Ambrose Bierce - Visões da Noite

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Ambrose Bierce

Visões da noitehistórias de terror sarcásticoOrganização e tradução

Heloísa Seixas

1999/2011

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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editoresde Livros, RJ.

Bierce, Ambrose, 1842-1914?

B487v Visões da noite / Ambrose Bierce; organização

e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart

Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

ISBN 85-01-05524-7

1. Conto norte-americano. I. Seixas, Heloísa,

1952- . II. Título.

99-0196 CDD-813 99-0196

CDU - 820{73)-3

Copyright © 1999 by Heloísa Seixas

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Personagem de si mesmo:O MISTERIO DEAMBROSE BIERCE

Heloisa Seixas

Ele era louro, alto, bonitão e as mulheresconsideravam-no irresistível. Dizem até que tinhasido tão bem-dotado pela natureza que jamais sedesnudava diante de uma mulher para nãoassustá-la. Era agnóstico, ateu, herege, ou comovocê queira chamar aqueles que descrêem detudo. Sarcástico ao extremo, dedicou boa parte davida a cultivar inimizades graças a sua atividadede jornalista, profissão que exercia despejandoveneno a granel. Era um crítico feroz, inteligentee incansável — e por isso intensamente odiadopor muitos. "Minha independência é meu

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patrimônio. É minha literatura", dizia. "Escrevopara agradar a mim mesmo, não importandoquem saia ferido.”

Quem diria que uma pessoa assim —descrente, mordaz e extremamente envolvidapelos prazeres da carne — fosse dedicar-se a es-crever histórias assombradas? Pois foi o queaconteceu. Embora tenha ficado famoso por seustextos jornalísticos e pelo humor sardônicopresente em obras como o Dicionário do diabo,Ambrose Bierce é hoje considerado um dosmestres da literatura de horror americana, juntocom H. P. Lovecraft e, é claro, Edgar Allan Poe.

Mas a verdade é que Ambrose GwinettBierce já nasceu cercado pelo mistério. E pelohumor negro. Sua família era um tanto excêntricae a casa onde veio ao mundo — em Ohio,

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Estados Unidos, em 24 de julho de 1842 — tinha,dizem, uma atmosfera macabra. Seu pai, MarcusAurelius Bierce, já era um sujeito estranho. Dom-inado pela mulher, fanático religioso e apaixon-ado por poesia, deu a todos os filhos (Bierce erao décimo) nomes que começassem com a letra'A'. No caso de Bierce, o nome do meio, Gwinett,teria sido acrescentado em referência a AmbroseGwinett, personagem de uma peça de teatromuito popular no início do século XIX e que erauma história de crime (tendo seu nome ligado auma história assim, não seria esse o crime ances-tral de que — como veremos adiante — nos falaBierce em seus pesadelos?). Mas as excentricid-ades da família Bierce não param por aí.

Os três irmãos que nasceram depois deBierce morreram e ele ficou sendo o caçula.

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Quando cresceram, seus nove irmãos mais velhosse dividiram em grupos antagônicos, que seodiavam, e o ambiente em casa era de guerraaberta e permanente. A certa altura, um dosirmãos se rebelou contra o fanatismo religioso dafamília e fugiu para ser artista de circo. Uma dasirmãs, ao contrário, assumiu tanto esse fanatismoque foi ser missionária na África, onde teria sidocomida por canibais. Por pouco não aconteceu omesmo com um tio de Bierce, Lucius Verus, quefoi em expedição ao Canadá para libertar os índi-os do jugo britânico e, depois de tomar a cidadede Windsor, viu acontecer o que menos esperava:os índios se voltaram contra ele e Lucius Verusprecisou sair corrido dela.

Esse tio aventureiro, apesar de meiodoido, foi uma das figuras que mais

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influenciaram Bierce em sua infância e juven-tude. Lucius Verus percebeu que o jovem Am-brose, além de bonito e charmoso, com seus ol-hos azuis e o cabelo louro-avermelhado, era tam-bém dono de uma inteligência excepcional. Porisso, desde muito cedo tomou conta do rapaz,dando-lhe conselhos e livros. Quando ele tinha15 anos, Lucius Verus, talvez prevendo a eclosãode uma guerra nos Estados Unidos, mandou-opara o Instituto Militar de Kentucky. Lá, Biercemostrou grande interesse pelo treinamento milit-ar, mas descobriu também seu talento como car-tunista. E o fato é que, ao deixar Kentucky, emvez de voltar para a casa dos pais, foi trabalharno jornal de uma cidadezinha de Indiana.

Em 1861, quando tinha 18 anos, Bierceatendeu ao primeiro chamado do Presidente

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Abraham Lincoln e alistou-se no 9o Regimentode Indiana. Logo estouraria a Guerra Civil. Foiquando ele teve a chance de se transformar numherói — e o fez. Sua passagem pela vida militarfoi algo sensacional. Corajoso, os perigos dasbatalhas nada significavam para ele. E, como to-mava decisões rápidas, com seriedade econsciência, destacava-se dos demais soldados,inseguros e indecisos. Durante uma batalha naVirgínia, salvou um companheiro ferido em meioao fogo cruzado, o que lhe valeu, apenas trêsmeses depois de alistar-se como voluntário, a pat-ente de sargento. Seguiram-se três anos debatalha durante os quais Bierce se destacou devárias maneiras, até chamar a atenção do generalWilliam Hazen, que se transformaria numafigura-chave em sua vida. Hazen, percebendo ovalor de Bierce (que então já era segundo-

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tenente), promoveu-o a primeiro-tenente enomeou-o para uma das missões mais perigosasda guerra: fazer reconhecimento de campo antesdas batalhas. Bierce ainda não completara 21anos.

A nova função agradou ao rapaz porvárias razões: primeiro, era um trabalho solitário.Segundo, incluía a feitura de mapas e a redaçãode relatórios, tudo com rapidez e exatidão, já queeram vidas que estavam em jogo. E foi assim queBierce trabalhou em perigosas missões de recon-hecimento nas campanhas do Tennessee, deChattanooga e de Atlanta, até o dia 23 de junhode 1864 (ia fazer 22 anos dali a um mês) quando,na batalha da montanha de Kenesaw, recebeuuma bala na cabeça.

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"A bala rachou meu crânio como sefosse uma casca de noz", diria ele mais tarde,com seu habitual humor. Por sorte, Bierce foi res-gatado com vida e conseguiu sobreviver ao feri-mento. Convalescente, foi mandado para juntodos pais, Mas, assim que se recuperou — depoisde meses tendo "brancos" e sentindo tonteiras —,voltou à ativa, servindo na Geórgia até que aguerra terminou, em abril de 1865. E dessa veznão voltou para casa. Seus pais nunca mais torn-ariam a vê-lo.

Depois de trabalhar durante um ano nareconstrução do Sul, foi novamente chamadopelo general Hazen que, em tempos de paz, tinhasido incumbido de explorar e mapear o Oeste e oqueria como seu assistente técnico. Feliz da vida,Bierce aceitou.

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E, assim, embrenharam-se pelo VelhoOeste, atravessando o território dos índios Sioux.Na mesma época, o general Hazen fez uma re-comendação formal para que Bierce, até entãoapenas um oficial voluntário fosse aceito comooficial do Exército Regular americano. Mas, de-pois de muitas aventuras, quando finalmentechegaram a São Francisco, no fim de 1866,descobriram que Bierce havia sido aceito noExército Regular, só que com a patente reduzidapara segundo-tenente. E sem perspectiva de umapromoção tão cedo. Embora adorasse o trabalho,era uma situação humilhante. Bierce fez cara oucoroa para decidir se aceitaria ou não. Jogou amoeda para cima para ver se ficaria com a pat-ente inferior ou se iria para a vida civil, a fim deexercer a única profissão sobre a qual tinha ummínimo de conhecimento — o jornalismo. A

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moeda decidiu jornalismo e Bierce aceitou overedicto. Quarenta anos depois, ele diria: "Amoeda estava certa.”

"Escrevo para as almas iluminadas quepreferem os vinhos secos aos doces, a razão aossentimentos, a sagacidade ao humor e o inglêspuro às gírias." Essa é uma frase típica do jor-nalista Bierce, que começou trabalhando para umsemanário, o San Francisco News Letter andCommercial Advertiser. Em pouco tempo,tornou-se editor e titular de uma coluna, na qual,desde o início, já exercitava o sarcasmo e a crít-ica, que seriam suas marcas.

Com os donos de jornais a favor da teor-ia de que violência aumentava as vendas, muitosarticulistas atrevidos eram perseguidos e espan-cados pelo que escreviam, sendo às vezes

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obrigados a deixar a cidade. Bierce, nesse iníciode carreira, escrevia com veneno e brutalidaderaramente superados na história do jornalismoamericano (embora muito imitados). Havia quemapostasse sobre sua longevidade. Mas o fato éque, de novo, ele sobreviveu.

Independente e dizendo o que queria,mantinha com o dono do jornal, Fred Marriott,uma relação de respeito mútuo e este último ja-mais lhe dava ordens, apenas sugestões. A par-ceria deu certo, o jornal vendeu mais e Biercecomeçou a ganhar dinheiro — a ponto de reuniras condições para se casar. Em 1871, casou-secom Molly Day, uma jovem da sociedade de SãoFrancisco, cujo pai, rico, financiou a ida dojovem casal para Londres, onde passariam umalonga temporada. A intenção de Bierce era ser

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escritor, mas as dificuldades eram muitas e, em1875, ele acabou voltando para São Francisco,trazendo na bagagem muita experiência e umaforte reputação, mas sem emprego à vista.

Nos anos que se seguiram, chegou apensar em largar o jornalismo e trabalhou comogerente de uma mina de ouro, aderindo à febre dabusca à fortuna fácil, mas sua participação naCorrida do Ouro deu em nada e, depois disso,nunca mais ousou desobedecer à moeda de seudestino. Acabou tornando-se editor-chefe daWasp, uma revista de política e humor, ondeficou de 1881 a 1886, desenhando charges polít-icas, escrevendo editoriais arrasadores e atirando,em todas as direções, seu sarcasmo impiedoso.Foi um período produtivo e brilhante, mas, emsua vida particular, as coisas não andavam muito

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boas. Já era, então, pai de três filhos, dois meni-nos e uma menina, mas estava mal de finanças(seu sogro tinha falido), bebia muito e brigavacada vez mais com a mulher, de quem acabaria seseparando.

Foi por essa época, já com mais de 40anos, que Bierce começou a escrever ficção.Escreveu principalmente contos — de horror, dehumor, de guerra —, reiterando na prática aquiloque afirmava em suas críticas literárias: que umromance é apenas uma maneira mais fácil de es-crever um conto. Mantendo uma pitada de de-boche mesmo nas histórias mais aterrorizantes(quase podemos ouvir sua risada por trás dasfrases), escreveu também poemas e fábulas,tendo começado, em 1881, a preparar o Di-cionário do diabo, em que demolia conceitos, de

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A a Z, com sua visão cínica e debochada domundo.

Um dia, em 1887, como ele contaria de-pois, um jovem bateu à sua porta: era WilliamRandolph Hearst, na época com 24 anos, queacabara de receber das mãos do pai o jornal Ex-aminer e vinha convidar Bierce para trabalharcom ele. Era o início da uma parceria que durariavinte anos e marcaria de forma definitiva ahistória do jornalismo americano — Hearst,como se sabe, seria o modelo usado por OrsonWelles em seu filme Cidadão Kane. Duranteaquelas duas décadas, Bierce e Hearst chegarama se odiar, mas de alguma forma continuaram tra-balhando juntos, pois a virulência do primeiroservia aos interesses do segundo. Bierce nãopoupava ninguém: políticos, prostitutas,

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feministas, escritores que considerava medíocres,fazendeiros, sindicalistas, jornalistas opositores eamigos com quem tivesse brigado. Quando deix-ou São Francisco e foi trabalhar em Washington,houve quem dissesse que se mudara para fugirdos inimigos.

Apesar do olhar intenso, Bierce era umhomem de fala mansa, que se tornava cada vezmais suave à medida que ia ficando furioso.Aqueles que o conheciam apenas pelo que liamno jornal, ficavam muitas vezes surpresos comsuas maneiras gentis e chegavam a encantar-secom ele, embora, é claro, passassem a odiá-lo as-sim que o contato pessoal se aprofundava umpouco. Três homens que conviveram com Biercee escreveram perfis dele — Adolphe de Castro,George Sterling e Walter Neale — traçaram

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retratos tão diversos que é difícil acreditar que es-tivessem falando do mesmo homem. Bierce eraum solitário. Capaz de chutar um cachorro queaparecesse na sua frente — porque odiava seuslatidos, seu cheiro e sua vulgaridade —, podiapor outro lado comover-se com pequenas cri-aturas indefesas, acolhendo filhotes de pássarosque não conseguissem voar e até ratinhosdoentes.

No jornal, mantinha sobre sua escrivan-inha um crânio humano e uma caixa de charutos.Quando perguntado sobre aqueles objetos, diziaque o crânio era o que restara de um velhoamigo, enquanto a caixa guardava as cinzas deum crítico rival. E falava isso sem rir. Era con-hecido em São Francisco como "the bitterBierce" (o amargo Bierce) e entre seus desafetos

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— para citar apenas os da área literária — es-tavam figuras como Henry James e Jack London.

Mesmo na vida pessoal, era capaz daspiores vilanias quando queria atingir seus objet-ivos, embora fosse corretíssimo em questõesfinanceiras. Conta-se que, ao saber que seu filhomais novo pretendia casar-se com uma moça quedesaprovava, Bierce teria acabado com os planosdo rapaz inventando que a moça era sua irmãilegítima. Com tudo isso, evidente que era cadavez mais odiado. E começou a receber o troco.Houve quem o acusasse de ter sido o principalculpado pelas tragédias que abateram sua família.E não foram poucas. Seu filho mais velho morreuassassinado. Alguns anos depois, o mais jovemmorreu de alcoolismo. A mulher o largou e, porcausa da separação, Bierce nunca mais viu a

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filha. Albert, único irmão com quem continuavase relacionando, morreu pouco depois de receberuma carta em que Bierce o desancava, pro-vocando comentários de que as palavras rudes otinham matado de desgosto. Bierce era cruel atéconsigo mesmo. Sofria de asma e mergulhavacada vez mais fundo no alcoolismo, tendo sofridopelo menos um ataque de delirium tremem.Já não escrevia ficção (seus últimos contos datamde 1896) e fechava-se cada vez mais em simesmo, com seu temperamento irascíveltornando-se intolerável até para os amigos maischegados e mais pacientes.

Até que, no verão de 1913, aos 71 anos,velho, amargo e doente, mas ainda uma lendaviva, Ambrose Gwinnett Bierce armou a cena fi-nal em que escaparia da civilização que tanto

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detratara. E, em algum lugar do México — nin-guém sabe exatamente onde, nem quando, nemcomo —, viu-se frente a frente com a person-agem que era uma de suas obsessões: a morte.

Em muitas de suas histórias, Bierce jáparecia farejar essa morte. Em seus contos dehorror, ele tem alguns temas recorrentes: umhomem caminha sozinho, geralmente à noite,num descampado ou numa floresta, sem saberbem se está desperto ou se é tudo um sonho.Sente uma certa inquietação, talvez a consciênciade um crime cometido, embora desconheça osdetalhes de sua tragédia. Em muitos de seus con-tos, alguém desaparece sem deixar traço — ou, oque talvez seja ainda mais horripilante, deixandopara trás indícios de sua presença assombrada.

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Bierce parecia fixar-se em alguns assun-tos, escrevendo por vezes histórias parecidassobre um mesmo tema, donde a idéia de juntar,nesta antologia, vários contos semelhantes sobum mesmo título, como acontece em"Aparições", "Casas espectrais" e "Cruzando oumbral". Mas é nos casos de desaparecimentosque ele se fixou mais. Sua obsessão sobre o as-sunto chegou a tal ponto que, nos últimos anos devida, colecionava relatos de sumiços misteriosos.Costumava também abrir seus contos com epí-grafes contendo reflexões sobre a morte. Numadelas, que abre o conto "Um habitante de Car-cosa" (incluído em "Cruzando o umbral"), Bierceescolheu como epígrafe um texto que diz oseguinte:

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Pois há diversos tipos de morte. Em al-gumas (...) o corpo desaparece junto com o es-pírito. Geralmente isso ocorre quando o indiví-duo está só (...) e, como não nos é dado conhecero fim, dizemos que o homem desapareceu, ou quese foi numa longa jornada — o que é verdade.

Ao escrevei essas linhas, estaria Bierce,conscientemente, preparando o caminho daquiloque ele próprio um dia, talvez de forma delib-erada, iria fazer? Seria uma premonição, ou umafantástica coincidência, essa sua obsessão pelosdesaparecimentos? Ou apenas sua última — emais terrível — piada de humor negro?

Ninguém jamais pôde responder a essasperguntas. As especulações foram muitas, masnunca se soube ao certo o que aconteceu comAmbrose Bierce. Sabe-se apenas que um dia ele

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anunciou que iria para o México de Pancho Villa,mergulhado numa sangrenta guerra civil. Aosamigos, pessoalmente ou por carta, fez referên-cias vagas sobre quais seriam suas intenções,comentando, com seu habitual deboche, que "oparedão era uma boa maneira de partir destavida" e que, pisar em solo mexicano naquelestempos, era "uma espécie de eutanásia". Edesapareceu.

Alguns disseram que Bierce, mal desaúde, tendo recebido a notícia de que lhe restavapouco tempo de vida, suicidara-se. Houve quemgarantisse mesmo que ele se teria atirado doGrand Canyon. Outra história surgida, ainda maisengenhosa, assegurava que Bierce havia es-capado para a Inglaterra, onde se tornara assessorde um certo Lorde Kitchener, morrendo lá em

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segredo anos depois. Outros afirmavam que elefora de fato para o México, onde desafiara amorte, nas batalhas. A versão que parece maisrazoável é a de que Bierce queria cobrir a re-volução de Pancho Villa como correspondente deguerra e realmente foi para lá, onde morreu — demorte natural, acidentalmente (numa batalha) outalvez executado por insultar Villa.

Seja como for, fica-nos a sensação deque Bierce — ele, que tinha nos sonhos outra desuas obsessões — rompeu as fronteiras entrerealidade e fantasia, subvertendo a ordem do uni-verso, esse universo que sua alma rebelde re-jeitava e desprezava. O mundo onírico é, aliás, otema do texto que deu origem ao título desta ant-ologia, "Visões da noite", no qual Bierce nosconta três de seus pesadelos recorrentes, além de

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analisar a própria matéria de que são feitos ossonhos. Neles, lá está o mesmo homem que cam-inha solitário, como em seus contos de terror, omesmo homem que, na vida real, escrevia históri-as nas quais o aparato gótico parecia ser apenasum símbolo da decadência humana. Sim, porque,para Bierce, a fonte principal do horror é semdúvida a mente do homem.

Sua descrença na humanidade —presente em tudo o que fez — se reflete na im-ponderabilidade de muitas de suas histórias, as-sim como no alto teor de ironia que pressentimosnas entrelinhas. Essa ironia chega às vezes a in-terferir no próprio clima de terror que Bierce,como autor, está tentando criar no leitor. Numaespécie de auto-sabotagem literária, ele inter-rompe uma narrativa arrepiante para fazer uma

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brincadeira. E é como se, com uma expressão di-abólica, nos dissesse, a nós, leitores: "Vamos verse, mesmo depois dessa piada, você continuaacreditando." Temos por vezes a sensação de queBierce brinca de gato e rato conosco, lançandopistas falsas, dando-nos excessivos detalhes —de nomes, acontecimentos e situações geo-gráficas — que depois não terão muita importân-cia na história, apenas para testar nossa paciên-cia, ou, quem sabe, para nos deixar na boca, ter-minada a leitura, um travo de inquietação.

Esse jogo de pistas falsas talvez ex-plique por que Bierce nem sempre é incluídopelos críticos entre os maiores autores amer-icanos de todos os tempos — embora muitos re-conheçam que ele é um dos mais originais e ou-sados, pertencendo àquela (rara) classe de

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escritores pelos quais nunca passamos impune-mente. Bierce podia ser cínico, idealista, amargo,frustrado, genial, sádico, pervertido, brilhante,brutal, satirista, poeta, misantropo e até mesmocharlatão — foi chamado de tudo isto. Mas foium homem e escritor fascinante, que um diacruzou a fronteira do Desconhecido e — talvezcom uma terrível gargalhada final — tornou-sepersonagem de si mesmo, saindo da vida para en-trar em suas próprias histórias.

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Um incidente na ponte deOwl Creek 1

I

Um homem estava de pé sobre umaponte férrea no Norte do Alabama, olhando paraas águas que corriam ligeiras seis metros abaixo.Tinha as mãos às costas, os pulsos atados poruma corda. Outra corda fora enrolada em seupescoço. Esta última estava amarrada a uma es-taca sólida acima de sua cabeça e a ponta caía-lheaté a altura dos joelhos. Algumas tábuas soltas,colocadas sobre os dormentes que suportavam ostrilhos da via férrea, sustentavam os pés dohomem, assim como os de seus executores —dois paramilitares do Exército Confederado, lid-erados por um sargento que na vida civil talvez

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tivesse sido um subxerife. Sobre a mesma plata-forma provisória, mas a uma certa distância, es-tava um oficial armado, com seu uniforme degraduado. Era um capitão. Em cada extremidadeda ponte havia um sentinela segurando seu rifleem posição de "apoio", o que significa na verticalà frente do ombro esquerdo e com o cão apoiadoao antebraço atravessando o peito em diagonal —uma posição rígida e pouco natural, obrigando ossoldados a permanecer numa postura muito ereta.Aparentemente, os dois não tinham obrigação desaber o que se passava no meio da ponte. Eles selimitavam a bloquear a passagem nas duas ex-tremidades do caminho de pedestres que ladeavao pontilhão.

Para além de um dos sentinelas, nãohavia ninguém à vista. A linha férrea cruzava a

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floresta numa reta por quase cem metros, para emseguida desaparecer, numa curva. Com certezahavia um posto avançado mais adiante. A outramargem do rio era um campo aberto — uma co-lina suave, no alto da qual havia uma barricadafeita com troncos de árvores, com seteiras para osrifles e um único canhoneiro do qual surgia a ex-tremidade de um canhão de bronze, apontadopara a ponte. Na metade da colina, entre a ponte ea fortaleza, estavam os espectadores — uma ún-ica companhia de infantaria perfilada, em posiçãode "descansar", a base dos rifles tocando o chão,os canos levemente inclinados para trás e apoia-dos ao ombro direito, as mãos cruzadas à frentedas coronhas. Um tenente encontrava-se de pé àdireita da fila, com a ponta de sua espada no chãoe a mão esquerda repousando sobre a direita.Com exceção do grupo de quatro pessoas no

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centro do pontilhão, ninguém se movia. A com-panhia estava de frente para a ponte, observando-a na mais absoluta imobilidade. Os sentinelas,voltados para as margens do rio, poderiam serconfundidos com estátuas que adornassem olugar. O capitão estava de braços cruzados, emsilêncio, observando o trabalho de seus dois sub-ordinados, mas sem fazer qualquer sinal. A morteé um dignitário que, ao ser anunciado, deve serrecebido com manifestações formais de respeito,mesmo entre aqueles que lhe são mais familiares.No código da etiqueta militar, o silêncio e aimobilidade eram formas de deferência.

O homem que estava para ser enforcadoaparentava cerca de 35 anos. Era um civil, a jul-gar por suas roupas, que pareciam as de umfazendeiro. Tinha boa aparência — o nariz reto, a

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boca firme e uma testa larga de onde surgia o ca-belo comprido e escuro, penteado para trás, pas-sando por trás das orelhas e indo até o colarinhodo casaco de trabalho, que lhe caía bem. Usavabigode e uma barba pontuda, mas sem costeletas.Os olhos eram grandes, cinza-escuros, com umaexpressão gentil que dificilmente se poderia es-perar de um homem cujo pescoço estivesse nolaço de uma corda. Com toda certeza não era umassassino vulgar. O código militar, liberal,permite o enforcamento de toda sorte de indiví-duos, e os cavalheiros não estão excluídos.

Assim que tudo estava pronto, os doisparamilitares, dando um passo para o lado, tir-aram a tábua sobre a qual caminhavam. Osargento virou-se para o capitão, fez continênciae colocou-se imediatamente atrás do oficial, que

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por sua vez afastou-se um passo. Tais movimen-tos deixaram o condenado e o sargento sozinhosde pé sobre as duas extremidades da mesmatábua, que se estendia por cima de três dosdormentes da linha férrea. A extremidade sobre aqual se encontrava o civil quase alcançava, masnão chegava a fazê-lo, um quarto dormente. Essatábua estivera sendo mantida ali pelo peso docapitão. Agora, o que a mantinha ali era o pesodo sargento. A um sinal do primeiro, este últimodaria um passo para o lado, a tábua daria umsalto e o condenado despencaria pelo espaçoentre os dormentes. O arranjo, por simples e efet-ivo, parecia confiável. O rosto do homem não es-tava encoberto, nem seus olhos vendados. Por uminstante, ele olhou para o chão instável onde pis-ava e em seguida deixou que o olhar se perdessena corrente d'água que passava lá embaixo, a toda

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velocidade. Uma tora de madeira boiandochamou sua atenção e seus olhos seguiram-na, rioabaixo. Parecia mover-se tão devagar, como selevada por águas indolentes...

Fechou os olhos tentando fixar os últi-mos pensamentos na mulher e nos filhos. A água,tingida de ouro pelos primeiros raios de sol, abruma melancólica que recobria as margens rioabaixo, a fortaleza, os soldados, a tora de madeira— tudo distraía sua atenção. E agora ele se davaconta de alguma coisa nova, que surgia paraperturbá-lo. Chocando-se com o pensamento deseus entes queridos, vinha um som que ele nãoconseguia nem identificar nem ignorar, um ruídoagudo, nítido, metálico, como o som do martelodo ferreiro contra a bigorna. A ressonância era amesma. O homem se perguntou o que seria

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aquilo e de onde vinha tal som, se de longe ou deperto — pois parecia as duas coisas ao mesmotempo. Batia a intervalos regulares, mas numritmo lento, como o dobrar dos sinos de Finados.Ele aguardava cada batida com impaciência e —sem que soubesse por quê — com apreensão. Osintervalos de silêncio pareciam cada vez maiores.E esses momentos de suspensão começavam aenlouquecê-lo. Embora cada vez mais espaçados,os sons cresciam em força e agudez. Feriam-lheos ouvidos como a estocada de um punhal.Estava a ponto de gritar. O que ele ouvia era otique-taque de seu relógio.

Abriu os olhos e viu novamente a água aseus pés. "Se eu pudesse soltar as mãos", pensou,"poderia afrouxar o laço e pular na água.Afundando, fugiria das balas e, nadando a toda

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velocidade, conseguiria chegar à margem,embrenhar-me na floresta e fugir para casa.Minha casa, graças a Deus, fica para além daslinhas deles. Minha mulher e meus filhos estãona região que ainda não foi tomada pelosinvasores.”

Enquanto esses pensamentos, aquidescritos em palavras, passavam pela cabeça docondenado, e mal acabavam de ser formulados, ocapitão fez um sinal para o sargento. E o sargentodeu um passo para o lado.

II

Peyton Farquhar era um prósperofazendeiro, de uma família antiga e altamente re-speitada no Alabama. Sendo dono de escravos e,como todo dono de escravos, um político, era

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naturalmente a favor da Guerra Civil e ar-dorosamente devotado à causa do Sul. Pormotivos de força maior, que não cabe aqui re-latar, não pudera servir ao galante exército quelutaria nas desastrosas campanhas culminandocom a queda de Corinto, e se irritava com isso,ansiando por externar suas energias, por viver avida mais expansiva dos soldados, pela opor-tunidade de se destacar. Essa oportunidade, sen-tia, acabaria chegando, porque chega para todosdurante a guerra. Enquanto isso, ia fazendo o quepodia. Não se importava de desempenhar a maishumilde tarefa, desde que fosse para ajudar acausa dos sulistas, nem de se meter na mais peri-gosa das aventuras, desde que fosse coerente como papel de um civil cujo coração era de soldado eque, de boa-fé, mesmo não sendo muito qualific-ado, concordava, ao menos em parte, com o

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ditado sabidamente infame segundo o qual naguerra e no amor tudo vale.

Certa noite, quando Farquhar e sua mul-her estavam sentados no banco rústico junto à en-trada do jardim, surgiu no portão um soldado deuniforme cinza que pediu um copo d'água. Foicom satisfação que a Sra. Farquhar foi buscá-locom suas próprias mãos, muito brancas. O mar-ido se aproximou do cavaleiro empoeirado e, an-sioso, pediu notícias do front.

"Os ianques estão consertando as estra-das", respondeu o homem," e estão prontos paraum novo avanço. Já chegaram à ponte de OwlCreek, fizeram reparos e construíram uma barri-cada na margem norte. O comandante mandouespalhar cartazes dizendo que qualquer civil que

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bloquear estradas, pontes, túneis ou trens serásumariamente enforcado. Eu vi a ordem.”

"A ponte de Owl Creek é muito longe?",quis saber Farquhar.

"Uns cinquenta quilômetros.”

"E há soldados deste lado do rio?”

"Só um posto avançado menos de umquilômetro à frente, na estrada, além de um sen-tinela na ponta de cá da ponte.”

"E se um homem — um civil, espe-cialista em enforcamentos — conseguisse passarpelo posto avançado e enganar o sentinela", disseFarquhar, rindo, "o que será que ele conseguiria?“

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O soldado parou para pensar.

"Há um mês eu estava lá", respondeu."E notei que a correnteza do último inverno tinhadeixado muitas toras encalhadas no píer demadeira, na extremidade da ponte. Agora f estátudo seco e poderia queimar como uma tocha.”

A mulher já se encaminhava com aágua, que o soldado bebeu. Em seguida agrade-ceu, cerimonioso, fez uma mesura para o maridoe se foi. Uma hora depois, quando a noite jáhavia caído, ele voltou a cruzar a fazenda emdireção ao Norte, de onde viera. Era um espiãodos Confederados.

III

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Assim que despencou da ponte, PeytonFarquhar perdeu os sentidos, como se já estivessemorto. Mas foi despertado desse estado — após oque lhe pareceu um tempo enorme — por umador fina na garganta, seguida de uma sensação desufocamento. Uma agonia aguda, mortal, pareciaespraiar-se do pescoço, tocando cada fibra de seucorpo e membros, Tais dores aparentemente cor-riam por linhas de ramificações bem definidas,martelando a uma velocidade inconcebível. Eramcomo rios de fogo pulsante que o queimassem in-teiro. Quanto à cabeça, parecia-lhe completa-mente tomada — por uma congestão. Essassensações não vinham acompanhadas depensamentos. A parte intelectual de sua naturezase esvanecera. Tinha poder apenas para sentir, e oque sentia era tormento. Percebia um movimento.Envolto por uma nuvem luminosa, da qual ele

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agora era apenas o núcleo em brasa, oscilavasobre um arco imponderável, como se fosseimenso pêndulo. E então, de repente, de formaterrivelmente súbita, a luz que o cercava disparoupara cima, com um gigantesco estrondo d'água.Um troar ameaçador atingiu-lhe os ouvidos etudo foi escuridão e gelo. O poder do pensamentofoi restaurado. Agora ele sabia que a corda serompera e que ele caíra na correnteza. Mas nãosufocava mais do que antes. A corda em torno deseu pescoço já o estrangulava, mantendo aágua fora de seus pulmões. Morrer enforcado nofundo de um rio! A idéia lhe parecia ridícula.Abriu os olhos na escuridão e viu acima uma lu-minosidade, embora muito longe, inacessível.Continuava afundando, pois a luz tornava-semais e mais fraca, até virar apenas um lampejo.Mas logo começou a crescer e a tornar-se mais

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brilhante, até que ele percebeu que retornava àsuperfície — e relutava em admitir isso, pois jásentia um certo conforto em estar no fundo. "Serenforcado e afogado", pensou, "não é tão mau as-sim. Mas não quero levar um tiro. Não quero enão vou. Não é justo.”

