Anais Do III Colóquio de Estudos Foucaultianos UECE-LAPEF - UECE
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ReitorJosé Jackson Coelho Sampaio
Diretora do Centro de Humanidades
Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos
Vice-Diretor do Centro de Humanidades
Eduardo Jorge Oliveira Triandópolis
Coordenador do Curso de Filosofia
Eduardo Nobre Braga
Vice-Coordenador do Curso de Filosofia
Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior
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III COLÓQUIO DE ESTUDOS FOUCAULTIANOS:
Ressonâncias contemporâneas de Michel Foucault
Comissão de Organização
Cristiane Maria Marinho (UECE); Kácia Natalia de Barros(UECE); Roberta Liana Damasceno (UFC); Raquel Rocha
(UECE); Osmar Melo (UECE); Nathanael Barbosa(UECE); Emilson Lopes (UECE); Kácia Natalia de Barros
(UECE); Jamilly Fonseca (UFC); Tainan Garcia (UECE);Rafaella Nunes (UECE); Anna Maria Pontes (SEDUC/CE);
Elias Alex Pereira de Sousa (UECE); Paulo VictorFernandes (UNIFOR); Raquel Vasconcelos (UFC);
Dorgival Fernandes (UFCG).
Comissão Científica
Cristiane Maria Marinho (UECE); Diany Mary Falcão(UECE); Dorgival Fernandes (UFCG); Elias F. Veras(UFSC); Raquel Vasconcelos (UFC); Roberta LianaDamasceno (UFC); Ursino Neto (UFC); Ivan Melo
(UNILAB).
Caderno de Programação
Anna Maria Pontes (SEDUC/CE); Elias Alex Pereira deSousa (UECE); Paulo Victor Fernandes (UNIFOR).
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO p. 08
ALGUMAS RESSONÂNCIAS DAS REFLEXÕES DE FOUCAULT NOS ES-TUDOS PÓS-COLONIAIS p. 09
Alessandra Estevam da SilvaUniversidade Federal do Ceará
A COMPLEXIDADE DA CULTURA DE SI p. 22Hedgar Lopes Castro
Universidade Estadual do Ceará
A NOÇÃO DE MODERNIDADE NA OBRA AS PALAVRAS E AS COISAS DEMICHEL FOUCAULT p. 38
Hipácia Rocha LimaUniversidade Estadual do Ceará
A FACE FEMININA DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: ESPAÇOS EVIVÊNCIAS p. 54
Régia Maria Prado PintoUniversidade Estadual do Ceará
A DIMENSÃO POLÍTICA DO ÉTHOS PARRHESIÁSTICO p. 66Rogério Luis da Rocha SeixasUniversidade de Barra Mansa
A RELAÇÃO CORPO-ALMA COMO FORMAÇÃO HUMANA: UM PARA-LELO ENTRE SPINOZA E FOUCAULT p. 80
Carlos Wagner Benevides GomeUniversidade Estadual do Ceará
A TEORIA HUMEANA A LUZ DA EPISTÉMÊ CLÁSSICA DE MICHEL FOU-CAULT p. 92
Eliene Cristina P. FernandesUniversidade Estadual do Rio Grande do Norte
Marcos de Camargo Von ZubenUniversidade Estadual do Rio Grande do Norte
AS RELAÇÕES DE PODER NO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULTp. 103
Janine Honorato de Aquino
Universidade Estadual do Ceará
O CONTROLE E A DISCIPLINA DOS CORPOS: UM DIÁLOGO ENTREFOUCAULT E DELEUZE p. 113
Assis Daniel GomesUniversidade Federal do Ceará
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SUMÁRIO
“DE OUTROS ESPAÇOS”: O LUGAR DA HETEROTOPIA p. 126Raquel Bernardes Campos
Universidade de Brasília
CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT PARA OSESTUDOS QUEEER p. 131
Francisco Valberdan Pinheiro MontenegroUniversidade Federal do Ceará
Pablo Severiano BenevidesUniversidade Federal do Ceará
Heloísa Oliveira do NascimentoUniversidade Federal do Ceará
MICHEL FOUCAULT: UM PENSAMENTO QUE AGE p. 145Emanuel Santos Sasso
Universidade Estadual do Ceará
É O VALE QUE DIZ O CURSO OU SÃO OS DISCURSOS QUE DIZEM O(QUE) VALE? A IDENTIDADE DA ILHA-PÁTRIA (LIMOEIRO DO NORTE) EOS RI(S)OS DE FOUCAULT p. 156
José Wellington de Oliveira MachadoUniversidade Federal do Ceará
GENEALOGIA, HISTÓRIA, DISCURSO: CONTRIBUIÇÕES DE FOUCAULTPARA UM PROJETO CRÍTICO DA CULTURA p. 174
Karliane Macedo Nunes
FORMAÇÃO DISCENTE-DOCENTE E O CUIDADO DE SI: APRENDIZA-GENS EM PESQUISA p. 182
Késsia Fayne Barbosa Cavalcante
Marconildo Soares e Silva
Dorgival Gonçalves FernandesUniversidade de Campina Grande
FOUCAULT, A PARRESIA E O USO CORAJOSO DA PALAVRA p. 189Luiz Celso Pinho
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
O CORPO E SUA RELAÇÃO DE PODER NO UNIVERSO DA CAPOEIRA
p. 201José Olímpio Ferreira NetoUniversidade de Fortaleza
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SUMÁRIO
O PROBLEMA DO CORPO EM BENEDICTUS DE SPINOZA E MICHELFOUCAULT NAS OBRAS ÉTICA E VIGIAR E PUNIR p. 213 Adriele da Costa Silva
Universidade Estadual do Ceará
Henrique Lima da SilvaUniversidade Estadual do Ceará
PRÁTICAS EDUCATIVAS COM AS JUVENTUDES ESCOLARES SOBRESEXUALIDADES: PROBLEMATIZANDO O CUIDADO DO ENFERMEIRONOS ESPAÇOS VIRTUAIS p. 222
Raimundo Augusto Martins TorresUniversidade Estadual do Ceará
Gislene Holanda de FreitasUniversidade Estadual do Ceará
Samuel Ramalho Torres MaiaUniversidade Estadual do Ceará
Sayonara Oliveira TeixeiraUniversidade Estadual do Ceará
REFERÊNCIAS AO TEMPO NA VIDA HUMANA EM KANT E FOUCAULTp. 235
Maria Veralúcia Pessôa PortoUniversidade Estadual do Rio Grande do Norte
Iraquitan de Oliveira CaminhaUniversidade Federal da Paraíba
A SERPENTE BESLICOU O FALO DE ADÃO: SILÊNCIO, DISCIPLINA E OSORGASMOS DOS CORPOS p. 246
Assis Daniel GomesUniversidade Federal do Ceará
UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE A LITERATURA DE AUTOAJUDA:RELAÇÕES DE PODER E AGENCIAMENTO DE SUBJETIVIDADESp. 260
Geilson Fernandes de OliveiraUniversidade Estadual do Rio Grande do Norte
Marcília Luzia Gomes da Costa MendesUniversidade Federal do Rio Grande do Norte
SERVIDÃO E PODER: O PROBLEMA DO CORPO EM BENEDICTUS DESPINOZA E MICHEL FOUCAULT NAS OBRAS ÉTICA E VIGIAR E PUNIR
p. 274Henrique Lima da Silva
Universidade Estadual do Ceará Adriele da Costa Silva
Universidade Estadual do Ceará
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ALGUMAS RESSONÂNCIAS DAS REFLEXÕES DE FOUCAULTNOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS
Alessandra Estevam da Silva Universidade Federal do Ceará
O presente trabalho é fruto de leituras e reflexões desenvolvidas ao longo dos
encontros do Grupo de Estudos em Teoria Pós-Colonial, conduzido pelo professor Luiz
Fábio Silva Paiva, e promovido pelo Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi neste grupo de estudos que a autora do artigo
em questão tomou contato com as obras de Edward Said e Gayatri Spivak, por exemplo,
que, somadas às discussões em sala de aula1 sobre Michel Foucault, e às conversas
extraclasse2 sobre Boaventura de Sousa Santos, contribuíram para pensar a rede de
influências e ligações entre os estudos pós-coloniais e as meditações foucaultianas.
O artigo basilar para a presente proposta é o de Sérgio Costa (2006), intitulado
Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial . O citado texto é uma
referência incontornável quando o assunto é teoria pós-colonial, pois, além de
condensar as principais características dessa linha de pensamento, apresenta um quadro
teórico conciso e esclarecedor de vários autores e obras pós-coloniais. A partir da leitura
de Costa, que evidenciou algumas das influências foucaultianas sobre a perspectiva
póscolonial, especificamente nas análises de Said, Spivak e Hall, estabeleceu-se a tarefa
de aprofundar tais ligações entre o filósofo francês e os teóricos citados, buscando
também localizar outras relações que porventura surgissem durante a leitura dos
mesmos.
Estudante do 6º semestre do curso de graduação em Ciências Sociais da UFC.
