei, nunca vi
Sou caipira, Pirapora
Nossa Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida (2x)
Me disseram, porém
Que eu viesse aqui
Prá pedir de
Romaria e prece
Paz nos desaventos
84
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar
Meu olhar
Sou caipira, Pirapora
Nossa Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Ave Maria Sertaneja: Luiz Gonzaga.
Composição: Julio Ricardo - O. de Oliveira (1964)
Quando batem as seis horas
de joelhos sobre o chão
O sertanejo reza a sua oração
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz
Nesta hora bendita e santa
Devemos suplicar
A Virgem Imaculada
Os enfermos vir curar
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz
Nossa Senhora do Brasil: Marcelo Rossi (2007).
Composição: Felipe Bruno.
Fonte amor e luz
Mãezinha, interceda por nós.
Fonte de amor e luz
Estrela que conduz
Aonde vai estrada
A fé que alimenta a alma
E o poder da palma
Que não crê em nada
É a força de uma oração
É a prova do perdão
Seu Manto Azul Anil
É a salvação a toda hora
É a lágrima de quem não chora
Nossa Senhora do Brasil.
Me cobre com Seu Manto
Enxuga o meu pranto
Perdoa se eu não sei rezar
Estenda a sua mão
Me abra o coração
Me ensina a saber amar
Estenda o seu manto
85
De paz e acalanto
Do amor mais puro e verdadeiro
Bendito é o perdão
Que abre o coração
Do povo brasileiro
(E que Deus abençoe e será, já está abençoado.
Cada um de vocês. E feliz aquele que tem fé.)
Fonte de amor e luz
Estrela que conduz
Aonde vai estrada
A fé que alimenta a alma
E o poder da palma
Que não crê em nada
É a força de uma oração
É a prova do perdão
Seu Manto Azul Anil
É a salvação a toda hora
É a lágrima de quem não chora
Nossa Senhora do Brasil
Me cobre com seu manto
Enxuga o meu pranto
Perdoa se eu não sei rezar
Estenda a sua mão
Me abra o coração
Me ensina a saber amar
Estenda o seu manto
De paz e acalanto
O amor mais puro e verdadeiro
Bendito é o perdão
Que abre o coração
Do povo brasileiro.
(Povo abençoado.)
(Obrigado gente!)
(Ele não chorou.)
(Obrigado Padre.)
Concentrados no Paço Municipal para receber a benção do padre como ritual de saída,
os romeiros cantam músicas religiosas referentes a Nossa Senhora de Aparecida, ao Bom
Jesus e a padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição. Antes de receberem a benção do
padre, dando início ao momento da partida, os romeiros fazem silêncio por um momento,
alguns fazem gestos rituais de oração, outros ainda ficam de olhos fechados, demonstrando
uma profunda devoção, enquanto outros permanecem em observação. Alguns tiram o chapéu
da cabeça e colocam na posição do peito associando este sinal de reverência com a devoção
cívica, ao passo que se ouve uma polifônica e uníssona voz de devotos: “vamos, com a
benção de Deus, de nossa Senhora Aparecida e do Bom Jesus”. Conforme conversas
informais, alguns afirmam que neste momento sentem “paz interior” e sentem-se confiantes
para peregrinação.
86
Em seguida, o padre inicia o ritual, abençoando e rogando a proteção divina para
peregrinação, enquanto asperge água benta sobre os romeiros. Embora o padre não prossiga
com os romeiros na peregrinação, o ato simbólico da benção e “autorização” para saída
aproxima a Igreja Matriz das manifestações populares.
Desse modo, a peregrinação pode ser interpretada como um ritual performático,
dividido basicamente em três fases: a “viagem” é marcada pela saída do centro de Franco da
Rocha, a “chegada” ao Santuário em Pirapora do Bom Jesus e o “retorno” a Franco da Rocha.
O percurso viagem-chegada-retorno compreende o seguinte trajeto: saída do Paço
Municipal Central e acessando o viaduto Prefeito Donald Savazoni, percorre-se pelos bairros
Vila São Benedito, Vila Santista, chegando até a churrascaria Espetão, onde ocorre a primeira
parada e encontro com outros romeiros vindos de outras regiões. Em seguida atravessam a
estrada Velha de Campinas adentrando no bairro Jardim Luciana e Jardim das Colinas,
aproximando-se da divisa dos distritos de Franco da Rocha e o município de Cajamar. A
partir daí, passam também pelo município de Santana de Parnaíba, chegando finalmente à
Pirapora do Bom Jesus, onde está localizado o Santuário objeto da devoção dos romeiros.