Não tinha consciência do esforço quefazia, mas uma dor fina no pulso lhe dizia que es-tava tentando soltar as mãos. Concentrou-senaquela luta, como um errante admirando aproeza de um malabarista, sem muito interesse noresultado. Que esforço sensacional! Que forçamagnífica, sobre-humana! O empenho era im-pressionante. Muito bem! A corda soltou-se. Seusbraços separaram-se, flutuando em direção àtona, as mãos como sombras de um lado e outro,que mal podia enxergar na luminosidade

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crescente. Ele as olhou com interesse renovado àmedida que, primeiro uma, depois a outra, elasbuscaram o nó que apertava seu pescoço.Afrouxaram-no, abrindo-o, as ondulações dacorda lembrando as de uma cobra d'água."Ponham-na de volta!", gritou para as mãos empensamento, pois assim que o nó se desfez ele foiassaltado pela dor mais cruciante que jamais ex-perimentara. O pescoço lhe doía horrivelmente.Seu cérebro estava em fogo. E o coração queantes batia manso de repente deu um salto, pare-cendo a ponto de sair-lhe pela boca. Todo seucorpo foi varrido e sacudido por uma angústia in-suportável. Mas as mãos desobedientes nãoatenderam a seu comando. Batiam na água comvigor, em movimentos rápidos, para baixo,forçando-o rumo à superfície. Até que sentiu acabeça emergir. A luz do sol cegou-o. Sentiu o

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peito expandir-se em convulsões e, em supremaagonia, seus pulmões sorveram uma enorme gol-fada de ar, que ele expeliu no mesmo instante,com um grito agudo.

Agora tinha total controle dos sentidosfísicos. Na verdade, eles estavam extraordinaria-mente aguçados e em alerta. Diante da brutalagressão ao organismo, algo acentuara e refinaraseus sentidos a ponto de eles lhe mostraremcoisas que antes não era capaz de perceber. Ob-servava as ondas do rio junto a seu rosto, ouvindoo bater de cada uma delas. Olhava para a florestaalém da margem e via árvore por árvore comsuas folhas, assim como os veios em cada umadessas folhas, Via até mesmo os insetos sobreelas: as cigarras, as moscas com seus corpos bril-hantes, as aranhas cinzentas espalhando suas

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teias de um ramo a outro. Notava o prisma dascores nas gotas de orvalho sobre um milhão delâminas de relva. E o zumbido dos mosquitos quedançavam sobre a tona, o bater das asas daslibélulas, o choque das patas das aranhas-d'água,como remos que impulsionassem seus barcos —e tudo isso lhe soava claro como música. Lá se iaum peixe deslizando no fundo e ele podia ouvir oruído de seu corpo fendendo as águas.

Chegara à superfície de frente para acorrenteza. Por um instante, o mundo visívelparecera girar a uma velocidade muito lenta,sendo ele seu ponto central. E ele via a ponte, afortaleza, os soldados sobre a ponte, o capitão, osargento, os dois paramilitares, seus executores.Via apenas suas silhuetas contra o céu. Gritavame gesticulavam, apontando para ele. O capitão

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tinha empunhado a pistola, mas não atirara. Osoutros estavam desarmados. Seus movimentoseram grotescos, terríveis, suas formasgigantescas.

De repente, ouviu um estampido agudoe um projétil atingiu a água a poucos centímetrosde sua cabeça, borrifando-lhe o rosto. Veio umsegundo estampido e ele viu um dos sentinelascom o rifle ao ombro, enquanto uma nuvem defumaça azulada subia do cano da arma. Da água,pôde ver os olhos do homem na ponte encarando-o, por trás da mira. Notou que ele tinha olhos cin-zentos e lembrou-se de já ter ouvido falar que ol-hos assim são os mais espertos e que homens degrande pontaria costumam ter olhos dessa cor. E,no entanto, aquele acabara de errar.

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Um rodamoinho envolvera Farquhar eele agora estava de lado para a ponte. De frentepara a floresta que ficava na margem oposta àfortaleza. E o som claro, alto, de uma vozentoando uma melodia monocórdia, chegava aseus ouvidos vindo de trás, cruzando a água comtanta nitidez que sobrepujava todos os outrossons, até mesmo a batida das ondas em seu rosto.Embora não fosse soldado, ele já freqüentara osacampamentos e conhecia o terrível significadodaquele canto arrastado, entoado com força e de-liberação. O tenente, na margem, fazia sua parteno trabalho da manhã. Ditas com toda a frieza,sem piedade — com uma entonação que eracalma, serena, agourenta, mas que infundia tran-quilidade na tropa —, a intervalos bem medidos,ele ouviu aquelas palavras cruéis:

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"Atenção, companhia!... Preparar!...Apontar!... Fogo!”

E Farquhar mergulhou. Mergulhou omais fundo que pôde. A água borbulhava em seusouvidos como as vozes do Niágara e ainda assimele ouvia o ruído surdo das rajadas. Ao retornar àsuperfície, pôde ver as cápsulas de metal, signi-ficativamente achatadas, que, brilhantes, desciamcorrenteza abaixo. Algumas chegaram a tocar-lheo rosto e as mãos, depois se foram, seguindo seucurso. Uma delas alojou-se entre seu pescoço e agola da camisa. Sentindo, com um arrepio, queainda estava quente, atirou-a longe.

No instante em que chegou à tona, embusca de ar, notou que ficara muito tempo de-baixo d'água. Encontrava-se muito longe rioabaixo — onde era mais seguro. Os soldados

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estavam quase acabando de recarregar as armas.Viu as varetas todas brilhando ao sol à medidaque eram retiradas dos barris, viradas no ar e in-troduzidas nos soquetes. Os dois sentinelas dis-pararam de novo, por conta própria, mas semsucesso.

O homem caçado observava tudo issopor cima do ombro. Nadava agora com todo ovigor, correnteza abaixo. Seu cérebro estava tãoaguçado quanto seus braços e pernas. Ra-ciocinava na velocidade da luz.

"O oficial", pensou, "não vai cometerum erro outra vez por excesso de zelo. Dá namesma esquivar-se de uma rajada de tiros ou deum tiro só. Com certeza ele já deu ordens paraque cada um atire à vontade. Deus me ajude, poisnão vou conseguir escapar de todos eles!”

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Foi sacudido por um choque na água amenos de dois metros de onde estava, seguido deum estrondo violento, que foi decrescendo comose ricocheteasse e cruzasse o ar de volta emdireção à fortaleza, até morrer com uma explosãoque fez todo o rio estremecer. Uma coluna d'águaergueu-se, encobrindo-o, e depois despencousobre ele, cegando-o, sufocando-o. O canhão en-trara no jogo. Ao sacudir a água que lhe enchar-cava a cabeça ouviu o zumbido da bala rompendoo ar acima dele, e em seguida seu impacto contraos galhos da floresta mais além, que sedespedaçaram.

"Não vão fazer isso de novo", pensou."Da próxima vez vão usar uma carga de balim.Preciso ficar de olho nesse canhão. A fumaça vaime alertar porque o estampido chega tarde

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demais. É posterior ao projétil. É uma arma etanto.”

De repente, sentiu-se envolver por umrodamoinho, todo ele rodando e rodando comoum pião. A água, as margens, a floresta, a ponteagora distante, a fortaleza e os soldados — tudose confundia, num borrão. Os objetos eram per-ceptíveis apenas por sua cor. Traços circulares ehorizontais de cor — era tudo o que via. Foraapanhado num turbilhão, girando e rodopiando auma velocidade cada vez maior, que o deixavatonto, enjoado. Em instantes, foi atirado contra ocascalho ao pé da margem esquerda do rio —nolado sul — e atrás de uma ponta que o abrigavados inimigos. A súbita parada e a aspereza docascalho na palma da mão de repente o fizeramdespertar, e ele chorou de alegria. Enterrou os

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dedos na areia, atirando-a sobre o próprio corpoenquanto agradecia em voz alta. Aquela areia erapara ele como se feita de diamantes, rubis, esmer-aldas. Tudo o que era belo parecia-se com ela. Asárvores sobre a margem eram um gigantescojardim. E ele notou que as plantas ali estavamcompostas como se num arranjo, ao mesmotempo que inalava seu perfume. Uma luz es-tranha, rosada, brilhava no espaço entre os tron-cos e o vento, em seus galhos, produzia amelodia de uma harpa. Já não queria fugir — es-taria satisfeito em ficar naquele lugar encantadoraté ser recapturado.

Um zumbido e um martelar por entre osgalhos, acima de sua cabeça, despertaram-no deseu sonho. O artilheiro frustrado fazia novo dis-paro a esmo. Farquhar pôs-se de pé e saiu

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correndo em direção à margem escarpada, pen-etrando na floresta.

Durante todo o dia caminhou, guiando-se pelo sol. A floresta parecia interminável. Emnenhum ponto encontrou uma só clareira, uma sótrilha de lenhadores. Não sabia que vivia numaregião de mata tão fechada. E havia nessa rev-elação qualquer coisa de sobrenatural.

Quando a noite caiu, estava exausto,faminto, com os pés feridos. Mas quandopensava na mulher e nos filhos, sentia-se encora-jado a prosseguir. Finalmente deu numa estradaque o levou na direção que ele sabia ser a certa.Era larga e reta como a rua de uma cidade e con-tudo parecia não ter sido jamais trilhada. Nãohavia fazendas em suas margens, nem sinal dequalquer atividade. Nem mesmo o latido de um

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cão sugerindo que o lugar era habitado por hu-manos. Apenas o corpo negro das árvores form-ando uma muralha, de ambos os lados, desapare-cendo em algum ponto no horizonte, como odesenho de uma lição de perspectiva. No alto,quando ele olhava através das copas das árvores,via o brilho de gigantescas estrelas cor de ouro,que lhe pareciam estranhas e agrupadas em con-stelações desconhecidas. Tinha certeza de queformavam um padrão cujo significado era secretoe maligno. E a floresta, de um lado e outro,emitia ruídos singulares, entre os quais — uma,duas, várias vezes — pôde distinguir sussurrosnuma língua que jamais ouvira.

Seu pescoço doía e ao passar a mão neleviu que estava horrivelmente inchado. Sabia quetinha um círculo escuro no lugar onde a corda o

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ferira. Seus olhos estavam congestionados. Já nãoconseguia fechá-los. A língua inchara de tantasede. Procurou aliviar a febre botando a línguapara fora por entre os dentes e buscando o con-tato com o ar frio. A relva macia cobrira de talforma a estrada deserta que ele já não sentia ochão sob seus pés.

Com certeza, apesar de todo o sofri-mento, adormeceu enquanto caminhava, poisagora via outro cenário — ou talvez tivesseacordado de um delírio. Está de pé diante doportão de sua própria casa. Tudo continua comoele deixou, brilhando com beleza à luz do sol damanhã. Deve ter caminhado durante toda a noite.Assim que empurra o portão e atravessa a calçadalarga e branca, percebe um ondear de saias fem-ininas. É sua esposa, parecendo tão fresca, tão

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calma e tão doce que desce os degraus davaranda para encontrá-lo. Ao pé do degraus elapára, esperando, com um sorriso de imensaalegria, com graça e dignidade incomparáveis.Ah, como é bela E ele corre, com os braços es-tendidos. Quando está a ponto de abraçá-la senteuma violenta pancada na nuca. Uma luz branca,capaz de cegar, explode à sua volta com um somque se assemelha ao tiro de um canhão — e de-pois é tudo escuridão e silêncio.

Peyton Farquhar estava morto. Seucorpo, com o pescoço quebrado, balançava lenta-mente de um lado para outro por entre osdormentes da ponte de Owl Creek.

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Naufrágio virtual

No verão de 1874 eu estava em Liver-pool, para onde fora em missão de negócios daempresa mercantil Bronson & Jarrett, de NovaYork. Eu sou William Jarrett. Meu sócio era Zen-as Bronson. A firma faliu no ano passado, e ele,incapaz de suportar a transição da riqueza para apobreza, faleceu.

Tendo concluído os negócios que fazia,e sentindo a lassitude e o cansaço provocadospelo despacho das mercadorias, senti que umaviagem mais prolongada seria agradável ebenéfica. Assim sendo, em vez de embarcar devolta num dos muitos e elegantes vapores de pas-sageiros, fiz reserva para Nova York no veleiroMorrow, no qual embarcara boa e valiosa parte

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das mercadorias que comprara. O Morrow era umnavio inglês com, é claro, poucas acomodaçõespara passageiros, que em verdade éramos apenastrês: eu, uma jovem e sua criada, uma negra demeia-idade. Achei estranho que uma moçainglesa tivesse uma criadagem daquele tipo, masela própria me explicaria depois que a mulherhavia sido deixada em sua família por um homeme uma mulher da Carolina do Sul, que tinhammorrido, ambos e no mesmo dia, na casa do paidela, em Devonshire — circunstância que por sisó já era suficientemente estranha para ficarretida em minha mente, tanto mais porque emconversas posteriores fiquei sabendo, pela jovem,que o tal senhor chamava-se William Jarrett,tendo o mesmo nome que eu. Eu sabia que umramo de minha família se fixara na Carolina do

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Sul, mas não conhecia nada sobre eles ou sobresua história.

O Morrow deixou a foz do Mersey nodia 15 de junho e navegou por muitas semanascom brisa suave e céu sem nuvens. O capitão,que era um admirável homem do mar mas nadamais do que isso, nos fazia pouca companhia,apenas nas refeições. E a jovem, Srta. JanetteHarford, e eu nos tornamos amigos. Estávamos,na verdade, quase todo o tempo juntos e, sendomuito introspectivo, eu me perguntava que novosentimento era aquele que ela me inspirava —uma atração secreta, sutil mas poderosa, que mefazia a todo instante procurar saber onde Janetteestava. Mas não conseguia entender o quepudesse ser. Só sabia que não era amor. Comessa certeza, e percebendo que a jovem era tão

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sincera quanto eu, certa noite arrisquei-me aperguntar-lhe (lembro-me que a data era 3 de ju-lho), rindo, enquanto estávamos sentados nodeque, se ela poderia me ajudar a resolver aquelacharada.

Por um instante, ela ficou em silêncio,com o rosto virado para o outro lado, e cheguei atemer que tivesse sido rude e indelicado. Maslogo, muito séria, fixou os olhos em mim. Numsegundo, fui invadido pela mais estranha fantasiaque já pode ter passado pela mente humana. Eracomo se ela estivesse olhando-me não comaqueles olhos, mas através deles — desde umadistância imensurável — e como se muitas outraspessoas, homens, mulheres e crianças, em cujosrostos eu captava expressões vaga e estran-hamente familiares, a cercassem, lutando na ânsia

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de também enxergar através daquelas órbitas. Onavio, o mar, o céu — tudo desaparecera. Eu jánão tinha consciência de nada exceto daquelasfiguras, daquele cenário extraordinário efantástico. E então, de repente, tudo foi escur-idão, e logo, fui saindo aos poucos do negror paraa luz, como se me acostumasse às diferentesgradações de luminosidade, até que tudo o queantes me cercava, o deque, o mastro, a cordo-agem do navio, lentamente, voltou a foco. A Srta.Harford fechara os olhos e se recostara na ca-deira, aparentemente adormecida, com o livroque estivera lendo aberto no colo. Impelido pornão sei que motivo, dei uma espiada no alto dapágina. Era um exemplar de um livro raro ecurioso, as Meditações, de Denneker. E o dedoindicador da moça estava pousado sobre aseguinte passagem:

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A todos é dado ser tragado para longe epermanecer fora do corpo por um tempo. Pois,assim como acontece com os rios cujas águas seencontram, fazendo com que o mais fraco sejatragado pelo mais forte, também ocorre um tipode relação na qual os caminhos se interceptam eas almas se fazem companhia, enquanto os cor-pos vão em direções opostas, sem nada saber.

A Srta. Harford levantou-se, es-tremecendo. O sol se pusera no horizonte, masnão fazia frio. Não havia uma brisa sequer. Nemnuvens no céu. E contudo tampouco havia es-trelas visíveis. Ouvimos uma correria pelotombadilho. O capitão subiu e dirigiu-se aoprimeiro-oficial, que, de pé, observava obarômetro.

"Meu Deus!", ouvi-o exclamar.

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Uma hora depois, Janette Harford, queeu mal enxergava em meio à escuridão e aos ja-tos d'água, foi-me arrancada dos braços pelorodamoinho cruel do navio que afundava. E eudesmaiei embrenhado nas cordas do mastro queflutuava e ao qual me atara.

Acordei sob a luz de uma lâmpada.Estava deitado num beliche em meio ao ambientefamiliar de um camarote de navio a vapor. Numsofá, junto à cama, estava sentado um homem,com roupas de dormir, lendo um livro. Reconhecio rosto de meu amigo Gordon Doyle, o qual con-hecera em Liverpool no dia de meu embarque,quando ele próprio se preparava para embarcarno City of Prague, tendo insistido para que eu oacompanhasse.

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Alguns minutos depois, falei seu nome.E ele disse apenas "Sim?" e virou mais uma pá-gina do livro sem tirar os olhos dele.

"Doyle", repeti, "eles conseguiramsalvá-la?”

Ele agora se dignava a me olhar e sorria,divertido. Evidentemente pensava que eu aindaestava meio adormecido. "Salvar quem? O quevocê está dizendo?”

"Janette Harford.”

Seu ar divertido transfigurou-se em es-tranheza. Ele agora me olhava fixamente, semnada dizer.

"Você vai acabar me contando", contin-uei, "vai acabar me contando.”

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Pouco depois, perguntei:

"Que navio é este?”

Doyle voltou a olhar-me.

"É o vapor City of Prague, que está indode Liverpool para Nova York. Três semanas nomar e um mastro quebrado. Passageiro daprimeira, Sr. Gordon Doyle; idem, só que lun-ático, Sr. William Jarrett. Os dois distintosviajantes embarcaram juntos, mas deverãoseparar-se a qualquer momento em razão da in-tenção do primeiro de atirar o último ao mar.”

Num impulso, sentei-me.

"Você quer dizer que há três semanassou passageiro deste vapor?”

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"É, mais ou menos isso. Hoje é dia 3 dejulho.”

"Eu estive doente?”

"Você nunca esteve tão bem. E com ex-celente apetite.”

"Deus do céu! Doyle, isso é um mis-tério. Pelo amor de Deus, fale sério. Então eu nãofui resgatado dos escombros do naufrágio doveleiro Morrow?”

Doyle empalideceu e, aproximando-se,segurou-me pelo pulso. Um segundo depois, per-guntou, falando devagar:

"O que você sabe sobre JanetteHarford?”

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"Primeiro diga-me o que você sabesobre ela.”

Doyle olhou-me por um instante comose pensasse no que ia fazer. Em seguida,sentando-se outra vez no sofá, disse:

"E por que não? Estou noivo de JanetteHarford, que conheci em Londres há um ano, ecom ela vou-me casar. A família dela, uma dasmais ricas de Devonshire, é contra o casamento enós decidimos fugir juntos — já estamos fugindo,para dizer a verdade, porque no dia em que eu evocê atravessamos a rampa para subir a bordodeste vapor, ela e sua fiel criada, uma negra, pas-saram por nós, para tomar o veleiro Morrow. Elanão concordou em viajar no mesmo navio que eue achamos melhor que tomasse um veleiro decarga, evitando assim que fosse notada ou até

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mesmo detida. Agora estou alarmado porque se omaldito defeito não for consertado logo e nos at-rasarmos muito, o Morrow vai chegar a NovaYork antes de nós e a pobrezinha não terá paraonde ir.”

Eu continuava deitado, imóvel — tãoimóvel que mal respirava. Mas o assunto evid-entemente empolgara Doyle, que depois de umapausa continuou:

"Por falar nisso, ela é filha adotiva dosHarfords. A mãe dela morreu onde moravam, aocair de um cavalo durante uma caçada, e o pai,louco de dor, matou-se no mesmo dia. Nenhumparente apareceu para reclamar a criança e assim,depois de um período razoável os Harfords a ad-otaram. Ela cresceu acreditando que era filhadeles.”

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"Doyle, que livro é esse que você estálendo?”

"Ah, são as Meditações, de Denneker. Éum negócio esquisito que Janette deu para mim.Por acaso ela possuía dois exemplares. Quer daruma olhada?”

Atirou-me o volume, que se abriu aocair. Numa das páginas abertas, um trecho estavasublinhado:

A todos é dado ser tragado para longe epermanecer fora do corpo por um tempo. Pois,assim como acontece com os rios cujas águas seencontram, fazendo com que o mais fraco sejatragado pelo mais forte, também ocorre um tipode relação na qual os caminhos se interceptam e

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as almas se fazem companhia, enquanto os cor-pos vão em direções opostas, sem nada saber.

"Janette tinha... tem... um gosto curiosopara leitura", consegui balbuciar, dominandominha agitação.

"É. E agora você vai me fazer o favor deexplicar como foi que descobriu o nome dela edo navio em que está.”

"Você falou durante o sono", respondi.

Uma semana depois, atracávamos noporto de Nova York. Mas do Morrow, nuncamais se teve notícia.

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Luar sobre a estrada

I

Depoimento de Joel Hetman Jr.

Sou o mais infeliz dos homens. Rico, re-speitado, razoavelmente culto, de boa saúde — ecom muitas outras vantagens dessas que geral-mente são valorizadas por quem as tem e dissim-uladas pelos que delas são carentes —, chego apensar que talvez pudesse ser menos infeliz setais vantagens me tivessem sido negadas, porquedessa forma o contraste entre minhas vidas exter-ior e interior não me chamaria atenção todo otempo de forma tão dolorosa. Ante a pressão deprivações ou sendo obrigado a algum esforço,talvez eu pudesse às vezes esquecer o segredo

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sombrio que acaba frustrando as conjecturas àsquais me obriga.

Sou o único filho de Joel e Júlia Het-man. Ele era um abastado cavalheiro rural, elauma mulher bonita e realizada, pela qual ele nu-tria uma paixão que hoje sei era permeada porciúmes e devoção absoluta. A casa da famíliaficava a uns poucos quilômetros de Nashvule,noTennessee, e era uma construção grande, feitade forma irregular, sem nenhum valor ar-quitetônico especial, que ficava a uma certa dis-tância da estrada, em meio a um parque deárvores e arbustos.

Na época que agora descrevo, eu tinhadezenove anos e estudava em Yale. Certo dia, re-cebi um telegrama de meu pai, num tom detamanha urgência que, atendendo a seu pedido

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inexplicado, voltei imediatamente para casa. Naestação de trem em Nashville, fui esperado porum parente distante, que me explicou a razãopela qual fora chamado: minha mãe tinha sidobarbaramente assassinada — por que e por quem,ninguém podia imaginar. Mas as circunstânciaseram as seguintes:

Meu pai tinha ido a Nashville, pensandoem retornar na tarde seguinte. Algo o impedira defechar o negócio pretendido e ele decidira ante-cipar a volta para aquela mesma noite, chegandopouco antes do amanhecer. Em seu depoimentoao juiz, ele contou que, estando sem chave e semquerer acordar os criados, decidiu, sem saberbem por quê, dar a volta até a porta dos fundos.Ao virar uma das esquinas da casa, ouviu o ruídode uma porta sendo fechada devagar e, no escuro,

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viu distintamente a figura de um homem, que emseguida desapareceu por entre as árvores do pá-tio. Uma rápida perseguição e uma breve buscapelo terreno, na crença de que se tratasse de umvisitante de alguma das criadas, provou-se in-frutífera. E, assim, ele entrou pela porta destran-cada e subiu as escadas rumo ao quarto de minhamãe. A porta estava aberta e, caminhando noescuro, meu pai tropeçou e caiu sobre um objetoque estava largado no chão. Vou poupar-me dosdetalhes: era o corpo de minha pobre mãe, mortapor estrangulamento, cometido por mãoshumanas!

Nada fora roubado da casa, os criadosnão tinham escutado nada e, não fosse pelas terrí-veis marcas de dedos na garganta da morta —

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Deus do céu! como poderia esquecê-las? —, nãohavia qualquer outra evidência do assassino.

Abandonei os estudos e fiquei ao ladode meu pai que, naturalmente, se transformara.Calmo e calado por natureza, estava agora mer-gulhado em um estado de tamanho desânimo quenada era capaz de prender sua atenção, embora,ao mesmo tempo, qualquer coisa — um ruído depassos, uma porta que se fechasse de repente —fosse capaz de deixá-lo em imediato alerta. Oupoderíamos dizer apreensivo. Diante de qualquerpequena surpresa dos sentidos, ele se erguia deum salto, muitas vezes pálido, para em seguidamergulhar numa apatia melancólica ainda maisprofunda do que antes. Imagino que estivessevivendo o que se chama de "colapso nervoso".Quanto a mim, eu era mais novo do que sou hoje

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— e isso fazia toda a diferença do mundo. A ju-ventude é um bálsamo para qualquer ferida. Ah,como me readaptei a viver naqueles campos en-cantadores! Desacostumado ao luto, não podiaavaliar a dimensão de minha perda. Não tinhacomo medir a força daquele golpe.

Certa noite, poucos meses depois dohorrível acontecimento, meu pai e eu vínhamosda cidade a pé. A lua cheia surgira do horizonte,a leste, três horas antes. Os campos exibiam aimobilidade solene de uma noite de verão. Nos-sos passos e o ruído incessante dos grilos, aolonge, eram os únicos sons. As sombras negrasdas árvores de um lado e outro derramavam-se naestrada e esta, onde não havia sombra, brilhavaem seu branco fantasmagórico. Quando nosaproximávamos do portão de casa, cuja frente

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estava imersa em penumbra, e na qual não haviaqualquer luz acesa, meu pai parou de repente,apertando meu braço e exclamando, com a respir-ação entrecortada:

"Deus! O que é isso?”

"Não ouvi nada", respondi.

"Mas, olhe! Veja!", disse ele, com odedo à altura do rosto apontando a estrada ànossa frente.

E eu falei:

"Não há nada ali. Vamos, pai, vamos en-trar. Você não está bem.”

Ele soltara meu braço e estava de pé, rí-gido e imóvel no meio da estrada iluminada, com

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um olhar insano. Sob o luar, seu rosto exibia umapalidez e uma fixidez inexpressiva, que me afli-giram. Toquei devagar em seu braço, mas eleparecia ter esquecido que eu existia. E logocomeçou a recuar, passo a passo, sem por um in-stante tirar os olhos daquilo que via, ou pensavaver. Virei-me, pronto para segui-lo, mas parei, in-certo. Não me lembro de ter sentido medo, excetopor um súbito arrepio que me pareceu puramentefísico. Foi como se um vento gelado houvesse to-cado meu rosto, envolvendo-me o corpo dacabeça aos pés. Podia senti-lo eriçando meuscabelos.

Naquele instante, minha atenção foi des-viada para uma luz que se acendeu de repentenuma das janelas do andar superior da casa: umadas criadas, acordada sabe-se lá por que

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premonição misteriosa e maligna, obedecendo aum impulso que ela própria depois não saberiaexplicar, acabara de acender uma lâmpada.Quando me voltei para olhar meu pai, ele tinhadesaparecido. E, ao longo de todos os anos que sepassaram desde então, nenhum sinal de seu des-tino tocou o mundo real, vindo das profundezasdo desconhecido.

II

Depoimento de Caspar Grattan

Hoje, diz-se que estou vivo. Amanhã,restará aqui nesta sala o invólucro de barro mortodo que um dia fui. Se alguém porventura erguer opano e descobrir a face dessa desagradável car-caça, irá fazê-lo por mera curiosidade mórbida.Alguns, sem dúvida, irão mais longe e

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perguntarão: "Quem foi ele?" Neste relato, dareia única resposta que sou capaz de dar: CasparGrattan. Claro que isso deverá ser suficiente. Talnome serviu a minhas mínimas necessidades pormais de vinte anos desta vida cuja duraçãodesconheço. Na verdade, fui eu mesmo que medei este nome, mas, na falta de outro, tinha odireito de fazê-lo. Neste mundo, todos precisamde um nome. Isso evita confusões, mesmo quenão estabeleça uma identidade. Alguns, contudo,são conhecidos apenas por números, que tambémme parecem distinções inadequadas.

Certo dia, por exemplo, eu caminhavapela rua de uma cidade muito longe daqui,quando encontrei dois homens de uniforme, umdos quais, vacilando e olhando para meu rosto deforma curiosa, disse ao companheiro: "Aquele

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homem se parece com o 767." Algo naquelenúmero soou-me familiar e terrível. Movido porum impulso incontrolável atravessei a rua e saícorrendo, só parando quando, completamente ex-austo, cheguei a uma trilha no campo.

Nunca mais esqueci aquele número e elesempre volta à minha mente em meio a uma al-garavia de obscenidades, a explosões de risocruel, ao som surdo de portas de ferro sefechando. E por isso digo que um nome, mesmoque dado por nós mesmos, ainda é melhor do queum número. Nos registros do cemitério, embreve, eu terei os dois. Quanta opulência!

Àquele que encontrar estes escritos, pe-direi um pouco de consideração. Não é a históriade minha vida. O conhecimento para escrevê-lame foi negado. É apenas um registro de

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lembranças fragmentadas e aparentementesecretas, algumas claras e vívidas como contasbrilhantes de um colar, outras remotas e estran-has, recobertas pelo véu de carmim dos sonhos,intercaladas por espaços em branco, vazios —fogueiras de bruxas brilhando ainda, vermelhas,em grande desolação.

Estando no limiar da eternidade, volto-me para um último olhar sobre o caminho quetrilhei. Vejo vinte anos de pegadas bem delinea-das, as impressões de pés sujos de sangue.Atravessam um caminho de pobreza e dor, desolidão e incertezas, como o de alguémtropeçando ante um imenso fardo...

Remoto, inóspito, melancólico, lento.

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Ah, a profecia do poeta era Eu — queadmirável, o quão terrivelmente admirável!

Voltando ao início dessa via dolorosa —esse épico do sofrimento, com episódios depecado — já não vejo nada com clareza. Tudo es-tá envolto em névoa. Só sei que a trilha se es-tende apenas por vinte anos, e contudo sou umhomem velho.

Ninguém se lembra do próprio nasci-mento. É preciso que alguém nos conte sobre ele.Mas comigo foi diferente. A vida se fez para mimquando eu já era um homem adulto, ofertando-me todas as minhas faculdades e poderes. Deuma existência prévia nada sei, havendo em tudovagas sugestões de que tanto pode ser memóriaquanto sonho. Sei apenas que minha primeiraconsciência foi a de maturidade, em corpo e em

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espírito — consciência esta que foi aceita semsurpresa ou conjecturas. Simples-mente dei pormim caminhando numa floresta, maltrapilho, de-scalço, horrivelmente cansado e faminto. Vendouma casa de fazenda, aproximei-me e pedi com-ida, que me foi dada por alguém que perguntoumeu nome. Eu não o sabia, embora soubesse quetodos têm nome. Sem saber o que fazer, retirei-me e, como a noite caía, deitei-me na floresta eadormeci.

No dia seguinte cheguei a uma cidadegrande, cujo nome omitirei. Tampouco relatareios outros acontecimentos desta vida que agoraestá por acabar-se. Uma vida errante, sempre eem toda parte assombrada pela sensação arrasad-ora de um crime provocado por um erro e de um

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terror provocado por um crime. Vejamos se con-sigo reduzir tudo a esta narrativa.

Parece que um dia vivi perto de umagrande cidade, onde fui um próspero fazendeiro,casado com uma mulher que amava, mas na qualnão confiava. Tínhamos, às vezes me parece, umfilho, um jovem brilhante e promissor. Ele équase sempre uma lembrança vaga, nunca bemdelineada, quase todo o tempo fora do quadro.

Numa noite infeliz, decidi testar a fidel-idade de minha mulher de uma maneira vulgar,um lugar-comum, conhecido de todos que estãoacostumados à literatura de fatos e ficção Fuipara a cidade e disse a ela que só voltaria no diaseguinte de tarde. Mas voltei à noite, antes doamanhecer, e fui para os fundos da casa com a in-tenção de entrar por uma porta que eu mesmo

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preparara de forma a que parecesse estar trancadasem o estar. Quando me aproximava, ouvi oruído leve de uma porta abrindo-se e fechando-se, e em seguida vi um homem esgueirar-se e de-saparecer na escuridão. Cheio de ódio no cor-ação, corri atrás dele, mas ele esvaneceu-se semque eu pudesse saber quem era. Hoje não consigosequer ter certeza de que era de fato um serhumano.