1 Discussões feitas no primeiro semestre de 2014, durante as aulas de História da Filosofia IV(Contemporânea I), com o professor Emanuel Germano, e de Subjetividade e Sociedade, com o professorLeonardo Sá. Desnecessário dizer que cabe somente a mim a responsabilidade por falhas ou incoerênciasna análise proposta.
2 Agradeço particularmente ao colega Erberson Rodrigues pelos instigantes diálogos sobre acolonialidade do saber e por ter me apresentado às “epistemologias do Sul” e a Boaventura de Sousa
Santos.
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O resultado foi, por um lado, a constatação de uma rica apropriação
teóricometodológica e analítica, por parte dos estudiosos pós-coloniais, do pensamento
foucaultiano. Por outro lado, notou-se também que alguns pontos da obra de Foucaultsão questionados, confrontados e criticados. De um modo ou de outro, a ideia central é
que a figura de Michel Foucault possui uma importância referencial para os estudos
“desprovincializadores da sociologia”, seja como ferramenta conceitual e metodológica,
seja como abordagem que necessita de revisões. Nesse sentido, prevalece o objetivo de
ressaltar as ressonâncias foucaultianas sobre esse importante conjunto de teorias
denominadas pós-coloniais, que, assim como o autor de Vigiar e Punir, se destacam por
enxergarem no pensamento uma forma de resistência.Sérgio Costa (2006) escreve que os estudos pós-coloniais não constituem uma
matriz única de pensamento, porém, pode-se afirmar que eles convergem no “esforço de
esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência
epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade”. (p. 117) Para Santos
(2010, p. 28), o pós-colonialismo é “um conjunto de correntes teóricas e analíticas (...)
que tem em comum darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte
e o Sul na explicação ou compreensão do mundo contemporâneo”. Cabe destacar que asdenominações Norte e Sul, para Santos, são simbólicas, na medida em que servem para
representar, respectivamente, os grupos de países ditos “desenvolvidos”, que
protagonizaram o imperialismo pelo lado da dominação, e países “não-desenvolvidos”,
subordinados, na maior parte das vezes, à “missão civilizadora”.
Assim, apesar da diversidade de estudos e da própria proposição de explorar as
fronteiras das disciplinas científicas, pode-se afirmar que os estudos pós-coloniais
caracterizam-se principalmente pela crítica ao processo de produção do conhecimentocientífico, inserido no âmbito do discurso colonialista que, se por um lado, encontra-se
(ao menos oficialmente) findo enquanto relação política, por outro, permanece vivo
enquanto relação social, assim como prossegue real em suas consequências práticas
cotidianas, repletas de autoritarismos e discriminações dos mais variados matizes.
As pesquisas e reflexões dessa linha de pensamento são elaboradas por
intelectuais provenientes, em sua maioria, de países ditos “periféricos” – no Sul
simbólico – e que vivem na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Said, por exemplo,
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ao discorrer sobre as questões metodológicas do seu livro Orientalismo, usa a noção
gramsciana de “inventário de si mesmo3”. Tal noção refere-se a algo como fazer
autoavaliação para destacar dados biográficos de relevância para o estudo em questão,tal como o fato de ser palestino, ter passado a infância em colônias britânicas – sendo
assim educado de “modo ocidental” – , e depois ir viver nos Estados Unidos sob o rótulo
de oriental. Spivak, por sua vez, é indiana, da cidade de Calcutá, e se mudou também
para os Estados Unidos, onde fez mestrado e doutorado em literatura comparada. No
texto Pode o subalterno falar?, a autora parte justamente do caso de imolação de viúvas,
na Índia, para tecer suas análises acerca da subalternidade – termo que, veremos mais
adiante, ela prefere usar com cautela.
De toda forma, os estudos pós-coloniais trazem para o debate contemporâneo
sobre (pós) modernidade não só questionamentos radicais sobre a problemática e
conflituosa relação Norte – Sul, mas também colocam em cena novos atores, indivíduos
originários de locais estigmatizados política, social e intelectualmente.
Deste modo, uma das questões mais urgentes para superar a crise paradigmática
e sócio-política atual – partindo do pressuposto de que há tal crise – é saber se a crítica
ao colonialismo, que vigora na atualidade revestido de novos formatos, “pode ser feita a
partir de dentro ou se pressupõe a exterioridade das vítimas, daquelas que só foram
parte da modernidade pela violência, pela exclusão e discriminação que esta lhes
impôs.” (SANTOS, 2010, p. 28). Portanto, nada mais coerente que o centro hegemônico
de produção do conhecimento seja deslocado das nações nortistas para aquelas
marcadas pelo processo de subalternidade – ainda que seja necessário problematizar
também o próprio lugar do intelectual, mesmo aquele que se pretende crítico feroz da
colonialidade do saber.
No que se refere à gênese dos estudos pós-coloniais, Sérgio Costa (2006) mapeia
três escolas de pensamento que, segundo ele, constituem influências significativas para
3Em Cadernos do Cárcere, citado no livro de Said, Gramsci afirma que “o ponto de partida da elaboraçãocrítica é a consciência do que você é realmente, é o „conhece -te a ti mesmo‟, como um produto do
processo histórico até aquele momento, o qual depositou em você uma infinidade de traços, sem deixarum inventário”. Compilar este inventário de si mesmo é o que Said, seguindo os conselhos de Gramsci, se
propõe a fazer.
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essa matriz teórica: o pós-estruturalismo, o pós-modernismo e os estudos culturais. É
interessante notar que a obra de Foucault é por vezes polemicamente classificada ou
como pós-modernista ou pós-estruturalista (destacando-se o fato de que ele rejeitava orótulo de pós-moderno e de estruturalista). Independente da etiqueta conceitual colada
nas reflexões foucaultianas, o importante é considerar a sintonia de ideias e temas de
estudos na qual se encontravam e se encontram o filósofo francês e os autores
póscoloniais.
Após essa breve – e provavelmente insuficiente – apresentação do fio condutor
que une as teorias do pós-colonialismo, pode-se introduzir alguns pontos referentes a
Foucault. Salma Tannus (2004), ao escrever sobre a trajetória dele, afirma que se
costuma dividi-la em três períodos, de acordo com os métodos e temas centrais de
estudos foucaultianos: 1) arqueologia; 2) genealogia; 3) constituição do sujeito ético.
Admitindo que recortes e classificações de trajetórias intelectuais cumprem o papel
menos de apontar descontinuidades e rupturas do que de servir a fins didáticos, e sem
deixar de observar a “unidade dinâmica” – a mesma que Márcio Goldman (2008) teve o
cuidado de explicitar ao discorrer sobre a obra lévi-straussiana – dos escritos
foucaultianos, é interessante constatar que tanto Said quanto Hall apropriaram-se,
principalmente, das reflexões arqueológicas de Foucault, praticamente deixando de lado
os estudos de sua última fase mais subjetiva. A fase genealógica, profundamente
entrelaçada com a da arqueologia, devido à ligação intensa de seus temas – saber e
poder – também aparece fortemente em Said e Hall, embora de modo talvez não tão
direto e explícito quanto a primeira fase da trajetória do professor do Collège de France.
É do período em que formula o método arqueológico – durante o qual o
pensador francês debruça-se sobre os temas concernentes à constituição dos saberes –
que nossos autores pós-coloniais retiram argumentos para embasar suas teorias acerca
do orientalismo e da dicotomia West and Rest . Said (2007), assim como Hall (1996),
fala abertamente da influência de Foucault em sua obra, dizendo utilizar a noção
foucaultiana de discurso, elaborada em Arqueologia do Saber e Vigiar e Punir . Nesse
sentido, Said encaixa no conceito de discurso o orientalismo – a princípio, definido
como um inofensivo e imparcial campo de estudos sobre um lugar geográfico e político
chamado de Oriente, mas que, em seguida, se revela uma intrincada produção de
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saberes e uma complexa (e paradoxalmente caricatural, por vezes demasiado simplista)
“linha de pensamento” colada a visões etnocêntricas e colonialistas.
O orientalismo, segundo Said, possui, basicamente, três sentidos: primeiro, é um
sentido acadêmico, de pesquisa sobre o Oriente; segundo, um modo de pensar “baseado
numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o Oriente (...) e o Ocidente”;
terceiro – e esse é o enfoque principal de Said – o de uma instituição legitimada a lidar
com o Oriente, dominando-o e subjugando-o das mais variadas formas possíveis. De
todo modo, esses três sentidos se encontram imbricados na noção foucaultiana de
discurso, considerado não só como conjunto de enunciados linguísticos, mas também
como prática e como acontecimento – único, provavelmente, mas que está aberto à
repetição, transformação e reativação, assim como se relaciona a enunciados que o
precedem e o seguem. Foucault preocupa-se menos com a inteligibilidade dos discursos
do que com suas regras de formação, as estruturas que permitiram seu surgimento,
autorização, transformação, funcionamento e dissolução. Afinal, o discurso confunde-se
com o próprio conjunto de normas que o regula. Daí a relevância do método
arqueológico, que procura esmiuçar o modo pelo qual o jogo de regras – chamado de
epistéme – regulador do discurso funciona, que instituições se atrelam ao sujeito do
discurso, o que é permitido dizer numa dada época, quem e como pode dizê-lo
(MUCHAIL, 2004, p. 12).