Figura 12 - A benção do padre autorizando a saída da Romaria - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
Nas peregrinações de 2010 e 2011 observados para pesquisa, a maioria dos romeiros
era composta por homens, visto que há uma concepção biológica por parte destes – conforme
conversas informais – acerca da fragilidade da mulher em relação à viagem longa e cansativa,
87
que exige esforço físico do romeiro. Conforme depoimentos, em peregrinações anteriores
ocorreram mortes de pessoas e animais por não suportarem o trajeto das peregrinações.
Curiosamente, alguns romeiros identificam-se como católicos “não praticantes”. Isso
sugere que os que assim se classificam não se sentem vinculados institucionalmente, como
demonstrados por Ronaldo Almeida e Paula Montero:
A esse tipo de católico que mantém simultaneamente religiosidades
diferentes – cada uma localizada num plano da vida do fiel – acrescentam-se
ainda os chamados “não-praticantes”, categoria sociologicamente pouco
precisa, mas com uma auto-identificação significativa que compõe uma
parcela importante do segmento. São os católicos dos batismos, casamentos
e enterros, para os quais os sacramentos atuam como ritos de passagem
tradicionais na sociedade brasileira (ALMEIDA; MONTERO, 2001, p. 95).
Embora se identifiquem com a fé católica por tradição, alguns romeiros não fazem
parte de trabalhos pastorais e não participam das missas. Como dito anteriormente,
classificam-se como “festeiros” ao vincular-se de algum modo às festas da padroeira do
município. A Romaria é uma referência que lhe confere a identidade de ser “católico”.
Figura 13 - Pesquisador ao lado do fundador da Romaria (Sr. Tino Palma) e um antigo romeiro - Foto:
Marcus Mancuso, 2011.
88
Cabe ressaltar que os romeiros realizam o trajeto de modos diferentes: os que seguem
a pé são denominados “caminheiros” e os que seguem a cavalo, são conhecidos como
“cavaleiros do Bom Jesus”. Ainda há os que se utilizam de transportes, como charretes,
bicicletas, motos e caminhões. Os objetivos são os mais diversos: alguns seguem em romaria
com objetivo de pagar promessas ou votos feitos; outros têm por objetivo doar algum objeto
Figura 14 - Cavaleiros se preparando para saída da Romaria - Foto: Marcus Mancuso, 2011
Figura 15 - Realização do trajeto inicial - Foto: Marcus Mancuso, 2011
89
ao santo como forma de agradecimento por uma súplica atendida. As promessas também são
diversas e estabelecidas com algumas obrigações determinadas pelo devoto, tais como, abster-
se de usar certas cores, conservar cabelo e barba ou cumprir uma série de deveres penitenciais
oferecidos no momento da aflição, dificuldades ou problemas de saúde. Assim, o corpo é o
instrumento dessa relação de reciprocidade com os santos.
Figura 16 - Saída pelas ruas de Franco da Rocha - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
Figura 17 - Trânsito na saída da Romaria - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
90
Durante o trajeto, os romeiros fazem paradas estratégicas para o almoço, lanches e
para alimentar os animais, considerados pelos romeiros como “coparticipantes” do processo
ritual de peregrinação, devido ser companheiro de todos os anos.
Nestas paradas enquanto os romeiros conversam muito entre si, alimentam-se
geralmente de churrascos, além de beberem refrigerantes, cervejas e outras bebidas alcoólicas.
Compartilham experiências sobre a viagem e falam sobre a esperança de chegar bem à
Pirapora do Bom Jesus para rezar no pé do santo e agradecer pela viagem e pedir bênçãos.
Alguns deles comentam sobre acontecimentos do cotidiano, como brigas, separações,
desemprego, doenças na família ou nos animais (cavalos), e por isso devem pedir força ao
Bom Jesus. De modo geral, expressam suas amarguras, esperanças, medos, tristezas, alegrias,
angústias e desejos nas orações e conversas. Este aspecto também foi ressaltado por Carlos
Alberto Steil entre os romeiros de Bom Jesus da Lapa na Bahia: “isto permite perceber que as
romarias tanto servem para a renovação dos laços de solidariedade entre parentes e vizinhos,
quanto para a manutenção das relações de dependência” (1996, p. 67).