Louco de raiva e ciúme, cego, bestial,movido pelas paixões mais baixas de um homeminsultado, entrei na casa e disparei escada acimapara o quarto de minha mulher. Estava fechado,mas como eu também adulterara aquela tranca,entrei com facilidade e, apesar da escuridão total,logo cheguei à cabeceira dela. Apalpando a cama

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com as mãos, vi que, embora em desalinho, es-tava vazia.

"Ela está lá embaixo", pensei, "e, apa-vorada com minha chegada, escapou de mim pelocorredor escuro.”

Disposto a segui-la, virei-me para sairdo quarto, mas acabei saindo na direção errada— ou na direção certa! E meu pé esbarrou nela,agachada num canto da parede. No mesmo in-stante, minhas mãos apertavam sua garganta, deonde saiu um grito abafado, e meus joelhosprensavam-lhe o corpo, que se debatia. E ali, noescuro, sem uma palavra de acusação, eu a matei,estrangulando-a!

Aqui termina o sonho. Relatei-o notempo passado, mas o presente teria sido mais

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apropriado, porque sempre e sempre essa tragé-dia sombria é reencenada em minha mente.Sempre e sempre, eu traço o plano, sofro com aconfirmação, corrijo o erro. E então tudo é vazio.E depois é a chuva batendo contra as vidraçassombrias, ou a neve caindo sobre minhas poucasroupas, as rodas chocando-se contra as pedras dasruas esquálidas onde jaz minha vida, na pobrezae na miséria. Se em algum momento há sol, nãoconsigo lembrar-me. E se há pássaros, não osouço cantar.

Mas há um outro sonho, outra visão danoite. Estou por entre as sombras de uma estradailuminada pela luz do luar. Tenho a consciênciade uma outra presença, mas não sei ao certoquem é. Na sombra de uma imensa casa, vejo obrilho de uma veste branca. Em seguida a figura

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de uma mulher, que surge à minha frente na es-trada. É minha esposa, que matei! Vejo a morteem seu rosto. Há marcas em sua garganta. Os ol-hos estão fixos nos meus com infinita gravidade,mas não há reprovação, nem ódio ou ameaça,nem nada tão medonho quanto o simples recon-hecimento. Diante dessa horrível aparição, eufujo, aterrorizado — um terror que sinto até hoje,ao escrever estas linhas. Já não posso encontraras palavras certas. Vejam! Elas...

Agora estou calmo, mas na verdade nadamais tenho a dizer. O incidente acaba ondecomeçou — na escuridão e na incerteza.

Sim, recuperei meu autocontrole, sounovamente "senhor de meu espírito". Mas issonão é uma trégua. É apenas outro estágio, outrafase de minha expiação. Minha pena, constante

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em quantidade, é mutável em qualidade. E umade suas variantes é quando me sinto tranqüilo.Afinal de contas, é uma condenação perpétua."Inferno em vida" — é uma pena tola. O réu équem escolhe a duração de sua pena. A minha seencerra hoje.

A todos vocês, desejo a paz que nuncative.

III

Depoimento da finada Júlia Hetman,através do médium Bayrolles

Eu me deitara cedo, mergulhando imedi-atamente num sono tranqüilo, do qual fui desper-tada por uma sensação indefinível de perigo, aqual, creio, é uma experiência comum naquela

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outra vida, a anterior. Tinha certeza de queaquele medo era sem motivo, mas ainda assimcontinuava sentindo-o. Meu marido, Joel Het-man, estava fora. Os criados dormiam em outraparte da casa. Mas tudo isso era costumeiro. Enunca me afligira. Contudo aquele estranho terrorfoi crescendo dentro de mim de forma tão in-suportável que acabei vencendo a relutância emme mover e afinal levantei-me, acendendo a lâm-pada na cabeceira da cama. Mas, ao contrário doque esperava, não senti qualquer alívio. A luzpareceu na verdade aumentar o perigo, pois con-cluí que ela brilharia através da fresta da porta,denunciando-me para qualquer presença malignaque estivesse escondida do lado de fora. Vocêsque ainda são carne e estão sujeitos aos horroresda imaginação, pensem que medo monstruosonão era aquele, que buscava na escuridão um

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pouco de segurança contra os seres malévolos danoite. É como se trancar em algum lugar com uminimigo invisível — é a estratégia do desespero.

Apagando a lâmpada, cobri-me até acabeça com as cobertas e ali fiquei, tremendo eem silêncio, incapaz de gritar, sem ao menoslembrar-me de rezar. Nesse estado lamentável,devo ter permanecido por aquilo que vocêschamam horas. Para nós, as horas não existem. Otempo não existe.

Finalmente, lá estava — o som leve, ir-regular, de passos nas escadas! Eram passos len-tos, hesitantes, incertos, como o de algo que nãoconhecesse o caminho. Para minha mente ator-mentada, isso foi ainda mais aterrorizante, comoa aproximação de um ser maligno, cego e irra-cional, diante do qual não haveria apelação.

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Cheguei a pensar que deveria ter deixado a lâm-pada do corredor acesa. Aqueles passos titu-beantes provavam que a criatura era um monstroda noite. Era um pensamento tão tolo e incoer-ente quanto o pavor que antes a própria luz meinfundira, mas o que fazer? O medo não ra-ciocina. O medo é insano. A prova funesta queele carrega e os conselhos covardes que sussurrasão inenarráveis. Sabemos bem tudo isso, nósque já atravessamos o Umbral do Terror, quevagamos nas sombras eternas em meio às cenasde nossas vidas prévias, invisíveis até para nósmesmos, invisíveis uns para os outros,escondendo-nos em lugares solitários, desam-parados, tentando falar com nossos entesqueridos, porém mudos, e sentindo diante deles omesmo pavor que eles diante de nós. Às vezes,esse impedimento é afastado, a lei suspensa: e,

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através do poder imortal do amor ou do ódio, nósquebramos o encanto. Somos então vistos poraqueles que gostaríamos de alertar, consolar oupunir. Que aparência temos para eles, nãosabemos. Sabemos apenas que aterrorizamosmesmo aqueles que mais queremos confortar, e aquem mais rogamos por ternura e compaixão.

Perdoem-me, eu lhes peço, essa di-gressão inconseqüente de alguém que um dia foimulher. Vocês, que nos consultam através dessesmeios imperfeitos, não podem compreender.Fazem perguntas tolas sobre coisas desconheci-das, esquecidas. Quase tudo que sabemos e quepoderíamos dividir com vocês não significa nadaem seu mundo. Devemos comunicar-nos pormeio de uma inteligência gaguejante, dentro dapequena fração de nossa linguagem que vocês

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são capazes de falar. Vocês pensam que somosde outro mundo. Não. Não conhecemos qualqueroutro mundo que não o seu, embora para nós jánão haja sol, nem calor, nem música, nem riso,nem canto de pássaros, nem qualquer forma decompanhia. Deus! O que é ser um espectro, ras-tejando e tremendo num mundo distorcido, umapresa do medo e do desespero!

Não, não foi de medo que morri: fosse oque fosse, aquilo foi embora. Ouvi quando des-ceu as escadas correndo, pelo que me pareceu,como se ele próprio também estivesse com medo,E então levantei-me para pedir ajuda. Mal al-cançara, com as mãos trêmulas, a maçaneta daporta quando — Deus do céu! — percebi que elevoltava. Agora, seus passos subindo as escadaseram rápidos, pesados, seguros. Faziam toda a

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casa estremecer. Corri para um canto da parede eagachei-me no chão. Tentei rezar. Tentei gritar onome de meu querido marido. E então ouvi aporta se abrir com estrondo. Houve um intervalode inconsciência e, quando voltei a mim, senti apressão que se fechava sobre minha garganta,estrangulando-me. Senti meus braços lutando emvão contra alguma coisa que me sobrepujava.Senti minha língua esgueirando-se por entre osdentes! E então fiz a travessia rumo a esta vida.

Não, não tenho conhecimento do que eraaquilo. A soma do que sabíamos no momento damorte é a medida do que saberemos depois, a re-speito de tudo o que aconteceu antes. Desta ex-istência sabemos muitas coisas, mas poucas luzesrecaem sobre as páginas daquela outra vida. É namemória que está escrito tudo aquilo que

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seremos capazes de ler. Não há aqui colinas daverdade debruçando-se sobre os domínios ondereina a dúvida. Continuamos lutando no Vale dasSombras, escondidos em suas paragens desola-das, perscrutando através dos espinheiros e damata seus loucos, malignos habitantes. Comopoderíamos saber mais sobre aquele passado quese esbate?

O que relatarei agora aconteceu certanoite. Sabemos quando é noite, porque é quandovocês voltam para suas casas e nós podemos sairde nossos esconderijos, vagando sem medo porcenários onde um dia vivemos. Ah, espiamos at-ravés das janelas e chegamos mesmo a entrarpara olhá-los enquanto vocês dormem. Por muitotempo, vaguei em torno da casa onde um dia fuicruelmente transformada nisto que sou hoje. É o

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que fazemos com os lugares onde permanecemaqueles que amamos ou odiamos. Em vão, bus-cava uma forma de manifestação, uma maneirade fazer com que meu marido e meu filho com-preendessem que eu continuava a existir, a sentirum amor imenso e também um enorme pesar.Mas sempre, se estavam dormindo, acordavam,ou, se em meu desespero eu ousava aproximar-me deles quando despertos, tornavam para mimos olhos terríveis dos vivos, assustando-me comaqueles olhares e desviando-me de meuspropósitos.

Naquela noite, eu os procurara em vão,ao mesmo tempo temendo encontrá-los. Não es-tavam em parte alguma da casa, nem no pátio ilu-minado pela luz da lua. Porque, embora o solpara nós esteja para sempre perdido, a lua, cheia

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ou tênue, nos é visível. Às vezes brilha à noite, àsvezes de dia, mas sempre surge e se põe, comonaquela outra vida.

Saí do pátio e, sob a luz esbranquiçada,segui pela estrada silenciosa, sentindo-me triste ecansada. De repente, ouvi a voz de meu pobremarido em exclamações de espanto, junto com ade meu filho, tentando acalmá-lo ou dissuadi-lo.E lá, em meio às sombras das árvores, lá estavameles — próximos, tão próximos! Seus rostosvoltados em minha direção, os olhos do pai fixosnos meus. Ele me via — finalmente, ele podiaver-me! Consciente disso, meu terror desapare-ceu como um sonho cruel. O encanto mortal es-tava quebrado: o Amor vencera a Lei. Louca dealegria, gritei — devo ter gritado: "Ele me vê! Eele vai compreender!" E então, tentando

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controlar-me, saí em sua direção, sorrindo, con-sciente de minha própria beleza, oferecendo-me aseus braços, a fim de confortá-lo com meucarinho, de segurar a mão de meu filho e dizer aspalavras que restabeleceriam os velhos laços,entre vivos e mortos.

Mas, ai de mim! O rosto de meu maridoempalideceu de medo e seus olhos pareciam osde um animal acuado. Virou-me as costas en-quanto eu corria e acabou desaparecendo nafloresta. Que destino tomou, não me foi revelado.

Quanto a meu pobre filho, duplamentedesolado, nunca pude fazer com que sentisseminha presença. Em breve, ele também deveráatravessar a fronteira rumo a esta Vida Invisível eentão eu o terei perdido para sempre.

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Aparições

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O que era?

Ao sul do ponto em que a estrada entreLeesville e Hardy, no estado do Missouri, corta abifurcação leste do rio May, existe uma casaabandonada. Ninguém vive lá desde o verão de1879 e ela está caindo aos pedaços. Por cerca detrês anos antes da data que acabo de mencionar, acasa foi ocupada pela família de Charles May,cujos ancestrais tinham dado nome ao rio quepassa ali perto. A família do Sr. May consistiaem sua mulher, um filho adulto e duas moças. Onome do filho era John — os nomes das filhas, oredator destas linhas desconhece.

John May era rude, soturno e, emboranão explodisse facilmente, era dono de um tem-peramento tão rancoroso e mal-humorado que

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raramente se vê. Seu pai era o inverso. Sendo detemperamento solar e jovial, tinha pavio curto,sujeito a explosões momentâneas, que logo eramesquecidas. Não guardava ressentimentos e, as-sim que a raiva passava, em pouco tempo estavadisposto às reconciliações. Tinha um irmão quevivia nas redondezas e que dele diferia em tudo.Os vizinhos comentavam, maldosos, que Johnherdara o temperamento do tio.

Certo dia houve um desentendimentoentre pai e filho, palavras duras foram ditas e opai acabou dando um soco no rosto do rapaz.Calmamente, John limpou o sangue do rosto e,com os olhos fixos em seu agressor, esteja arre-pendido, disse com toda a frieza: "O senhor vaimorrer por causa disso.”

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Suas palavras foram ouvidas por doisirmãos, de sobrenome Jackson, que estavam porperto no momento da briga. Mas, vendo que pai efilho estavam discutindo, eles se afastaram, apar-entemente sem ser vistos. Charles May depois re-latou o acontecido à mulher, explicando quehavia pedido perdão ao filho pelo soco, mas emvão. O jovem não apenas rejeitara suas desculpascomo também se recusara a retirar a ameaça.Apesar disso, não houve um rompimento explí-cito nas relações familiares: John continuouvivendo com os pais e a vida seguiu seu curso.

Numa manhã ensolarada de junho, em1879, cerca de duas semanas depois da briga,May, o pai, saiu de casa depois de tomar café, le-vando consigo uma pá. Disse que ia cavar junto auma fonte, num bosque a pouco mais de um

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quilômetro da casa, a fim de que o gado tivesseágua para beber. John ficou em casa por algumashoras, onde se barbeou, escreveu cartas e leu ojornal. Agia da forma costumeira. Ou, talvez,mostrando-se um pouco mais taciturno e ríspido.

Às duas da tarde ele saiu de casa. Àscinco, voltou. Por algum motivo sem qualquerligação com o interesse em seus movimentos, edo qual não me lembro, tanto a mãe como asirmãs notaram a hora em que ele saiu e a hora emque voltou, como seria dito mais tarde duranteseu julgamento por assassinato. Notaram tambémque a roupa dele estava molhada em alguns pon-tos, como se (destacaria mais tarde a promotoria)ele tivesse lavado manchas de sangue. Suamaneira de agir era estranha e sua aparência, de

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desvario. Disse que se sentia mal e foi para oquarto se deitar.

May, o pai, nunca voltou. Mais tarde,naquela mesma noite, os vizinhos mais próximosforam chamados e durante toda a madrugada etodo o dia seguinte empreenderam buscas nafloresta onde ficava a fonte. Nada encontraram,exceto as pegadas dos dois homens no barro emtorno da nascente. Enquanto isso, John May pi-orava cada vez mais, com os sintomas de umadoença que o médico local chamou de febrecerebral. E em seus delírios falava de assassinato,embora não explicasse quem teria sido assas-sinado, nem quem imaginava ser o culpado. Masa ameaça que fizera foi lembrada pelos irmãosJackson e, como suspeito, ele foi preso, ficandoem prisão domiciliar sob a custódia de um

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subxerife. A opinião pública estava contra ele e,se não estivesse doente, provavelmente teria sidoenforcado pela turba. E, assim, os vizinhos se re-uniram na terça-feira, tendo sido criado umcomitê para acompanhar o caso e tomar todas asprovidências que se fizessem necessárias.

Na quarta, tudo mudou. Da cidadezinhade Nolan, a mais de doze quilômetros de distân-cia, chegaram notícias que deram nova luz aocaso. Nolan era composta de uma escola, umaferraria, um armazém e meia dúzia de casas. Oarmazém era de um tal Henry Odell, primo deCharles May. Na tarde do domingo em que Mayhavia desaparecido, o Sr. Odell e quatro de seusvizinhos, todos homens de credibilidade, estavamsentados diante do armazém fumando e convers-ando. Fazia calor. E tanto a porta da frente

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quanto a de trás estavam abertas. Lá pelas três datarde, Charles May, que era conhecido de três doscinco homens, entrou pela porta da frente e saiupela de trás. Não usava chapéu ou casaco. Nãoolhou para os homens, nem respondeu aoscumprimentos, gesto que não causou espanto,uma vez que ele estava seriamente ferido. Tinhaum ferimento acima da sobrancelha esquerda —um corte profundo, de onde o sangue vertia,cobrindo todo o lado esquerdo do rosto e dopescoço e empapando a camisa cinza clara,Estranhamente, a conclusão da maioria dos ho-mens foi a de que ele se metera em alguma brigae que se dirigia direto para o riacho nos fundosdo armazém, para se lavar.

Talvez tenham ficado constrangidos —movidos por um código rural que os impediu de

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segui-lo e oferecer ajuda. Os autos, dos quais estanarrativa foi em grande parte extraída,restringem-se aos fatos. Eles esperaram que eleretornasse, mas ele não retornou.

Em volta do riacho que passa nos fundosdo armazém há uma floresta, que se estende porquase dez quilômetros até as colinas de MedicineLodge. Assim que chegou à vizinhança dohomem desaparecido a notícia de que ele haviasido visto em Nolan, houve uma mudança imedi-ata nos sentimentos da população. O comitê devigilância foi dissolvido sem sequer a formalid-ade de uma resolução. As buscas nas profundezasda floresta junto ao rio May foram suspensas equase todos os homens da região se puseram avasculhar os arredores de Nolan e as colinas de

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Medicine Lodge. Mas do homem desaparecidonão se achou traço.

Uma das coisas mais estranhas desse es-tranho caso é o indiciamento formal e o julga-mento de um homem sob a acusação de assas-sinato de outro homem, cujo corpo jamais foivisto por quem quer que fosse — de um homem,inclusive, que não se sabia ao certo se estavamorto. Todos nós já ouvimos falar dos caprichose excentricidades das leis da fronteira, mas essecaso, acredita-se, é único. Seja como for, constados autos que, assim que se recuperou, John Mayfoi acusado pelo assassinato do pai desaparecido.O Conselho de defesa parece que não perdeutempo e o caso foi julgado por seus méritos. Apromotoria foi tíbia e negligente. E a defesa rapi-damente estabeleceu — levando em conta a

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vítima — um álibi. Se no momento em que JohnMay matou Charles May, na suposição de que otivesse matado, Charles May estava a quilômet-ros de distância de onde John May devia estar,está claro que a vítima só poderia ter morridopelas mãos de outra pessoa.

John May foi absolvido e deixou a re-gião, sem que, desde então, jamais alguémouvisse falar dele. Pouco depois, sua mãe e suasirmãs mudaram-se para St. Louis. A fazenda pas-sou para as mãos de um homem que possuía oterreno adjacente, onde tinha seu próprio rancho,e a casa dos May ficou abandonada, tendo ad-quirido a sombria fama de mal-assombrada.

Certo dia, depois que a família May jáhavia deixado a região, uns garotos, que brin-cavam no bosque junto ao rio May, encontraram

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encoberta sob um monte de folhas mortas, masparcialmente desenterrada pelos porcos, uma pá,quase nova e ainda brilhante, exceto por umponto num dos cantos em que estava enferrujadae manchada de sangue. A ferramenta tinha as ini-ciais C. M. marcadas no cabo.

A descoberta renovou, até certo ponto, aexcitação popular dos meses anteriores. O terrenoperto do local onde a pá tinha sido encontrada foicuidadosamente escavado e o resultado foi que seencontrou o corpo de um homem. Havia sido en-terrado a uma profundidade de menos de ummetro e o local fora coberto por uma camada defolhas mortas e gravetos. Quase não estava de-composto, fato atribuído a alguma propriedadepreservativa do solo rico em minerais.

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Acima da sobrancelha esquerda haviaum ferimento — um corte profundo de onde osangue vertera, cobrindo todo o lado esquerdo dorosto e do pescoço e empapando a camisa cinzaclara. O crânio fora rachado com o golpe. Ocorpo era de Charles May.

Mas o que era aquilo que atravessou aloja do Sr. Odell em Nolan?

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Testemunha de um enforcamento

Um velho de nome Daniel Baker, quevivia em Lebanon, Iowa, era suspeito, segundo osvizinhos, de ter assassinado um mascate que obt-ivera permissão para pernoitar em sua casa. Issoaconteceu em 1853, quando vendedores ambu-lantes eram coisa mais comum no Oeste do quesão hoje, e quando os perigos eram maiores. Omascate, com sua maleta, atravessava os campospor todo tipo de estrada deserta e tinha de contarcom a hospitalidade dos camponeses. Issocolocava-o em contato com tipos estranhos, al-guns não muito escrupulosos em seus métodos deganhar a vida, sendo o assassinato um meioaceitável para alcançar tal objetivo. Às vezesacontecia de um mascate, com a maleta já vazia ea bolsa de dinheiro cheia, ir até a moradia

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solitária de algum mau-caráter e depois nuncamais se ter notícias dele. Foi assim o caso en-volvendo o "velho Baker", que era como ochamavam. (Nos povoados do Oeste, esse tipo deapelido só é dado a pessoas que não são muitobenquistas; àquele que é malvisto pela sociedadeaplica-se a referência reprovadora à idade.) Ummascate apareceu na casa dele e nunca mais foivisto — era só o que se sabia.

Sete anos depois, o reverendo Cum-mings, pastor batista muito conhecido naquela re-gião, ia passando certa noite perto da fazenda deBaker. Não estava muito escuro: havia um ped-aço de lua em algum lugar acima da bruma leveque encobria os campos. O Sr. Cummings,sempre bem-humorado, assobiava uma canção,que interrompia de vez em quando para dizer

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uma palavra de encorajamento a seu cavalo. Aose aproximar de uma pequena ponte que cruzavauma ravina seca, viu a figura de um homem depé, claramente delineado sobre o fundo cinza eenevoado da floresta. O homem trazia algumacoisa atada às costas e levava um grosso cajado— obviamente, um vendedor ambulante. Haviaem suas maneiras um certo alheamento, comonos sonâmbulos. O Sr. Cummings puxou asrédeas do cavalo quando chegou diante dele esaudou-o com simpatia, convidando-o a subir nacarroça — "se estiver indo na minha direção",acrescentou. O homem ergueu o rosto, encarou-o,mas nem respondeu nem saiu do lugar. O pastor,com seu persistente bom humor, repetiu o con-vite. Então o homem esticou a mão direita eapontou para baixo, enquanto continuava de péna beirada da ponte. O Sr. Cummings olhou para

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onde ele apontava, em direção à ravina, mas, nãovendo nada demais, virou-se para olhar de novopara o homem. Ele havia desaparecido. O cavalo,que durante todo o tempo estivera estranhamenteinquieto, soltou no mesmo instante um relinchode terror e disparou. Quando conseguiu recuperaro controle do animal, o pastor já estava no alto damontanha, centenas de metros adiante. Olhoupara trás e viu a figura do homem outra vez, nomesmo lugar e com a mesma atitude que obser-vara. E então, pela primeira vez, foi invadidopela sensação do sobrenatural e partiu para casa atoda velocidade, como o cavalo queria.

Em casa, contou sua aventura à famíliae, no dia seguinte cedo, acompanhado por doisvizinhos, John White Corwell e Abner Raiser,voltou ao tal lugar. Lá encontraram o corpo do

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velho Baker pendurado pelo pescoço numa dasvigas da ponte, bem embaixo do lugar onde aaparição estivera de pé. Uma fina camada depoeira, levemente umedecida pela bruma, cobriao chão da ponte, mas apenas as pegadas docavalo do Sr. Cummings eram visíveis.

Ao retirar o corpo, os homens re-volveram o chão de terra fofa, esboroada, da en-costa, acabando por desenterrar ossos humanosque estavam quase descobertos graças à ação daágua e das geadas. Os ossos foram identificadoscomo sendo do mascate desaparecido. No duploinquérito aberto pelo júri local, ficou com-provado que Daniel Baker havia sido morto pelaspróprias mãos, num momento de temporária in-sanidade, e que Samuel Morritz fora assassinado— por quem, o júri não sabia.

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Mensagem sem fio

No verão de 1896, o Sr. William Holt,um empresário bem-sucedido de Chicago, estavavivendo temporariamente numa cidadezinha nocentro do estado de Nova York, de cujo nomeeste escritor não se lembra. O Sr. Holt tinha "tidoproblemas com a mulher", de quem se separarano ano anterior. Se fora alguma coisa mais gravedo que "incompatibilidade de gênios", ele étalvez a única pessoa que poderia dizer, já quenão cultivava o hábito de fazer confidências.Mesmo assim, contou os incidentes que relatareiaqui a pelo menos uma pessoa, sem que pedissesegredo. Hoje ele vive na Europa.

Certa noite, Holt havia saído da casa doirmão, que acabara de visitar, para um passeio

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pelos campos. Pode-se supor — seja qual for ovalor dessa suposição, diante do que se diz teracontecido — que ele tivesse a mente ocupadapor reflexões sobre sua infelicidade doméstica esobre as mudanças ocorridas em sua vida.Fossem quais fossem seus pensamentos, o fato éque o absorveram de tal forma que ele não sentiunem a passagem do tempo nem para onde seuspés o levavam. Sabia apenas que ultrapassara emmuito os limites urbanos e que agora atravessavauma região deserta, por uma estrada que não separecia em nada com a que tinha trilhado aodeixar a cidade. Em resumo, estava perdido.

Percebendo a má sorte, sorriu. A regiãocentral do estado de Nova York não era perigosa,nem ninguém é capaz de ficar perdido ali pormuito tempo. Virou-se e recomeçou a andar pelo

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mesmo caminho por onde viera. Antes que fossemuito longe, notou que a região em torno ficavacada vez mais estranha — e clara. Tudo estavaenvolto num halo de luz suave e avermelhada, naqual via sua própria sombra projetar-se sobre aestrada. "Alua está nascendo", disse a si mesmo.Mas em seguida lembrou-se que era tempo de luanova e que, mesmo se o astro enganoso estivessenum de seus estágios visíveis, com certeza já ter-ia desaparecido no horizonte. Parou e olhou emvolta, procurando a fonte daquela luminosidade,que se espalhava rapidamente. Ao fazê-lo, viu aprópria sombra projetar-se à sua frente na es-trada, da mesma forma como quando estiveravirado para o outro lado. A luz continuava vindode trás dele. Era surpreendente. Não podiacompreender. Voltou-se outra vez, e mais outra,virando-se para todos os pontos do horizonte. A

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sombra continuava à sua frente — e a luz atrás,"aquela vermelhidão estranha, quieta".

Holt ficou assombrado — "bestificado"é a palavra que usaria depois, ao relatar o caso—, mas ainda assim manteve uma certa curiosid-ade racional. Para testar a intensidade daquelaluz, cuja causa e natureza não podia determinar,tirou o relógio para ver se conseguia enxergar-lheos ponteiros. Estavam perfeitamente visíveis,mostrando que eram 11 horas e 25 minutos.Naquele instante, a misteriosa luminosidade derepente explodiu num esplendor intenso, quasecapaz de cegar, tomando todo o céu e fazendo de-saparecerem as estrelas, enquanto projetava paraa frente a sombra agora descomunal de Holt. Foisob aquela luz assombrada que ele viu, a poucadistância mas a uma certa altura, como se

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flutuasse, a figura de sua mulher, vestida comroupas de dormir e segurando junto ao seio ofilho deles. Os olhos dela encaravam-no comuma expressão que Holt mais tarde se diria in-capaz de definir ou descrever, embora ressaltasseque "não era deste mundo".

A luz intensa foi momentânea e logotudo escureceu, embora a aparição ainda per-manecesse visível, pálida e imóvel. Em seguida,foi aos poucos morrendo até desaparecer de todo,como a imagem de uma luz forte que fica na ret-ina depois que fechamos os olhos. Uma peculiar-idade daquela aparição, a princípio não notada,mas que ele mais tarde recordaria, é que ele viraapenas a parte superior da figura da mulher: nadahavia da cintura para baixo.

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A escuridão repentina não foi absoluta elogo ele pôde discernir tudo à sua volta.

Na penumbra da manhã, deu por si en-trando na cidade, pelo lado oposto ao qual haviasaído. Pouco depois chegou à casa do irmão, quemal o reconheceu. Tinha os olhos injetados e,desvairado, estava da cor do pêlo de um rato. Deforma quase incoerente, Holt relatou o que sepassara.

"Vá para a cama, meu rapaz", disse-lheo irmão, "e espere. Vamos acabar descobrindomais sobre isso.”

Horas depois, chegava o telegrama pre-destinado. A casa de Holt, num dos subúrbios deChicago, fora destruída pelo fogo. Acuada pelaschamas, sua mulher aparecera na janela, com o

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filho nos braços. Ali ficara, imóvel, aparente-mente em choque. No momento exato em que osbombeiros chegavam com uma escada, o chãodesabara, e ela não fora mais vista. O momentoculminante do horror fora às 11 horas e 25minutos.

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Prisão

Tendo assassinado o cunhado, OrrinBrower, de Kentucky, era um foragido da justiça.Escapara da prisão local, onde aguardava julga-mento, batendo no vigia com uma barra de ferroe roubando-lhe as chaves, com as quais abrira aporta externa, desaparecendo na noite. Como ovigia estivesse desarmado, Brower fugira semqualquer arma com a qual pudesse defender arecém-recuperada liberdade. Assim que se viulonge da cidade, cometeu a asneira deembrenhar-se por uma floresta. Isso aconteceu hámuitos anos, quando aquela região era bem maisdespovoada do que é hoje.

A noite estava muito escura, não hav-endo lua ou estrelas, e como Brower nunca

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andara por aquelas redondezas, desconhecendo aregião, claro que logo estava perdido. Já não con-seguiria dizer se estava caminhando para longeda cidade ou se retornava — o que era de sumaimportância para Orrin Brower. Sabia que, emqualquer uma das circunstâncias, um bando dehomens com seus cães de caça logo estaria emseu encalço e suas chances de escapar seriampequenas. Mas não ia facilitar as coisas. Por umahora de liberdade que fosse, valeria a pena lutar.

De repente, saiu da floresta e deu numavelha estrada, na qual viu, indistintamente, a sil-hueta de um homem, imóvel na penumbra. Eratarde para tentar fugir. O fugitivo sabia que, aoprimeiro movimento que fizesse tentandoembrenhar-se de novo na floresta, seria, como di-ria depois, "crivado de balas". E assim os dois

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permaneceram ali parados como se fossemárvores, Brower quase sentindo-se sufocar comas batidas do próprio coração. O outro — bem,nada se sabe sobre as emoções do outro.

Um segundo depois — ou talvez tenhasido uma hora — a lua surgiu por entre as nuvense o homem caçado viu nitidamente quando opolicial ergueu o braço, apontando de forma sig-nificativa numa determinada direção. Com-preendeu. Virando as costas para seu captor,caminhou submisso na direção indicada, sem ol-har para os lados, mal ousando respirar, a cabeçae as costas já sofrendo com a profecia de umabala.

Brower era o mais corajoso dos ban-didos que sobreviveram para ser enforcados. Issoficara patente pela maneira com que se expusera

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ao perigo ao assassinar friamente o cunhado. Nãovamos relatá-la aqui. Tudo isso veio à tona emseu julgamento e a revelação de sua calma dianteda situação quase salvou-lhe o pescoço. Mas oque vocês querem? Quando um bravo é vencido,ele se submete.

E, assim, eles seguiram em direção àprisão pela velha estrada, através da floresta. So-mente uma vez Brower teve coragem de olharpara trás. Só uma vez, quando estava imerso nasombra e sabia que o outro estava sob a luz doluar, virou-se e espiou. Seu captor era BurtonDuff, o vigia, pálido como a morte, trazendoainda na fronte a marca vívida da barra de ferro.Orrin Brower não quis saber de mais nada.

Afinal, chegaram à cidade, onde tudo es-tava iluminado, embora deserto. Apenas

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mulheres e crianças tinham ficado na cidade, masnão estavam nas ruas. E o criminoso seguiu emfrente, direto para a prisão. Dirigiu-se à entradaprincipal, tocou a maçaneta da pesada porta deferro, empurrou-a sem que ninguém lhe man-dasse, entrou e se viu na presença de meia dúziade homens armados. Só então se virou. Ninguémmais entrou.

Sobre a mesa, no corredor, jazia o corpomorto de Burton Duff.

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A alucinação de Staley Fleming

De dois homens que conversavam, umera médico.

"Mandei buscá-lo, doutor", disse ooutro, "mas não acredito que possa ajudar-me.Talvez o senhor pudesse recomendar um espe-cialista em problemas mentais. Acho que estouperdendo a razão.”