O que a análise de Said acerca do Orientalismo problematiza não é exatamente
se o discurso orientalista corresponde a um Oriente “real”. Não estão sendo postas em
xeque “falsas” representações acerca do Leste, mas o próprio discurso orientalista, a
despeito de qualquer correspondência real ou não dos enunciados sobre o Oriente. O
orientalismo não é uma “visionária fantasia europeia sobre o Oriente, mas um corpo
elaborado de teoria e prática” (SAID, 2007, p. 33) que configurou uma relação de poder,
e permitiu uma hegemonia complexa da Europa, e posteriormente dos Estados Unidos,
sobre o “resto do mundo”. Desse modo, o Oriente é definido em relação ao Ocidente – a
tudo o que lhe falta em comparação com o Ocidente, seja a democracia, a ciência, a
economia liberal, ou uma religião predominantemente católica ou evangélica.
É preciso ressaltar que faz parte da constituição identitária o confronto com a
alteridade – nós só somos nós em relação a um eles que sejam diferentes. Contudo, mais
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do que comparar-se com o outro “oriental”, as potências imperialistas e os eruditos que
se pretendiam neutros em suas pesquisas constroem sobre a relação oriente-ocidente –
além da própria polarização redutora – uma hierarquia na qual a Europa e os EstadosUnidos da América são colocados como superiores, como os pontos de referência de
avanço cultural e político e exemplo a ser seguido.
Percebe-se outro entrelaço foucaultiano em Orientalismo quando Said afirma:
toda a minha ideia consiste em dizer que podemos compreender melhor a persistência e a durabilidade de sistemas hegemônicos saturadores como acultura quando percebemos que suas coerções internas sobre os escritores eos pensadores foram produtivas, e não unilateralmente inibidoras. [grifos do
autor] (2007, p. 43)
Aqui, podemos pensar no que Foucault (1979) afirma, em sua entrevista
“verdade e poder”, sobre o caráter positivo do poder, ou seja, não apenas de reprimir,
repreender, e dizer não (aspecto negativo), mas também de produzir verdades e de
“fazer circular seus efeitos”. Daí a importância de se investigar não só discursos
institucionais e científicos, mas também as próprias práticas e aparatos sociais que
surgem ligados aos saberes e poderes. Afinal, como afirma Roberto Machado (1988),
não há em Foucault uma “teoria geral do poder”, no sentido de uma natureza universal,
uma reificação deste conceito – uma coisa que pode ser concedida ou tomada de algo ou
alguém.
Para Foucault, nada está isento de poder dentro da sociedade: até uma relação
pessoal, entre dois amigos, é permeada de sinuosidades, desníveis, hierarquias – que
não são, de modo algum, absolutas, mas situacionais. A relação entre saber e poder é
estreita, quase que inseparável: mais especificamente, “não há saber neutro” e “todo
saber é político”. Ou seja, o poder, enquanto prática social e rede de interações, está
impregnado em toda a sociedade, produzindo, para a manutenção (ou dissolução) da
ordem vigente, saberes que legitimam todo um aparato estrutural.
É por isso que Sérgio Costa aponta a análise foucaultiana da episteme das
ciências humanas como sendo uma das inspirações animadoras de Said. Afinal, o
Orientalismo é, como o autor palestino afirma, “um sistema para citar obras e autores”.
De fato, em AArqueologia do Saber , Foucault (1997, p. 26) escreve que “as margens de
um livro jamais são nitidamente determinadas; além de sua configuração interna e da
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forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros,
outr os tempos, outras frases: nó em uma rede.” Assim, a produção do conhecimento
dito orientalista se insere num circuito autorreferenciado, em que os saberes novosreafirmam os antigos e vice-versa.
Entretanto, diferentemente de Foucault – que acaba por dar pouca importância
ao texto individual ou ao autor, afirmando que as formações discursivas (disciplinas
científicas, por exemplo) são “anônimas e sem sujeito, ainda que integrem tantas obras
individuais” – , Said, como parte de sua estratégia metodológica, atenta para a análise
minuciosa de textos individuais, “cuja finalidade é revelar a dialética entre o texto
individual ou o escritor e a complexa formação coletiva para a qual sua obra contribui”
(2007, p. 54). Em contraposição, observa-se que Foucault cerca de questionamentos a
noção de obra, destacando que a unidade do conjunto de escritos de um indivíduo é
relativa e variável.
Já no texto The West and the Rest: discourse and power , Stuart Hall se esforça
por mostrar, na base de constituição das ciências sociais, a dicotomia entre Ocidente e o
resto do mundo. A influência foucaultiana em Hall está no uso que este faz dos
conceitos de discurso e formação discursiva. De fato, quando Foucault propõe o método
arqueológico, enfatizando os discursos como fatos e sugerindo a descrição dos
acontecimentos discursivos, ele não está pensando em simplesmente comentar os textos,
nem em fazer uma análise linguística que se prende à lógica interna dos enunciados. Sua
proposta é mais ousada e complexa na medida em que pretende descrever os
acontecimentos discursivos.
Assim, o ponto que se coloca não é a de procurar nos textos um sentido oculto – um “já-dito” que é ao mesmo um “jamais-dito” – supostamente revelado pela análise
linguística; contudo, também não é uma questão de esmiuçar relações externas ao
discurso, determinações puramente sociopolíticas. É, isto sim, algo que se encontra nas
nebulosas fronteiras entre o interno e o externo discursivo; é buscar os aspectos que
“caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se
desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática” (FOUCAULT, 1997, p. 51-52).
Ao discorrer sobre as unidades do discurso, Foucault elenca quatro pontos emtorno dos quais as formações discursivas se articulam: os objetos, os tipos de
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enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas. Quando esses pontos se entrelaçam de
modo a constituir regularidades, correlações, posicionamentos e transformações, tem-se
uma formação discursiva. A pergunta-chave acerca desta noção e de seus quatroaspectos característicos é: que tipo de estruturas permitiu (ou não) o surgimento de
determinado de discurso? Por que apareceram estes e não aqueles enunciados?
A partir desses questionamentos é que entra em cena a noção foucaultiana de
“regime de verdade”, com seus respectivos “efeitos de poder”. Em outras palavras, a
verdade é produzida dentro de um contexto específico e permeado de interesses, e tal
produção é regulada por determinadas regras que autorizam ou excluem certos discursos
e representações.
Hall apropria-se também da diferenciação que Foucault realiza entre discurso e
ideologia. Basicamente, a ideia na qual se baseia a distinção entre essas duas categorias
é a de que o termo ideologia carrega toda uma conotação de falseamento da realidade,
enquanto a noção de discurso explicitaria que os próprios fatos constituintes do
“real”também são meio que criados na prática discursiva. Palestinos e israelenses que
brigam por terra – para usar o exemplo dado por Hall – podem ser considerados ou
“combatentes pela liberdade” ou “terroristas”. O aspecto factual da história – a briga
entre esses povos – é “complementado”, por assim dizer, pelos discursos e rótulos,
constituídos em relações de poder, que os rondam.
Hall se questiona ainda se um discurso pode ser inocente. Convocando Foucault
em seu auxílio, ele responde que é muito imprudente
to reduce discourse to statements that simply mirror the interests of a
particular class. The same discourse can be used by groups with different,even contradictory, class interests. But this does not mean that discourse isideologically neutral or "innocent."4(1996, p. 203)
Assim, se discurso e ideologia diferem quanto aos posicionamentos em relação
ao que seja considerado real (de um ponto vista ontológico), estão bem próximas
quando o assunto é neutralidade – ou melhor, a falta de imparcialidade.
4
(...) “reduzir o discurso a declarações que simplesmente refletem os interesses de uma determinadaclasse. O mesmo discurso pode ser usado por grupos com diferentes, mesmo contraditórios, interesses declasse. Mas isso não quer dizer que o discurso é ideologicamente neutro ou „inocente‟” [tradução minha]
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A análise de Said não perde a sintonia com a de Hall. Em Orientalismo, o crítico
literário palestino investiga não só a relação entre ocidentais e orientais, mas o
surgimento dos próprios conceitos de oriental e ocidental como sendo forjados dentrode uma conjuntura específica, servindo a certos interesses. Said mostra de que modo o
discurso colonialista constrói um oriente místico, exótico (na melhor das hipóteses), ou
terrorista, fundamentalista, degenerado. E que por conta desse exotismo e/ou
degeneração, os chamados orientais – que perdem suas identidades heterogêneas ao
serem colocados sob um mesmo rótulo imposto de fora – precisam ser tutelados por um
ocidente bonzinho, que levará a “democracia”, a “civilização” e o “progresso” a esses
povos. Uma das grandes questões que perpassa Orientalismo gira em torno da frasemarxiana “eles não podem representar a si mesmos, devem ser representados”.
