Análise do poema almanjarra

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Leão, Gui Feliciano Pedro Análise do poema Almanjarra, de Osvaldo Alcântara O poema de Osvaldo Alcântara, pseudónimo poético de Baltasar Lopes, tendo sido publicado em 1936, enquadra-se no terceiro período da literatura de Cabo Verde, designado “Regionalistas ou Claridosos”, segundo a proposta de periodização de Manuel Ferreira. Análise estrutural Mais de vinte estrofes de versos irregulares corporizam o poema Almanjarra. As ressonâncias nítidas da oralidade marcam a construção de muitos versos, o vocabulário e o ritmo: “Agora vos vou contar / uma história divertida / dos pescadores da terra / das feiticeiras do mar:” As estrofes estão dispostas em forma de zig zag, facto que tem relação com o movimento de que nos debruçaremos no decurso da análise semântica. As estrofes que começam no interior representam na sua maioria “falas de personagens”. Análise semântica Almanjarra, vocábulo que titula a obra poética em análise, designa uma máquina artesanal movida por tracção animal, usada nos engenhos de moer cana-doce para a produção de melaço.

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Leão, Gui Feliciano Pedro

Análise do poema Almanjarra, de Osvaldo Alcântara

O poema de Osvaldo Alcântara, pseudónimo poético de Baltasar Lopes, tendo sido publicado em

1936, enquadra-se no terceiro período da literatura de Cabo Verde, designado “Regionalistas ou

Claridosos”, segundo a proposta de periodização de Manuel Ferreira.

Análise estrutural

Mais de vinte estrofes de versos irregulares corporizam o poema Almanjarra. As ressonâncias

nítidas da oralidade marcam a construção de muitos versos, o vocabulário e o ritmo: “Agora vos

vou contar / uma história divertida / dos pescadores da terra / das feiticeiras do mar:”

As estrofes estão dispostas em forma de zig zag, facto que tem relação com o movimento de que

nos debruçaremos no decurso da análise semântica.

As estrofes que começam no interior representam na sua maioria “falas de personagens”.

Análise semântica

Almanjarra, vocábulo que titula a obra poética em análise, designa uma máquina artesanal

movida por tracção animal, usada nos engenhos de moer cana-doce para a produção de melaço.

O poema inicia com uma descrição do ambiente que se vive numa área de terra em frente a uma

casa ou fazenda onde “aromas adocicados do melaço/ pontado na chieira dos tachos /Volteiam os

bois na roda intérmina da almanjarra”. Trata-se, portanto, de um ambiente de trabalho em que a

força humana se alia à força dos animais, mais concretamente, dos bois para a produção de

melaço. O emprego recorrente das formas verbais volteiam, vira e volta é revelador da intensa

actividade desenvolvida naquele terreiro.

A estrofe seguinte começa com um sinal de travessão porquanto é uma fala do sujeito poético

formulando um pedido cujo destinatário é o boi: “quero uma noiva bonita / como as sereias do

mar!” – pensamos que se trata de um discurso monológico.

A actividade continua ao mesmo tempo que os bois trazem à memória lembranças do canavial,

na quarta estrofe introduzida pela conjunção aditiva “e”.

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Na estrofe “ai tâmara / ai figo / de Por / tugal” dois frutos, um de coloração avermelhada e outro

de coloração branca e amarelada, respectivamente a tâmara e o figo, sendo o primeiro abundante

em África e o outro, na Europa, são usados com a intenção de realçar a mestiçagem que

caracteriza o povo de Cabo Verde. Esta comparação está reforçada na divisão da palavra

Portugal por dois constituintes.

Antes de ir “banhar nas águas do mar” onde apareceu a sereia no ponto mais elevado da onda do

mar, é tratado por Boi-Douro, no entanto, depois desse encontro, a sua referência é Boi-Dourado

As acções presentes no poema ressaltam o carácter de insegurança que o perpassa, pois, além de

serem verbos que indicam atitudes são entremeados por reticências no final de doze versos,

marcando movimentos de ascensão (por exemplo:”conta”) e de declínio (por exemplo: “quero-

me afogar”) presentes também na trajectória do sujeito poético.

Análise estilística

No verso “aromas adocicados do melaço” há um relacionamento de planos de sensação

diferentes: aroma remete-nos para uma sensação olfactiva e adocicados, para uma sensação

gustativa. Estamos perante uma sinestesia.

O uso recorrente de reticências não só constitui uma convocatória à nossa imaginação, como

também, em certos versos, dá-nos a ideia de que as actividades descritas são contínuas. Vejamos

os seguintes exemplos: “Volteiam os bois na roda intérmina da almanjarra… que faz / e refaz /

continuamente… / ela estava cantando… / continuou voltando, voltando…”

A repetição do vocábulo boi e da expressão da moça-do-mar em “vira boi / volta boi” e “para os

bois irem à casa da moça-do-mar / ouvir a cantiga da moça-do-mar”, isto é, no final de versos

sucessivos, configura a epífora que difere da anáfora apenas pela posição do termo repetido.

A repetição da estrutura “dos pescadores da terra / das feiticeiras do mar” enforma um

paralelismo de construção que é outro recurso estilístico explorado nesta composição.

A sintaxe confusa e o uso de metáforas antitéticas enigmáticas gera um hermetismo que impede,

por exemplo, que se afirme com exactidão quem é o referente de Boi-Dourado.

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É de destacar o facto de o sol ser personificado em “sol, grande calaceiro…”

A temática desta composição poética é o regresso. De entre outros, estes versos dão substância a

esta afirmação: “o sol, grande calaceiro / vai e volta / sempre no mesmo caminho / que faz /e

refaz continuamente…”, “Só Boi-Dourado não foi… / Continuou voltando, voltando…”

O facto de o poema ter sido publicado no ano em que começa a vigorar outro período literário

suscita dúvidas quanto ao seu enquadramento. Pode ser que se enquadre no período anterior, o

Hesperitano (2º período)