"Você parece tão bem", retrucou omédico.

"O senhor é que vai julgar. Estou tendoalucinações. Acordo todas as noites e vejo emmeu quarto, olhando-me intensamente, umimenso cão terra-nova negro, com as patas dafrente brancas.”

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"Você diz que acorda. Tem certeza? Àsvezes, aquilo que chamamos 'alucinações' nãopassa de sonhos.”

"Acordo, sim. Às vezes fico parado, pormuito tempo, olhando para aquele cachorro, como mesmo olhar intenso com que o animal me fita.E a luz está sempre acesa. Quando já não possosuportar, sento-me na cama... e então vejo quenão há nada ali!”

"Hum... qual é a expressão do cão?”

"Parece sinistra. Eu sei que, excetoquando se trata de arte, a face de um animal emrepouso tem sempre a mesma expressão. Masesse não é um animal de verdade. Os terra-novastêm um olhar manso, o senhor sabe. O que seráque há com esse? “

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"Bem, quanto a isso, meu diagnósticonão teria importância. Não é do cachorro que voutratar.”

O médico riu do próprio gracejo, mas aomesmo tempo observava o paciente com o cantodo olho. Até que falou:

"Fleming, a descrição desse animal com-bina com a do cachorro do falecido AtwellBarton.”

Fleming ameaçou levantar-se da cadeira,sentou-se de novo e, querendo mostrar indifer-ença, falou:

"Eu me lembro do Barton. Acho queele... dizem que... não houve alguma coisa desuspeito em torno de sua morte?”

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Olhando diretamente nos olhos do pa-ciente, o médico disse:

"Há três anos o corpo de Atwell Barton,seu velho inimigo, foi encontrado na floresta,perto da casa dele e da sua. Ele fora esfaqueado emorto. Mas ninguém foi preso. Não havia provas.Algumas pessoas tinham 'teorias'. Eu tinha uma.E você?”

"Eu? Bem, eu... Deus do céu, o que eupoderia saber do assunto? O senhor sabe muitobem que viajei para a Europa logo depois... querdizer, algum tempo depois. Nas poucas semanasdesde que voltei, não seria capaz de construiruma 'teoria', o senhor não acha? Na verdade, nãopensei no assunto. Mas o que tem o cachorrodele?”

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"Foi quem encontrou o corpo. E depoisficou montando guarda no túmulo, até morrer defome.”

Nada sabemos sobre as leis inexoráveisdas coincidências. Pelo menos Staley Flemingnada sabia, caso contrário não se teria erguido deum salto quando, através da janela, o vento danoite trouxe consigo o longo ganido de um cão, adistância. Andou de um lado para o outro na sala,sob o olhar fixo do médico. Até que, abrupta-mente e quase gritando, dirigiu-se a este:

"E o que tudo isso tem a ver com meuproblema, Dr. Halderman? O senhor esqueceu arazão pela qual foi chamado?”

Levantando-se, o médico segurou obraço do paciente e, delicadamente, falou:

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"Perdão. Não posso diagnosticar seuproblema de antemão. Amanhã, talvez. Por favor,vá deitar-se e deixe á porta do quarto destran-cada. Vou passar a noite aqui com seus livros.Pode me chamar sem levantar-se?" "Posso.Tenho uma campainha.”

"Ótimo. Se vir alguma coisa, aperte obotão sem se sentar. Boa noite.”

Confortavelmente instalado numa pol-trona, o médico ficou olhando as brasas brilhar-em enquanto se deixava levar por pensamentosprofundos, mas aparentemente sem importância,já que por vezes levantava-se, abria a porta quedava para as escadas e ficava escutando atenta-mente. E em seguida voltava a sentar-se. Até queacabou adormecendo e quando acordou já pas-sava da meia-noite. Remexeu o fogo, apanhou

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um livro que estava na mesinha a seu lado e leu otítulo. Eram as Meditações, de Denneker. Abriu-o ao acaso e começou a ler:

Porque embora tenha sido determinadopor Deus que toda carne tenha espírito e, con-seqüentemente, poderes espirituais, assim tam-bém o espírito tem o poder da carne, mesmoquando dela se desprendeu e vive como algo àparte, como muitas violências perpetradas porfantasmas e espectros têm comprovado. E háquem diga que isso não ocorre somente com ohomem, mas que também os animais são movidospor tais propósitos maléficos, e que...

A leitura foi interrompida por um es-trondo que sacudiu a casa, como a queda de umobjeto muito pesado. O médico fechou o livro esaiu correndo, subindo as escadas em direção ao

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quarto de Fleming. Tentou abrir a porta, mas es-ta, contrariando suas instruções, estava trancada.Bateu-lhe com o ombro com tal força que a portacedeu. No chão, junto à cama em desalinho,vestido com a roupa de dormir, jazia Fleming, àmorte.

O médico ergueu do chão a cabeça domoribundo, observando o ferimento em suagarganta.

"Devia ter previsto isto", disse,acreditando tratar-se de suicídio.

Quando o homem, depois de morto, foiexaminado, notou-se que havia marcas visíveisdas presas de um animal que se tinham cravadofundo na veia jugular.

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Só que não havia animal algum.148/476

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Diagnóstico da morte

"Sou menos supersticioso do que algunsde vocês, médicos — homens da ciência, comogostam de ser chamados", disse Hawver, re-spondendo a uma acusação que sequer fora for-mulada. "Alguns de vocês — poucos, é verdade— acreditam na imortalidade da alma e em apar-ições que não têm a honestidade de chamar defantasmas. Eu tenho apenas a convicção de queos seres vivos às vezes são vistos onde não estão,mas onde já estiveram — em lugares ondeviveram por muito tempo, ou talvez tão in-tensamente, que deixaram sua marca no ambi-ente. Sei, na verdade, que o ambiente onde umapessoa vive pode ser afetado por sua personalid-ade, a ponto de emitir, muito tempo depois, a im-agem dessa pessoa ante os olhos dos outros. Sem

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dúvida, não é qualquer personalidade que é assimtão marcante, assim como os olhos que percebemtambém têm de ser de um tipo especial —comoos meus, por exemplo.”

"Sim, o tipo certo de olhos, mas envi-ando sensações para o tipo errado de cérebro",disse o Dr. Frayley, sorrindo.

"Obrigado. É bom quando nossas ex-pectativas são atendidas. É exatamente essa a res-posta que se espera ouvir em nome dacivilidade.”

"Perdoe-me. Mas você diz que sabe. Issoé muita coisa, não acha? Talvez não se inco-modasse em me contar como foi que aprendeutudo isso.”

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"Você vai dizer que é alucinação", re-spondeu Hawver, "mas não me importo.”

E foi assim que ele contou a história.

"No verão passado, eu fui, como vocêsabe, passar a temporada quente na cidade deMeridian. O parente em cuja casa pretendiahospedar-me ficou doente, por isso procureioutro local para ficar. Com muita dificuldade,consegui alugar uma casa que estava vazia, tendosido antes ocupada por um médico excêntrico denome Mannering, que se fora muitos anos antes.Para onde, ninguém sabia, nem mesmo seuagente. Ele próprio construíra a casa e nela viveracom uma velha criada durante cerca de dez anos.Após algum tempo, renunciara à prática da medi-cina, à qual já pouco se dedicava. Não apenasisso: na verdade, tornara-se um recluso, abrindo

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mão de qualquer tipo de vida social. O médicolocal, única pessoa com a qual mantinha algumcontato, contou-me que durante o período de re-clusão ele se dedicara inteiramente a uma de-terminada pesquisa, cujo resultado expusera emum livro. Este fora desaprovado por seus pares,que na verdade consideravam-no meio louco.Não tive oportunidade de ler o livro, de cujotítulo sequer me recordo, mas sei que abordavauma teoria muito surpreendente. Ele asseguravaser possível a qualquer pessoa, desfrutando deboas condições de saúde, prever a própria mortecom toda a precisão, com muitos meses deantecedência. O limite, creio, era de dezoitomeses. Corriam histórias de que o médico exer-cera essa sua capacidade de fazer prognósticos —ou diagnósticos, como você chamaria. E dizemtambém que em todos os casos a pessoa, cujos

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amigos haviam sido avisados, morrera de repentena hora exata apontada por ele, sem qualquerrazão aparente. Nada disso, porém, tem a vercom o que quero contar. Só achei que um médicose divertiria ouvindo isso, "A casa era mobili-ada, com os mesmos móveis do tempo em queele lá vivera. Era na verdade uma casa sombriapara alguém como eu, que não era nem reclusonem pesquisador, e acho que talvez me tenhatransmitido um pouco dessa sua característica —ou talvez um pouco do caráter de seu ocupanteanterior. Porque eu sentia nela uma constantemelancolia que não fazia parte do meu tempera-mento, nem mesmo como consequência dasolidão. Nenhum criado dormia na casa, mas eusempre me senti muito bem em minha própriacompanhia, como você sabe, gostando muito deler, embora não de estudar. Fosse qual fosse a

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causa, o efeito era de desalento, como se algumacoisa maléfica pairasse no ar. A sensação era es-pecialmente forte no gabinete do Dr. Mannering,embora o aposento fosse o mais claro e arejadoda casa. O retrato a óleo do médico, em tamanhonatural, ficava pendurado na parede, parecendodominar toda a sala. Não havia nada de estranhona pintura. O homem tinha bom aspecto, apar-entava cerca de cinquenta anos, cabelos grisal-hos, rosto bem escanhoadoe olhos graves eescuros. Mas algo naquele quadrosempre chamava e prendia minha atenção. Aaparência do homem tornou-se familiar para mime era quase como se me assombrasse.

"Certa noite atravessei a sala em direçãoa meu quarto, levando nas mãos uma lamparina— não há gás em Meridian. Como sempre fazia,

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parei diante do retrato que, à luz da lamparina,parecia ganhar uma expressão nova, de difícildefinição, mas sem dúvida alguma sobrenatural.Fiquei interessado, mas não perturbado. Movi alamparina de um lado para o outro, observandoos efeitos provocados pelas nuances de luz.Quando o fazia, tive um impulso de virar-me. E,ao fazê-lo, vi que um homem atravessava a salaem minha direção! Assim que chegou perto o su-ficiente para que a luz lhe iluminasse o rosto, vique era o Dr. Mannering. Era como se o retratoestivesse vivo.

"'Perdão', falei, com certa frieza, 'mas seo senhor bateu, eu não ouvi.' "Ele passou pormim, a um metro de distância, ergueu o dedo in-dicador da mão direita, como se quisesse fazer-me uma advertência, e sem dizer palavra saiu da

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sala, embora eu não o visse sair — da mesmaforma como não o vira entrar.

"Claro, nem preciso dizer-lhe que aquiloera o que você chamaria de alucinação e eu deaparição. Aquela sala tinha apenas duas portas,sendo que uma estava trancada. A outra davapara um quarto de dormir, que não tinha outrasaída. O que eu senti ao dar-me conta disso nãotem real importância para o meu relato.

"Para você, sem dúvida, tudo isso deveser uma 'história de assombração' das maiscomuns — construída com os elementos regu-lares usados pelos velhos mestres da arte. Se as-sim fosse, não a teria contado, mesmo sendo ver-dadeira. O homem não estava morto. Eu o en-contrei hoje na Union Street. Passou por mim emmeio à multidão.”

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Hawver tinha terminado sua história e osdois estavam em silêncio. O Dr. Frayley tambori-lava os dedos sobre a mesa, com ar ausente.

"E hoje ele falou alguma coisa?", per-guntou. "Alguma coisa que o levasse a crer quenão está morto?”

Hawver olhou-o sem responder.

"Talvez", continuou o Dr. Frayley,"tenha feito um sinal um gesto. Erguido o dedo,como se em advertência. É um tique que ele tinha— um hábito, sempre que dizia alguma coisaséria — quando anunciava o resultado de um dia-gnóstico, por exemplo.”

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"De fato, ele fez isso, sim — exatamentecomo a aparição havia feito. Mas... Deus do céu!Você o conhecia?”

Hawver parecia cada vez mais nervoso.

"Conhecia, sim. Li seus livros, como to-dos os médicos acabam fazendo um dia. É umadas contribuições mais importantes e fundamen-tais para a ciência médica deste século. Sim, eu oconhecia. E o atendi quando estava doente, hátrês anos. Ele está morto.”

Hawver ergueu-se da poltrona, visivel-mente perturbado. Começou a andar de um ladopara o outro da sala. Depois aproximou-se doamigo e, com a voz trémula, disse:

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"Doutor, o senhor tem alguma coisa ame dizer... como médico?”

"Não, Hawver. Você é a pessoa maissaudável que conheço. Como amigo, aconselho-oa ir para seu quarto. Você toca violino como umanjo. Toque. Toque alguma coisa leve e alegre. Etire essa maldita história da cabeça.”

No dia seguinte, Hawver foi encontradomorto em seu quarto, com o violino em posição,o arco sobre as cordas partitura, à sua frente,aberta na marcha fúnebre de Chopin.

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O ambiente adequado

I

A noite

Numa noite de pleno verão, o filho deum fazendeiro que vivia a cerca de quinze quilô-metros de Cincinnati seguia por uma trilha decavalos em meio a uma floresta densa e escura. Orapaz se perdera quando procurava por algumasvacas desgarradas e por volta da meia-noite já es-tava a uma enorme distância de casa, numa re-gião que lhe era desconhecida. Mas tratava-se deum rapaz corajoso e, sabendo vagamente qual eraa direção de casa, seguira floresta adentro semhesitar, guiando-se pelas estrelas. Ao dar com a

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trilha de cavalos, e notando que ela rumava ex-atamente na direção certa, decidiu segui-la.

A noite estava clara, mas dentro dafloresta a escuridão envolvia tudo. Era mais pelotato do que pela visão que ele seguia caminho.Na verdade, seria difícil sair da trilha. De ambosos lados a vegetação, de tão fechada, era quaseimpenetrável. Já caminhara floresta adentro pordois ou três quilômetros quando se surpreendeuao ver uma fraca luminosidade brilhando atravésda folhagem na beira do caminho, à sua esquerda.Aquela visão deixou-o atônito e seu coraçãocomeçou a bater com toda força.

"A velha casa Breede fica perto daqui",disse para si mesmo. "Devo estar na outra ex-tremidade do caminho que vai dar lá, saindo de

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nossa casa. Mas... por que será que há uma luzali?”

De qualquer forma, seguiu em frente.Pouco depois, emergia da floresta, indo dar numpequeno espaço aberto, recoberto de espinheiros.Havia resquícios de uma cerca, semidestruída. Apoucos metros da trilha, no meio da clareira, láestava a casa de onde emanava a luz, através deuma janela sem vidros. A janela um dia tiverauma vidraça, mas esta, assim como a esquadria,tinha sido há muito destruída pelos projéteis ar-remessados por meninos aventureiros, dispostos aprovar, a um só tempo, sua coragem e sua hostil-idade às forças sobrenaturais. Sim, porque a casaBreede tinha a reputação maldita de ser uma casamal-assombrada. Talvez não o fosse, mas nemmesmo o mais cético poderia negar que estava

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abandonada — o que, em zonas rurais, significapraticamente a mesma coisa.

Olhando para a luz misteriosa que eman-ava através da janela quebrada, o garoto lembrou-se, com certa apreensão, que sua própria mãocontribuíra para aquela destruição. Claro que suapenitência, por tardia e inútil, seria terrível. Decerta forma ele esperava ser punido por todos osespíritos maléficos e inomináveis que desafiara,ao ajudar a arrebentar-lhes as janelas e a paz.Mas nem assim o rapaz obstinado, que tremia dacabeça aos pés, fugiu. O sangue em suas veiasera forte e rico em ferro, como o dos homens dafronteira. Pertencia à segunda geração daquelesque haviam dominado os índios. E seguiu emfrente, pronto para passar em frente à casa.

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No momento em que passava, olhandoatravés do vão da janela, deu com um cenário es-tranho e aterrador — a figura de um homem sen-tado no meio da sala, diante de uma mesa ondehavia algumas folhas de papel. Os cotovelos es-tavam sobre a mesa e as mãos sustentavam acabeça, sem chapéu. De ambos os lados, os dedosestavam enfiados nos cabelos. À luz da únicavela que brilhava a seu lado, o rosto do homemera de uma palidez cadavérica. A chama ilu-minava só um lado do rosto e o outro estava en-volto pela escuridão. Seus olhos estavam fixos novão da janela, com um olhar que um observadormais frio e mais experiente descreveria como demedo, mas que para o rapaz pareceu um olharvazio, sem alma. Ele achou que o homem estavamorto.

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A situação era horrível, mas carregavaalgum fascínio. E o rapaz parou para olharmelhor. Sentia-se fraco, tremia, parecia a pontode desmaiar. Podia sentir o sangue fugir-lhe dorosto. E contudo, trincando os dentes, avançouem direção à casa. Não sabia ao certo o que iriafazer — era a mera coragem provocada pelo ter-ror. Enfiou o rosto pálido pelo vão iluminado dajanela. Naquele instante, um grito agudo e es-tranho cortou o silêncio da noite — era o piadode uma coruja. O homem pôs-se de pé num pulo,derrubando a mesa e apagando a vela. E o rapazsaiu em disparada.

II

O dia anterior

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"Bom dia, Colston. Parece que estoudando sorte. Você já cansou de dizer que meuselogios a seu trabalho literário eram por puraeducação e agora me encontra aqui absorto — naverdade completamente envolvido —, com suaúltima história no Messenger. Só mesmo seutoque no meu ombro me fez recobrar aconsciência.”

"A prova é mais forte do que imagina",respondeu o outro. "Você está tão ansioso porconhecer a história que é capaz de renunciar àspróprias considerações e estragar todo o prazerque poderia obter com ela.”

"Não estou entendendo", disse o leitor,dobrando o jornal e guardando-o no bolso."Vocês, escritores, são muito esquisitos. Vamoslá. Conte-me o que foi que eu fiz ou deixei de

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fazer, Em que sentido o prazer que tiro, ou possotirar, de seu trabalho depende de mim?”

"Em vários sentidos. Você gostaria detomar seu café da manhã aqui neste bonde? Esuponha que houvesse um fonógrafo tão perfeitoque fosse capaz de reproduzir uma ópera inteira— o canto, a orquestração, tudo —, você achaque a ouviria com prazer em pleno escritório,durante o trabalho? Você seria capaz de apreciaruma serenata de Schubert tocada ao violino porum italiano inoportuno, no ferryboat matinal?Você está sempre disposto a se divertir? Estásempre atento, pronto para apreciar tudo?Permita-me lembrar-lhe, meu caro, que a históriaque acabou de me dar a honra de começar a lei,apenas como um artifício para esquecer o

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desconforto deste bonde, é uma história deassombração!”

"E daí?”

"E daí? Será que o leitor não tem tam-bém deveres, correspondentes a seus privilégios?Você pagou cinco centavos por esse jornal. Éseu. Tem o direito de lê-lo quando e onde quiser.A maior parte do que está escrito nele não seráafetada, para melhor ou para pior, pelo momento,local ou clima da leitura. Algumas notícias de-vem mesmo ser lidas de imediato — enquantoainda têm gás. Mas minha história não é dessetipo, Não faz parte da lista de 'últimas novidades'da Terra Assombrada. Você não tem obrigaçãode estar atualizado acerca de tudo o que acontecenas regiões do além. Essa história se manterá atéque você possa conceder à sua mente um

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momento de relaxamento, apropriado paraapreender seu significado — e, com todo re-speito, devo dizer-lhe que isto não pode ser feitodentro de um bonde, mesmo que você seja oúnico passageiro. Porque, ainda assim, a solidãoserá uma solidão inadequada. Um escritor temdireitos que o leitor deve respeitar.”

"Dê um exemplo específico.”

"O direito a ter uma atenção exclusivapor parte do leitor, negá-lo, seria imoral. Fazê-lodividir a atenção com o barulho de um bonde,com as imagens corridas dos transeuntes nascalçadas, com os prédios passando — com mil-hares de outras distrações que compõem nossoambiente habitual — é ameaçá-lo com uma in-justiça grosseira. Por Deus, é infame!”

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O escritor se pusera de pé, segurando-seem um dos apoios pendurados no teto do bonde.O outro olhava-o espantado, perguntando-secomo uma ofensa tão banal podia justificar lin-guagem tão dura. Notou que o rosto do escritorestava extraordinariamente pálido, enquanto seusolhos brilhavam como carvões em brasa.

"Sabe bem o que quero dizer", continu-ou ele, atropelando as palavras, "sabe o quequero dizer, Marsh. O que escrevo nessematutino traz o subtítulo 'Uma história assom-brada'. Está mais do que claro. Qualquer um dosmeus honrados leitores entenderá que com issoestão subentendidas as condições sob as quais otexto deve ser lido.”

O homem chamado Marsh estremeceulevemente e depois perguntou com um sorriso:

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"Que condições? Você sabe muito bemque sou apenas um homem de negócios, do qualnão se espera que entenda de determinados as-suntos. Como, quando e onde devo ler suahistória de assombração?”

"Em total solidão — à noite — sob a luzde uma vela. Há certas emoções que um escritorpode provocar com facilidade - como diverti-mento ou compaixão. Posso levá-lo às lágrimasou a uma gargalhada em praticamente qualquercircunstância. Mas para que minha história de as-sombração tenha efeito, você precisa sentir medo— ou pelo menos uma forte sensação de sobren-atural—, e aí está algo difícil. Tenho o direito deesperar que, já que me lê, você deva me dar umachance. E se disponha a sentir a emoção que es-tou tentando inspirar.”

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O bonde acabara de chegar ao terminal eparara. A viagem recém-terminada era a primeirado dia e a conversa dos dois passageiros mad-rugadores não fora interrompida. As ruas aindaestavam vazias, silenciosas. Os telhados das cas-as apenas começavam a receber a luz do sol.Assim que saltaram e começaram a caminharjuntos, Marsh observou seu companheiro, do qualse dizia, como aliás da maioria dos homens comrara habilidade literária, ser chegado a vários ví-cios destrutivos. É essa a vingança das mentessimples contra aquelas mais brilhantes, por seressentirem de sua superioridade. O Sr. Colstonera conhecido como um homem de gênio. Há al-mas honestas que acreditam serem os gênios umaespécie de excesso. Sabia-se que Colston não erade beber, mas muitos comentavam que ele usavaópio. Alguma coisa em sua aparência naquela

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manhã — um certo olhar selvagem, a estranhapalidez, a maneira de falar, rápida e rouca —parecia ao Sr. Marsh confirmar tais comentários.Mas ele não abandonaria um assunto que achavainteressante, por mais que isso deixasse seuamigo agitado.

"Você quer dizer", falou, "que se eu medesse ao trabalho de seguir seus conselhos — cri-ando as condições pedidas: solidão, noite, umtoco de vela —, você e sua história assombradaseriam capazes de provocar em mim a sensaçãodesconfortável do sobrenatural, como vocêchama? Você acha que seria capaz de acelerarmeu pulso, de me fazer levantar de um pulo aoouvir um ruído, de sentir um arrepio nervoso per-correr minha espinha, fazendo meu cabeloarrepiar-se?”

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Colston virou-se de repente, encarando ooutro, à medida que andavam.

"Você não ousaria. Não teria coragem",disse. Enfatizou a frase com um gesto de desdém."Você é corajoso o suficiente para me ler numbonde, mas numa casa abandonada, sozinho, nomeio da floresta, e à noite? Ah! Tenho aqui nobolso um manuscrito que seria capaz de matá-lo!”

Marsh zangou-se. Considerava-se cora-joso e aquelas palavras mexeram com ele.

"Se você conhece um lugar assim",disse, "leve-me até lá hoje à noite e deixe-mecom sua história e um toco de vela. Vá me pro-curar quando achar que já deu tempo de ler o

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texto, que vou lhe contar o enredo todo — e botarvocê para correr!”

E foi assim que o jovem fazendeiro, ol-hando através do vão da janela da casa Breede,viu um homem sentado sob a luz de uma vela.

III

O dia seguinte

Na tarde seguinte, três homens e umrapaz se aproximaram da casa Breede pelomesmo local de onde, na noite anterior, viera ojovem fazendeiro. Os homens estavam alegres.Falavam alto e riam. Faziam piadas e comentári-os irônicos sobre a história que o rapaz contara,na qual evidentemente não acreditavam. O garotoaceitava a provocação sério, sem responder.

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Tinha uma noção apropriada das coisas e sabiamuito bem que quando alguém conta que viu umhomem morto levantar-se de sua cadeira e apagaruma vela ninguém acredita nele.

Ao chegaria, e encontrando a portadestrancada, os investigadores entraram semqualquer cerimônia. No corredor junto à entradahavia duas outras portas, uma à direita e uma àesquerda. Penetraram no aposento da esquerda —aquele que tinha a janela dando para a frente. Eencontraram o cadáver de um homem.

Estava caído meio de lado, com o braçoesticado sob o corpo e o rosto contra o chão. Osolhos estavam arregalados. E o olhar que tinhanão era um espetáculo agradável. Com amandíbula caída, escorria de sua boca um fio desaliva, formando uma pequena poça. Uma mesa

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derrubada, um toco de vela, uma cadeira e algu-mas folhas de papel manuscritas eram os únicosoutros objetos do aposento. Os homens obser-varam o corpo, tocando-lhe o rosto. O rapaz ol-hava tudo com gravidade, quase com um olhar deposse. Nunca na vida se sentira tão orgulhoso.Um dos homens virou-se para ele. "Você é dosbons" — comentário que foi recebido pelos out-ros dois com sinais de concordância. Era o Ceti-cismo pedindo desculpas à Verdade. Em seguida,um dos homens apanhou do chão os papéismanuscritos e encaminhou-se até a janela, porqueas sombras da noite já começavam a descer sobrea floresta. O som do bacurau já se fazia ouvir adistância e um besouro gigantesco voejou junto àjanela com suas asas ruidosas, desaparecendo emseguida. E o homem leu.

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IV

O manuscrito

"Antes de cometer o ato sobre o qual,certo ou errado, estou decidido, e de apresentar-me diante de meu Criador para julgamento, eu,James R. Colston, na qualidade de jornalista,sinto-me no dever de dar um testemunho a meupúblico. Meu nome é, ao que sei, razoavelmenteconhecido como escritor de contos trágicos, masnem a imaginação mais sombria seria capaz deconceber algo mais terrível do que a história deminha própria vida. Não pelo que tenha aconte-cido: minha vida tem sido destituída de aventurasou ação. Mas minha carreira mental tem sido en-sombrecida por assassinatos e maldições. Nãovou contá-los aqui — alguns deles já estão escri-tos e prontos para publicação em outro lugar. O

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objetivo destas linhas é explicar a quem in-teressar possa que minha morte é voluntária —resultado de minha própria vontade. Devereimorrer à meia-noite do dia 15 de julho — umadata significativa para mim, já que foi nesse dia,e nessa hora, que meu amigo, no tempo e naeternidade, Charles Breede, fez a mim seu jura-mento, cometendo o mesmo ato ao qual, por suafidelidade a nosso pacto, sinto-me agora obri-gado. Ele se matou em 85 sua casa na floresta deCopeton. Houve o veredicto de sempre atestando'insanidade temporária'. Tivesse eu testemunhadonaquele inquérito — tivesse eu contado tudo oque sabia, e eles me teriam classificado delouco.”

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Seguia-se uma passagem evidentementelonga que o homem com o manuscrito leu para si.O restante, leu em voz alta:

"Ainda tenho uma semana de vida paratomar todas as providências e preparar-me para agrande transformação. É o bastante, pois tenhopoucos negócios e já faz quatro anos que a mortese tornou para mim uma obrigação imperativa.

Deixarei este manuscrito ao lado de meucorpo. Quem o encontrar, por favor, leve-o aojuiz.”

James R. Colston.

"P. S.—Willard Marsh: neste dia fatal dejulho, passo a suas mãos o manuscrito, para seraberto e lido nas condições acordadas, bem como

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no local por mim designado. Desisto de deixareste manuscrito junto a meu corpo para explicaras circunstâncias de minha morte, já que isso nãotem importância. Ele servirá para explicar as cir-cunstâncias da sua. Vou ter com você durante anoite para me assegurar de que leu o texto. Vocême conhece bem e sabe que o farei. Mas, meucaro amigo, eu o farei depois da meia-noite. QueDeus tenha piedade de nossas almas!”

J. R. C.

Enquanto o homem lia o manuscrito, avela havia sido apanhada do chão e acesa.Quando a leitura terminou, ele calmamente levouo papel em direção à chama e, apesar dosprotestos dos outros, manteve-o ali até que setransformasse em cinzas. O homem que fez isso,e que mais tarde receberia sem reagir uma severa

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reprimenda do juiz, era genro do finado CharlesBreede. Durante o inquérito, não foi possível es-clarecer o que havia escrito naquele papel.

V

Do Times

"Ontem, a Delegacia de Insanidade re-colheu ao asilo o Sr. James R. Colston, um con-hecido escritor local que colaborava com o Mes-senger. Deve ser lembrado que na noite do dia 15passado, o Sr. Colston foi entregue à polícia porum de seus companheiros de quarto na PensãoBaine, segundo o qual ele agia de forma muitosuspeita, desnudando o pescoço e molhando umalâmina — depois de testar se estava afiada —,passando-a na pele do braço etc. Ao ser entregueà polícia, o infeliz opôs forte resistência e desde

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então tem estado tão violento que foi precisoencerrá-lo numa camisa-de-força. Nossos outrosestimados escritores da atualidade continuam, namaioria, à solta.”

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Um dos gêmeos

Carta encontrada entre os papéis do fa-lecido Mortimer Barr

Você me pergunta se em minha exper-iência como gêmeo observei alguma coisa nãoprevista nas leis da natureza como as con-hecemos. Deixo a seu critério julgar. Talvez nãotenhamos conhecimento das mesmas leis nat-urais. Talvez você conheça alguma que eudesconheça e o que seja imprevisível para mimtalvez esteja claro para você.

Você conheceu meu irmão, John. Querdizer, conheceu-o quando sabia que eu não estavapresente. Mas nem você nem qualquer ser hu-mano, acho, seria capaz de distinguir entre mim e

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ele se decidíssemos parecer idênticos. Nossospais não conseguiam. Não conheço qualqueroutro caso de semelhança tão absoluta quanto onosso. Falo de meu irmão John, mas não estoubem certo se o nome dele não era Henry e o meuJohn. Fomos batizados, como de costume, masem seguida, ao ser tatuados com pequenas mar-cas de diferenciação, o tatuador se confundiu. Eainda que eu tenha no braço um pequeno "H" emeu irmão um "J", não é nada impossível que asletras tenham sido trocadas. Quando éramosmeninos, nossos pais tentavam diferenciar-nos daforma mais óbvia, através de nossas roupas ou deoutros artifícios simples, mas era tão comum nóstrocarmos de roupa e assim enganarmos o in-imigo que eles acabaram abandonando tais es-tratagemas ineficientes. E assim, por todos osanos em que vivemos juntos em casa, todos

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reconheciam a dificuldade da situação e faziam omelhor que podiam, chamando-nos, aos dois, de"Jehnry". Fico pensando na paciência de meu paiem não nos mandar logo ferrar em local visível,embaixo das indignas sobrancelhas, mas, comoéramos rapazes razoavelmente bons e comousávamos nosso poder para confundir e aborreceros outros com certa moderação, escapamos dosferros. Meu pai era, na verdade, um homem detemperamento especialmente bom e acho até queno fundo se divertia com aquela brincadeira danatureza.

Pouco depois de chegarmos à Califórniae de nos estabelecermos em San José (onde a ún-ica coisa boa que nos esperava era o encontrocom esse bom amigo que você é), a família,como você bem sabe, foi desestruturada pela

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morte, na mesma semana, de meu pai e minhamãe. Meu pai estava falido ao morrer e a casateve de ser vendida para pagar suas dívidas. Min-has irmãs voltaram para o Leste para viver comparentes, mas, graças a sua bondade, John e eu,na época com 22 anos, conseguimos emprego emSão Francisco, em regiões diferentes da cidade.As circunstâncias nos impediram de morar juntose não era sempre que nos víamos, geralmente nãomais do que uma vez por semana. Como não tín-hamos muitos amigos em comum, pouco se sabiasobre nossa semelhança. E agora vamos àquestão referente à sua pergunta.