De fato, é a questão da representação da alteridade que está em jogo. O
colonialismo, mais do que oprimir pela força, pela subjugação de territórios, culturas,
línguas ou riquezas materiais, oprime pela representação. Oprime porque não deixa que
os “orientais” falem de si mesmos, sejam eles mesmos (com todas as diferenças entre
eles próprios), sem precisar de mediadores ou representantes. O colonialismo envolve
um processo de dessubjetivação do sujeito. Construindo uma espécie de maniqueísmo
essencialista, onde reinam a figura do bem ocidental e do mal oriental (ou vice-versa),
esquece-se de que o ocidente só existe em relação a um oriente, e esses dois polos, por
sua vez, só existem dentro de um regime de verdade, que submete as representações a
julgamentos normatizantes. É necessário, portanto, que se questione não as atribuições
de valores sobre ocidente e oriente, mas a própria representação da alteridade, os
próprios conceitos que se constituem em meio a lutas políticas e se engessam, fazendo
parecer que existiram desde sempre.
Esse questionamento é feito de modo muito radical por Gayatri Spivak. Se
Edward Said e Stuart Hall se utilizam amplamente das reflexões foucaultianas para
endossar suas respectivas análises acerca da polaridade Ocidente-Oriente, Spivak leva
até o limite o tema da agência dos sujeitos, numa crítica aberta a Deleuze e Foucault,
particularmente. Para a autora, apesar da efervescência e do forte potencial contestador
dos estudos pós-coloniais, que possibilitaram fissuras no pensamento eurocêntrico e
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colonialista, um ponto central não foi problematizado: o das práticas discursivas do
intelectual pós-colonial.
A figura do intelectual é particularmente problemática quando ele ou ela se
propõe a “dar voz” a um suposto subalterno. Nessa proposição aparentemente libertária
encontram-se dois imbróglios que afetam diretamente os estudos sobre a colonialidade:
o primeiro diz respeito à própria noção de sujeito subalterno; o segundo, às dificuldades
que cercam a fala do indivíduo em posição de subalternidade.
Sérgio Costa, ao discorrer sobre a contribuição de Spivak aos estudos
póscoloniais, esclarece que, para a autora em questão,
é ilusória a referência a um sujeito subalterno que pudesse falar. O que elaconstata, valendo-se do exemplo da Índia, é uma heterogeneidade desubalternos, os quais não são possuidores de uma consciência autêntica préou pós-colonial, trata-se de "subjetividades precárias" construídas no marcoda "violência epistêmica" colonial. (2006, p. 120)
Por si só, o debate acerca da noção de sujeito renderia centenas de páginas, e
discutir sobre os emblemas da subjetividade não é o objetivo do presente artigo. Por
isto, enfatizo a partir de agora a problemática do ato de “dar voz” ao subalterno: que
dificuldades estão coladas a tal mentalidade?
Considerando que o mundo social tem um aspecto fortemente narrativo – e,
deste modo, pressupõe o controle da fala – , controlar o emissor e o conteúdo
comunicativo é o principal mecanismo de produção de ordem. Assim, é particularmente
preocupante ouvir de um filósofo ou um cientista social, por exemplo, que estes vão
“dar voz” a grupos marginalizados. Afinal, com a boa vontade, a militância e o
engajamento de intelectuais que não tem medo de posicionar-se diante dos dilemas políticos de seu tempo – pois sabem que tentar manter uma neutralidade já é marcar
posição – vem junto uma espécie de tutela, de mediação que anuvia a subjetividade
denominada subalterna.
Isto porque, nesta perspectiva, a fala emerge como um objeto descolado do
sujeito enunciador, e, sendo tratado como coisa, parece que pode ser simplesmente
concedida ou tomada dos indivíduos. Spivak parte de um outro ponto de vista: o de que,
longe de minimizar os efeitos opressivos da colonialidade, a ideia de “dar voz” ao
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subalterno o mergulha ainda mais na periferia do poder, uma vez que o supõe “mudo” e
que somente a partir da intervenção objetiva da figura do intelectual poderá o indivíduo
marginalizado falar.
Neste âmbito, convém por em relevo uma questão metodológica e
epistemológica acerca do ofício de cientista social. Antes, na tentativa de legitimar a
sociologia e a antropologia comparando-a com a física, a química e a biologia, o
vocabulário usado pelos cientistas sociais chamava de objetos de estudo às pessoas que
constituíam os grupos pesquisados. Atualmente – sejam índios, jovens roqueiros ou
moradores de uma comunidade pobre – , sociólogos, antropólogos e cientistas políticos
conversam com sujeitos da pesquisa, não mais com objetos. Para além da dicotomia
sujeito-objeto, deixar de “dar voz” ao subalterno e, consequentemente, destruir as
fronteiras políticas e epistemológicas que oprimem o dominado, é tratá-lo, em nossas
pesquisas, como interlocutores.
Porque interlocutor é cada um dos indivíduos que fazem parte de um diálogo. E
é isto que cientistas sociais fazem quando se embrenham nas ilhas de um arquipélago na
Melanésia, em um show de rock ou em uma favela: eles dialogam com pessoas,
mantendo uma relação de inevitável reciprocidade. Por isto, é importante não apenas
refletir sobre este elo que se estabelece entre o pesquisador e seu interlocutor, como
também abrir espaço para que estes últimos falem. Ou talvez simplesmente silenciar
alguns instantes nossas tão eloquentes teorizações para tão somente ouvir nossos
interlocutores, dentro de nossos auditórios e salas de aula.
Pode ser que não haja muita diferença entre um intelectual “dar voz” ao outro e
o ato de abrir espaço para que ele fale por si mesmo. Quem sabe não se esteja tratandoaqui de distinções de ordem puramente tautológica? Não se sabe. Mas a ideia principal
ao trazer à tona esta discussão é a de sublinhar a importância de conhecer os jogos de
força que acompanham simples expressões como a de “dar voz” a alguém.
Neste sentido, é interessante fazer uma reflexão acerca do papel do intelectual,
tal como pensou Foucault, em uma entrevista contida no livro Microfísica do Poder .
Costumava-se (e ainda hoje, em certos setores, se costuma) enxergar o intelectual de
esquerda como a figura representativa dos apelos do proletariado, na medida em que ointelectual é tido como o personagem legítimo e esclarecido, assim como os
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trabalhadores seriam a classe legítima, mas não esclarecida, da revolução. Uma certa
universalidade perpassa ambos os grupos, mas somente no intelectual encontrar-se-ia a
verdade sem véus. Os representantes universais da verdade, por excelência, eram osescritores, que acabavam por se distanciar das lutas cotidianas, das articulações entre
teoria e práxis.
Todavia, segundo Foucault, surge depois a figura do intelectual específico, na
área da física (com toda a questão atômica e nuclear da Segunda Grande Guerra, que
trouxe ao mundo uma era de riscos e incertezas generalizados). O intelectual específico
cumpre um papel importante na defasagem teoria-prática, na medida em que, dentro de
suas investigações particulares e locais, consegue também pensar em termos globais.
Assim, acontece uma aproximação da universidade – o lugar por excelência do
intelectual – com as ruas, os movimentos sociais, as demandas de natureza concreta. E
mais, ocorre também uma articulação entre os próprios pontos de saberes específicos,
que, antes separados, passam a refletir as questões sociais e construir conjuntamente
soluções para elas.
Desta forma, o professor e a universidade aparecem como elementos importantes
– mas não exclusivamente centrais – no belicoso processo político que constituem as
relações sociais. Se o intelectual específico corre o risco de se ver limitado dentro de sua
esfera de atuação, ou de colocar-se ao serviço do Estado “contra os interesses das
massas”, ao mesmo tempo, ele ocupa um lugar altamente estratégico em meio às lutas
cotidianas e ideológicas em torno da verdade – e justamente pela sua proximidade
ambígua e tênue com o aparato estatal; e, consequentemente, com todo um dispositivo
de produção do verdadeiro.
Fazer toda essa reflexão ancorada na perspectiva foucaultiana é rica, na medida
em que a ciência, nas sociedades ocidentais, principalmente, gozam de um status
prestigioso e uma legitimidade muito alta. Pensar-nos, enquanto cientistas (ou
filósofos/as, detentores de um certo saber acadêmico, no geral), como estando dentro
dessa teia de relações políticas que produzem saberes é fundamental. É se ver como
apenas mais uma engrenagem da máquina social – uma engrenagem certamente
estratégica, de fato, mas ainda assim uma simples engrenagem, extremamente terrena,
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mundana, carregando em sua superfície todo o pó, suor e sangue que se produz, exala e
derrama nas batalhas pela instauração das verdades.
Afinal, a questão não é a existência de uma verdade, neutra e bonitinha, situada
num plano transcendente ao poder – “a verdade é deste mundo”, diz Foucault – mas a
política geral, de uma dada sociedade, de produção da verdade. Assim, não poderia
deixar de finalizar o presente artigo com uma citação do próprio Foucault acerca da
verité, que, para nosso filósofo, é nada mais que
um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição,
a circulação e o funcionamento dos enunciados. [...]
O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos
ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática
científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível
constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a
'consciência' das pessoas, ou que elas tem na cabeça, mas o regime político,
econômico, institucional, de produção da verdade.
Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder - o que seriaquimérico na medida em que a própria verdade é poder - mas de desvincular
o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais)
no interior das quais ela funciona no momento.
Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou
a ideologia; é a própria verdade. ( Id. Ibid . p. 14. Grifos meus)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Sérgio. Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. RevistaBrasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 21, n. 60, Fev. 2006. pp. 117-134.Disponível em. acesso em 19 Jul. 2014.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997 ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault.2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina GoulartAlmeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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A COMPLEXIDADE DA CULTURA DE SI
Hedgar Lopes CastroUniversidade Estadual do Ceará
RESUMOO presente artigo trata da problematização histórica da subjetivação, feita por MichelFoucault, que desemboca, entre outras questões, na questão da cultura de si, tema
abordado por ele em sua última fase de pesquisas, na qual se dirigiu para o períodoclássico da Roma e Grécia e para os primórdios do cristianismo. A cultura de si é otema central da obra História da Sexualidade: O Cuidado de Si, que não só enfatizauma ética enquanto desenvolvimento do sujeito mas também a sua capacidade derelacionar-se com o outro, relação através da qual funda o cuidado consigo próprio.Como consequencia do cuidado de si, há o desenvolvimento do governo de si, maisenfatizado na questão do matrimônio e da atividade política (mas não apenas nestes),tratados por Foucault na mesma obra. O objetivo do presente artigo, portanto, é,
primeiro, rever o que foi estudado e utilizado por Foucault, tendo em vista o período daAntiguidade, do helenismo, do cristianismo e da Roma imperial, para que elecompusesse as suas problematizações éticas genealogicamente; segundo, verificar como
o imperativo ético e político do sujeito foi se formando, mediante o permanente cuidadoe governo de si, nas práticas conjugais e políticas.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura de si. Ética. Cuidado de si. Poder. Governo de si.
INTRODUÇÃO
O estudo que se segue tratará do pensamento tardio do filósofo francês Michel
Foucault. As obras centrais abordadas serão História da Sexalidade II: O Uso dos
Prazeres e História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. Do volume II, apenas a
introdução usei, resumidamente, para lançar as temáticas e abordagens que serão
tratadas nos próximos tópicos. Do volume III, foi enfatizada a arte de o sujeito estilizar-
se a si mesmo e sua vida (o cuidado de si, portanto); a economica instituída e
estabelecida no governo doméstico; e a atividade política, sendo apreendida de forma a
ser complexada e sempre produzida pelos regimes de si. É importante atentar para o fato
de que a sexualidade é fundamental porque é o primeiro campo no qual o indivíduo
grego antigo relaciona-se consigo. Os temas centrais, então, que permitem a Foucaultconceber os traços da ideia da cultura do cuidado de si, são: a genealogia da questão da
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sexualidade, em torno da cultura greco-romana antiga e do cristianismo - moralmente
observada -, e a ética do indivíduo sendo constituída historicamente - focalizada no
poder que ele desenvolve uma vez que vive livremente.
Foucault quis fazer um paralelo entre as culturas antigas e a moderna,
objetivando observar o quanto havia de esforço e cuidado do homem enquanto ser
moral e ético. Compor uma história da subjetividade e da produção do sujeito são as
suas maiores preocupações nos dois volumes das obras que servirão de base para o
presente trabalho; tais produções são mormente sinalizadas pelas práticas de si em
constante e permanente movimento. Obviamente, a sua forma de filosofiar não está em
meramente veicular fatos e perspectivas históricas, mas em fazer disso problematização:
como a relação consigo mesmo do sujeito adquiriu o caráter de liberdade e de estética
propriamente ditos em vida, investindo em seu próprio poder e não sendo subalternado
nem orientado por leis e codificações heterônomas? É uma problematização que vale
tanto para o sujeito individualmente como para o sujeito na relação com o outro. Trata-
se, portanto, de saber como ser sujeito dos próprios prazeres, das relações pessoais e
sociais que estabelece, na medida em que se instaura a cultura do sujeito que cuida de si
permanentemente.
1 – Preâmbulo da ética: o Uso dos Prazeres
Foucault, em seu livro História da Sexualidade 2: O Uso dos Prazeres,
discorreu sobre a história da sexualidade de forma singular, sem desconsiderar a relação
entre sujeito e desejo sexuais, salientando “a formação dos saberes que a ela se referem,
os sistemas de poder que regulam sua prática e as formas pelas quais os indivíduos
podem e devem se reconhecer como sujeito dessa sexualidade” (FOUCAULT, 1984, p.
10). Pesquisou o modo pelo qual o homem foi constituindo-se como sujeito do seu
desejo e, portanto, de desejo sexual. Para isso, precisou fazer uma história
genealogicamente, utilizando-se do artifício dos jogos da verdade, “através dos quais o
ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser
pensado” (FOUCAULT, 1984, p. 12). Mas também a sua pesquisa era destinada a
problematizar como se produziu diversas formas de subjetividade humana e as relações
de poder que nelas vigiam; como, então, era praticado o cuidado de si em cada uma
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delas? Todas eram inseridas em um contexto social repleto de complexidades e
desdobramentos, tanto sociais mesmo políticas: o cuidado de si também implicava e era
direcionado ao cuidado com os outros.
Foucault estabelece qual a sua intenção ao fazer uma história do pensamento,
não dos comportamentos ou das representações; trata-se, então, de “(…) definir as
condições nas quais o ser humano „problematiza‟ o que ele é, e o mundo no qual vive”
(FOUCAULT, 1984, p.14). Os indivíduos devem problematizar-se a ponto de
exercerem as “artes da existência” ou as “técnicas de si”: a transformação estética que
atina para a singularidade que há em cada um e que vai além da mera assimilação de
regras de conduta; são elas as “práticas de si”, práticas a partir das quais se formam as
problematizações do sujeito, tais como o seu desprendimento de si: constante
desprendimento daquilo que se é, sem apego a pensar unicamente do mesmo modo no
decorrer do tempo, seja no passado, seja no presente, seja no futuro. Isso remete à
“estética da existência” do sujeito, primeiramente desenvolvidaa na Antiguidade grega.
Foucault aborda, em seguida, a moral cristã frente à prática da sexualidade,
contrapondo esta moral às concepções morais da Antiguidade grega: na primeira,impunha-se proibições, o medo e abstenções, que geravam males ou conduziam à morte
os indivíduos; na segunda, havia diversas temáticas a pensar, que se resumiam em “(…)
austeridade sexual em torno e a propósito da vida do corpo, da instituição do casamento,
das relações entre homens e da existência da sabedoria” (FOUCAULT, 1984, p. 23, 24).
Essas foram as temáticas de problematizações que se mantiveram através dos tempos,
feitas de diferentes formas, sobre a moral (a sua ótica) frente à questão da sexualidade.
Mas Foucault ressalta que, na Antiguidade grega, a moral foi criada e endereçada aoshomens para dar forma às condutas masculinas, para que eles constituíssem o direito, o
poder, a autoridade e a liberdade que lhe cabiam na prática. É essa a “elaboração e
estilização de uma atividade no exercício de seu poder e de sua liberdade”.
(FOUCAULT, 1984, p. 25). Com base nisso, Foucault conclui que era preciso buscar,
na questão da sexualidade, o que a levou a ser moralizada de modo a interditar condutas
humanas: a problematização intensa da prática sexual, em seus mais variados aspectos,
seria fundamntal para isso.
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A ética é definida de forma mais precisa não quando se analisa códigos, valores
e interdições morais específica e isoladamente, pois a ética implica uma relação do
sujeito sobre si mesmo, quando executa as práticas de si para se assegurar frente àsdiversas formas de subjetivação que pode produzir. Dito de outro modo, o sujeito se
produz ao mesmo tempo em que produz a sua própria subjetividade. Define assim a
ética Foucault: “(…) maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como
sujeitos da conduta moral (…), para a reflexão sobre si, para o conhecimento, o exame,
a decifração de si por si mesmo, as transformações que se procura efetuar sobre si”
(FOUCAULT, 1984, p. 29). Essa concepção ética é diferente da concepção cristã de
moral, que se centra no código de conduta, em vista do que é proibido e permitido. Aocontrário da encontrada na Antiguidade grega, que era orientada para as práticas de si,
ou seja, para a atitude que validava o respeito às condutas tomadas. Sobre isso, salienta
Foucault: “a ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos
apetites e pelos prazeres, e (…) atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo
pleno gozo de si ou pela soberania de si sobre si mesmo”. (FOUCAULT, 1984, p. 30).
2 – A cultura de si individualmente
No início do capítulo dedicado à cultura de si, na História da Sexualidade III: O
Cuidado de Si, Foucault se remete à austeridade sexual novamente, em vista de como
ela era concebida nos primeiros séculos da filosofia grega e da era cristã. Contrastando
interdições morais com base nos códigos e a reflexão sobre si, ele diz que naquele
tempo o sentido das práticas humanas promovia “(…) uma intensificação da relação
consigo pela qual o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos”. (FOUCAULT,
1985, p. 47). Isso é a constituição de um individualismo, no mundo helenístico e na
Roma antiga; um individualismo que foi possível pelo enfraquecimento político e social
àquela época. A filosofia, então, baseou a vida dos indivíduos, as suas condutas. De
acordo com esse individualismo, a Foucault foi conveniente destacar três de seus
aspectos: a atitude individualista, determinada pelo valor e pela independência que tem
o sujeito em relação a si e aos outros; a valorização da vida privada, englobando a
moradia, a família e o matrimônio; e as relações complexas de poder de si para consigo,
na prática política.