Então, o rito estabelece uma aproximação com o santo, reforçando as relações de
solidariedade e de reciprocidade com as famílias dos romeiros e com os grupos.
3.3 O Santuário de Pirapora do Bom Jesus
Em várias regiões do Brasil é possível observar manifestações populares como essas,
onde fiéis das mais variadas cidades e classes sociais externam suas crenças e práticas
religiosas. No caso das romarias, santuários ou capelas são espaços sagrados para os devotos e
desempenham um importante papel na construção de relações sociais.
O ponto central e destino da peregrinação por parte dos romeiros é o Santuário
localizado no município de Pirapora do Bom Jesus. O atual Santuário do Senhor Bom Jesus,
no centro velho de Pirapora, com suas torres apontando para o céu, seria a terceira Igreja
construída no mesmo local. A festa de Pirapora do Bom Jesus acontece tradicionalmente ao
dia 6 de agosto desde 1730, sendo conhecida como a primeira festa em homenagem ao Bom
Jesus. É neste intervalo de festas que ocorre a Romaria que parte de Franco da Rocha ao
Santuário.
91
Ao chegarem ao município de Pirapora, conforme seus blocos de organização, os
romeiros geralmente buscam acomodarem-se em alojamentos, pensões ou estacionamentos,
previamente combinados pelos organizadores. Em seguida, dirigem-se para a praça em frente
ao Santuário onde são recepcionadas pelo padre responsável que acolhe e lhes dá as boas
vindas.
Após a recepção, alguns romeiros entram no Santuário para agradecer pela viagem,
dirigindo-se ao santo de devoção, convicto de que este o aguardava. Em torno desse espaço os
romeiros manifestam a fé, a devoção, revelando seus modos de ser nesse espaço. A missa e as
festas são organizadas pelos dirigentes do Santuário em parceria com a prefeitura do
município no que diz respeito à estrutura de palco montado na praça para as apresentações de
músicos, geralmente música sertaneja.
Para os romeiros, o Santuário constitui-se num espaço sagrado por excelência.
Conforme Eliade, “todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que
tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna
qualitativamente diferente” (2001, p. 30). Neste espaço, destaca-se como central as relações
construídas entre os devotos e o santo de devoção: para os romeiros, a peregrinação ritual tem
como objetivo “reatualizar” o sofrimento e paixão do Cristo, cuja representação está na
imagem do Bom Jesus como objeto de devoção. O Santuário estabelece as relações de
reciprocidade através do encontro entre devoto e o santo, entre a promessa e a graça, entre o
“pagar” e “retribuir”.
Figura 18 - Santuário do munícipio de Pirapora do Bom Jesus - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
92
O Santuário é o centro das relações na expectativa dos romeiros. Tomando os termos
de Steil acerca do Santuário do Bom Jesus da Lapa (Bahia), pode-se dizer que, na perspectiva
eliadiana, “o santuário surge, assim, como arquétipo de um centro mítico onde o céu e a terra
se encontram, abrindo a possibilidade de se penetrar o domínio do transcendente” (STEIL,
1996, p. 37).
No Santuário, os romeiros buscam vivenciar experiências profundas ao contemplar à
imagem do Bom Jesus. Umas das ilustrações retratam o “encontro” milagroso com a imagem
do Bom Jesus, característico das narrativas míticas de origem. Segundo relato, a imagem do
Bom Jesus teria sido encontrada num rio e levada para casa de uma família conhecida como
Neves em 1725. Com a construção da primeira capelinha, alguns anos mais tarde, a imagem
foi transportada para a mesma, sendo celebrada a primeira festa do Bom Jesus em 1730. A
imagem é retrata como uma vítima sofredora, visto que suas mãos aparecem presas por um
tipo de corda. Por outro lado, também é retratada com um manto, típico dos símbolos de
realeza.
Figura 19 - Quadro representado o mito do "encontro" com o Bom Jesus - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
93
Por meio das performances da contemplação, das preces, das celebrações e dos
cânticos os romeiros sentem-se transformados ontologicamente, isto é, elevam-se das
realidades das experiências cotidianas para uma realidade “valorizada como revelação
recebida de outro mundo, trans-humano” (ELIADE, 2001, p. 171). O encontro com o sagrado
faz-lhe repensar a vida, orientando-os em decisões cotidianas. É justamente esta questão que é
colocada na relação entre o devoto e o santo: trata-se da “promessa”, cujo cumprimento é
direcionado a alcançar no cotidiano. Segundo Ramiro Gonzalez, “toda festa é um sim a vida,
afirma o valor e o sentido da vida” (2007, p. 15).