Certo dia, pouco tempo depois de nossamudança para esta cidade, eu caminhava pelaMarket Street num fim de tarde quando fui abor-dado por um homem de meia-idade, bem-vestido,

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que, depois de me cumprimentar cordialmente,disse:

"Stevens, eu sei muito bem que você nãosai muito, mas falei sobre você à minha esposa eela adoraria recebê-lo em nossa casa. Acho, tam-bém, que você iria gostar de conhecer minhasfilhas. Por que não vem amanhã às 6h e jantaconosco, en famille? E depois, se as senhoras nãoconseguirem distraí-lo, podemos jogar um poucode bilhar.”

A frase foi dita com um sorriso tão lu-minoso e um jeito tão envolvente que não tivecoragem de recusar e, embora nunca tivesse vistoo homem na vida, respondi:

"É muita bondade sua, senhor, e me daráenorme prazer aceitar o convite. Por favor,

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apresente meus cumprimentos à Sra. Margovan ediga-lhe que irei.”

Com um aperto de mão e simpáticas pa-lavras de despedida, o homem se afastou. Nãohavia dúvida de que ele me confundira com meuirmão. Era um engano ao qual já me acostumarae que não tinha o hábito de retificar, a não ser queo assunto fosse importante. Mas como eu poderiasaber que o sobrenome daquele homem era Mar-govan? Com toda a certeza, não é um daquelesnomes que se aplica ao acaso, com uma boachance de acertar. Para dizer a verdade, o nomeera para mim tão estranho quanto o própriohomem.

Na manhã seguinte, fui até o emprego demeu irmão e encontrei-o na saída do escritóriocom umas contas na mão, de cobranças que ia

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fazer. Contei-lhe do encontro que marcara porele, dizendo-lhe que, caso ele não quisesse ir, euteria prazer em fazer seu papel.

"Que curioso", disse ele, pensativo."Margovan é a única pessoa aqui do escritóriocom a qual me dou e de quem gosto. Quando eleentrou hoje de manhã e nos cumprimentamos,como de hábito, eu tive um estranho impulso edisse: 'Ah, Sr. Margovan, desculpe-me, mas es-queci de lhe pedir o endereço.' Peguei o en-dereço, mas não tinha a menor idéia do que fazercom ele, até um minuto atrás. Acho ótimo quevocê se ofereça para assumir as consequências desua desfaçatez, mas, se não se importa, quem vaia esse jantar sou eu.”

John foi a vários jantares lá — mais doque lhe faria bem, eu diria, sem desmerecer da

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qualidade da comida. Porque ele se apaixonoupela Srta..Margovan, propôs-lhe casamento e foiaceito, sem muito entusiasmo.

Algumas semanas depois de ser inform-ado do noivado, mas antes que tivesse oportunid-ade de conhecer a jovem e sua família, encontreicerto dia na Kearney Street um homem que,embora bem-apessoado, tinha em sua aparênciaum quê de decadência. Sem saber por quê, pus-me a segui-lo e a vigiá-lo, o que fiz sem qualquerescrúpulo. Ele virou na Geary Street, seguindopor essa rua até a Union Square. Lá chegando, ol-hou o relógio e em seguida entrou na praça.Vagou pelas aléias por algum tempo, evidente-mente à espera de alguém. Até que chegou umajovem bonita, vestida com roupas da moda, e osdois subiram cela Stockton Street, comigo em seu

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encalço. Agora eu sentia que precisava tomarmuito cuidado, pois, embora a garota fosse umaestranha para mim, sabia que ela seria capaz deme reconhecer com um único olhar. Eles viraramde uma rua para outra até que finalmente, dandoambos uma olhada rápida em torno — da qual es-capei por pouco, ocultando-me atrás de um portal—, entraram numa casa cuja localização omitirei.Sua localização era melhor do que sua espécie.

Discordo de que minha ação de espion-agem junto àqueles dois estranhos tenha sido semmotivo. Posso envergonhar-me ou não dela, deacordo com minha estima pelo caráter da pessoaque a descobrir. Mas, sendo parte essencial danarrativa feita em resposta à sua pergunta, relato-a aqui sem hesitação ou vergonha.

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Uma semana depois, John levou-me àcasa de seu futuro sogro, e na Srta. Margovan,como você já deve ter deduzido, mas para minhaprofunda surpresa, reconheci a heroína daquelaaventura desabonadora. A belíssima heroínadaquela aventura desabonadora, devo acres-centar, para fazer justiça, Mas tal fato era import-ante apenas pelo seguinte: a beleza dela me sur-preendeu de tal forma que cheguei a duvidar seera mesmo a jovem que vira antes. Como erapossível que o maravilhoso fascínio daquele rostome tivesse escapado da primeira vez? Mas não...não havia possibilidade de erro. A diferença es-tava na roupa, na luz, no ambiente em geral.

John e eu ficamos na casa deles atétarde, ouvindo, com a tenacidade obtida pelalonga experiência, os gentis gracejos que nossa

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semelhança sempre suscita. Num momento emque eu e a jovem ficamos sozinhos, olhei-adiretamente no rosto e disse, com súbitagravidade:

"Você também, Srta. Margovan, temuma sósia. Eu a vi na terça-feira à tarde, naUnion Square.”

Por um instante, ela fixou em mim osgrandes olhos cinzentos, mas seu olhar estava li-geiramente menos firme do que o meu e elaacabou baixando-o, passando a mirar a ponta dopróprio sapato.

"Ela era mesmo muito parecidacomigo?", perguntou, com uma indiferença queme pareceu exagerada.

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"Tão parecida", respondi, "que eu a ad-mirei muito e, sem poder tirar os olhos dela, con-fesso que a segui até... Srta. Margovan, tem cer-teza de que está me ouvindo?”

Ela agora estava pálida, embora perfeita-mente calma. Voltou a erguer os olhos para mim,com um olhar que não vacilava.

"O que você quer que eu faça?", pergun-tou. "Não precisa ter medo de dizer quais sãosuas condições. Eu aceito.”

Estava claro, mesmo naqueles poucossegundos que tive para refletir, que com aquelamoça de nada adiantaria adotar métodos comunsou tentar fazer exigências banais.

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"Srta. Margovan", disse, exibindo navoz um pouco da compaixão que sentia, "é im-possível não pensar em você como vítima de umahorrível compulsão. Em vez de lhe impingir nov-os constrangimentos, prefiro ajudá-la a recobrarsua liberdade.”

Ela balançou a cabeça, triste e desesper-ançada, enquanto eu continuava, agitado:

"Sua beleza me perturba. Estou desar-mado diante de sua franqueza e de seu sofri-mento. Se estiver livre para agir segundo suaconsciência, poderá, acredito, fazer o que acharmelhor. Se não estiver... bem, então, que Deusnos ajude! De mim você nada tem a temer, a nãoser minha oposição a esse casamento, a qualposso tentar justificar sob... sob outrasalegações.”

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Não foram exatamente essas as palavras,mas era esse o sentido, o mais aproximado quepude conseguir para expressá-lo, estando diantede emoções tão repentinas e conflitantes. Ergui-me e saí sem mais um olhar, encontrando os de-mais que reentravam na sala e dizendo, com todaa calma possível:

"Estava dando boa noite à Srta. Margov-an. É mais tarde do que eu pensava.”

John decidiu acompanhar-me. Na rua,perguntou-me se eu notara alguma coisa estranhanos modos de Júlia.

"Acho que está indisposta", respondi."Foi por isso que decidi ir embora." E nada maisfoi dito.

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Na noite seguinte cheguei tarde em casa.Os acontecimentos do dia anterior me tinhamdeixado nervoso, adoentado. Para ver se me sen-tia melhor, e também para clarear as idéias, saírapara uma caminhada ao ar livre, mas sentira-meoprimido por uma horrível sensação de malefício— um pressentimento que não conseguia definir.Era uma noite fria, envolta em névoa. Minhasroupas e meus cabelos estavam úmidos e eutremia de frio. Já com a roupa de dormir e oschinelos, sentado diante da lareira, senti-me aindamais desconfortável. Já não tinha tremores e simcalafrios. É diferente. O pavor de uma calamid-ade iminente era algo tão forte, tão desalentador,que tentei afastá-lo pensando numa perda real.Tentei desfazer a concepção de um futuro terrívelsubstituindo-a pela memória de um passado dol-oroso. Relembrei a morte de meus pais,

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procurando fixar meu pensamento nas últimascenas de tristeza, junto ao leito deles, junto a seustúmulos. Tudo parecia vago, irreal, como setivesse acontecido séculos antes, com outra pess-oa. De repente, atingindo meu pensamento epartindo-o da mesma forma que uma corda es-ticada é cortada pelo golpe do aço — é a únicacomparação que me ocorre —, ouvi um gritoagudo, como o de alguém em agonia mortal! Avoz era de meu irmão e parecia vir da rua, lá em-baixo. Corri até a janela, abrindo-a. A lâmpadade um poste em frente lançava uma luz mortiça epálida sobre o calçamento umedecido e sobre asfachadas das casas. Apenas um policial, com agola levantada, fumava um charuto em silêncio,encostado num portal. Não havia ninguém mais àvista. Fechei a janela e baixei a cortina, sentando-me diante da lareira e tentando fixar o

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pensamento no que estava à minha volta. Paraajudar nessa tarefa, e por mero hábito, dei umaolhada em meu relógio. Eram onze e meia danoite. E de novo ouvi o grito terrível! Agoraparecia ser dentro do quarto — a meu lado.Fiquei apavorado e por alguns instantes não tivecoragem de mover-me. Minutos depois — nãotenho lembrança do que aconteceu nesse meio-tempo —, dei por mim correndo por uma ruadesconhecida, o mais rápido que podia. Não seionde estava, nem para onde ia, mas acabei su-bindo os degraus de uma casa diante da qual es-tavam paradas duas ou três carruagens e onde seviam luzes e se ouvia uma confusão de vozes.Era a casa do Sr. Margovan.

Você sabe, meu bom amigo, o que tinhaacontecido lá. Em um dos quartos, jazia Júlia

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Margovan, morta há várias horas, por envenena-mento. No outro, John Stevens sangrava de umferimento de pistola no peito, infligido por suaspróprias mãos. Assim que entrei no quarto e, em-purrando os médicos, coloquei a mão em suatesta, ele abriu os olhos, com um olhar vazio,para em seguida fechá-los devagar, morrendosem um gemido.

Nada mais vi até seis semanas depois,quando por fim recobrei as forças, escapando damorte graças aos cuidados de sua santa mulher,em sua bela casa. Tudo isso você sabe. Mas o quevocê não sabe é o seguinte — que, por sinal, nadatem a ver com suas pesquisas psicológicas (pelomenos não com o ramo da psicologia dentro doqual você, com a delicadeza e a consideração

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habituais, me pediu menos informações do queacabei por lhe dar):

Numa noite de lua cheia, muitos anosdepois, eu ia passando pela Union Square. Eratarde e a praça estava deserta. As memórias dopassado voltaram naturalmente, assim quecheguei ao lugar onde um dia testemunhara o en-contro maldito. E, com a incrível perversidadeque nos faz pensar naquilo que é para nós maisdoloroso, sentei-me em um dos bancos,entregando-me a tais pensamentos. Um homementrou na praça e veio por uma das aléias emminha direção. Trazia as mãos cruzadas às cost-as, os olhos no chão. Parecia alheio a tudo. Assimque se aproximou do ponto sombrio onde eu mesentava, eu o reconheci: era o homem que se en-contrara com Júlia Margovan, anos antes,

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naquele mesmo lugar. Mas estava completamentemudado — grisalho, abatido, descarnado. A dis-sipação e o vício transpareciam em todo ele. Adoença não era menos aparente. Suas roupas es-tavam em desalinho, o cabelo caído na testa, re-volto, de uma forma que era a um só tempo pitor-esca e assustadora. Ele parecia pronto para serencarcerado — encarcerado em um hospital.

Sem saber bem por quê, levantei-me,confrontando-o. Ele ergueu o rosto e me encarou.Não tenho palavras para descrever sua medonhatransformação. Lançou-me um olhar de terror in-ominável — porque pensou estar frente a frentecom um fantasma. Mas era um homem decoragem.

"Maldito seja, John Stevens!", gritou e,erguendo o braço trêmulo, tentou dar-me um

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soco no rosto, caindo de cara no chão enquantoeu me afastava.

E ali foi encontrado, morto como umapedra. Nada mais se sabe dele, nem mesmo seunome. Sobre um homem, saber que está morto éo suficiente.

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No limiar do irreal

I

Ao longo de certo trecho entre Aubum eNewcastle, a estrada — primeiro de um lado dorio e depois do outro — ocupa todo o fundo deuma ravina, sendo parcialmente cortada na es-carpa íngreme e parcialmente formada pelaspedras removidas do leito do rio pelos min-eradores. As escarpas são cobertas de vegetação eo curso da ravina é sinuoso. Nas noites escuras, épreciso andar com cuidado para não se cair den-tro d'água. A noite que tenho na memória era es-cura e o rio, uma torrente, engrossada por um re-cente temporal. Eu viera de Newscastle e estava acaminho, a menos de dois quilómetros deAuburn, cruzando o trecho mais escuro e mais

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estreito da ravina, olhando com toda a atenção aestrada à frente de meu cavalo. De repente, vi umhomem quase embaixo do focinho do animal.Puxei a rédea com tanta força que o cavalo porpouco não empinou.

"Perdão", disse. "Mas não o vi.”

"Você dificilmente poderia esperar ver-me", respondeu o homem, com civilidade, vindopara a lateral da carruagem. "E o barulho do rioimpediu que eu o ouvisse.”

Reconheci a voz imediatamente, emboracinco anos se tivessem passado desde que aouvira pela última vez. E não estava particular-mente feliz em ouvi-la.

"Você é o Dr. Dorrimore, não é?”

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"Sou. E você é meu bom amigo Sr.Manrich. Estou mais do que feliz em vê-lo... de-mais", acrescentou com um sorriso, "até porqueestou indo na sua direção e, claro, espero receberuma oferta de carona.”

"Que eu faço, com muito prazer.”

O que não era exatamente verdade.

O Dr. Dorrimore agradeceu ao sentar-sea meu lado e eu segui em frente, com a mesmacautela de antes. Deve ser fantasia, mas hojetenho a impressão de que, durante o resto daviagem, fomos envolvidos por uma neblina ge-lada. E que eu estava morrendo de frio. Que ocaminho parecia mais longo do que antes, e que acidade, quando lá chegamos, parecia triste, in-óspita e desolada. Devia ser cedo ainda, mas não

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me lembro de ter visto uma luz sequer nas casas,nem vivalma nas ruas. Num dado momento,Dorrimore explicara-me por que estava ali, eonde estivera durante todos os anos em que desa-parecera desde nosso último encontro. Lembro-me que ele fez essa narrativa, mas não me re-cordo dos fatos narrados. Ele estivera em paísesestranhos e voltara — é tudo o que minhamemória retém, mas isso eu já sabia antes.Quanto a mim, não me recordo de ter dito uma sópalavra, embora com certeza o tenha feito. Masde uma coisa tenho perfeita consciência: apresença daquele homem a meu lado era estran-hamente inquietante, desagradável. A ponto de,ao chegarmos à entrada iluminada da Pensão Put-nam, eu ter tido a nítida sensação de haver es-capado de um perigo espiritual, de natureza pecu-liar e assustadora. Mas a sensação se transformou

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assim que fiquei sabendo que o Dr. Dorrimoretambém se hospedaria lá.

II

Para explicar, pelo menos em parte,meus sentimentos em relação ao Dr. Dorrimore,vou falar das circunstâncias nas quais o conhe-cera, alguns anos antes. Certa noite, meia dúziade homens, entre os quais eu, encontrava-se nabiblioteca do Clube Boêmio de São Francisco. Aconversa era acerca de prestidigitação e as façan-has dos prestidigitadores, um dos quais se ap-resentava naquela ocasião no teatro local.

"Esses sujeitos são farsantes no duplosentido", disse um dos amigos. "São incapazes defazer alguma coisa pela qual valha a pena passarpor bobo. O mais humilde dos saltimbancos da

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Índia seria capaz de enganá-los a ponto depensarem que estão loucos.”

"Mas como?", perguntou outro, acend-endo um charuto.

"Como? Com qualquer uma de suas per-formances mais simples, mais comuns. Lançandopara o ar objetos que nunca vão cair. Fazendoplantas brotarem, crescerem e se abrirem em flor,isso em qualquer superfície nua, escolhida peloespectador. Colocando um homem dentro de umacesta de vime, espetando-o por todos os ladoscom uma espada enquanto ele grita e sangra, paradepois abrir a cesta e mostrar que está vazia. Ouentão jogando para o alto a ponta de um fio deseda e subindo por ele até desaparecer.”

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"Bobagem!", retruquei, temo que comcerta indelicadeza. "Não vá me dizer que vocêacredita nessas coisas.”

"Claro que não. Já as presenciei vezesdemais para acreditar nelas.”

"Mas eu acredito", disse um jornalistalocal muito conhecido por suas matérias pitores-cas. "Já relatei esse tipo de coisa tantas vezes quenada, a não ser a observação, seria capaz de abal-ar minha convicção. Cavalheiros, vocês têmminha palavra.”

Mas ninguém riu — todos estavam comos olhos fixos em alguma coisa atrás dele.Virando-me na cadeira, vi um homem com roupade gala, que acabara de entrar na sala. Era depele muito escura, quase trigueiro, com um rosto

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fino, barba negra que lhe ia até junto da boca,uma vasta cabeleira preta, áspera e em desalinho,nariz adunco e olhos que brilhavam com uma ex-pressão cruel, como os de uma cobra. Um dos in-tegrantes do grupo levantou-se e apresentou-ocomo sendo o Dr. Dorrimore, de Calcutá. A cadaum que era apresentado ele cumprimentava comuma profunda reverência à maneira oriental, em-bora sem a gravidade comum no Oriente. Seusorriso pareceu-me cínico e levemente insolente.Todo seu comportamento só pode ser descritocomo desagradavelmente sedutor.

Sua presença conduziu a conversa paraoutros assuntos, Ele falou pouco — não consigolembrar-me de nada do que chegou a dizer. Noteique sua voz era particularmente rica e melodiosa,embora tenha produzido em mim um efeito

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semelhante ao provocado pelo olhar e pelo sor-riso. Logo, eu me levantava para ir embora. Masele também ergueu-se, começando a vestir osobretudo.

"Manrich", disse, "estou indo na mesmadireção que você.”

Está droga nenhuma!, pensei. E como éque você sabe em que direção vou? Mas limitei-me a dizer: "Ficarei encantado com suacompanhia.”

Saímos do prédio juntos. Não havia táx-is à vista, os bondes já tinham sido recolhidos e alua cheia, na noite fresca, estava uma beleza.Subimos a ladeira da Califórnia Street, Pegueiaquela direção pensando que ele naturalmenteoptaria por outra, para o lado dos hotéis.

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"Você não acredita no que se fala a re-speito dos prestidigitadores indianos", afirmouele, de repente.

"E como é que o senhor sabe?",perguntei.

Sem me responder, ele pôs de leve amão em meu braço e com a outra apontou para acalçada à nossa frente. Ali, quase a nossos pés,jazia o corpo de um homem morto, com o rostovoltado para cima, pálido à luz da lua! Uma es-pada, cujo cabo cintilava com pedrarias, estavaenfiada em seu peito. Uma poça de sangue seformara nas pedras da calçada.

Fiquei espantado e aterrorizado. Nãoapenas com o que via, mas pelas circunstânciasem que o fazia. Diversas vezes, enquanto

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subíamos a ladeira, meus olhos tinham obser-vado, eu podia jurar, toda a extensão daquelacalçada, de uma transversal à outra. Como po-diam ter deixado de ver aquela cena horrível,agora tão nitidamente visível sob a luz da lua?

Enquanto recuperava-me do choque, ob-servei que o corpo vestia traje de gala. O sobre-tudo, aberto, revelava a casaca, a gravata branca,a parte da frente da camisa trespassada pela es-pada. E então — terrível revelação! — vi que orosto, exceto pela palidez, era o de meu compan-heiro! Em cada detalhe, das roupas à aparênciafísica, era o próprio Dr. Dorrimore. Como quehipnotizado pelo horror, virei-me para olhar ohomem vivo a meu lado. Ele desaparecera. E as-sim, ante mais esse terror, saí dali, descendo aladeira pelo mesmo caminho de onde viera.

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Tinha dado poucos passos quando senti um fortepuxão no ombro, que me fez parar. Quase griteide pavor: o homem morto, com a espada aindaenfiada no peito, estava de pé a meu lado! Agar-rando a espada com a mão livre, ele arrancou-a,enquanto o luar banhava as pedrarias do cabo e aprópria lâmina de aço, imaculadamente limpa. Aespada caiu na calçada diante de mim e... desa-pareceu. O homem, a pele novamente escura,afrouxou a mão que me apertava o ombro,voltando a olhar-me com o mesmo olhar cínicoque eu vira em nosso primeiro encontro. Os mor-tos não têm um olhar assim. Recobrando parcial-mente o controle, virei-me para trás e vi a sombrabranca da calçada, limpa de uma transversal àoutra. "O que significa isso, seu demônio?", per-guntei, enfático, embora me sentisse fraco etremesse da cabeça aos pés.

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"Foi aquilo que alguns se divertemchamando de prestidigitação", respondeu ele,com um rápido porém incisivo sorriso.

Em seguida virou na Dupont Street e eujamais voltei a vê-lo, até o dia de nosso encontrona ravina de Auburn.

III

No dia seguinte ao meu segundo encon-tro com o Dr. Dorrimore, não voltei a vê-lo. O re-cepcionista da Pensão Putnam explicou-me queestava trancado no quarto, adoentado. Naquelatarde, na estação de trem, tive uma agradável sur-presa com a chegada inesperada da Srta. Mar-garet Corray, juntamente com sua mãe, pro-cedentes de Oakland.

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Esta não é uma história de amor. Tam-pouco sou um contador de histórias, e o amor, dojeito que é, não pode ser descrito numa literaturadominada e circunscrita à tirania aviltante queobriga a escrever bonito em nome das adolescen-tes. Sob o jugo doentio das adolescentes — ou,por outra, sob o mando dos falsos censores que seinvestiram do direito de cuidar do bem-estardelas —

o amor apaga sua sagrada pira,

E, sem que o saiba, a Moralidade expira

morreu de fome ante a comida insossa ea água destilada fornecidas pelos puritanos.

O que quero dizer é que a Srta. Corray eeu estávamos noivos. Ela e a mãe foram para o

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hotel onde eu me hospedava e, ao longo de duassemanas, vi-a diariamente. Desnecessário dizerque eu estava feliz. O único obstáculo à minhafelicidade plena naqueles dias maravilhosos era apresença do Dr. Dorrimore, o qual eu me sentirana obrigação de apresentar às senhoras.

A essa altura, eleja caíra no agradodelas. E o que eu podia dizer? Não sabia de nadaque o desmerecesse. Seu comportamento era o deum cavalheiro bem-educado e gentil. E, para asmulheres, o comportamento é o que faz ohomem. Em uma ou duas ocasiões, ao ver a Srta.Corray caminhando lado a lado com ele, fiqueifurioso, e uma vez cheguei mesmo à indiscriçãode protestar. Indagado sobre minhas razões, nãotive o que dizer e pensei ter visto na expressãodela uma sombra de desprezo diante das tolices

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de uma mente ciumenta. Com o tempo, fui fic-ando cada vez mais taciturno e irritadiço, até que,num gesto intempestivo, decidi voltar a São Fran-cisco no dia seguinte. Mas nada comentei sobreisso.

IV

Havia em Auburn um velho cemitério,abandonado. Era quase no coração da cidade,mas, mesmo assim, à noite era um lugar tão som-brio quanto poderia desejar um ser humano emseu momento mais lúgubre. As grades das sepul-turas estavam caídas, arrebentadas e muitas jánão existiam. De vários túmulos só restavamruínas e de alguns haviam brotado imensos pin-heiros, cujas raízes tinham cometido um pecadoinominável. As lápides estavam caídas ou racha-das ao meio e o terreno coberto de espinheiros. O

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muro fora quase todo desfeito e vacas e porcosandavam por ali. O lugar era uma desonra para osvivos, uma ofensa para os mortos, uma blasfêmiacontra Deus.

Na noite daquele dia em que eu tomara aestouvada decisão de ir embora, furioso, paralonge daquilo que mais amava, fui dar naquelelocal, bem a propósito. A luz de uma meia-luafiltrada através das folhagens formava desenhos enódoas que deixavam entrever o invisível. E assombras escuras pareciam conspirar para, no mo-mento exato, revelar negrores ainda mais terrí-veis. Passando junto do que fora a calçada de umtúmulo, vi emergir das sombras a figura do Dr.Dorrimore. Eu próprio, estando encoberto pelapenumbra, fiquei imóvel, com as mãos crispadase os dentes trincados, tentando controlar o

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impulso de atirar-me sobre ele e estrangulá-lo.Um momento depois, uma segunda figura juntou-se a ele, segurando-o pelo braço. Era MargaretCorray!

Não sei bem contar o que aconteceu. Sósei que pulei para a frente, com pensamentos demorte. Sei que fui encontrado na manhã cinzenta,ferido e sangrando, com marcas de dedos na gar-ganta. Fui levado à Pensão Putnam, onde, porvários dias, delirei. Tudo isso só sei porque mefoi contado. E de minha parte lembro apenas que,ao recobrar a consciência, já convalescente,mandei chamar imediatamente o recepcionista dohotel.

"A Sra. Corray e a filha dela ainda estãohospedadas aqui?", perguntei.

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"Qual foi o nome que o senhor disse?”

"Corray.”

"Não tivemos ninguém com esse nomeaqui, senhor.”

"Não zombe de mim, eu lhe peço", disseeu, altivo. "Você está vendo que já estou melhor.Diga-me a verdade.”

"Dou-lhe minha palavra, senhor", insis-tiu ele com evidente sinceridade. "Não tivemosnenhum hóspede aqui com esse sobrenome.”

Suas palavras me deixaram estupefato.Permaneci em silêncio por um instante. Emseguida, perguntei:

"E onde está o Dr. Dorrimore?”

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"Ele foi embora na manhã seguinte àbriga e, desde então, não ouvimos mais falardele. Foi um trabalho e tanto que ele deu aosenhor.”

V

Tais são os fatos neste caso. MargaretCorray hoje é minha esposa. Ela jamais esteveem Auburn e durante as semanas em que toda ahistória que acabei de contar se formou em minhamente ela estava em casa, em Oakland,perguntando-se onde eu estaria e por que não lheescrevia. Outro dia, li no jornal Sun, de Bal-timore, a seguinte nota:

"O professor Valentine Dorrimore,hipnotizador, teve enorme audiência ontem ànoite. O palestrante, que viveu a maior parte de

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sua vida na Índia, fez uma fantástica exibição deseus poderes, hipnotizando, com um simples ol-har, qualquer um que concordasse em submeter-se à experiência. Na verdade, hipnotizou a platéiainteira por duas vezes (só os repórteres forampoupados), fazendo com que todos tivessem asmais extraordinárias ilusões. A melhor coisa dapalestra foi a exposição sobre os métodos dosprestidigitadores indianos em suas famosas per-formances, relatadas por muitos viajantes. O pro-fessor declara que esses taumaturgos chegaram atal refinamento na arte que aprendeu com elesque são capazes de fazer milagres, apenas mer-gulhando os 'espectadores' num estado dehipnose e dizendo-lhes o que devem ver e ouvir.E chega a ser inquietante sua afirmação de quealgumas pessoas, especialmente suscetíveis, po-dem ser mantidas no limiar do irreal durante

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semanas, meses e até mesmo anos, dominadaspor qualquer ilusão ou alucinação que o prestidi-gitador queira eventualmente sugerir.”

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Casas espectrais

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A janela fechada

Em 1830, a poucos quilômetros de ondeé hoje a grande cidade de Cincinnati, havia umafloresta imensa, de mata fechada. A região era es-parsamente habitada por gente da fronteira — al-mas inquietas que tinham construído boas casasjunto à floresta, com um grau de prosperidadeque hoje classificaríamos de indigente. Maistarde, impelidas por algum misterioso impulso desua natureza, essas pessoas abandonariam tudo eiriam ainda mais longe rumo a oeste, em busca denovos perigos e privações, tudo apenas para obterde volta um mínimo de conforto ao qual elasmesmas, voluntariamente, haviam renunciado.Muitas já tinham deixado a região em busca deparagens mais remotas, mas entre as que per-maneciam havia uma que estivera entre os

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pioneiros do lugar. Vivia sozinho em uma casade toras de madeira, cercada por todos lados pelaimensa floresta, de cujo silêncio e penumbra eleparecia fazer parte — já que ninguém jamais ovira sorrir ou dar uma palavra vã. Suas necessid-ades eram supridas pela venda ou troca de courode animais selvagens, o que fazia na cidaderibeirinha, pois não plantava nada em sua terra,sobre a qual, se preciso, poderia reivindicar pro-priedade por usucapião. Havia alguns sinais de"melhoramentos" — o terreno em volta da casafora limpo e desbastado um dia e os restos detroncos jaziam meio encobertos pela nova veget-ação que crescia após os danos provocados pelomachado. Aparentemente, o interesse daquelehomem pela agricultura queimara numa chamafraca, apagando-se em meio às cinzas penitentes.

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A casa de madeira, com sua chaminéfeita de tocos, seu telhado de ripas mal postas, at-ravessadas por caibros, e seu barro esburacado,tinha apenas uma porta e, bem em frente, umajanela. Esta última, porém, estava pregada comtábuas — e ninguém se lembrava de jamais tê-lavisto aberta. Não se sabia por que estava semprefechada. Com certeza não era porque seu ocu-pante não gostasse de luz e ar, já que nas rarasocasiões em que um caçador passava por aquelelocal solitário sempre via seu dono tomando solna soleira da porta, quando sol havia. Acho quepoucas pessoas conhecem o segredo daquelajanela e eu sou uma delas, como vocês verão.

O nome do homem, dizia-se, era Mur-lock. Aparentava uns setenta anos, mas na ver-dade mal passava dos cinqüenta. Alguma coisa

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além do tempo o fizera envelhecer. O cabelo e abarba, esta comprida e cheia, eram brancos. Osolhos, cinzentos e opacos, muito fundos. E orosto estranhamente riscado pelas rugas, quepareciam pertencer a dois sistemas entrecruzados.De corpo era alto e magro, com os ombrosdescaídos — como se carregasse um fardo. Eu ja-mais o vi. Esses detalhes ouvi de meu avô, at-ravés do qual, quando era rapaz, fiquei sabendotambém a história do homem. Meu avô o conhe-cera, pois fora vizinho dele nos velhos tempos.

Certo dia, Murlock foi encontrado emsua cabana, morto. Naquele tempo, ainda nãohavia polícia e jornais, e acho que chegaram àconclusão de que ele morrera de causas naturais,caso contrário me teriam contado, e eu me lem-braria. Só sei que, exatamente como é adequado,

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ele foi enterrado perto da cabana, junto ao túmuloda mulher, morta tantos anos antes e a comunid-ade local mal se lembrava de sua existência. Aquise encerra o capítulo final desta história ver-dadeira — isto, sem falar na circunstância de que,muitos anos depois, ao lado de outro espírito in-trépido, eu iria até lá e teria coragem de chegarperto da cabana abandonada o suficiente paraatirar-lhe uma pedra, fugindo em seguida commedo do fantasma que todos os garotos bem-in-formados das redondezas sabiam existir ali. Mashá um capítulo antes deste — e esse é narradopor meu avô.

Quando Murlock construiu sua cabana ecomeçou a descer o machado nas redondezaspara construir uma fazenda — valendo-se do riflecomo instrumento de apoio —, ele era jovem,

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forte e cheio de esperança. Lá pelas terras doLeste, de onde viera, ele se casara, como erapróprio da época, com uma jovem de todas asformas dignas de sua devoção, pronta a dividircom ele, com espírito esperançoso e coraçãoleve, todos os perigos e privações reservados pelodestino. Ninguém se lembra seu nome. Sobreseus encantos, de corpo e de espírito, a tradiçãose cala. E, embora aquele que duvida esteja livrepara divertir-se com sua própria dúvida, Deus meproíbe de fazê-lo com vocês. Mas da afeição e dafelicidade entre os dois há muita certeza, certezaconfirmada por cada dia da posterior viuvez dohomem. Pois o que mais, senão o magnetismo delembranças maravilhosas, seria capaz de manterum espírito tão aventureiro acorrentado àqueledestino?