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A partir daí, Foucault dedica-se mais propriamente à cultura de si, a começar por
expor como ela se define na Grécia antiga: “pelo fato de que a arte da existência (…) se
encontra dominada pelo princípio segundo o qual é preciso „ter cuidados consigo‟; éesse principio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu
desenvolvimento e organiza a sua prática (FOUCAULT, 1985, p. 49). Cuidar da própria
alma, como queria Sócrates, em algum sentido correponde ao cuidado de si que
Foucault concebeu; e, ademais, ao passar do tempo, além de ter adquirido diversas
significações filosóficas, o cuidado de si abrange atitudes, maneiras de comportar-se,
formas de viver, procedimentos, práticas sociais e interindividuais. Até as instituições
foram elaboradas a partir do saber e do imperativo do cuidado de si, uma arte de viver; oque proporcionou um desenvolvimento cujo ápice deu-se nos primeiros séculos da
época imperial de Roma. Quanto a isso, um dos exemplos históricos da filosofia que é
dado por Foucault é o dos epicuristas, na Carta a Meneceu, a qual “(…) dava acesso ao
princípio de que a filosofia devia ser considerada como exercício permanente dos
cuidados consigo (FOUCAULT, 1985, p. 51). É, entretanto, em Epicteto que Foucault
aponta a maior filosofia antiga sobre o cuidado de si, o qual faz uma contraposição entre
os animais e a razão humana: nos animais, a vida já está “determinada” ou disposta enão há, portanto, preocupação com o cuidado de si; enquanto que, ao ser humano, Zeus
deu o privilégio e o dever de estabelecer, em vida, o cuidado de si, possibilitado pela
sua razão; esta não só possibilitando a liberdade, como também servindo-se de outras
faculdades, ou tomando-se a si própria como objeto de estudo.
É preciso lembrar que o cuidado de si não pressupõe rigidez absoluta: “também
podem ser interrompidas as atividades ordinárias de vez em vez para se retirar e pensar,
recolher o próprio passado, analisar a vida transcorrida e se familiarizar com os preceitos que conduzam para uma vida racional” (BATTISTI, 2010, p. 401). Porque o
cuidado de si não é apenas uma preocupação específica e geral, mas um conjunto de
preocupações: um labor em qualquer atividade relacionada tanto consigo como com os
outros; inclusive, é assim que se define, para os gregos, a epimeleia heautou. Foucault
atenta para o modo como dedicavam o tempo os gregos e romanos, como os
pitagóricos, Sêneca e Marco Aurélio, alegando que ele: “é povoado por exercícios, por
tarefas, atividades diversas. (…) Existem cuidados com o corpo, os regimes da saúde, osexercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida como possível, das
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necessidades.” (FOUCAULT, 1985, p. 56). Foucault também lembra que essa
dedicação não é solitária: ela é uma atividade que cosntitui, verdadeiramente, uma
prática social e um desemprendimento de si mesmo sem a suposição de que o sujeitotorne-se solipsista, pois essa concepção direciona-se principalmente ao sujeito como
comunitariamente empregado, a exemplo do modo escolar como Epicteto ensinava. E
mais: havia toda uma aplicação de si em diversos âmbitos da vida em comunidade,
como relações de parentesco, de amizade e de obrigação. O cuidado de si, então, passa a
ser um intensificador das relações sociais, “um „serviço de alma‟ que comporta a
possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações
recíprocas” (FOUCAULT, 1985, p. 59).
A filosofia grega e romana antigas detinham-se às perturbações do corpo e da
alma de modo a combatê-las e, para isso, era fundamental adquirir um equilíbrio pleno
no homem. Sêneca, nos estóicos, foi um dos maiores a filosofar a respeito: afecções e
doenças de diversos tipos eram males a serem curados se não dispusessem o homem à
liberdade da alma e à saúde do corpo; assim se formava uma medicina do corpo e uma
terapêutica da alma. Foucault explica, a esse propósito: “a melhoria, o aperfeiçoamento
da alma que se busca na filosofia, a paideia que esta deve assegurar, é atingida cada vez
mais com as cores médicas. Formar-se e cuidar-se são atividades solidárias”.
(FOUCAULT, 1985, p. 60)..
Toda essa cultura de si, no entanto, não se voltava à preocupação com o vigor
físico através da ginástica, o treinamento esportivo e o militar que capacitavam ao
homem ser livre na Grécia antiga. Diferentemente, a preocupação central é com a
prática de intercâmbio entre os males físicos e anímicos. Deve-se, portanto, achar o que
de mal há na alma que pode ser curado pelo corpo e vice-versa. Não pode haver
prevalecença nem demínio de um sobre o outro. Em outras palavras, “a prática de si
implica que o sujeito se constitua face a si próprio, não como um simples indivíduo
imperfeito, ignorante (…), mas sim como um indivíduo que sofre de certos males e que
deve fazê-los cuidar (…)”. (FOUCAULT, 1985, p. 62, 63). Isso, lembra Foucault ao
falar de Plutarco, faz-se mais ainda importante uma vez que os males da alma são
imperceptíveis pelos sentidos do corpo, causando a cegueira do indivíduo ao viver, por
exemplo, de modo colérico na certeza de estar sendo corajoso. O conhecimento de si
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evitaria esse tipo de equívoco; mas ele também é útil para detectar aquilo que é
supérfluo na alma e no corpo e, a partir daí, obter uma profunda noção do que é
dominante e dominado no homem; elas são, portanto, uma provação, “(…) uma formade medir e de confirmar a independência de que se é capaz a respeito de tudo aquilo que
é indispensável e essencial”. (FOUCAULT, 1985, p. 64).
Foucault prossegue sua análise do cuidado de si fazendo uma distinção de
exercícios de abstinência nos estóicos e epicuristas. Para os estóicos, o homem
descobriria a facilidade de não ser apegado às provações individuais (como hábitos) e
sociais (como reputação); ressaltavam, então, que o indispensável não passa por nada
disso. Para os epicuristas, o homem descobriria o prazer mais pleno do que o prazer
sentido com coisas supérfluas, com isso permitindo vislumbrar o quanto a privação
destas podiam fazê-lo sofrer. O exame da consciência, em consequência disso, é
fundamental; ele é feito mormente por Sêneca, que “(…) evoca tanto o papel de um juiz
como a atividade de um inspetor ou a de um dono de casa verificando suas contas”
(FOUCAULT, 1985, p. 66). Trata-se de o indivíduo rever e analisar o que foi praticado
por ele durante o dia, apreciando suas missões realizadas e verificando quais regras de
conduta foram escolhidas e convenientes. Porque uma atitude constante em relação a si
próprio é necessária, tanto quanto o trabalho do pensamento sobre si próprio; é Epicteto
quem se sobressai na filosofia acerca desse aspecto, basicamente buscando que o
homem não meramente estabeleça a representação, por exemplo, de acontecimentos em
sua vida tomando-os sem quaisquer filtragens, mas “(…) no consentimento que convém
ou não lhe dar” (FOUCAULT, 1985, p. 68). Assim, o controle da mente deve ser focado
no que não depende do homem, pois “o controle é uma prova de poder e uma garantia
de liberdade: uma forma de assegurar-se permanentemente de que não nos ligaremos aoque não depende do nosso domínio” (FOUCAULT, 1985, p. 68, 69). .
Foucault, afinal, faz uma observação que assim se sintetiza: o objetivo das
práticas de si pode ser apresentado pelo bem geral da conversão de si, sendo este uma
modificação de atividade sem a interrupção ou a centralização nelas, ressaltando que o
sujeito deve tanto realizar as atividades como encontrar os fins dela na relação de si para
consigo. Tal é a conversão de si. Ela, de um lado, redireciona o olhar do sujeito frente às
suas atividades cotidianas e, de outro, é uma trajetória que lhe faz voltar-se a si próprio
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e o impede de ser assujeitado e dependente de coisas e fenômenos exteriores. Assim se
constitui uma ética do domínio, do governo. E acrescenta Foucault: “mas através dessa
forma, antes de mais nada política e jurídica, a relação consigo é também definida comouma relação concreta que permite gozar de si (…)” (FOUCAULT, 1985, p. 70). A
existencia do gozo permite concluir que as perturbações do corpo e da alma estão
ausentes mediante as práticas de si; não que elas não existam ou não vão existir durante
a vida, porém que a atenção a elas não são predominantes nem devem sê-lo. A cultura
de si, então, não implica a maneira como o sujeito deve constituir a sua moral, mas
como ele deve constituir-se enquanto sujeito moral.