Desse modo, o Santuário faz parte da sua história de vida porque o leva a refletir sobre
tudo o que lhe aconteceu durante o ano todo, seja negativo e positivo, colocando-o numa
relação de reciprocidade com o santo de devoção. O santo faz parte dos significados e
sentidos que os romeiros atribuem a vida, por isso, pede, agradece e promete voltar. Assim, a
peregrinação e o Santuário são elementos que se complementam mutuamente na experiência
religiosa do romeiro: trata-se de elementos concretos por meios dos quais as performances e
sacrifícios corporais, isto é, os rituais, ganham sentidos e podem sem compreendidos como
meios pelos quais são estabelecidos os vínculos de reciprocidade e solidariedade, entre o
santo e o devoto e os romeiros entre si.
Figura 20 - Memorial das Romarias em Pirapora do Bom Jesus - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
94
Outro aspecto da peregrinação a ser considerado é o retorno dos romeiros à Franco da
Rocha. Como de costume, a comissão organizadora da romaria orienta os blocos de romeiros
a fim de que o retorno seja seguro. A sensação de dever cumprido parece marcar o retorno
com uma diferença: alguns romeiros visivelmente cansados e exaustos da viagem buscam
retomar os ânimos, visto que o retorno concretiza a construção da noção de “promessa
cumprida”.
Figuras 21 - Imagens do Bom Jesus no interior do Santuário (detalhes) - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
95
Organizados aos blocos e com seus respectivos meios de transportes, o retorno é lento
e aos poucos percorrem pelos mesmos caminhos do trajeto inicial. Alguns voltam de carro,
principalmente aqueles que foram a pé, pagando alguma promessa.
Figura 23 - Ruas de Pirapora durante a festa do Bom Jesus - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
Figura 22 - Cartaz de programação da "Festa do Bom Jesus" em Pirapora - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
96
É possível perceber que o espírito de devoção dos romeiros é materializado na
peregrinação ritual por meio de seus corpos, gestos e palavras. O que move e inspira essas
pessoas a manterem a Romaria é um sistema de valores que lhes fazem todo sentido: a
devoção, a promessa como atos meritórios, a mediação dos santos, etc. Conforme João Batista
Libânio, “a vida do povo é difícil, cheia de adversidades, ameaçada de perigos. A benção do
Santo vem defender o fiel dos perigos, protegê-los das adversidades, conduzi-lo à sorte e
prosperidade” (1977, p. 56).
Diferente da saída, o retorno é caracterizado por uma dispersão. Até alguns anos atrás,
a saída e o retorno se dava de forma homogênea, isto é, partiam e voltavam juntos, sendo
normalmente recebidos com queima de fogos. No ano de 2011, entretanto, não teve fogos,
nem clima de festas em todo o processo do retorno, devido à morte de um romeiro
Figura 24 - Folheto distribuído durante a festa do Bom Jesus - Foto: Marcus Mancuso, 2011.
97
assassinado por outro durante o trajeto. Este fato foi amplamente divulgado pela mídia local,15
contribuindo para reforçar a imagem negativa da Romaria, como por exemplo, a acusação de
que ela serve de pretexto para violência e para consumo de bebidas alcoólicas por parte de
alguns participantes. Tal incidente ainda é muito comentado entre os munícipes, fazendo com
que algumas pessoas questionem a possibilidade de participação nas próximas peregrinações e
conste como um dos fatores para seu declínio.