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Um dia, ao voltar de uma caçada nomeio da floresta, Murlock encontrou a mulherprostrada de febre, delirando. Não havia ummédico num raio de muitos quilômetros, e nemvizinhos. Tampouco a mulher estava em con-dições de ser deixada ali sozinha, enquanto elebuscasse socorro. Sendo assim, Murlock decidiucuidar dela, na esperança de que se recuperasse,mas ao fim do terceiro dia ela entrou em coma emorreu, ao que parece, sem jamais ter recobradoa consciência.

Pelo que sabemos de naturezas como adele, podemos tentar recompor os detalhes dacena a partir do que foi contado por meu avô.Convencido de que ela estava morta,Murlock lembrou-se que os mortos devem serpreparados para o sepultamento. Imbuído desse

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dever sacro, ele andejou de um lado para outro,cometeu alguns erros e outros acertos, que repe-tiu, uma vez após a outra. Suas falhas ocasionaisna tentativa de cumprir algumas tarefas simples ecomuns deixaram-no atordoado, como umbêbado que se intrigasse com a dificuldade emfazer as coisas mais naturais. Surpreendeu-se,também, por não ter chorado — e, além de sur-preso, ficou envergonhado. Claro que é descortêsnão chorar pelos mortos. "Amanhã", disse emvoz alta, "terei de construir o caixão e cavar acova. E então deverei sentir sua falta, quando elajá não estiver por perto. Mas agora — ela estámorta, é verdade, mas está tudo bem, de algummodo, tem de estar tudo bem. As coisas não po-dem ser tão ruins quanto parecem.”

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E ali ficou, junto ao corpo, sob a luz quemorria, ajeitando o cabelo da mulher e dando osúltimos retoques na arrumação do cadáver, tudofazendo de forma mecânica, sem sentimento. E,contudo, passava por sua cabeça a certeza de quetudo estava bem — de que ele voltaria a tê-lacomo antes, de que tudo seria explicado. Nãotinha experiência de luto. Sua capacidade para talnão fora exercitada. Seu coração não podia contertudo aquilo, nem sua imaginação fora talhadapara concebê-lo. Não tinha idéia do quão forte-mente fora atingido. Essa constatação só viria de-pois, e jamais o abandonaria.

O luto é um artista de poderes tão váriosquanto os instrumentos em que toca o réquiempara os mortos, em alguns evocando as notasmais agudas, mais estridentes, em outros os tons

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mais baixos, graves, recorrentes como o lentosoar de um tambor distante. A alguns o luto es-panta. A outros imobiliza. A uns chega como ocravar de uma seta, aguilhoando os sentidos parauma percepção mais aguda. A outros, como umgolpe surdo, que atordoa. Talvez tenha sido as-sim que Murlock foi afetado, porque (e aquipalmilhamos campo mais firme que o da simplesconjectura), assim que terminou seu trabalho pio,sentou-se numa cadeira junto à mesa onde jazia ocorpo e, observando a palidez do perfil que mer-gulhava na penumbra, cruzou os braços sobre ocanto da mesa e neles afundou o rosto sem lágri-mas, extenuado. Naquele instante, entrou pelajanela um som como um longo gemido, semel-hante ao choro de uma criança perdida nas pro-fundezas escuras da floresta. Mas o homem nãose moveu. Outra vez, e agora mais perto, o

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gemido sobrenatural se repetiu, ante seus sen-tidos amortecidos. Talvez fosse um animalselvagem. Talvez fosse um sonho. Porque Mur-lock adormecera.

Muitas horas depois, como mais tardesaberíamos, esse vigia incréu acordou e,erguendo a cabeça de entre os braços, ficou à es-cuta — embora não soubesse por quê. Ali, na es-curidão absoluta, junto ao cadáver, lembrando-sede tudo sem estremecer, arregalou os olhos paraver — mas tampouco sabia o quê. Todos os seussentidos estavam alerta, a respiração suspensa, osangue parecendo ter sustado a corrente para nãoferir o silêncio. Quem — ou o que o acordara, eonde estava?

De repente a mesa tremeu sob seusbraços e no mesmo segundo ele ouviu, ou pensou

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ter ouvido, o som de uma passada leve, mansa —e depois mais outra —, como o de pés descalçoscaminhando.

Paralisado pelo terror, não foi capaz degritar ou mover-se. E assim esperou — esperouna escuridão por um tempo que foi como muitosséculos, vivendo o pior dos pavores que é pos-sível conhecer, e ainda assim viver para contá-lo.Em vão tentou pronunciar o nome da mulhermorta, em vão quis estender a mão sobre a mesapara ver se ela ainda estava lá. Sua garganta es-tava fechada, seus braços e mãos como se feitosde chumbo. E então aconteceu algo ainda maispavoroso. Um corpo pesado atirou-se contra amesa com tal ímpeto que, empurrando-a contra opeito do homem, quase o derrubou, ao mesmotempo que ele ouvia alguma coisa cair no chão

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tão pesadamente que toda a casa estremeceu como impacto. Seguiu-se um rumor de luta, uma con-fusão de sons impossível de ser descrita. Murlockestava de pé. O medo que sentia era tamanho queperdera inteiramente o controle. Deslizou asmãos sobre a mesa. Estava vazia!

Há um momento em que o terror podetransformar-se em loucura. E a loucura nos leva àação. Sem saber bem por que o fazia, semqualquer motivo a não ser o que impulsiona osinsanos, Murlock atirou-se contra a parede e,tateando, buscou o rifle carregado, que disparousem vacilar. Na luz vívida que iluminou a sala nomomento do disparo, viu uma enorme pantera le-vando a mulher morta na direção da janela, comos dentes cravados em sua garganta. Em seguidaa escuridão voltou a engolir tudo, ainda mais

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fechada do que antes, junto com o silêncio. Equando Murlock voltou a si o sol já estava alto ea floresta cantava com o som dos pássaros.

O corpo jazia junto à janela, onde a ferao deixara ao fugir da chispa e do disparo provo-cados pelo rifle. A roupa estava em desalinho, olongo cabelo despenteado, as pernas largadas. Dagarganta, horrivelmente lacerada, escorrera umapoça de sangue, que ainda não coagulara de todo.A faixa com que ele atara os pulsos da mulher es-tava partida. As mãos, fortemente crispadas. E,entre os dentes, ela trazia um fragmento da orelhado animal.

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A Ilha dos Pinheiros

Por muitos anos, viveu perto da cidadede Gallipolis, em Ohio, um velho chamado Her-man Deluse. Pouco se sabia de sua vida porque,além de não falar de si próprio, não permitia queos outros o fizessem. Havia entre a vizinhança acrença de que fora um pirata — crença que, aoque se sabe, baseava-se apenas em sua coleção delanças de abordagem, espadas e velhas pistolasde pederneira. Vivia completamente só numapequena casa de quatro aposentos, caindo aospedaços e que nunca recebia reparos, a não serquando as intempéries o exigiam. Ficava numapequena elevação, no meio de um campo imensoe pedregoso onde cresciam espinheiros, com al-guns canteiros cultivados, mas de forma bemprimitiva. Aparentemente, era sua única

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propriedade, mas dificilmente poderia dar-lhesustento, por mais simples e poucos que fossemseus desejos. Ele parecia sempre ter dinheiro àmão, pagando à vista pelo que obtinha nas lojasdas redondezas e raramente comprando mais deduas ou três vezes no mesmo lugar, a não serapós um intervalo considerável de tempo. Masnão recebia elogios por essa distribuição igual-itária de sua freguesia. As pessoas estavam maispropensas a encarar aquilo como uma tentativainfrutífera de esconder que possuía muito din-heiro. Nenhuma alma honesta, ciente dos fatos datradição local e possuindo um mínimo de bomsenso, seria capaz de duvidar que ele tinhamontanhas de ouro roubado enterrado em algumponto de sua propriedade decadente.

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No dia 9 de novembro de 1867, o velhomorreu. Ou pelo menos seu corpo foi encontradono dia 10, tendo os médicos atestado que a morteocorrera cerca de 24 horas antes. Como ocorreu,não souberam dizer. Porque os exames post-mortem mostraram que todos os órgãos estavamperfeitamente saudáveis, sem qualquer indício dedoença ou violência. Segundo eles, a morte teriaocorrido por volta do meio-dia, embora o corpotivesse sido encontrado na cama. O veredicto dojúri foi o de que "ele morreu pela vontade deDeus". O corpo foi enterrado e a administraçãopública assumiu a propriedade.

Uma investigação minuciosa nãodescobriu nada que já não se soubesse a respeitodo morto e as pacientes escavações feitas emvários pontos da casa por vizinhos sonhadores e

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parcimoniosos resultaram infrutíferas. Os admin-istradores trancaram a casa a fim de evitar que fi-casse exposta ao tempo, enquanto a propriedade,imóvel e bens, era posta legalmente à venda paracobrir, ao menos em parte, as despesas datransação.

A noite de 20 de novembro foi de tem-pestade. Ventos furiosos varreram os campos,açoitando-os com pancadas de chuva de granizo.Árvores imensas foram arrancadas do chão, inter-rompendo estradas. Nunca se vira na região umanoite tão terrível quanto aquela, mas na manhãseguinte a tempestade perdera o fôlego e o dianasceu claro e limpo. Às oito da manhã, o rever-endo Henry Galbraith, pastor luterano muito con-hecido e estimado, chegou a pé à sua casa, queficava a pouco mais de dois quilômetros da

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propriedade de Deluse. O Sr. Galbraith estiverafora, em Cincinnati, por um mês. Subira o rionum barco a vapor e, ao chegar em Gallipolis nanoite anterior, arranjara um cavalo e uma carroça,tomando o caminho de casa. Mas a violência datormenta retivera-o durante a noite e, já de man-hã, com tantas árvores caídas, acabara por aban-donar cavalo e carroça, continuando a jornada apé.

"Mas onde você passou a noite?", per-guntou a mulher, assim que ele acabou de contarsua aventura.

"Com o velho Deluse na Ilha dos Pin-heiros"*, respondeu rindo. "Mas passei um maupedaço. Ele não se importou de me deixar ficarlá, mas sequer me dirigiu a palavra.”

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Felizmente, no interesse da verdade, es-tava presente a essa conversa o Sr. RobertMosely Maren, advogado e literato de Columbus,o mesmo que escreveu os deliciosos Documentosda arte do humor. Percebendo, embora aparente-mente sem compartilhá-la, a surpresa causadapela resposta do Sr. Galbraith, o sarcástico Sr.Maren sustou com um gesto as exclamações deespanto que naturalmente se seguiriam e, comtoda tranquilidade, perguntou:

"E como foi que o senhor conseguiu en-trar lá?”

Esta é a versão do Sr. Maren para a res-posta do Sr. Galbraith:

"Vi uma luz se movendo dentro da casae, completamente cego pela tormenta, além de

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estar quase congelando, entrei pelo portão e am-arrei o cavalo na cerca do velho estábulo, ondeele está até agora. Em seguida bati na porta.Como ninguém atendeu, resolvi entrar. A sala es-tava escura, mas eu tinha fósforos e acabeiachando uma vela, que acendi. Tentei entrar noaposento ao lado, só que a porta estava trancadae, embora ouvisse os passos pesados do velho ládentro, ele não responddeu a meu chamado.Como não havia lareira acesa, fiz um fogo e medeitei [sic] diante dele, fazendo do casaco traves-seiro e preparando-me para dormir. Mas logo aporta que eu forçara abriu-se silenciosamente e ovelho entrou, carregando uma vela. Dirigi-me aele com toda a gentileza, pedindo perdão pela in-vasão, mas ele não pareceu notar-me. Dava a im-pressão de procurar algo, embora seus olhos est-ivessem fixos nas órbitas. Acho que ele é

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sonâmbulo. Deu uma meia-volta pela sala e saiupela mesma porta por onde entrara. Ainda voltouduas vezes antes que eu adormecesse, agindo ex-atamente da mesma forma e desaparecendo comoantes. Nos intervalos, eu o ouvia perambulandopela casa, seus passos perfeitamente audíveis naspausas da tormenta. E, quando acordei na manhãseguinte, ele já havia saído.”

O Sr. Maren ainda tentou fazer mais per-guntas, mas foi contido pelas exclamações dafamília. A história da morte e do enterro de De-luse veio à

*A "Ilha dos Pinheiros" é um conhecido local de en-

contro de piratas. (N. do A.)

tona, para grande espanto do bompastor.

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"A explicação para a aventura do senhoré muito simples", disse o Sr. Maren. "Nãoacredito que o Sr. Deluse possa caminhar duranteo sono — não nesse em que está mergulhadoagora. Mas o senhor, com toda certeza, tem umsono cheio de sonhos." E, diante dessa versãopara os fatos, o Sr. Galbraith foi obrigado aaceitá-la, embora relutante. Porém, tarde danoite do dia seguinte, lá estavam os dois caval-heiros, acompanhados pelo filho do pastor, na es-trada diante da casa do velho Deluse. Havia luz ládentro. Às vezes numa janela, às vezes noutra. Eos três homens avançaram até junto à porta.Assim que lá chegaram, veio do interior da casauma profusão de sons estarrecedores — ruído deespadas, aço chocando-se contra aço, explosõesviolentas como se armas de fogo, gritos de mul-heres, grunhidos e imprecações de homens em

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combate! Os três ficaram ali por um instante,amedrontados, sem saber o que fazer. E então oSr. Galbraith tentou abrir a porta. Estavatrancada. Mas o pastor era um homem de cor-agem e, acima de tudo, um homem de força her-cúlea. Deu um ou dois passos para trás e atiroucontra a porta o ombro direito, arrancando-a dasdobradiças com um estrondo. No segundoseguinte os três estavam lá dentro. Tudo era es-curidão e silêncio! O único som era a batida deseus corações.

O Sr. Maren trouxera consigo fósforos euma vela. Com dificuldade, devido à agitação emque se encontrava, conseguiu acendê-la, e os trêshomens começaram a explorar a casa, passandode um a outro aposento. Tudo estava em perfeitaordem, como fora deixado pelo xerife. Nada fora

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remexido. Uma fina camada de poeira recobriatudo. Uma porta, nos fundos, encontrava-se en-treaberta, como se por descuido, e a primeiracoisa que passou pela cabeça deles foi que osautores da gritaria talvez tivessem escapado. Es-cancararam a porta e iluminaram o chão com avela. Com os últimos sopros da tormenta noturnacaíra um pouco de neve. Mas não havia pegadas.A superfície branca estava intacta. Eles fecharama porta e entraram no último dos quatro aposen-tos da casa — o que ficava mais distante da en-trada, num canto da construção. Foi lá que a velado Sr. Maren se apagou de repente, como se at-ingida por uma lufada de ar. No instante seguinte,ouviram um baque pesado. E quando reacend-eram a vela às pressas encontraram o jovem Gal-braith, filho do pastor, caído no chão a pouca dis-tância dos dois. Estava morto. Uma das mãos

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crispara-se em torno de um pesado saco demoedas, que exames posteriores provariam servelhos dobrões espanhóis. Bem junto ao lugaronde jazia o corpo uma ripa de madeira tinhasido arrancada da parede e, pela abertura queficara, via-se que fora de lá que o saco foraretirado.

Outra investigação foi realizada. Outroexame post-mortem feito sem que se conseguissedescobrir a causa da morte. Mais um veredicto deque ela se dera "pela vontade de Deus" deixou atodos a liberdade de tirar suas próprias con-clusões. O Sr. Maren chegou à conclusão de queo jovem morrera de pura excitação.

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Missão não cumprida

Henry Saylor, que foi morto em Coving-ton, numa briga com Antônio Finch, era repórterdo jornal Commercial, de Cincinnati. No ano de1859, uma casa vazia da rua Vine, em Cincinnati,tomou-se o centro das atenções por causa deaparições e sons estranhos que ali eram observa-dos à noite. Segundo testemunho de inúmerosmoradores da vizinhança, gente consideradaséria, não havia outra explicação possível para ofenômeno a não ser a de que a casa era mal-as-sombrada. Figuras de aspecto misterioso eramvistas entrando e saindo da casa por verdadeirasmultidões que se aglomeravam na calçada. Nin-guém sabia dizer em que ponto do pátio elasapareciam antes de se dirigir à porta da frente,por onde entravam, nem exatamente em que

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ponto desapareciam, assim que saíam lá de den-tro. Ou melhor, embora cada espectador tivesseuma resposta exata para essas questões, não haviasequer dois deles que concordassem entre si.Tampouco havia consenso na hora de descreveras figuras. Alguns dos curiosos mais intrépidoschegavam, em determinadas noites, a ficar de péjunto aos degraus para interceptá-las ou, caso nãoo conseguissem, para tentar chegar perto e olhá-las melhor. Esses homens corajosos, dizia-se, nãoconseguiam abrir a porta da casa nem quando otentavam em bando e acabavam sempre sendoatirados degraus abaixo por uma força invisível,ficando seriamente machucados. Em seguida, aporta se abria como se por vontade própria, paraque entrasse ou saísse um de seus visitantes es-pectrais. O lugar era conhecido como a casa Ros-coe, nome da família que lá vivera por muitos

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anos, tendo seus membros desaparecido um aum, sendo que o último a morar ali fora umavelha. Histórias de traições e sucessivos assassin-atos eram contadas, mas nada jamais foraprovado. Certo dia, quando era grande a agitação,Saylor se apresentou no escritório do Commer-cial à espera de ordens. Recebeu um bilhete doeditor local que dizia o seguinte: "Vá até a casamal-assombrada da rua Vine e passe a noite lásozinho. Se acontecer alguma coisa interessante,escreva duas colunas." Saylor obedeceu a seu su-perior. Não podia arriscar-se a perder o empregono jornal.

Depois de avisar a polícia do que preten-dia fazer, entrou por uma janela dos fundos dacasa antes do anoitecer, atravessou as salas vazi-as, sem mobília, desoladas e empoeiradas e,

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sentado afinal na sala de visitas, num velho sofáque empurrara até lá, passou a observar a penum-bra que se fechava, à medida que a noite iacaindo. Antes mesmo que escurecesse completa-mente, já havia uma aglomeração de curiosos narua. A multidão estava silenciosa, como sempre,mas expectante, com um zombeteiro exibindo devez em quando sua coragem e incredulidade, combravatas ou gritos de deboche. Ninguém sabiaque, dentro da casa, alguém vigiava, ansioso.Saylor temia acender alguma luz. As janelas, semcortinas, trairiam sua presença e ele poderia serinsultado, talvez até agredido. Além disso, porser consciencioso demais, não queria que nada at-rapalhasse suas impressões e precisava evitar quese alterassem as condições normais em que ofenômeno parecia ocorrer.

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Agora já estava escuro lá fora, mas a luzpálida da rua iluminava o pedaço de sala onde elese encontrava. Saylor havia aberto todas as portasdo interior da casa, nos andares de cima e debaixo, mas as portas externas estavam todastrancadas, com o ferrolho passado. Súbito, ex-clamações da multidão fizeram com que ele se le-vantasse e fosse até a janela, olhando para fora.Foi quando viu a figura de um homem atravess-ando o pátio com passos rápidos e dirigindo-se àcasa. Viu-o subir as escadas. Uma parede do hallo encobriu. Ouviu então o barulho da porta dafrente se abrindo e em seguida se fechando. Es-cutou suas passadas rápidas e pesadas atravess-ando o vestíbulo. Ouviu-o subindo as escadas.Depois pisando o chão nu do quarto que ficavabem em cima de sua cabeça.

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Imediatamente, Saylor empunhou a pis-tola e, galgando as escadas, entrou no quarto,fracamente iluminado pela luz que vinha da rua.Não havia ninguém. Ouviu passos no quarto aolado e foi até lá. Estava escuro e silencioso. Foiquando chutou alguma coisa no chão e,ajoelhando-se, examinou o objeto com a mão.Era uma cabeça humana — a cabeça de umamulher. Erguendo-a pelos cabelos, esse homemde nervos de aço voltou à sala do andar de baixo,onde havia um pouco mais de luz, e foi até juntoà janela examiná-la. Ao fazê-lo, teve a impressãode ouvir a porta da frente abrir-se e fechar-seoutra vez, rapidamente, enquanto era envolvidopelo som de passos. Ergueu os olhos do objetohorrendo que tinha nas mãos e percebeu que es-tava cercado por um aglomerado de homens emulheres, que mal podia enxergar. A sala estava

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repleta deles. Pensou que a multidão tivesse inva-dido a casa.

"Senhoras e senhores", falou, com toda acalma, "sei que estão me vendo em circunstân-cias suspeitas, mas..." e sua voz foi abafada pelaexplosão de gargalhadas — gargalhadas como asque se ouvem em asilos de loucos. As pessoasque o cercavam apontavam o objeto que ele tinhanas mãos. E as risadas redobraram quando, es-capando das mãos de Saylor, a cabeça rolou porentre os pés da multidão. Dançaram em tornodela com gestos grotescos e atitudes obscenas,indescritíveis. Chutavam-na, arremessando-a deum canto a outro da sala. Empurravam-se edigladiavam-se pelo privilégio de chutá-la.Xingavam e gritavam, cantando trechos de can-ções rudes, enquanto a cabeça rolava de um lado

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para o outro, como se aterrorizada, como se tent-ando escapar. Até que foi arremessada através daporta na direção do vestíbulo, sendo seguida portodos, que abandonaram a sala em tumulto. E nosegundo em que a porta se fechou com estrondo,Saylor se viu novamente só, em meio a um silên-cio de morte.

Guardando com cuidado a pistola, queestivera segurando todo o tempo, foi até a janelae espiou lá fora. A rua estava vazia e silenciosa.As lâmpadas apagadas. Telhados e chaminés jáse delineavam contra a luz do alvorecer, a leste.E Saylor saiu da casa, a porta abrindo-se facil-mente ante o toque de sua mão. Caminhou até oescritório do Commercial. O editor ainda estavalá, dormindo em sua sala. Saylor o acordou,dizendo:

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"Eu estive na casa mal-assombrada.”

O editor olhou-o surpreso, como se nãoestivesse totalmente desperto.

"Deus do céu!", exclamou. "É você,Saylor?”

"Sou... porquê?”

O editor nada respondeu, mas continuouolhando para ele.

"Eu passei a noite na casa... parece",disse Saylor.

"Disseram que as coisas estavam estran-hamente calmas lá", disse o editor, brincandocom um peso de papel no qual pousara os olhos."Aconteceu alguma coisa?”

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"Não. Não aconteceu nada.”263/476

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A videira

A cerca de cinco quilômetros da cidadede Norton, no Missouri, junto à estrada que levaa Maysville, fica uma velha casa cujos últimosocupantes foram uma família de nome Harding.Desde 1886 a casa está abandonada e dificil-mente voltará a ser ocupada por quem quer queseja. O tempo e a cisma das pessoas que vivemnas redondezas a estão transformando em ummonte de ruínas pitorescas. Um observador queignorasse sua história dificilmente a classificariade "casa mal-assombrada", mas é exatamenteessa sua reputação naquelas vizinhanças. Asjanelas não têm vidraças, os portais já não con-têm portas. Há grandes fendas no telhado de ar-dósia e, por falta de tinta, seu revestimento demadeira é de um castanho-acinzentado. Mas

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esses sinais inequívocos do sobrenatural são par-cialmente ou mesmo fortemente suavizados pelafolhagem abundante de uma imensa videira quese debruça sobre a casa. Essa videira — de umaespécie que nenhum botânico foi jamais capaz declassificar — tem um papel importante nahistória da casa. A família Harding consistia emRobert Harding, sua mulher, Matilda, a Srta.Júlia Went, irmã dela, e dois filhos pequenos.Robert Harding era um homem calado e frio, quenão possuía amigos na vizinhança e nem pareciainteressado em fazê-los. Tinha cerca de quarentaanos e, frugal e laborioso, trabalhava no pequenorancho hoje tomado pelos espinheiros e pelomatagal. Ele e a cunhada eram malvistos pelavizinhança, segundo a qual os dois andavam de-mais juntos — o que não era exatamente culpadeles, já que na época não assumiam uma atitude

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de desafio. Mas o código moral do interior doMissouri é muito severo e exigente.

A Sra. Harding era uma mulher gentil,de olhar triste, que não tinha o pé esquerdo.

Em algum momento do ano de 1884espalhou-se a notícia de que ela fora visitar a mãeem Iowa. Foi o que o marido disse em resposta àsperguntas, e sua maneira de responder não en-corajava maiores questionamentos. A Sra. Hard-ing jamais voltou e, dois anos depois, sem vendera fazenda ou qualquer um de seus pertences, semsequer designar um procurador para cuidar deseus interesses, sem nem mesmo tirar os bens queestavam na casa, Harding e o restante da famíliadeixaram o lugar. Ninguém sabia para onde tin-ham ido. Mas na época tampouco se importavam.Naturalmente, tudo o que podia ser retirado do

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lugar logo desapareceu e a casa abandonada gan-hou a pecha de "assombrada", como costumaacontecer em casos assim.

Certa tarde de verão, quatro ou cincoanos mais tarde, o reverendo J. Gruber, de Nor-ton, e um procurador de Maysville, de nomeHyatt, encontraram-se, ambos a cavalo, quandopassavam diante da casa dos Hardings. Como tin-ham negócios a discutir, amarraram os cavalos eforam até a casa, sentando-se na varanda paraconversar. Referências bem-humoradas àreputação do lugar foram feitas e logo emseguida esquecidas, quando os dois passaram afalar de negócios, conversa que se estendeu atécomeçar a escurecer. O calor da noite era opress-ivo, o ar estagnado.

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De repente, os dois homens se ergueram,surpresos: a imensa videira que cobria metade dafrente da casa, e cujos galhos se espraiavam deum dos cantos da varanda, começou a agitar-seviolentamente, tronco e folhas sacudindo-se anteos olhos e ouvidos deles.

"Vem aí um temporal", disse Hyatt.Gruber não respondeu, mas em silêncio mostrouao outro a folhagem das árvores vizinhas, quenão se moviam. Até os mais delicados galhos noalto dos arbustos, recortados contra o céu, es-tavam imóveis. Os dois desceram os degraus emdireção ao que um dia fora o pátio e olharam paracima, observando a videira, que viam agora emtoda sua extensão. Continuava agitando-se comviolência, sem que eles fossem capazes de precis-ar o que causava aquilo.

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"Vamos embora", disse o reverendo. Eforam. Esquecendo-se de que viajavam emdireções opostas, saíram juntos. Foram para Nor-ton, onde contaram sua estranha experiência paravários amigos discretos. Na noite seguinte, namesma hora, acompanhados por mais dois com-panheiros cujos nomes não se sabe, voltaram àvaranda da casa dos Hardings — e o fenômeno serepetiu: a videira começou a sacudir-se com viol-ência enquanto eles a examinavam cuida-dosamente da raiz ao topo e nem mesmo a forçade todos juntos abraçados ao tronco foi capaz defazê-la parar. Após uma hora de observação elesse foram, não menos sábios, acredita-se, do quetinham ali chegado.

Em pouco tempo, os estranhos aconteci-mentos despertaram a curiosidade de toda a

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vizinhança. De dia ou de noite, as pessoas seaglomeravam no portão da casa dos Hardingstentando "ver algum sinal". Não há notícia de queo tenham conseguido, mas as testemunhas erampessoas tão confiáveis que ninguém ousavaduvidar da veracidade daquelas "manifestações"por eles observadas.

Até que, fruto de uma inspiração feliz oude um desejo destrutivo, foi certo dia proposto —ninguém sabia dizer de quem partira a idéia —que se cavasse o chão sob a videira. E, apósmuita discussão, isso foi feito. A única coisa queencontraram foi a raiz da árvore — e contudonada poderia ser mais estranho!

Por quase dois metros abaixo do tronco,que na superfície tinha um diâmetro de muitoscentímetros, uma só raiz descia em linha reta,

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penetrando na terra fofa, esboroada. Ali, dividia-se e subdividia-se em radículas, fibras e filamen-tos, entrelaçados da maneira mais curiosa.Quando arrancados do solo, exibiram uma form-ação singular. Suas ramificações e redobras te-ciam uma rede compacta que em tamanho eformato assemelhavam-se incrivelmente à figurahumana. Cabeça, tronco e membros, lá estavam.Até mesmo dedos, distintamente definidos. Muitagente chegou a afirmar ter visto no arranjo form-ado pelas fibras, dentro da massa arredondadaque representava a cabeça, a fisionomia grotescade um rosto. A figura era horizontal. As raízesmenores tinham começado a entrelaçar-se a partirdo peito.

Mas em termos de semelhança com afigura humana a imagem era imperfeita. Porque

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cerca de trinta centímetros abaixo de um dos joel-hos, as raízes que formavam a perna dobravam-seabruptamente para dentro e para trás, inter-rompendo seu crescimento. A figura não tinha opé esquerdo.

A conclusão só podia ser uma — a ób-via. Mas, na excitação que se seguiu àdescoberta, as ações propostas foram tantasquanto o número de advogados incapazes deempreendê-las. O caso foi encerrado pelo xerifedo condado, que, sendo legalmente responsávelpela propriedade abandonada, mandou recolocara raiz no lugar e tapar o buraco.

Investigações posteriores mostraramapenas um fato relevante e significativo: a Sra.Harding jamais chegara a visitar os pais em Iowa,

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nem eles tinham qualquer conhecimento de queela pretendesse fazê-lo.

De Robert Harding e do restante dafamília nada se sabe. A casa mantém sua fama deassombrada, mas a videira replantada é umaárvore tão comum e inofensiva que qualquerpessoa nervosa poderia sentar-se ao pé dela numanoite agradável, com os grilos cantando suasrevelações imemoriais e o rodamoinho ao longesignificando exatamente o que se deve fazernesses casos.

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Na casa do velho Eckert

Philip Eckert viveu durante muitos anosnuma velha casa de madeira, desgastada pelotempo, a cerca de cinco quilómetros da cidadez-inha de Marion, em Vermont. Acho que ainda de-vem existir pessoas que se lembrem dele, talvezaté de maneira simpática, e que conheçam al-guma coisa da história que vou contar.

"O velho Eckert", como sempre foi con-hecido, não era muito sociável e vivia sozinho.Como nunca se ouviu dizer que falasse de sipróprio, ninguém nas redondezas jamais soube deseu passado, nem de seus parentes, se é que tinhaalgum. Embora não fosse especialmente de-sagradável ou repulsivo na maneira de agir oufalar, conseguia de alguma forma proteger-se da

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curiosidade alheia, e ainda assim isentar-se dafama de maldito que geralmente é a vingançadessa curiosidade frustrada. Que eu saiba, suafama de assassino arrependido ou de pirataaposentado do alto-mar jamais chegou a Marion.Tirava o sustento do cultivo da terra não muitofértil de uma pequena fazenda.

Certo dia ele desapareceu, e a buscacuidadosa empreendida pelos vizinhos não foicapaz de localizá-lo, nem de determinar paraonde fora ou por quê. Nada indicava que tivesseplanejado ir embora: tudo estava como se eletivesse saído para pegar água na fonte. Por algu-mas semanas, não se falou em outra coisa na re-gião. Até que "o velho Eckert" transformou-se nalenda da cidade para todos os forasteiros. Não seio foi feito de sua propriedade — duvido que

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tenham sido tomadas as providências legais cabí-veis. Na última vez em que tive notícias dela,passados vinte anos, a casa continuava de pé,ainda vazia e visivelmente decadente.

Claro que ganhou fama de "assombrada"e que surgiram as costumeiras histórias de luzesque se movem, de gemidos e aparições assusta-doras. A certa altura, cerca de cinco anos após odesaparecimento, as histórias sobrenaturais setinham tornado tão comuns, ou tão importantes,em razão de circunstâncias que as autenticavam,que um grupo de cidadãos sérios de Mariondecidiu investigá-las, combinando assim passaruma noite na casa. Os participantes de tal inici-ativa eram John Holcomb, boticário; WilsonMerle, advogado; e Andrus C. Palmer, professorda escola pública, todos eles homens ponderados

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e de boa reputação. Ficaram de encontrar-se nacasa de Holcomb às oito da noite, na data acer-tada, de onde iriam juntos ao local da vigília,para o qual já tinham providenciado, visando seupróprio conforto, provisões de combustível ecoisas do gênero, já que estavam no inverno.