Em suma, o prazer sexual é uma força, contra a qual o sujeito deve lutar, sendo
ele, no entanto, fraco e fugidio diante dela; a natureza e a razão definem como, ética e
esteticamente, o sujeito está em consonância com esse status. O sujeito, no entanto,
deve entrar nessa relação trabalhando-se a si mesmo, pondo-se à prova e examinando-
se, através de seu permanente conhecimento sobre si mesmo; deve lutar para governar a
si mesmo, de modo a estabelecer em si uma relação agonística: é um embate entre seus
desejos e ambições, que se dirigem em sentido inverso de sua insistente liberdade. De
tal modo que a constituição do sujeito ético ou do governo de si é, através de práticas
livres, moderar as suas ambições e os seus desejos. É nisso que entra a estética da
existência; é com isso que ela se estabelece efetivamente. E, arremata Foucault, “(…) o
ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do
indivíduo sobre si mesmo; mas essa soberania amplia-se numa experiência (…) de um
gozo sem desejo e sem perturbação” (FOUCAULT, 1985, p. 72).
3 – A cultura de si matrimonialmente
O matrimônio é classicamente entendido como uma prática afogada por regras e
condutas morais a serem seguidas. Quanto a isto, a moral cristã e a dos gregos antigos
diferenciavam-se, mas Foucault queria vislumbrar, nessas morais, o esforço feito para
manter e aperfeiçoar as práticas de si privilegiadamente; porque, posto que a conduta
moral frente à sexualidade mudou ao longo dos tempos, trata-se de saber como isso se
transformou. O que é enfocado no matrimônio, um exemplo histórico de que houve um
deslocamento da sua ordenação por instâncias públicas para dar lugar à recíproca
observância do casal a constituir, por exemplo, respeito e fidelidade pelo outro como
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exercícios das práticas de si, transformando, portanto, de um lado, o casamento em
instância de gestão doméstica (economia) sem quaisquer intervenções externas; de
outro, a relação matrimonial, que então passava a ser um intenso modo de vida.
Foucault aponta que a instituição do matrimônio, na Grécia e Roma antigas, não
exigia a intervenção dos poderes públicos, mas estabelecia chefes de família: o pai da
mulher que se casaria e o seu futuro marido. “Progressivamente o casamento, no mundo
helenístico, toma lugar no interior da esfera pública” (FOUCAULT, 1985, p. 80). Na
Grécia dos séculos I e II, toda a sociedade sancionava o casamento, e o mesmo pode ser
constatado na Roma da mesma época. De um lado, com o passar do tempo, mais e mais
medidas legislativas e um certo domínio público se apoderaram da instituição
matrimonial. De outro, expondo algumas razões pelas quais era interessante o
casamento, Foucault enumera algumas de suas vantagens: “transmissão de nome,
constituição de herdeiros, organização de um sistema de alianças, junção de fortunas”
(FOUCAULT, 1985, p. 81). Eram estes os objetivos privados que determinavam o
indivíduo a casar-se.
Todavia, o casamento tornou-se, em vários aspectos, uma escolha mais livre, na
medida em que bastava a aproximação com o príncipe para auferir o status, a fortuna, o
sucesso na carreira civil e política, etc. No caso das classes mais pobres, o casamento
era associado à ajuda e ao compartilhamento mútuo entre as pessoas, o que trazia um
apoio moral. Todavia a desigualdade ainda permanece, mesmo que o casamento
promovesse certa união. É preciso acentuar, com isso, que “(…) o status da mulher
ganhou em independência com relação ao que era na era clássica – e sobretudo com
relação ao que era na época clássica”. (FOUCAULT, 1985, p. 82). Pois o homem não
tinha mais tanta importância política e reforçava seu papel econômico e independência
jurídica. Assim, o que havia antes (o fato de que o pai da mulher que se casaria e o seu
futuro marido eram os chefes de família que se instituíam) tende a desaparecer, assim
como o dote e a parte da herança da mulher passam a ser-lhe dados devidamente.
Nos séculos IV ou III a.C., os casamentos implicavam direitos e deveres a serem
seguidos, que não eram tão rigidamente seguidos séculos mais tarde no que concerne ao
marido, sobretudo o seu dever de prover a mulher e de estar interditado a ter outra
mulher. Assim eram os contratos a partir de então, nos quais passaria a haver um
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compartilhamento de direitos e deveres que visava à estabilidade e à regulação interna
do matrimônio; desta forma os indivíduos casados eram inscritos nessa realidade
matrimonial. Explica Foucault, quanto à prática matrimonial, que “ela busca suascauções do lado da autoridade pública; e torna-se algo cada vez mais importante na vida
privada” (FOUCAULT, 1985, p. 84), não havendo mais, por isso, os objetivos
econômicos e sociais que antes havia, pois se fundava como um corpo apartado de
outras relações sociais..
Para esclarecer o que é o casamento, o que ele abarca e introduz no campo da
subjetividade e do cuidado de si, Foucault diz:
(…) por casamento não se deve entender somente a instituição útil para afamília ou para a cidade, nem a atividade doméstica que se desenrola noquadro e segundo as regras de uma boa casa, mas sim o „estado‟ decasamento como forma de vida, existência compartilhada, vínculo pessoal e
posição respectiva dos parceiros nessa relação. (FOUCAULT, 1985, p. 84)
No casamento, a autoridade do homem sobre a mulher, que era o seu status,
permitia um respeito e uma afeição desenvolvidos na relação com ela; permitiam, ainda,
segundo à literatura da época imperial, uma ética segundo a qual o homem instigava-se
a conhecer a natureza do vínculo com sua mulher. Neste campo, construía-se uma
afeição e um desejo físico inestimáveis, que podiam evoluir para uma dependência. Em
paralelo a isso, Foucault considera de suma importância ressaltar, analisando uma carta
do romano Plínio, o Jovem, que, “(…) entre a vida matrimonial e atividade pública,
Plínio não coloca um princípio comum que unifica o governo da casa e a autoridade
sobre os outros, mas um jogo complexo de substituição e de compensação (…)”.
(FOUCAULT, 1985, p. 86). Essa ressalva vem a corroborar com a conclusão de que
textos como esse mostram o casamento como não sendo nem exclusiva nemessencialmente voltado ao cuidado e ao comando do oikos, da casa, mas a como se
relacionam duas pessoas que se dispuseram ao matrimònio. O papel de cada um deve
ser o mais observado, sobretudo o do esposo como sendo regulador de sua conduta em
relação à sua esposa. Estabelece-se, como já foi dito, uma reciprocidade de afetos que
pode levar à dependência mútua; uma dependência que se funda e se continua com o
cuidado de si.
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É importante notar o seguinte a respeito do que traz Foucault: “quando o
pensador francês começa a aprofundar e a descrever essa „estética da existência‟,
percebe ele que não existe intervenção do poder público que, coercitivamente, meimpulsione a prestar atenção à minha conduta” (BATTISTI, 2010, p. 401). Isto é, a
esposa não é mais vista pelo esposo como um indivíduo que o poder público orienta a
zelar e não desrespeitar, mas como indivíduo fundamental com quem se relacionar para
fundar e manter a constituição e gestão da casa onde vivem (economia). Questiona-se,
com isso, o papel de cada um na conjugalidade; sem tal observância, do ponto de vista
filosófico, pode-se encetar a problematização que Foucault quer fazer, qual seja, a
existência de um deslocamento de deveres e de condutas para a reciprocidade do casal,instigando à fidelidade, à afetação e à valorização do outro acima de quaisquer regras e
coerções externas. O casal, nesse sentido, é fruto da constituição humana dentro da
sociedade, assim constituindo uma vida unida e em comum, estabelecendo a estética da
existência. Assim, o papel do homem é inflexionado, sobretudo no que tange à sua
condição de sujeito moral. Não se pode, contudo, entender a função do homem como
uma função meramente de um senhor; “é que a sexualidade, tal como é vivida pelos
gregos, encarna na fêmea o elemento receptivo da força, e no macho o elemento ativoou espontâneo (…), [isto] para poder governar a esposa e para que ela própria atinja
uma boa receptividade”. (DELEUZE, 2005, p. 109, 110)
4 – A cultura de si politicamente
Foucault relata que, a partir do século III a.C., há, aparentemente, uma evasão e
um retraimento dos indivíduos para uma mais decadente vida cívica, devido ao declínio
das cidades-Estado. Uma perda de autonomia, com isso, deu-se. Surgiram, então,
monarquias helenísticas e o Império romano, embora não fosse apenas por causa disso
que a autonomia na época helenística e romana tivesse sido perdida a partir desse
século, tanto que tudo que constitui a vida na cidade e as atividades políticas
permaneceram. É apropriado pensar, a partir daí, não numa redução ou anulação delas,
mas "(...) na organização de um espaço complexo: muito mais vasto, muito mais
descontínuo, muito menos fechado do que poderia sê-lo o espaço das pequenas cidades-
Estado (...)" (FOUCAULT, 1985, p. 89). Foucault, assim, expõe que o poder passa a ter
múltiplos focos, e por várias dimensões e transações eles se desenvolvem.
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A questão do poder aqui é determinante: foi ele, o seu exercício, que determinou
as influências, a partir da reflexão moral que passou a haver mais acentuadamente, no
papel que os imperadores ou governantes ocupam no jogo político, além da hierarquiaque regia a cidade e os indivíduos. Para se compreender qual o interesse dessas elites
pela ética pessoal, pela vida privada baseada nos prazeres, explica Foucault que "é
preciso (...) ver aí a procura de uma nova maneira de refletir a relação que convém ter
com o próprio status, com as próprias funções, as próprias atividades e obrigações".