3.4 Declínio das romarias.
Embora a Romaria Pirapora do Bom Jesus seja uma festa tradicional em Franco da
Rocha, novas manifestações religiosas têm surgido, tal como o crescimento do
pentecostalismo, estabelecendo um campo religioso em constante disputa pelos bens da
salvação. Neste contexto, a Romaria, que por sua vez é tomada pela Igreja oficial como um
meio de reforçar e manter os fiéis no ceio do catolicismo, tem experimentado também um
declínio nos últimos anos em relação ao número de pessoas.16
Pesquisadores como Ricardo Mariano (1999), Leonildo Silveira Campos (1999) e
Antônio Flavio Pierucci (2004), apontam de modo geral que o declínio do catolicismo deve-
se, em grande medida ao crescimento dos pentecostais no Brasil. Neste sentido, ocorre no
campo religioso brasileiro contemporâneo um declínio do catolicismo e uma ascensão dos
evangélicos pentecostais devido ao crescimento da “sociedade pós-tradicional”. Instaura-se
assim, uma crise nas velhas estruturas alicerçada nos modelos tradicionais, não sustenta mais
as representações coletivas dos tempos modernos. Pierucci argumenta que:
Nas sociedades pós-tradicionais, decaem as filiações tradicionais. Nelas os
indivíduos tendem a se desencaixar de seus antigos laços, por mais
confortáveis que antes pudessem parecer. Desencadeia-se nelas um processo
de desfiliação em que as pertenças sociais e culturais dos indivíduos,
inclusive as religiosas, tornam-se opcionais e, mais que isso, revisáveis e os
15
Ambos os romeiros eram amigos e vereadores do município. De conhecimento geral no município, tal fato
suscitou uma série de controvérsias em torno do caráter religioso da Romaria, enquanto os mais otimistas em
relação à Romaria a concebem como um fato isolado, não devendo ser generalizado.
16 A Igreja busca lançar todos os anos alguns temas fazendo referências à vida nas campanhas da fraternidade e
projetos sociais a fim de assegurar no espaço público uma evangelização moderna. Um exemplo disso é o
movimentos como a Renovação Carismática Católica com forte semelhança pentecostal, usada como incentivo
de “refiliação” religiosa, promovendo uma “re-adesão” aos valores tradicionais do catolicismo.
98
vínculos, quase só experimentais, de baixa consistência. Sofrem fatalmente
com isso, as religiões tradicionais (PIERUCCI, 2004, p. 14).
Os últimos censos realizados no Brasil revelam claramente esse enfraquecimento ou
mesmo declínio da figura do católico praticante. Há uma grande preocupação por parte da
Igreja Católica em relação ao êxodo de fiéis para outras denominações pentecostais, mas
também com o desligamento de muitos jovens, que nos últimos censos ampliaram as fileiras
dos “sem religião” (ALMEIDA; MONTERO, 2001).
Com as novas relações do mercado, com o desenvolvimento tecnológico e com a
influência da mídia, não se pode esperar que as tradições possam manter-se nos moldes
antigos e continuar perpetuando-se da mesma forma.
No caso de Franco da Rocha,17
entre outros fatores – alguns dos quais se enumerou
acima – pode-se destacar acelerada expansão do pentecostalismo como o declínio de
manifestações populares como as romarias. Como demonstrado por Chaves em relação ao
campo religioso em Franco da Rocha, “o contexto rural tornar-se-á, o palco de disputa, da
concorrência e das mais engenhosas formas de construir discursos. A oferta e a demanda
direcionarão os contornos que a religião dará ao próprio contexto de tradição; um pouco da
religião e um pouco de sujeito autônomo” (2011, p. 109). Neste contexto de disputas pelos
espaços e bens da salvação, as romarias tendem a configurar-se num numero menor de
famílias. Os grupos de romeiros que atualmente se reúnem na Cidade, aproximam-se por
afinidades estabelecidas por redes de amigos e familiares.
Entre os romeiros há uma percepção de que o número de participantes tem de fato
diminuído nos últimos dez anos. Perguntados sobre os motivos, alguns atribuem às novas
mudanças sociais como um dos fatores para que as pessoas deixem de seguir a tradição como
antes; outros atribuem ao crescimento dos pentecostais, afirmando que muitas pessoas teriam
se convertido às igrejas evangélicas e por isso deixaram de participar das romarias católicas.
Apesar disso, os rituais de peregrinação, fundamento básico da Romaria, continuam a
reunir um grupo de pessoas, na maioria devotos romeiros, esforçando-se para mantê-la como
um evento cultural importante do município.
17
A cidade de Franco da Rocha possui atualmente um considerável número de igrejas pentecostais espalhadas
pelos diversos bairros, em acelerada expansão. Cabe em outros momentos aprofundar esta questão.