Palmer faltou ao encontro e, depois deesperá-lo por cerca de meia hora, os outros forampara a casa de Eckert sem ele. Acomodaram-seno principal aposento, diante do fogo e, semqualquer outra iluminação, esperaram pelosacontecimentos. Tinham combinado que falariamo mínimo possível: nem sequer voltaram acomentar entre si a defecção de Palmer, assuntoque ocupara suas mentes durante todo o caminho.

Uma hora, talvez, tinha-se passado semqualquer incidente, quando eles ouviram (não

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sem emoção, é claro) o ruído de uma porta se ab-rindo nos fundos da casa, seguido do som de pas-sos no aposento ao lado daquele em que seencontravam. Ergueram-se, mas ficaram firmes,preparados para o que quer que fosse. Seguiu-seum longo silêncio — o quão longo, nenhum dosdois seria depois capaz de dizer. E então a portaentre os dois aposentos se abriu e um homementrou.

Era Palmer. Estava pálido, como se as-sustado — tão pálido quanto os outros doissabiam que estavam. E tinha um jeito estranho,distraído: não respondeu ao cumprimento dosdois, limitando-se a fitá-los e a atravessar devag-ar a sala iluminada pela luz do fogo que morria,abrindo em seguida a porta da frente para desa-parecer na escuridão.

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Ao que parece, ocorreu a ambos quetalvez Palmer estivesse sob o impacto do medo— talvez tivesse visto, ouvido ou imaginado al-guma coisa na sala dos fundos que o tivesse deix-ado atordoado. Levados pelo mesmo impulso deajudar o amigo, os dois correram atrás dele at-ravés da porta aberta. Mas nem eles nem nin-guém jamais voltou a ver ou a ouvir falar deAndrus Palmer!

E isso foi apurado na manhã seguinte.Durante a permanência de Holcomb e Merle na"casa assombrada", vários centímetros de nevefresca se tinham acumulado sobre a que já re-cobria o chão. Na neve nova, as pegadas dePalmer em seu caminho da estalagem na cidadeaté a porta dos fundos da casa de Eckert eramclaramente visíveis. Mas terminavam ali: diante

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da porta da frente, só havia as pegadas dos doishomens que juravam tê-lo visto sair por lá.Palmer desapareceu de modo tão completoquanto o próprio "velho Eckert" — o qual foiacusado com todas as letras pelo editor do jornallocal de ter "surgido e agarrado Palmer, levando-o consigo".

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Os outros hóspedes

"Para pegar o trem", disse o coronelLevering, sentado no Hotel Waldorf-Astoria,"você terá de passar a noite quase toda em At-lanta. É uma cidade interessante, mas eu o acon-selho a não ir até a Casa Breathitt, um dos prin-cipais hotéis de lá. É uma velha construção demadeira, precisando urgentemente de reparos. Asparedes têm rachaduras tão grandes que você ser-ia capaz de enfiar um gato através delas. Os quar-tos não têm tranca nas portas nem móveis, apenasuma cadeira cada e um lastro com colchão, massem roupa de cama. E mesmo sobre essas aco-modações tão simples você talvez não tenha ex-clusividade: correrá o risco de ter de dividir oquarto com outros hóspedes. Meu caro, é umhotel abominável.

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"A noite em que passei lá foi extrema-mente desconfortável. Cheguei tarde ao hotel efui levado até o quarto, no térreo, pelo porteiro danoite, que me pediu muitas desculpas. Levavanas mãos uma vela de sebo, que deixou comigo.Eu estava exausto, depois de dois dias e umanoite viajando de trem, e ainda não completa-mente recuperado de um tiro que levara nacabeça, durante uma briga. Em vez de procurarum lugar melhor para ficar, deitei-me no colchãosem nem mesmo tirar a roupa e caí no sono.

"De madrugada, acordei. A lua estavaalta no céu e brilhava através da janela sem corti-nas, banhando o quarto com uma luz suave e azu-lada, com um certo toque fantasmagórico, em-bora eu deva dizer que nada tivesse de incomum.O luar é sempre assim, se você observar bem.

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Imagine qual não foi minha surpresa e indig-nação ao ver que pelo menos uma dúzia de outroshóspedes se espalhava pelo chão do quarto!Ergui-me, maldizendo a gerência daquele hotelimpensável e já estava a ponto de sair da cama eprocurar encrenca com o porteiro da noite —aquele das desculpas e da vela de sebo — quandoalguma coisa no ambiente me deixou indisposto afazer qualquer movimento. Acho que é o que umficcionista chamaria de 'ficar paralisado demedo'. Porque, obviamente, todos aqueles ho-mens estavam mortos.

"Jaziam de costas, dispostos em ordemao longo de três das quatro paredes do quarto,com os pés junto ao rodapé — na quarta parede,a mais distante da porta, estava encostada minhacama, assim como a cadeira. Todos tinham os

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rostos cobertos, mas, de dois dos corpos, que es-tavam no quadrado de chão iluminado pelo luar,junto à janela, via-se perfeitamente o perfil, como nariz e o queixo bem marcados sob os panosbrancos.

"Pensei que fosse um pesadelo e tenteigritar, como se faz nesses casos, mas não con-segui emitir qualquer som. Finalmente, após umesforço desesperado, pousei os pés no chão e,passando entre as duas fileiras de rostos recober-tos e entre os dois corpos que jaziam mais pertoda porta, escapei daquele lugar infernal, correndoaté a portaria. O porteiro da noite estava lá, atrásdo balcão, sentado em meio à luz mortiçade outra vela de sebo — sentado, apenas, de ol-hos abertos. Não se levantou: minha entrada re-pentina não teve sobre ele qualquer efeito,

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embora eu próprio devesse estar com a aparênciade um cadáver. E só então ocorreu-me que eu nãochegara a observá-lo bem. Era um rapaz franzino,de rosto pálido, com os olhos mais vazios, maisbrancos, que eu jamais vira. Não tinha qualquerexpressão. Suas roupas eram de um cinza sujo.

"'Raios!', gritei. 'O que é isso?' "En-quanto falava, eu tremia como uma folha aovento, não sendo capaz sequer de reconhecerminha própria voz.

"O porteiro da noite se levantou, fezuma reverência (como se procurasse desculpar-se) e — bem, no instante seguinte já não estavamais lá. E nesse mesmo segundo senti uma mãopousar sobre meu ombro. Imagine o que senti!Aterrorizado, virei-me e dei com um cavalheirocorpulento, de expressão gentil, que perguntou:

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"'O que há, meu amigo?' "Não demoreia contar-lhe, mas antes que terminasse era elequem estava pálido.

"'Diga-me uma coisa', falou, 'o senhorestá me contando a verdade?' "Eu já estava maiscontrolado e agora o terror dava lugaràindignação.

"'Se duvida do que digo', falei, 'soucapaz de acabar com você!' "'Não', respondeu,'não faça isso. Sente-se que vou explicar-lhetudo. Isto não é um hotel. Já foi, um dia. Depois,foi transformado num hospital. Agora está vazio,à espera de ser reocupado. E o quarto que o sen-hor mencionou era o necrotério — estava semprecheio de cadáveres. O rapaz a quem o senhorchama de porteiro da noite costumava sê-lo, defato, porém mais tarde passou a controlar o

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registro dos pacientes que eram trazidos para ohospital. Não entendo como pudesse estar aqui.Ele morreu há poucas semanas.' '"E quem é vo-cê?', perguntei.

'"Bem, sou eu que cuido do prédio.Aconteceu de eu estar passando e, vendo uma luzaqui dentro, entrei para investigar. Vamos até láolhar o tal quarto', acrescentou, apanhando a velaque crepitava sobre o balcão.

'"Prefiro encontrar com você no in-ferno!', retruquei, disparando porta afora.

"Meu caro, a tal de Casa Breathitt, emAtlanta, que lugar terrível! Não vá nunca lá.”

"Deus me livre! Pelo que o senhor con-tou, não parece nada confortável... Por falar

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nisso, coronel, quando foi que tudo issoaconteceu?”

"Em setembro de 1864 — logo depoisdo cerco.”

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A casa assombrada

Na estrada em direção ao norte, que levade Manchester, na região leste de Kentucky, aBooneville, cerca de trinta quilómetros adiante,existia, no ano de 1862, uma casa de fazenda,feita de madeira, cuja qualidade era bem superiorà maioria das moradias daquela região. Ela seriadestruída no ano seguinte por um incêndio —provavelmente provocado por soldados desgarra-dos da coluna do general George W. Morgan, quebatia em retirada da Falha de Cumberland emdireção ao rio Ohio, depois de ser vencida pelogeneral Kirby Smith. Quando foi destruída, acasa já estava abandonada há quatro ou cincoanos. Os campos à sua volta estavam cobertospelo matagal, as cercas tinham sido derrubadas emesmo as poucas casas de escravos, bem como

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outras construções externas, tudo estava emruínas, fosse por descuido ou por pilhagem. Issoporque tanto os negros como os brancos pobresdos arredores costumavam usar a madeira da casae das cercas para fazer fogo, lançando mãodesses recursos sem hesitar, abertamente e à luzdo dia. Aliás, somente à luz do dia. Pois, assimque caía a noite, nenhum ser humano, excetoforasteiros que por ali passassem, jamais seaproximava do lugar.

Era conhecida como a "Casa Assom-brada". Que ela era habitada por espíritos maléfi-cos, visíveis, audíveis e ativos, todos naquela re-gião acreditavam, da mesma forma que acred-itavam no que ouviam do pastor itinerante emseus sermões de domingo. A opinião do dono dacasa sobre o assunto ninguém sabia. Ele e sua

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família tinham desaparecido certa noite sem deix-ar rastros. Largaram tudo para trás — os bens queestavam na casa, roupas, provisões, os cavalosnos estábulos, as vacas no campo e os escravosem suas casas — tudo intocado. Não faltava nada— apenas um homem, uma mulher, três meninas,um menino e um bebê! E não era de admirar quenuma fazenda onde sete seres humanos haviamdesaparecido ao mesmo tempo, ninguém ficassesob suspeita.

Certa noite, em junho de 1859, dois cid-adãos de Frankfort, o coronel J. C. McArdle, ad-vogado, e o juiz Myron Veigh, da MilíciaEstadual, dirigiam-se de Booneville aManchester. Tinham negócios tão importantesque decidiram seguir viagem apesar da escuridãoque caía e dos rumores de uma tempestade que se

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aproximava, findando por desabar justamentequando eles se aproximavam da "Casa Assom-brada". Eram tantos os relâmpagos que os doisconseguiram enxergar o caminho através daporteira até um alpendre, onde amarraram oscavalos, tirando-lhes os arreios. Em seguida fo-ram até a casa, debaixo de chuva, batendo em to-das as portas sem obter resposta. Atribuindo ofato ao barulho constante dos trovões, empur-raram uma das portas, que cedeu. Entraram semcerimônia, fechando-a. E, nesse instante, viram-se mergulhados na escuridão e no silêncio. Nemuma réstia de luz dos relâmpagos incessantespenetrava através das janelas ou das fendas. Nemum murmúrio do tremendo rugir dos trovões al-cançava o interior da casa. Era como se tivessemficado instantaneamente cegos e surdos. Maistarde, McArdle contaria ter chegado a pensar que

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estivesse morto, atingido por um raio no mo-mento em que cruzava a soleira da porta. O rest-ante da aventura pode ser relatado por suas pró-prias palavras, que ele publicou no Advocate, deFrankfort, na edição de 6 de agosto de 1876:

"Assim que consegui me recuperar dotorpor provocado pela transição entre o barulho eo silêncio, meu primeiro impulso foi reabrir aporta que acabara de fechar, e de cuja maçaneta,pelo que podia lembrar, eu não chegara a retirar amão. Podia senti-la, ainda, sob meus dedos fecha-dos. Minha idéia era voltar para baixo da tor-menta a fim de descobrir se havia mesmo perdidoa visão e a audição. Virei a maçaneta e abri aporta. E vi que ela dava para um outro aposento!

"Esse aposento estava tomado por umaluz tênue, esverdeada, cuja fonte não pude

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determinar e que tornava tudo perfeitamentevisível, embora não bem delineado. Eu digo'tudo', mas na verdade os únicos objetos entre asparedes de pedra nua eram corpos humanos.Eram talvez oito ou dez — é preciso deixar claroque não os contei. Tinham diferentes idades, outamanhos, havendo de crianças a adultos, e deambos os sexos. Todos jaziam no chão, excetoum, aparentemente uma jovem que, recostada,tinha as costas coladas a um dos cantos daparede. Um bebê jazia nos braços de outra mulh-er, esta mais velha. Um rapazinho estava caído debruços, atravessado sobre as pernas de umhomem de barba cerrada. Um ou dois estavamquase nus e uma das meninas trazia na mão ofragmento de uma roupa de dormir, que elarasgara na altura do peito. Os corpos ap-resentavam diferentes estágios de decomposição,

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mas todos tinham face e corpo enrugados. Algunseram pouco mais do que esqueletos.

"Enquanto, de pé, eu olhava estupefatoaquele espetáculo terrível, ainda segurando aporta aberta, minha atenção, por um caprichoinexplicável, prendeu-se em alguns detalhes in-significantes. Talvez minha mente, com um in-stinto de autopreservação, buscasse alívio emcoisas que lhe pudessem amenizar a tensão. Entreoutros detalhes, notei que a porta que seguravaera feita de pesadas chapas de ferro, pregadas.Equidistantes, de alto a baixo, três grandes par-afusos brotavam dos cantos chanfrados. Eumovia a maçaneta e eles se retraíam. Soltava-a eeles pulavam para fora. Era uma trancade mola.Do lado de dentro não havia maçaneta, nem

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qualquer protuberância — a superfície de ferroera lisa.

"Enquanto observava esses detalhes comum interesse e uma atenção que hoje me deixamadmirado, senti que era empurrado para o ladopelo juiz Veigh, do qual, ante a intensidade e asvicissitudes de minhas emoções, eu havia esque-cido completamente. 'Pelo amor de Deus', gritei,'não entre aí! Vamos sair deste lugar horrendo!'"Mas ele não deu atenção às minhas súplicas e(com a coragem típica dos cavalheiros do Sul)encaminhou-se até o centro da sala, ajoelhando-se ao lado de um dos corpos para examiná-lomelhor e segurando entre as mãos, com cuidado,sua cabeça enegrecida e decomposta. Um odorestranho e desagradável veio através da porta,atingindo-me de chofre. Senti tudo rodar.

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Percebendo que ia cair, tentei amparar-me naquina da porta e acabei por fechá-la com um es-talo metálico!

"Não me lembro de mais nada: seis sem-anas depois recobrei a consciência em um hotelde Manchester, para onde fora levado por estran-hos no dia seguinte. Durante todas aquelas sem-anas sofrera de uma febre nervosa, com con-stantes delírios. Fora encontrado jogado na es-trada a vários quilômetros de distância da casa.Mas como consegui escapar de lá e chegará es-trada, jamais soube. Assim que me recuperei, ouassim que meus médicos me permitiram falar,perguntei pelo juiz Veigh e eles me disseram(para me acalmar, como ficaria sabendo depois)que ele estava bem e em casa.

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"Ninguém acreditou em uma só palavrade minha história e isso não me surpreende. Equem pode imaginar meu desespero quando, aochegar à minha casa em Frankfort, dois mesesdepois, fiquei sabendo que nunca mais depoisdaquela noite se tinha tido qualquer notícia dojuiz Veigh? Foi então que me arrependi amarga-mente do orgulho que, nos primeiros dias de re-cuperação, me impedira de repetir minha históriaabsurda, de insistir que ela era verdadeira.

"Tudo o que aconteceu depois — as in-vestigações feitas na casa, sem que fosse encon-trado qualquer aposento semelhante ao que euhavia descrito; as tentativas de me tachar de lou-co e a maneira como superei tais acusações —,tudo é bem conhecido pelos leitores do Advocate.Depois de todos esses anos, continuo certo de

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que as escavações que não tenho nem permissãolegal nem dinheiro para fazer iriam desvendar osegredo do desaparecimento de meu infelizamigo e talvez também dos donos da casa, hojeabandonada e destruída. Ainda não perdi com-pletamente as esperanças de vir a realizar talbusca e sinto imensamente que ela venha sendoprotelada pela hostilidade injusta e pela incredul-idade ignorante de familiares e amigos do juizVeigh.”

O coronel McArdle morreu em Frank-fort, no dia 13 de dezembro do ano de 1879.

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Os olhos da pantera

I

Nem sempre nos casamos quando es-tamos loucos

Um homem e uma mulher — reunidospela natureza — estavam sentados num bancorústico, num fim de tarde. O homem era de meia-idade, magro e moreno, com uma expressão depoeta e aparência de pirata — um homem capazde chamar atenção. A mulher era jovem, loura,de maneiras graciosas, com algo em seu aspectoe em seus movimentos que fazia pensar na palav-ra "ágil". Vestia uma roupa cinzenta cuja super-fície era desenhada por estranhas figuras de cormarrom. Talvez fosse bonita. Era difícil dizer,

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porque seus olhos prendiam a atenção mais doque tudo. Cinza-esverdeados, longos e estreitos,tinham uma expressão misteriosa. Mas de umacoisa se podia ter certeza: eram perturbadores.Cleópatra talvez tivesse tido olhos assim.

O homem e a mulher conversavam.

"Sim", disse a mulher, "Deus sabe queeu amo você! Mas não quero me casar. Nãoposso. E não vou.”

"Irene, você já disse isso muitas vezes,mas nunca me deu uma razão. Tenho o direito desaber, de entender, quero pôr à prova minha cor-agem, se é que a tenho. Dê-me uma razão.”

"Para amar você?”

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A mulher sorria por entre as lágrimas,lívida. Mas o homem não recebeu a frase comhumor.

"Não. Para isso, não há razão alguma.Uma razão para não se casar comigo. Tenho odireito de saber. Preciso saber. E vou saber!”

Ele se levantara e estava de pé diantedela, com as mãos crispadas, o cenho franzido —semelhante a uma carranca. Por seu aspecto,parecia prestes a ameaçar estrangulá-la para queela falasse. Ela parou de sorrir. Simplesmenteencarou-o com um olhar fixo, imóvel, desprovidode emoção ou sentimento. Mas havia nele algumacoisa que domou a raiva do homem, fazendo-oestremecer.

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"Você quer mesmo saber minha razão?",perguntou ela num tom de voz mecânico, um tomque parecia seu olhar transformado em som.

"Por favor... se não for pedir demais.”

Aparentemente, a principal criatura deDeus estava cedendo terreno para a companheira.

"Muito bem. Pois você vai saber: eu soulouca.”

O homem se levantou, depois olhou-aincrédulo, tendo consciência de que deveria estarachando graça. No entanto, mais uma vez, osenso de humor lhe faltava e, apesar de nãoacreditar, ficou profundamente perturbado poraquilo em que descria. Nem sempre nossas con-vicções e nossos sentimentos estão afinados.

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"É o que os médicos diriam", continuoua mulher, "se soubessem. Eu mesma prefiro clas-sificar como um caso de 'possessão'. Sente-se quevou lhe contar tudo.”

Sem dizer palavra, o homem voltou asentar-se ao lado dela no banco rústico, junto aocaminho. Bem em frente a eles, na parte leste dovale, as montanhas já estavam incendiadas pelopôr-do-sol e a quietude parecia anunciar o anoite-cer. Aquela solenidade misteriosa e significativatinha penetrado a alma do homem. No mundo es-piritual, assim como no material, surgem sinais,presságios da noite. Evitando olhá-la e, sempreque o fazia, consciente do terror indefinível queaquele olhar, apesar de sua beleza felina, pro-vocava, Jenner Brading ouviu em silêncio ahistória contada por Irene Marlowe. Em

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deferência ao leitor, que pode ver com precon-ceito a falta de arte de um narrador inexperiente,o autor destas linhas substitui sua própria versãopelas palavras dela.

II

Um quarto pode ser pequeno demaispara três, mesmo que um esteja do lado defora

Num casebre de madeira, com apenasum quarto e rudemente mobiliado, estava umamulher agachada de encontro à parede, apertandocontra o seio uma criança. Do lado de fora, umafloresta fechada estendia-se por muitos quilômet-ros, em todas as direções. Era noite e o quarto es-tava envolto no mais absoluto negror: nenhumolho humano teria sido capaz de discernir a

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mulher e a criança. E, no entanto, elas estavamsendo observadas. De perto, estreitamente, semque, nem por um segundo sequer, houvesse umdesvio da atenção. E esse é o fato crucial de ondeparte toda nossa narrativa.

Charles Marlowe pertencia àquela classede homens, hoje desaparecidos, que eram pi-oneiros das florestas. Homens cujos ambientesnaturais eram a solidão das matas que se esten-diam ao longo da encosta oriental do Vale doMississippi, dos Grandes Lagos ao Golfo doMéxico. Por mais de cem anos esses pioneiros seembrenharam cada vez mais em direção a oeste,geração após geração, com seus rifles e macha-dos, exigindo da natureza e de seus filhosselvagens um pedaço de terra aqui e ali paraplantação, que logo seria reclamado e

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finalmente arrancado por seus sucessores, menosaventureiros, mas sem dúvida mais prósperos.Até que chegaram ao fim da floresta e deramcom o campo aberto, desaparecendo como setivessem despencado num precipício. O pioneirodas florestas já não existe. O pioneiro das planí-cies, aquele cujo objetivo fácil foi ocupar e dom-inar dois terços do país no espaço de apenas umageração, é uma criação diversa e, sem dúvida, in-ferior. Juntamente com Charles Marlowe, emmeio àquelas paragens selvagens, dividindo comele os perigos, a dureza e as privações de umavida estranha e estéril, estavam sua mulher e umacriança, com as quais Marlowe — numa atitudetípica dos homens de sua estirpe, para os quais asvirtudes domésticas eram uma religião — tinhaprofunda ligação. A mulher ainda era jovem e,portanto, bonita, mas era também nova demais

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para se sentir bem diante do terrível isolamentoda vida que levava. Mas, mesmo negando-lhe oimenso potencial de felicidade que as satisfaçõessimples da floresta não eram capazes de prover,Deus havia sido generoso com ela. E ela encon-trava em seus afazeres domésticos, no bebê, nomarido e em poucos livros fúteis uma abundanteprovisão para suas necessidades.

Certa manhã de verão, Marlowe tirou orifle do gancho de madeira na parede, demon-strando que estava disposto a ir à caça.

"Temos carne bastante", disse a mulher."Por favor, não saia hoje. Ontem à noite sonhei,ah, um sonho terrível! Não consigo lembrar-me,mas tenho quase certeza de que ele vai se realizarse você sair.”

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É duro admitir, mas o fato é que Mar-lowe recebeu essa frase tão solene com menosgravidade do que se poderia esperar diante danatureza misteriosa da calamidade anunciada.Para dizer a verdade, caiu na risada.

"Tente se lembrar", falou. "Talvez vocêtenha sonhado que o bebê tinha perdido o dom defalar.”

Ele obviamente se referia ao fato de quea neném, agarrada à barra de seu casaco de caçacom os dez dedinhos rechonchudos, emitianaquele preciso instante um parecer sobre a situ-ação, através de uma série de exultantes gu-gusinspirados pela visão da capa de pele de guaxin-im usada pelo pai.

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A mulher desistiu. O humor não era seuforte e ela não tinha como enfrentar as pro-vocações do marido. E, assim, com um beijo namãe e outro na criança, Marlowe saiu de casa,fechando a porta e deixando para trás, parasempre, sua felicidade.

À tardinha, ainda não voltara. A mulherpreparou o jantar e esperou. Depois botou a men-ina na cama e cantou baixinho para ela, até que acriança dormiu. Nessa altura, o fogo no qualhavia cozinhado o jantar já se extinguira e oquarto estava iluminado apenas pela luz de umavela. Mais tarde, ela colocaria a vela na janelaaberta, como sinal de boas-vindas ao caçador,caso ele chegasse por aquele lado. Cuida-dosamente, fechara a porta com uma barra trans-versal para evitar os animais selvagens que

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preferissem entrar por ali, em vez de fazê-lo pelajanela aberta. Dos hábitos das feras predadoras,de entrar em casas sem ser convidadas, ela poucosabia, embora, com sua intuição feminina, talveztivesse pensado na possibilidade de isso aconte-cer através da chaminé. À medida que a noiteavançava, ela ficava mais ansiosa, mas tambémia sendo vencida pelo sono. Até que finalmenteestendeu os braços sobre a cama do bebê e repou-sou a cabeça sobre eles. A vela na janelaqueimou até o bocal, bruxuleou e brilhou aindapor um instante antes de apagar-se, sem que elase desse conta. Porque agora a mulher dormia. Esonhava.

Em seu sonho, jazia sentada junto aoberço de um segundo bebê. O primeiro estavamorto. O pai também. A casa na floresta já não

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existia e o local onde se encontrava era para eladesconhecido. Havia pesadas portas de carvalho,sempre fechadas e, do lado de fora das janelas,presas às grossas paredes de pedra, havia barrasde ferro, obviamente (assim pensou ela) uma me-dida para se defender dos índios. Tudoisso observou sentindo infinita autocomiseração,embora sem qualquer surpresa — sentimentodesconhecido nos sonhos. O bebê no berço estavaescondido pela coberta que, por alguma razão,ela vacilava em retirar. Mas afinal o fez, e se viudiante da face de um animal selvagem! Diante dochoque daquela horrível revelação, a mulheracordou, tremendo em meio à escuridão de suacabana na floresta.

Enquanto a consciência de onde se en-contrava ia voltando aos poucos, ela temeu, pela

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criança, que talvez não fosse um sonho. Ecertificou-se de que estava tudo bem, sentindo arespiração do bebê. Não pôde deixar de passar amão de leve em seu rosto. Em seguida, movidapor um impulso do qual provavelmente nem sedera conta, ergueu-se, tomando o bebê adorme-cido nos braços e apertando-o contra o peito. Acabeceira do berço ficava encostada à parede,para a qual a mulher agora dava as costas.Erguendo os olhos, viu dois objetos faiscantes,encarando-a da escuridão com seu brilho verde-avermelhado. Pensou que fossem duas brasas nalareira, mas assim que recobrou o senso dedireção teve a inquietante certeza de que não bril-havam no ponto do quarto onde a lareira deviaestar e, mais do que isso, que estavam muitoacima, quase na altura dos olhos — de seus

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próprios olhos. Porque eram os olhos de umapantera.

A fera estava na janela aberta, bem emfrente a ela e a menos de cinco passos. Não vianada exceto aqueles olhos terríveis, mas, no hor-ror que a sacudia à medida que tomava consciên-cia da situação, de alguma forma sabia que o an-imal estava de pé sobre as patas traseiras, apoi-ando as dianteiras no peitoril da janela. Isso sig-nificava um interesse maligno — e não a simplessatisfação de uma curiosidade indolente. A cer-teza daquela atitude era um terror a mais, acentu-ando a ameaça dos olhos monstruosos, em cujofulgor toda sua força e coragem consumiam-se.Ante aquele olhar silencioso e inquiridor, sentiutodo seu corpo estremecer, nauseado. Os joelhosfalharam e, pouco a pouco, instintivamente

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apoiando-se para evitar que um movimento maisbrusco fizesse a fera atirar-se sobre ela, a mulherafundou no chão, agachando-se contra a parede,tentando proteger o bebê com o corpo que tremia,sem tirar por um segundo os olhos das órbitas lu-minosas que a matavam aos poucos. Não pensouno marido naquele momento de agonia. Nem teveesperança ou imaginou uma forma de ser salvaou escapar. Sua capacidade para pensar e sentiragora se restringia a uma única emoção: o medodo pulo do animal, do impacto de seu corpo, dapancada de suas imensas patas, dos dentescravando-se em sua garganta, de seu bebêdestroçado. Imóvel, agora, e no mais absolutosilêncio, ela esperou na escuridão, enquanto osmomentos avolumavam-se como se fossem hor-as, anos, eras. E os olhos demoníacos con-tinuavam lá.

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De volta à cabana, tarde da noite, comum veado jogado nos ombros, Charles Marlowetentou abrir a porta. Mas esta não cedeu. Bateu.Não teve resposta. Arriou o animal no chão e deua volta até a janela. Assim que virou a quina dacasa, teve a impressão de ouvir passadas furtivase um ruído na vegetação rasteira da floresta, masfora algo muito sutil para que tivesse certeza,mesmo com seus ouvidos treinados.Aproximando-se da janela e vendo, com sur-presa, que estava aberta, jogou a perna por cimado peitoril e entrou. Tudo era silêncio e escur-idão. Tateou até a lareira, riscou um fósforo eacendeu uma vela. Em seguida olhou em torno.Agachada no chão, contra a parede, viu a mulher,agarrada ao bebê. Quando correu em sua direçãoela se levantou e soltou uma gargalhada. Umagargalhada interminável, alta, mecânica,

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desprovida de alegria e de sentido — o riso quese assemelha ao arrastar de correntes. Sem saberao certo o que fazia, ele estendeu os braços. E amulher colocou neles o bebê. Estava morto. Forasufocado pela pressão do abraço da mãe.

III

A teoria da defesa

Isso foi o que aconteceu durante umacerta noite na floresta, mas nem tudo Irene Mar-lowe relatou a Jenner Brading. Pois ela próprianão sabia tudo. Quando terminou sua história, osol já estava baixo no horizonte e o longo crepús-culo de verão começava a mergulhar nos desvãosda terra. Por um instante, Brading permaneceuem silêncio, esperando que a narrativa continu-asse até chegar a uma ligação com a conversa

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que a provocara. Mas a narradora estava tão si-lenciosa quanto ele e olhava para o outro lado,apertando e desapertando as mãos sobre o colo,como se aquele movimento fosse independentede sua vontade.

"É uma história triste e terrível", disseBrading, afinal. "Mas não entendo. Você diz queCharles Marlowe é o nome de seu pai. Isso eusei. Pelo que vejo, ou imagino, ele envelheceuprecocemente por causa de um grande sofri-mento. Mas, perdão, você disse que... quevocê...”

"Que sou louca", disse a moça, semfazer qualquer movimento.

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"Mas, Irene, você disse... por favor,querida, não desvie os olhos de mim. Você disseque a criança estava morta, não demente.”

"Sim. Aquela. Eu sou a segunda. Nascitrês meses depois daquela noite, e minha mãeteve a bênção de morrer ao me dar à luz.”

Brading ficou em silêncio de novo.Sentia-se um pouco tonto e não conseguia pensarno que dizer. Irene continuava olhando em outradireção. Sem graça, com um gesto impulsivo,Brading tentou segurar as mãos que a moça aper-tava e desapertava sobre o colo, mas algo — elenão saberia dizer o quê — o fez parar. E entãolembrou-se, vagamente, que nunca chegara a to-mar nas suas as mãos de Irene.

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"Você acha possível", recomeçou amoça, "que uma pessoa nascida nessas circun-stâncias possa ser igual às outras? É a isso quevocê chama uma pessoa sã?”

Brading não respondeu. Estava preocu-pado com um novo pensamento que se formavaem sua mente. Aquilo que um cientista chamariade hipótese. E um detetive, de teoria. Poderiatalvez lançar alguma luz, embora uma luzlúgubre, sobre as dúvidas acerca da sanidade deIrene que seu próprio relato não dissipara.

Os campos eram ainda virgens e, aoredor das cidades, escassamente habitados. Ocaçador profissional era uma figura familiar naregião, tendo sempre entre seus troféus cabeças epeles de animais de grande porte. Havia histórias,nem sempre críveis, de encontros noturnos com

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animais selvagens em trilhas isoladas, mas assimcomo surgiam desapareciam, acabando esqueci-das. A mais recente contribuição para essashistórias apócrifas, que pareciam surgir por ger-ação espontânea em diversas casas, era a de queuma pantera vinha assustando as pessoas,espiando-as através das janelas, à noite. Ahistória causara sua pequena dose de sensação ejá chegara mesmo a ser narrada no jornal local.Mas Brading não lhe dera muita atenção. Agora,sua semelhança com a história que acabara deouvir o impressionava, parecendo ser mais doque simples coincidência. Talvez uma históriativesse feito surgir a outra — encontrando con-dições adequadas numa mente mórbida, de ima-ginação fértil, talvez tivesse crescido e se trans-formado no conto trágico que acabara de ouvir.