(FOUCAULT, 1985, p. 91). Assim, por um lado, a constituição ética de si torna-se mais
problemática para o sujeito da sociedade romana e helenística, pois estar determinado
pela hierarquia do status era inevitável. Havendo que se relacionar sob a sua lógica, osujeito tinha uma vida política na qual procurava "(...) adequar-se tanto quanto possível
ao próprio status por meio de todo um conjunto de signos e marcas que dizem respeito à
atitude corporal, ao vestuário e ao habitat (...)" (FOUCAULT, 1985, p. 92). Por outro
lado, problematiza-se a própria identidade do sujeito: exercer suas próprias atividades
sem que marcas e signos externos se lhe impunham soberanamente; uma relação
adequada atentando-se para si mesmo cívica e politicamente: eis a complexidade da
cultura de si. Ela define formas e condições da possibilidade, aceitabilidade enecessidade de uma ação política. Há fundamentais problematizações políticas,
portanto, que se seguem a isso.
A primeira é a problematização da relativização, no sentido, em primeiro lugar,
de fazer sempre da vontade e escolha livre e pessoal o que norteia o campo público e o
político, sendo estes tanto uma vida como uma prática; e, em segundo lugar, do uso do
julgamento e da razão necessários frente a quaisquer problemas aí encontrados. É
Plutarco quem traz esses dois fundamentos, segundo Foucault, que conclui: “(…) o que
constitui o indivíduo enquanto ator político, não é – ou não somente – o seu status; é, no
quadro geral definido por sua origem e sua posição, um ato pessoal”. (FOUCAULT,
1985, p. 94). O que torna essa preponderância da vontade e do ato pessoais ainda mais
complexa é o fato de que sempre vai haver um governante e um governado: é uma
rotação permanente, de acordo com a qual é impossível não ser um sem ser o outro
simultaneamente. Assim, não é aceitável ser subordinado a uma administração superior
como se não houvesse participação nela do indivíduo, tendo prazeres e lazer, por
exemplo, apenas quando o governo lhe permite: se o indivíduo exerce a política, nada
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disso ocorre e, ao contrário, entra-se nas relações de poder e modifica-se suas regras e
limites livremente.
A segunda é a problematização da atividade política e do ator moral. Na Grécia
antiga, a cidade só era bem governada se seus chefes fossem virtuosos. Isto se mantém
na época imperial, mas por razões diferentes: “na difícil arte de governar, no meio de
tantas ciladas, o governante terá que se guiar por sua razão pessoal: é sabendo se
conduzir bem que ele saberá conduzir, como convém, aos outros”. (FOUCAULT, 1985,
p. 95). Pois a mesma razão que governa a si próprio é a que governa os outros. Sendo
este governo uma arte, Foucault exprime que a política, que se faz na cidade e constitui
as leis desta, manifesta-se nos governantes que sabiamente equilibram suas paixões
tanto como na maneira pela qual a sua autoridade é exercida e as suas decisões são
tomadas. É com base nesse princípio, o do governo de si, que se desenvolve o ethos do
indivíduo: A temperança, por exemplo, que propiciava o equilíbrio da alma e as
relações de amizades sem as inconstâncias da paixão, era uma prova de que o indivíduo
estabelecia a arte de bastar-se a si mesmo sem que suas paixões o conduzissem: “toda
uma elaboração de si por si é necessária para essas tarefas que serão realizadas tanto
melhor na medida em que não esteja identificado de modo ostentatório com as marcas
do poder”. (FOUCAULT, 1985, p. 97). Em suma, as atividades a que Foucault alude
são relacionadas ao labor político e dirigidas tanto a governantes como a governados,
mas cujo princípio é a responsabilidade; uma responsabilidade que não depende de
status e que faz o indivíduo desenvolver e exercer um trabalho ético de si sobre si.
A terceira problematização é a do destino pessoal como atividade política. Mais
precisamente, trata-se da fortuna, mediante a qual era inevitável que a rede complexa de
poder oferecesesse tanto favores e benefícios quanto intrigas e dissabores a quem
articula e detém o poder. Como, portanto, é instável o exercício do poder, convém,
segundo Foucault, ter claro que
o que se é, e com o que é preciso ocupar-se enquanto finalidade última, é um princípio que é singular em sua manifestação em cada um, mas universal pelaforma em que ele aparece em todos, e também coletivo pelo vínculo decomunidade que ele estabelece entre os indivíduos. (FOUCAULT, 1985, p.99, 100).
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Nos estóicos, isso se define como princípio divino sempre presente na razão
humana, princípio que cancela a possibilidade de haver distinção entre um liberto e um
escravo. Tal é a forma como o sujeito moral deve participar das atividades sociais,cívicas e políticas, a elaborar uma ética não apenas no âmbito delas mas no percurso e
na realização delas.
CONCLUSÃO
A simples exposição do que acontecia e de como se constituía a sexualidade na
Grécia e na Roma, sob o aspecto da moralidade, não era, certamente, o intuito de
Foucault. Ele queria, na verdade, ter um parâmetro de como o ser humano vivia e hojevive; o seu parâmetro era, sobretudo, a história de transformações no modo como o
homem se compôs em cada século na Antiguidade. Suas problematizações sobre o
cuidado de si e a estética da existência eram a sua forma de fazê-lo, buscando expor
nuances sobre os contextos sociais e matrimoniais para saber com mais propriedade o
que limitava o homem moralmente a ser meramente assujeitado por um poder
heterônomo e como ele empreendeu alguma inflexão de rumo para instituir o poder e,
portanto, a liberdade em sua vida e forma de viver, seja consigo mesmo, seja na
intensidade de uma relação conjugal, seja na complexidade de uma atividade política.
Assim, um questionamento sempre presente, embora de modo subjacente,
poderia servir de problematização ao longo do que foi aqui abordado, qual seja, o de
saber por que razãoo sujeito permanece constituindo-se sob regras de condutas
moralmente estabelecidas e válidas socialmente se a ética como cuidado de si dirige-se
para aperfeiçoar permanentemente o governo de si e sobre si, sendo este "si" tanto o
próprio sujeito como a sua capacidade de produzir a economia doméstica e a deativamente participar da atividade política, ao mesmo tempo produzindo-a.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, L. A. Michel Foucault, educação e formação do sujeito. 2009. 84 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Católica de Goiás, Goiânia. 2009.
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BATTISTI, César Augusto. Às voltas com a questão do sujeito - posições e
perspectivas. Ijuí, RS/Cascavel, PR: UNIJUÍ/EDUNIOESTE, 2010.
DELEUZE, G. Foucault . São Paulo: Brasiliense, 2005.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: O Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro:Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade3: O Cuidado de Si. 8 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1985.
GRABOIS, P. F. Sobre a articulação entre o cuidado de si e cuidado dos outros no
último Foucault: um recuo histórico à antiguidade. Ensaiosfilosóficos. v. 3., p. 105-
120, abril de 2011.
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A NOÇÃO DE MODERNIDADE NA OBRA AS PALAVRAS E ASCOISAS DE MICHEL FOUCAULT
Hipácia Rocha Lima Universidade Estadual do Ceará
RESUMOO presente trabalho tem o objetivo de investigar a noção de modernidade em MichelFoucault na obra As palavras e as coisas a partir do vínculo estabelecido com Kant. A
pesquisa concentra-se em mostrar a relação existente entre a definição de modernidade
em Foucault com a forma pela qual Kant encara o problema do homem, nesse sentido, afinalidade da pesquisa busca explicar por onde a referência de modernidade emFoucault tange à constituição do sujeito de conhecimento em Kant. Foucault justificaque através do estatuto do homem kantiano se fundou as bases para o conhecimentomoderno, o autor compreende o pensamento de Kant como aquele que inaugura amodernidade, na medida em que indaga sobre as condições a priori de conhecer,interroga o modo de pensar o homem e aquilo que sabemos sobre ele. O ponto de
partida concentra-se em procurar expor as razões pelas quais Foucault pensa que afilosofia de Kant constituiu uma virada filosófica no pensamento, entender de quemaneira existe um limiar epistêmico que permite uma transição possível, ou seja, saber
por que Foucault considera o homem de Kant como aquele que inicia e caracteriza amodernidade na filosofia. Em suma, o conteúdo do trabalho trata de uma investigaçãoacerca da noção de modernidade em Michel Foucault, considerando essa questãoanáloga ao sentido que Kant fez do problema humano, pois a partir disso, se entenderáde que forma as ciências empíricas tematizaram o homem como objeto da vida, dotrabalho e da linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: Homem. Conhecimento. Modernidade.
INTRODUÇÃO
Esse artigo pretende investigar a noção de modernidade em Michel Foucault a
partir do vínculo estabelecido com Kant.O trabalhoutilizou um conjunto de obras do
autor francês para estudar com profundidade esse vínculo, contudo, centralizamos a
obra As palavras e as coisas por ela sintetizar à problemática em questão. A pesquisa
busca mostrar a relação existente entre a definição de modernidade em Foucault com a
forma pela qual Kant encara o problema do homem, isso porque, quando Foucault
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.
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questiona aspectos do pensamento moderno, especificamente o papel do sujeito, ele