99
Cabe ressaltar que “declínio” não significa necessariamente seu “desaparecimento”;
implica em readaptações em meio a novos contextos sociais. Assim, pode-se perguntar qual a
relação entre o suposto “enfraquecimento” e as novas religiosidades competitivas como os
pentecostais em Franco da Rocha. Tal questão, entretanto, poderá ser retomada em futuros
trabalhos.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa teve como objetivo contribuir com produção acadêmica em
Ciências da Religião ao propor um diálogo interdisciplinar no campo de competência das
Ciências Sociais. A discussão acerca do conceito de “religião”, por exemplo, foi um dos
frutos positivos desse diálogo, visto que foi possível superar uma leitura universalizante do
fenômeno religioso e focar em seus aspectos mais particulares, dentro de seu respectivo
contexto histórico-cultural.
Além disso, o adjetivo que frequentemente se utiliza para caracterizar particularidades
de uma manifestação religiosa, como “oficial”, “urbana”, “popular”, deve ser analisado em
seu respectivo contexto histórico, pois se trata de tipologias construídas para descrever uma
realidade empírica. Assim, a expressão “religião popular”, dependendo da “posição” dos
agentes pode tomar conotações acusatórias, relacionando-as a uma religiosidade “falsa” e
“supersticiosa”. Coube a esta pesquisa tomar outro caminho, a saber, adotar a expressão num
sentido técnico, afastando-se destas conotações pejorativas; por outro lado, buscou-se
compreender as tensões em torno dessas disputas e construir uma leitura compreensiva do
fenômeno religioso construído às margens da religião “oficial”.
Por meio do estudo histórico, como já discutido no segundo capítulo, percebe-se que
com o chamado processo de “romanização”, o catolicismo oficial buscou centralizar o poder
nas mãos dos bispos e padres, retirando dos leigos qualquer função administrativa,
deslocando-os das funções que exerciam nas paróquias, até o recebimento de doações ficava
sob o poder do clero. Sob o modelo administrativo romano, os clérigos pretendiam atender os
diversos santuários e capelas espalhados pelo país, centralizando-os na paróquia sob o poder
dos sacerdotes que deveriam ter o controle de todas as ações administrativas e religiosas.
Dessa leitura interdisciplinar foi possível explorar alguns aspectos da religiosidade
popular por meio da Romaria Pirapora do Bom Jesus, buscando compreender os modos como
os romeiros concebem suas relações com a história do município de Franco da Rocha e de que
modo, por meio delas, estabelecem redes de solidariedade. Investiu-se, portanto, na ideia de
que a religiosidade popular é mais presente na formação do município do que geralmente se
admite.
Quanto ao processo de formação do município, a historiografia oficial costuma
privilegiar pelo menos dois fatores, tidos como marcadores do desenvolvimento econômico e
101
social: o primeiro diz respeito ao projeto de construção do Hospital Psiquiátrico do Juquery
em 1870 e inaugurado em 1898, cuja natureza de suas atividades e tratamento da saúde
mental, tornou-se referência na psiquiatria do século XIX. O segundo fator, segue-se como
extensão do primeiro, a saber, o processo de urbanização que possibilitou a emancipação
político-administrativa do município, que até 1944 era distrito do município de Mairiporã.
A Romaria Pirapora do Bom Jesus em Franco da Rocha é tida como uma tradição de
origem rural, desenvolvendo-se paralelamente aos processos de urbanização. Essa mudança
está aliada ao êxodo rural experimentado no Brasil e intensificada a partir da década desde os
anos 70. No início, com a chegada da Igreja Católica, com as instalações do Juquery e com a
estrada de ferro, as pessoas moravam em uma grande fazenda, dividida em sítios, chácaras e
alguns loteamentos. Presente nesse processo, a religiosidade é mais central do que geralmente
se atribui. A Romaria Pirapora do Bom Jesus, por exemplo, é tomada como exemplo desta
assertiva ao ler suas práticas como um evento articulador entre as diversas manifestações
religiosas, políticos e sociais, desde as origens, sendo esta um depositário popular da tradição,
enriquecendo sua história.
Procurou-se demonstrar, por outro lado, que estes símbolos da modernidade não eram
tão antagônicos à religião popular, como se supõe. Contrapondo-se à ideia de que a religião
seria uma espécie “sobrevivência” de uma tradição “ultrapassada” em relação aos novos
tempos de “progresso”, buscou-se demonstrar o quanto ela foi fundamental para sua
formação. Em primeiro lugar foi preciso considerar a presença do catolicismo popular na
região rural, antes mesmo da fundação do complexo hospitalar; segundo, a construção do
hospital possibilitou a aproximação da Igreja com esta religião rural por meio da capela,
construída 1908 próximo ao complexo para assistência religiosa dos fieis e funcionários.
Desse modo, a capela pode ser vista como ponto de “convergência” entre a religião popular
rural e a Igreja oficial, cujos símbolos religiosos somam-se na memória histórica do
município. A recepção da imagem de Nossa Senhora da Conceição na capela do Juquery
corresponde a uma tentativa de institucionalização da devoção popular, sendo controlado pelo
catolicismo oficial. Portanto, não faz sentido persistir numa leitura que coloque a religião à
margem desse processo.
Tomando a Romaria Pirapora do Bom Jesus como recorte empírico entre outras
manifestações populares, foi possível perseguir a hipótese, de que ao contrário do que o senso
comum atribuiu, é fundamental para compreender a formação do município. Sua fundação é
datada de 1942, paralelo, portanto, ao processo de emancipação político-administrativa do
102
município em 1944. Pode-se inferir que a Romaria pode ser interpretada como depositária de
um conjunto de valores relacionada à memória histórica da cidade. É possível afirmar a
existência de marcos histórico social definidores e provocadores do processo de emancipação,
sendo a Romaria, um desses elementos definidores de uma identidade social.
Com o objetivo de explorar esta dimensão do catolicismo popular como “depositário”
de valores culturais, uma atenção especial foi dada à peregrinação ritual, por meio da qual
seria possível fazer uma leitura dos modos como os romeiros compartilham estes valores
morais e religiosos, chamados aqui de “solidariedade”. É importante notar as relações
verticais (com os santos de devoção) e horizontais (com amigos e familiares) são construídas
a partir de uma memória coletiva do município, memória que se entende como “tradição”.
Entende-se por “peregrinação ritual” um conjunto de comportamentos que compõe a
festa da Romaria, isto é, o trajeto, a promessa, a prece, enfim, uma relação com uma noção de
tempo e espaço sagrado. Como asseverado por Émile Durkheim, “o ritos são regras de
comportamento que prescrevem como o homem deve se comportar com as coisas sagradas”
(1989, p. 72). Os ritos podem ser compreendidos como um meio de “organizar” o mundo. É
um guia do desenvolvimento das ações, atitudes, motivações e comportamentos do homem
religioso, constituindo-se numa esfera de ação.
Assim, para compreender o “por que” de seu comportamento, é preciso compreender
os modos como às crenças são configuradas. A fim de pensar estes modos de explicação do
mundo pela cosmologia religiosa, a noção de “homem religioso” de Mircea Eliade (2001)
serviu de instrumento teórico, de modo que os ritos são meios de “reatualização” de um
tempo “primordial”. É neste aspecto que se buscou interpretar a peregrinação ritual como
“festas” e as disposições em torno da identidade dos romeiros ao classificarem-se de
“festeiros”. Desse modo, a Romaria é concebida como uma festa “solidária”, isto é, seu
repertório simbólico está relacionado com a história do município e são compartilhados por
seus integrantes. Nos termos eliadianos, o homem religioso atualiza e revisita o tempo mítico,
o tempo primordial, organizando o mundo a sua volta (ELIADE, 2001).
Outro aspecto importante da peregrinação ritual é o fato de ser concebida pelos
romeiros como uma espécie de “rito de passagem”. Ainda que isso não seja dito com palavras,
é possível fazer uma leitura de suas práticas gestuais, indicando que se trata de algo mais que
uma “caminhada”: trata-se de uma experiência de “transformação”, chamado por Eliade de
“transformação ontológica” (ELIADE, 2001, p. 171). Conforme Victor Turner (2005), os ritos
de passagem instauram um processo “liminar”, demarcando o ponto inicial e o ponto de
103
chegada. Por isso, é fundamental compreender a festa como uma performance ritual
construída e experimentada pelo corpo do devoto.
Por conseguinte, a Romaria cumpre uma função social ao formar o que Durkheim
chama de “comunidade moral” (1989, p. 77), integradora de relações que dão sentidos a um
grupo social. Noções como “família”, “igreja”, “comunidade”, “festa”, “festeiros”, “santos”,
evocam uma ideia de coletividade suficiente para se pensar a Romaria como depositária de
um conjunto de valores partilhado pelos romeiros. Os rituais estão presentes na vida do
romeiro, de modo que, constrói um modo de ser e de viver. Tais valores são fundamentais e
estruturam a vida dos romeiros. Neste aspecto reside à noção de solidariedade construída
nesta pesquisa.
A festa possui um sentido especial. A Romaria surgiu como expressão religiosa do
povo que mesmo fora das instituições, carregam em sua memória elementos da tradição do
catolicismo popular. Pode-se afirmar que a Romaria é parte da expressão popular religiosa do
catolicismo popular do município de Franco da Rocha, ocorrendo fora do espaço da Igreja e
sem a presença do clero. Ainda que os leigos tenham passado para uma categoria secundária,
eles possuem um papel importante nas manifestações de caráter religioso, como é o caso da
Romaria de Pirapora. A continuidade demonstra que romeiros buscam manter viva uma
tradição que em termos históricos remontam a 1942, perpassando pelo seu cotidiano; em
termos míticos, a tradição remonta à um tempo primordial, o tempo sagrado.
Ainda foi preciso levar em conta outros aspectos, como a mudança do campo religioso
em Franco Rocha, sugerindo um “declínio” das práticas tradicionais da religião popular. Não
significa que esta tende a desaparecer, mas que passará por transformações num novo
contexto de concorrência com a expansão do pentecostalismo, por exemplo.
O catolicismo romano, que por muito tempo foi hegemônico no Brasil, tem perdido
relativo espaço com o crescimento dos pentecostais. Os romeiros também atribuem o suposto
declínio nos últimos anos à presença dos evangélicos, em crescente expansão no município.
Tal mudança social é instaurada pelo mesmo processo de urbanização, da qual a Romaria foi
testemunha e base. A partir das décadas de 70, 80 e 90, percebem-se claramente os avanços da
modernização capitalista no Brasil e, de modo especial, no sudeste, onde se encontra um
crescimento industrial, comercial e também das igrejas fundamentalmente na vertente
evangélica pentecostal.
104
O processo de urbanização no município, por sua vez, possibilitou a inserção de novas
relações comerciais e religiosas que se desenvolveram nos últimos anos, como por exemplo, o
crescimento dos evangélicos, que tem sido um dos fatores do declínio da tradição das
romarias. Sendo assim, um conjunto de relações antes estruturadas por um típico modelo de
catolicismo popular passa a concorrer com típicos modelos da religiosidade urbana, como já
demonstrado pelo trabalho de Chaves (2011), ao tratar do pentecostalismo num contexto
rural. Estas novas relações sociais e religiosas nascidas na cidade provoca-lhe rupturas,
colocando em tensão a “tradição” e “inovação”.
Dito isso, há necessidade de reconhecer que esta pesquisa não teve qualquer intenção
de esgotar o assunto discorrido. Pelo contrário, esta pesquisa está consciente de que poderia
tratar de outras temáticas, tais como: a presença da religião na esfera pública; o campo
religioso em disputa pelo espaço urbano ou mesmo um comparativo entre as duas tradicionais
romarias em Franco da Rocha, a fim de verificar elementos que as constituem: a Romaria
Pirapora do Bom Jesus e a Romaria Santa Cruz dos Valos; a presença e a influencia
protestante e pentecostal em Franco da Rocha nos últimos anos.
Assim, novas perguntas poderiam ser feitas, sugerindo novas pesquisas, tais como:
qual a relação entre religião popular e a esfera pública? Qual a relação entre a Romaria e o
pentecostalismo? Que relação há entre a configuração do espaço urbano e as diversas
manifestações religiosas? Apesar do declínio, de que modo a Romaria se configura num novo
contexto de concorrência religiosa?
105
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108
ANEXOS
109
ANEXO 1 - ESCRITURA DE DOAÇÃO DE TERRAS PARA A IGREJA – Fonte: Adauri Alves. “Cem anos de Catolicismo em
Franco da Rocha (1908-2008).
110
ANEXO 2 - CERTIDÃO DE PROPRIEDADE DE TERRAS DO JUQUERY – Fonte: Fonte: Adauri Alves. “Cem anos de
Catolicismo em Franco da Rocha (1908-2008).
111
ANEXO 3 - HISTÓRICO DA PRIMEIRA CAPELA DE 1908 – Fonte: Fonte: Adauri Alves. “Cem anos de Catolicismo em Franco
da Rocha (1908-2008).
112
ANEXO 4 - OFICIALIZAÇÃO DA ROMARIA – Fonte: Arquivo Câmara Municipal de Franco da Rocha.