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Brading lembrou-se de certos detalhesda história e da própria maneira de ser da moça,nos quais, movido pela falta de curiosidade doamor, até então não prestara atenção. Detalhescomo a vida solitária dela ao lado do pai, numacasa onde, ao que parece, jamais entravam es-tranhos, ou o curioso pavor que sentia da noite,com muita gente conhecida comentando queIrene jamais era vista depois do escurecer. Claroque numa mente assim a imaginação, uma vezatiçada, irá incendiar-se num fogo incontrolável,tomando toda a estrutura. E, embora isso lhe pro-vocasse imensa dor, já não tinha dúvidas de queela era insana. Apenas confundira um efeito daprópria desordem mental com sua causa, es-tabelecendo uma relação imaginária entre suapersonalidade e as excentricidades contadas pelosboateiros da região. Com a vaga intenção de

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testar sua nova teoria, e sem uma clara noção doque fazer com ela, Brading disse, com gravidade,embora hesitante:

"Irene, querida, diga-me uma coisa. Eimploro-lhe que não tome isso como uma ofensa,mas diga-me...”

"Já lhe disse", interrompeu a moça,falando com um fervor apaixonado que ele não selembrava de ter percebido nela antes, "já lhedisse que não podemos casar-nos. Será que vale apena dizer mais alguma coisa?”

E, antes que ele pudesse detê-la, Ireneergueu-se e, sem dizer mais nada nem voltar aolhá-lo, desapareceu por entre as árvores emdireção à casa do pai. Brading se levantara paratentar evitar que ela partisse. De pé, ficou

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olhando em silêncio enquanto ela desaparecia napenumbra. De repente, deu um salto, como setivesse sido atingido. Seu rosto assumiu uma ex-pressão de estranheza, de alarme: por entre assombras negras que a tragavam, pensou ter vistoum rápido, um breve cintilar de olhos! Sentiu-setonto por um segundo, sem saber o que fazer. De-pois saiu correndo pela floresta atrás dela,gritando:

"Irene, cuidado! A pantera! A pantera!”

Logo vencera a densidão da floresta esaía num espaço aberto. Ainda a tempo de ver asaia cinza da moça desaparecendo por trás daporta da casa do pai. Não havia qualquer panteraà vista.

IV

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Um apelo à consciência de Deus

Jenner Brading, advogado, vivia numchalé nos arredores da cidade. Bem atrás de suacasa ficava a floresta. Sendo solteiro e seguindo ocódigo moral draconiano daquela época e lugar,segundo o qual não poderia usufruir do único tipode serviço doméstico disponível — o da diarista—, fazia as refeições no hotel da cidade, ondetambém tinha seu escritório. O chalé junto à mataera apenas um local que mantinha — sem grandecusto, é verdade — como forma de mostrarprosperidade e respeitabilidade. Para alguém quefora orgulhosamente apontado pelo jornal localcomo "o maior jurista de seu tempo", não seriaadequado ser tomado por um "sem teto", emboraele às vezes desconfiasse que ter um "teto" e uma"casa" não significava exatamente a mesma

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coisa. Na verdade, sua consciência dessa dispar-idade, bem como sua vontade de harmonizar osdois conceitos, era uma questão de pura dedução,já que se dizia que, pouco depois de construir ochalé, seu dono começara a pensar emcasamento. A idéia fora longe a ponto de ele serrejeitado pela bela porém excêntrica filha doVelho Marlowe, o recluso. Todos acreditavamnisso porque fora ele próprio quem o dissera enão a moça — uma inversão da ordem naturaldas coisas, o que provava a veracidade da versão.

O quarto de Brading ficava nos fundosda casa e tinha uma única janela, que dava para afloresta. Certa noite, ele foi acordado por umbarulho na janela. Não saberia dizer com que separecia. Sentindo uma leve tensão nos nervos,sentou-se na cama e apanhou o revólver, que,

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com a precaução de quem tem o hábito de dormirno térreo com a janela aberta, ele pusera sob otravesseiro. O quarto estava envolto na mais ab-soluta escuridão, mas, não estando aterrorizado,ele sabia bem para onde dirigir a vista e foi lá quea fixou, esperando em silêncio pelo que pudesseocorrer. Já podia agora discernir vagamente o vãoda janela — um quadrado um pouco menosescuro. Logo, na parte de baixo do vão, surgiramdois olhos incandescentes, que brilhavam comum cintilar maligno e sem expressão! O coraçãode Brading deu um salto, depois pareceu parar.Um arrepio percorreu-lhe a espinha até os ca-belos. E ele sentiu o sangue fugir-lhe das faces.Não poderia gritar, nem mesmo para salvar aprópria vida. Mas, sendo um homem de coragem,não o teria feito, mesmo que pudesse. Seu corpocovarde podia estar tremendo, mas seu espírito

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era feito de matéria mais dura. Devagar, os olhoscintilantes moveram-se para cima, no que lhepareceu um movimento de aproximação. E, tam-bém devagar, Brading ergueu a mão direita, se-gurando a pistola. E atirou.

Embora cego pela faísca da arma e tontopelo estampido, Brading ainda ouviu, ou pensouter ouvido, o grito poderoso e selvagem dapantera, de som tão humano e de sugestão tão de-moníaca. Saltando da cama vestiu-se às pressas e,de arma na mão, correu para a porta, onde encon-trou dois ou três homens que tinham vindo cor-rendo da estrada. Após breve explicação, seguiu-se uma busca cuidadosa pela casa. Do lado defora da janela, havia um grande espaço onde agrama, úmida de orvalho, estava amassada e re-volvida. Dali, surgia uma trilha sinuosa, visível à

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luz da lanterna, que desaparecia entre os arbus-tos. Um dos homens escorregou e caiu com asmãos no chão, esfregando-as ao levantar-se esentindo-as pegajosas. Ao examiná-las, viu queestavam vermelhas de sangue.

Estando desarmados, um encontro comuma pantera ferida era a última coisa que queri-am. Todos desistiram. Menos Brading. De lan-terna e pistola na mão, embrenhou-se cora-josamente pela floresta. Vencendo com di-ficuldade a vegetação mais baixa, chegou a umaclareira e lá viu que sua coragem fora recom-pensada. Pois ali encontrou o corpo de sua ví-tima. Mas não era uma pantera. O que era está es-crito, até hoje, na lápide gasta de um cemitério dacidade. Lá, no túmulo junto ao qual por muitosanos seria vista a figura encurvada do Velho

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Marlowe, com seu rosto marcado pelo sofri-mento. Que sua alma e a de sua estranha e infelizfilha encontrem paz. Paz e reparação.

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O segredo da RavinaMacarger

A noroeste da colina Indian, a uns trezequilômetros além, onde o vento faz a curva, ficaa Ravina Macarger. Não é exatamente uma rav-ina — mas apenas uma depressão entre doisparedões de pequena altura, recobertos pela mata.Da boca à cabeça — porque as ravinas, assimcomo os rios, têm uma anatomia que é só delas— a distância é de no máximo três quilômetros eno fundo a largura só chega a ultrapassar os dezmetros em um determinado ponto. E, de um ladoe outro do riacho, cujas águas são drenadas no in-verno e chegam a secar no início da primavera, asmargens praticamente inexistem. As escarpas ín-gremes dos paredões, recobertas por uma veget-ação quase impenetrável de manzanita e chamiso,

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são divididas apenas pelo leito do rio. Ninguém,a não ser um ou outro caçador profissional dasvizinhanças, vai até a Ravina Macarger, e amenos de dez quilómetros dali ninguém a con-hece, nem mesmo de nome. Naquela região, emqualquer direção, existem muitos acidentes topo-gráficos mais conhecidos que não têm nome al-gum. E ninguém sabe dizer por que razão a Rav-ina Macarger se chama assim.

A meio caminho entre a cabeça e a bocada Ravina Macarger, o paredão da direita, se es-calado, mostrará que é fendido por uma outraravina, pequena e seca, sendo que na junção entreas duas há um espaço plano de dois ou três hec-tares. Ali, alguns anos atrás, havia uma velhacasa de madeira, de apenas um cômodo. De quemaneira o material para fazer a casa, por mais

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simples e pouco que fosse, foi levado até localtão inacessível é um problema cuja solução trariamais satisfação do que vantagem. Talvez o leitodo riacho tenha sido uma estrada. O que se sabe éque, em certa época, a ravina foi muito exploradapor mineradores, que com certeza tinham osmeios para ir até lá pelo menos com alguns ani-mais, carregados de ferramentas e suprimentos.Mas os lucros obtidos, aparentemente, não tin-ham sido suficientes para justificar gastos con-sideráveis, capazes de ligar a Ravina Macarger aalgum centro de civilização equipado com umaserraria. Apesar disso, a casa continuava lá, ouparte dela. Faltava-lhe uma porta e a moldura dajanela. A chaminé, feita de pedra e barro, estavainclinada num ângulo deselegante e recoberta porervas daninhas, A mobília humilde que um diadeve ter havido ali, assim como parte da madeira

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das paredes, havia sido transformada em com-bustível nas fogueiras dos acampamentos doscaçadores. O mesmo, provavelmente, aconteceracom as bordas de um velho poço que, na épocasobre a qual é meu relato, se transformara apenasnum buraco largo mas não muito fundo, ali perto.

Certa tarde, no verão de 1874, eu at-ravessei a Ravina Macarger vindo do vale es-treito onde ela vai dar, seguindo pelo leito secodo rio. Estava caçando codornas e carregava umsaco com uma dúzia delas quando cheguei à casadescrita, cuja existência até então desconhecia.Depois de inspecionar as ruínas sem muito in-teresse, recomecei a caçar e, tendo bastante su-cesso, prolonguei a atividade até quase o pôr-do-sol, quando me dei conta de que estava longe dequalquer abrigo — longe demais para chegar até

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ele antes do anoitecer. Mas levava comigo al-guma comida e achei que a velha casa poderiame abrigar, se é que era necessário abrigo numanoite quente e seca no sopé das colinas de SierraNevada, onde se pode perfeitamente dormir aorelento, sobre as palhas dos pinheiros. Gosto dasolidão e da noite e, por isso, logo me decidi poracampar ali, "ao ar livre". Quando escureceu, jáhavia feito minha cama com ramos e capim numdos cantos da casa e assava uma codorna nafogueira que acendera dentro do cômodo. A fu-maça saía pela chaminé em ruínas e a fogueirailuminava a sala com uma luz suave. Enquantocomia minha refeição simples — codorna assadaacompanhada do resto de uma garrafa de vinhotinto que me servira por toda a tarde naquela re-gião onde não havia água —, tive uma sensação

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de conforto que melhores acomodações e passad-io nem sempre proporcionam.

Contudo senti que faltava algo. Tinhauma sensação de conforto, mas não de segurança.Flagrei-me olhando para os vãos abertos da portae da janela mais vezes do que seria justificável.Do lado de fora, tudo era negror e eu mal podiareprimir uma sensação de apreensão à medidaque minha fantasia preenchia a escuridão comentidades hostis, naturais e sobrenaturais. Prin-cipalmente — em suas respectivas categorias —o urso pardo, que eu sabia que ainda era vistonaquela região, e o fantasma, que eu tinha razõespara acreditar que não o era. Infelizmente, nossossentimentos nem sempre respeitam a lei dasprobabilidades e para mim, naquela noite, o

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possível e o impossível eram igualmenteinquietantes.

Qualquer pessoa que já tenha tido umaexperiência desse tipo sabe que costumamos en-frentar os perigos da noite, reais e imaginários,com muito menos apreensão num espaço abertodo que se estivermos dentro de uma casa, porémsem porta. Era exatamente o que eu sentia, en-quanto, deitado em meu colchão de capim numcanto da sala peito da chaminé, via o fogo ir mor-rendo aos poucos. Tão forte tornou-se a sensaçãode que havia ali uma presença maligna eameaçadora, que logo eu já não conseguia tirar osolhos do vão da porta, embora ele fosse cada vezmenos visível na escuridão que se adensava.Quando a última chama bruxuleou, apagando-se,agarrei a espingarda que deixara a meu lado e

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apontei-a na direção do vão agora invisível, como dedo no gatilho, pronto para atingir o alvo, arespiração suspensa, os músculos rígidos, tensos.Mas acabei por deixar de lado a arma, invadidopor uma sensação de vergonha e mortificação. Oque temia, afinal, e por quê? Eu, para quem anoite sempre fora

Um rosto mais familiar Do que o dopróprio homem...

Eu, para quem o elemento hereditário dasuperstição — do qual nenhum de nós está com-pletamente livre — só fazia dar à solidão, aoescuro e ao silêncio ainda mais charme e um in-teresse ainda mais sedutor. Não podia com-preender minha própria tolice e assim, perdendo,nessa conjectura, aquilo sobre o que conjec-turava, acabei adormecendo. E então sonhei.

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Estava numa cidade grande de um paísestranho — uma cidade na qual as pessoas eramde minha própria raça, com mínimas diferençasde linguagem e costumes. E, contudo, que lin-guagem e costumes eram esses eu não saberiadizer. Eu os apreendia de forma indistinta. A cid-ade era dominada por um imenso castelo, no altode uma colina cujo nome eu conhecia mas nãopoderia dizer. Atravessei várias ruas, algumaslargas e retas, com prédios altos e modernos, out-ras estreitas, sombrias, tortuosas, por entre asfachadas de casas velhas e estranhas, cujos an-dares superiores, ricamente ornamentados comtrabalhos em madeira e pedra, quase se tocavamacima de minha cabeça.

Eu estava à procura de alguém quenunca havia visto, mas que sabia ser capaz de

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reconhecer assim que encontrasse. Minha buscanão era sem sentido nem fortuita. Seguia ummétodo bem definido. Eu passava de uma rua àoutra sem hesitação, percorrendo uma série de in-trincadas passagens, sem qualquer medo de meperder.

Logo, parei diante de uma porta baixa,numa casa toda de pedra que parecia a moradiade um artesão de alto nível. E, sem me anunciar,entrei. Apenas duas pessoas estavam na sala, es-parsamente mobiliada, e onde entrava a luz deuma única janela, com vidros facetados comodiamantes: um homem e uma mulher. Não pare-ceram notar minha intrusão, circunstância que, àmaneira dos sonhos, pareceu-me perfeitamentenatural. Não conversavam. Estavam sentadosseparados, taciturnos e imóveis.

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A mulher era jovem e resoluta, com ol-hos grandes e uma beleza grave. A lembrançaque tenho de sua expressão facial é extrema-mente vívida, embora nos sonhos não se observeos detalhes de um rosto. Sobre os ombros, levavaum xale axadrezado. O homem era mais velho,de pele escura, com um rosto maléfico tornadoainda mais horrendo por uma imensa cicatriz, quese estendia em diagonal desde perto da têmporaesquerda até o bigode preto. Em meu sonho, a ci-catriz parecia assombrar aquele rosto como sefosse algo à parte — não saberia como explicá-lode outra forma —, como se não pertencesse a ele.No instante em que me vi diante daquele homeme daquela mulher, soube que eram casados.

Do que se seguiu, lembro-me apenas in-distintamente. Tudo parecia confuso,

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inconsistente, como se composto, acho, por mer-os clarões de consciência. Era como se duas cen-as, o cenário do sonho e a casa onde me abrigara,se tivessem fundido, interpenetrando-se, até que aprimeira foi esmaecendo e desapareceu. E me vicompletamente desperto na cabana abandonada,inteira e tranqüilamente consciente de minhasituação.

Meus tolos temores haviam desapare-cido e, ao abrir os olhos, notei que o fogo, nãotendo apagado de todo, fora reavivado pela quedade uma tora e voltara a iluminar a sala. Tinha aimpressão de só ter dormido alguns minutos, masmeu sonho, embora comum, por alguma razãome impressionara de tal forma que eu perdera osono. Assim, logo levantei-me e, remexendo nastoras da fogueira e acendendo o cachimbo,

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dediquei-me a meditar metodicamente sobre avisão que tivera.

Eu teria ficado confuso na ocasião seprecisasse explicar por que a visão mereciatamanha atenção de minha parte. Num primeiromomento de reflexão séria, reconheci a cidade dosonho como sendo Edimburgo, onde jamais est-ivera. Assim, se o sonho era memória, era amemória de retratos e descrições. Por issomesmo, aquele reconhecimento me impressionoumuito. Era como se algo em minha mente se re-belasse contra a razão e a vontade, a respeito daimportância de tudo aquilo. E tal faculdade, fosseo que fosse, também parecia ter obtido controlesobre minha fala.

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"Claro", disse eu em voz alta, quase semquerer. "Os MacGregors com certeza vieram paracá partindo de Edimburgo.”

Naquela hora, nem o significado dessafrase nem o fato de eu a ter pronunciadosurpreenderam-me, minimamente que fosse.Pareceu-me natural que eu soubesse o nome demeus companheiros de sonho e um pouco de suahistória. Mas o absurdo de tudo aquilo de repentedesabou sobre mim: caí na gargalhada e, batendoas cinzas do cachimbo, voltei a deitar-me no col-chão de ramos e capim. Fiquei olhando, distraído,para o fogo que morria, sem pensar mais nem nosonho nem no lugar onde estava. De repente, aúltima chama estremeceu por um instante eentão, espichando-se e libertando-se das brasas,expirou no ar. A escuridão era agora absoluta.

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Naquele instante — antes mesmo,talvez, que a última chama desaparecesse antemeus olhos — ouvi um baque surdo, grave, comoo de um corpo pesado caindo ao chão, que es-tremeceu embaixo de mim. Num segundo, sentei-me e procurei pela espingarda. Pensei que al-guma fera tivesse entrado pela janela aberta. En-quanto a estrutura frágil da cabana ainda es-tremecia com o impacto, ouvi o som de pancadas,o arrastar de passos no chão e então — parecendovir de tão perto que era como se estivesse ao al-cance de minha mão — explodiu o grito deses-perado de uma mulher em agonia mortal. Foi umgrito tão terrível que jamais ouvi ou imagineialgo igual. Aquele grito me destroçou os nervos.Por um instante, não tive consciência de maisnada, exceto de meu mais absoluto terror!

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Felizmente minha mão acabara de achara arma que buscava e aquele toque familiar mefez voltar a mim. De um pulo, fiquei de pé, es-treitando os olhos para tentar vencer a escuridão.Os sons violentos tinham cessado, mas, pior doque isso, eu ouvia, a intervalos que me pareceramlongos, o sussurrar entrecortado e débil de al-guém ou alguma coisa que morria!

Assim que meus olhos se acostumaram àluz mínima que emanava das brasas na fogueira,vi primeiro as silhuetas da porta e da janela, maisescuras do que as escuras paredes. Em seguida,pude distinguir a junção entre as paredes e o chãoe finalmente percebi o assoalho em toda sua ex-tensão, de um lado a outro. Não havia nada ali. Eo silêncio era completo.

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Com a mão trêmula, enquanto a outracontinuava segurando a arma, reavivei o fogo,fazendo em seguida uma cuidadosa inspeção dolugar. Não havia qualquer sinal de que alguém oualgo tivesse entrado na cabana. Apenas minhaspróprias pegadas eram visíveis na poeira do chão,mais nada. Reacendi o cachimbo, alimentei ofogo arrancando uma ou duas ripas de madeira dointerior da casa — não podia pensar em sair dacabana naquele escuro — e passei o restante danoite pensando e fumando, além de alimentar ofogo. Nem em troca de anos de vida teria eudeixado aquela pequena chama morrer outra vez.

Anos depois, conheci em Sacramentoum homem de nome Morgan, para quem levarauma carta de apresentação enviada por um amigode São Francisco. Jantando na casa dele certa

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noite, notei que havia vários "troféus" na parede,dando a entender que ele era um caçador. Eramesmo e, ao relatar algumas de suas façanhas,ele me contou que já andara caçando na região deminha aventura.

"Sr. Morgan", comecei, de repente, "osenhor conhece um lugar daquela região cha-mado Ravina Macarger?”

"Claro. E tenho boas razões para isso",respondeu ele. "Fui eu quem passou para os jor-nais, no ano passado, as informações sobre os es-queletos encontrados lá.”

Eu não ouvira falar do assunto. Ahistória tinha sido publicada, ao que parece,quando eu estava viajando pelo Leste.

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"Por falar nisso", continuou Morgan, "onome da ravina é uma corruptela. Ela deveriachamar-se 'MacGregor'. Querida", disse ele,virando-se para a mulher, "o Sr. Eldersonderramou vinho.”

Fora bem mais do que isso. Eu acabarade derrubar a taça, o vinho, tudo.

"Havia antigamente uma velha cabanana ravina", recomeçou Morgan, quando os cacosdo meu descuido tinham sido retirados, "maspouco antes de eu passar por lá ela tinha de-sabado, ou melhor, parecia ter explodido, poisseus destroços estavam espalhados por todos oslados, e até mesmo o chão fora partido, tábua portábua. Entre uma e outra trave do assoalho querestava, eu e meu amigo encontramos os restosde um xale axadrezado e, examinando-o, vimos

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que estava envolvendo os ombros de um corpo demulher, do qual pouco restava além dos ossos,parcialmente cobertos por fragmentos de roupas epela pele seca e escurecida. Mas vamos poupar aSra. Morgan", acrescentou, com um sorriso.

A mulher na verdade exibia mais sinaisde nojo do que de compaixão.

"É preciso dizer, porém", continuou,"que o esqueleto tinha várias fraturas, como setivesse recebido pancadas de um instrumentorombudo. E o instrumento em si, o cabo de umapicareta, ainda manchado de sangue, foi encon-trado sob as tábuas, ali perto." O Sr. Morganvirou-se para a mulher. "Perdão, querida", disse,com uma solenidade afetada, "perdoe-me pormencionar esses detalhes desagradáveis, con-seqüências naturais, embora lamentáveis, de uma

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briga conjugal. Resultado, com certeza, da insub-ordinação da infeliz mulher,”

"Devo conseguir superar isso", re-spondeu a mulher, com compostura. "Você já mepediu muitas vezes que o fizesse, com essas mes-mas palavras.”

Achei que ele parecia feliz em podercontinuar sua história.

Diante dessa e de outras circunstâncias",disse, "os jurados concluíram que a mulhermorta, Janet MacGregor, tinha sido assassinada agolpes por alguma pessoa desconhecida. Mas foiacrescentado que as evidências apontavam paraseu marido, Thomas MacGregor, como oculpado. Só que Thomas MacGregor nunca foiencontrado, nem se ouviu mais falar dele. Soube-

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se que o casal tinha vindo de Edimburgo, masnão... querida, você não notou que o pratinho deossos do Sr. Elderson está cheio d'água?”

Eu acabara de enfiar um osso de galinhadentro da lavanda.

"Num armário, encontramos uma foto-grafia de MacGregor, mas nem assim foi possívelcapturá-lo.”

"O senhor me deixaria vê-la?",perguntei.

A fotografia mostrava um homem depele escura, com um rosto maligno e uma longacicatriz que ia de perto da têmpora até junto dobigode preto.

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"Por falar nisso, Sr. Elderson", dissemeu simpático anfitrião, "posso saber o porquêde seu interesse pela Ravina Macarger?”

"Certa vez, perdi uma mula naquela re-gião", respondi, "e isso me deixou... me deixoumuito chateado.”

"Querida", disse o Sr. Morgan, com aentonação mecânica de um intérprete traduzindo,"a perda da mula fez com que o Sr. Morgan bo-tasse pimenta no café.”

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O homem saindo do nariz

Na interseção de duas ruas da região deSão Francisco que é vagamente conhecida pelonome de North Beach, existe um terreno baldio,um pouco mais plano do que costumam ser osterrenos, baldios ou não, naquelas redondezas.Mas logo atrás, na direção sul, o terreno sofreuma súbita inclinação e esse aclive é compostode três platôs cortados na rocha porosa. É umlugar para cabras e pessoas pobres, sendo quevárias famílias de cada uma dessas categoriastêm dividido amistosamente a área "desde afundação da cidade". Uma das casas pobres doterraço inferior chama atenção pela semelhançagrotesca que tem com um rosto humano, ou, mel-hor dizendo, com um simulacro dele, como, porexemplo, o rosto esculpido por um garoto numa

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abóbora oca, sem querer ser ofensivo para comos garotos. Os olhos são duas janelas circulares, onariz é a porta e a boca uma abertura logo abaixo,no local de onde foi retirada uma tábua demadeira. Não há degraus. A casa é larga demaispara um rosto. E pequena demais para uma habit-ação. O olhar vazio, sem qualquer sentido,daqueles olhos sem pálpebras ou sobrancelhas, ésobrenatural.

De vez em quando um homem saidaquele nariz, vira, passa diante do lugar ondedeveria estar a orelha direita e, caminhando porentre a multidão de crianças e cabras que ob-struem o passeio estreito entre as casas dos vizin-hos e o limite do platô, ganha a rua, descendo poruma escada bamba. Ali, pára e consulta o relógio.Um estranho que passar por ali naquele instante

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há de se perguntar por que um homem comoaquele se importa em saber as horas. Mas umaobservação mais acurada mostrará que a hora dodia é um elemento importante para os movimen-tos desse homem, porque é precisamente às duasda tarde que ele aparece, 365 vezes, todos osanos.

Assim que se certifica de que não se en-ganou quanto ao horário, ele volta a guardar orelógio e caminha apressado na direção sul, su-bindo a rua por duas quadras e virando à direitaaté que, aproximando-se da esquina seguinte, fixaos olhos na janela mais alta de uma construção detrês andares do outro lado da rua. É uma estruturaencardida, feita originalmente de tijolos vermel-hos e que agora se tornou cinzenta. Traz a marcado tempo e da poeira. Construída para ser uma

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casa, hoje abriga uma fábrica. Não sei o que éfabricado lá. As coisas que geralmente são feitasem fábricas, pelo que imagino. Só sei que às duashoras em ponto, todas as tardes, exceto aosdomingos, o lugar está agitado e barulhento. Oprédio é sacudido por pulsações de algum motorgigantesco e ouvem-se os gritos constantes damadeira sendo ferida pelas serras. Na janela ondeo homem fixa seu olhar expectante, nada se vê,jamais. O vidro, na verdade, está recoberto poruma tal camada de poeira que há muito deixou deser transparente. O homem olha sem cessar paraaquele ponto. E continua virando-se para olhar,cada vez mais para trás, à medida que se afastado prédio. Passando pela próxima esquina, vira àesquerda, dá a volta no quarteirão e retorna atéchegar ao ponto diagonalmente oposto à fábrica— o ponto por onde passou anteriormente, e que

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voltará a trilhar, olhando sem parar por cima doombro direito para a mesma janela, até que ela seperca de vista. Por muitos anos, nunca se soubeque ele mudasse de rota, nem que introduzissequalquer novidade em suas ações. Em um quartode hora ele está de volta diante da boca de suacasa. E uma mulher, que há algum tempo aguardade pé diante do nariz, ajuda-o a entrar. Ele nãoserá visto outra vez até as duas horas da tardeseguinte.

A mulher é sua esposa. Ela se sustenta eao marido lavando roupa para as pessoas pobresda vizinhança, cobrando preços que acabam coma concorrência chinesa e doméstica.

Esse homem tem 57 anos de idade, em-bora pareça muito mais velho. O cabelo é com-pletamente branco. Ele não usa barba e está

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sempre bem escanhoado. Suas mãos são limpas,as unhas bem-cuidadas. Em matéria de roupas, émuito mais bem-vestido do que faria supor suaposição social, a julgar pela vizinhança e pelaprofissão da mulher. Chega, na verdade, a vestir-se bem, até mesmo com apuro. Seu chapéu deseda não tem mais do que dois anos e suas botas,escrupulosamente engraxadas, não apresentamqualquer remendo. Disseram-me que as roupasque usa em suas excursões diárias de quinzeminutos não são as mesmas que usa em casa.Como tudo o mais que ele tem, as roupas sãocuidadas pela mulher, sendo renovadas sempreque o magro orçamento o permite.

Há trinta anos, John Hardshaw e suamulher viviam em Rincon Hill, em uma das maisluxuosas casas desse que um dia foi um bairro

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aristocrático. Ele fora médico, mas, tendo her-dado muitas propriedades do pai, decidiu nãomais preocupar-se com os achaques de seussemelhantes, dedicando-se a cuidar apenas deseus próprios negócios. Tanto ele quanto a mulh-er eram pessoas de alto nível, cuja casa era fre-qüentada por um seleto grupo de homens e mul-heres que gente de sua estirpe considera dignosde sua convivência. Para o grupo, o Sr. e a Sra.Hardshaw eram muito felizes juntos. Ao que tudoindicava, a esposa era devotada ao marido, char-moso e bem-sucedido, além de se sentir extrema-mente orgulhosa dele.

Faziam pane do grupo os Barwells —marido, mulher e duas crianças — de Sacra-mento. O Sr. Barwell era engenheiro civil e demineração, que por razões profissionais vivia

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viajando, principalmente para São Francisco.Nessas ocasiões, a mulher costumava ir com ele,passando boa parte do tempo na casa de sua boaamiga, a Sra. Hardshaw, sempre com as duas cri-anças, das quais a Sra. Hardshaw, que não tinhafilhos, gostava muito. Infelizmente, seu marido, oSr. Hardshaw, também passou a gostar muito damãe das crianças — muito mesmo. E, mais infel-izmente ainda, a atraente Sra. Barwell era maisfraca do que sábia.

Lá pelas três da madrugada de uma noitede outono, o agente número 13 da polícia de Sac-ramento viu um homem esgueirando-se pelaporta dos fundos de uma residência eimediatamente prendeu-o. O homem — queusava um chapéu desabado e o sobretudo em de-salinho — ofereceu ao policial cem dólares, em

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seguida quinhentos e finalmente mil dólares paraque o soltasse. Mas, como tinha em mãos menosdo que a primeira soma mencionada, o policialdesdenhou da proposta. Antes de chegarem à del-egacia, o prisioneiro propôs dar ao policial umcheque no valor de dez mil dólares e aguardaralgemado aos salgueiros junto à margem do rioenquanto ele fosse descontá-lo. Mas, como o res-ultado foi mais zombaria, ficou quieto e não dissemais nada, limitando-se a fornecer um nome queera obviamente falso. Quando foi revistado nadelegacia, nada de valor foi encontrado em seupoder, exceto um retrato em miniatura da Sra.Barwell — a mulher em cuja casa ele fora flag-rado. A acusação foi feita e lhe custou caro. E al-guma coisa na qualidade das roupas do pri-sioneiro fez uma onda de arrependimento percor-rer o âmago incorruptível do agente número 13.

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Nada havia, nas roupas ou na pessoa, quepudesse identificá-lo e, assim, o prisioneiro foifichado como ladrão sob o nome que fornecera, ohonrado nome de John K. Smith. Aquele "K"fora uma inspiração de momento, que o deixaraorgulhoso de si próprio.

Enquanto isso, o desaparecimento mis-terioso de John Hardshaw agitava as fofocas deRincon Hill, em São Francisco, tendo sido atémesmo noticiado em um dos jornais. A mulherque o jornal classificava respeitosamente de"viúva” não teve a idéia de procurá-lo na prisãode Sacramento — cidade que, pelo que sabia, elenunca visitara. E, na pele de John K. Smith, elefoi indiciado e, dispensadas as investigações,mandado a julgamento.

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Cerca de duas semanas antes do julga-mento, a Sra. Hardshaw ficou sabendo por acasoque seu marido estava preso em Sacramento comum nome falso, sob acusação de roubo. Correupara lá, sem ousar comentar o assunto com quemquer que fosse, e apresentou-se na prisão,pedindo para falar com o marido, John K. Smith.Pálida e louca de ansiedade, usando um agasalhoque a cobria do pescoço aos pés, e com o qualpassara a noite no barco a vapor, angustiada de-mais para conseguir dormir, a Sra. Hardshaw nãoaparentava o que realmente era. Mas seu aspectoera mais eloqüente do que qualquer palavra quepudesse dizer pedindo para entrar. E assimconseguiu vê-lo, a sós.

O que aconteceu durante a desagradávelentrevista, nunca se soube. Mas acontecimentos

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posteriores provaram que Hardshaw conseguiradobrar-lhe a vontade. Ela saiu da cadeia com ocoração despedaçado, sem responder a uma sópergunta e, voltando para o lar infeliz, reiniciou,sem muita convicção, as buscas ao marido. Umasemana depois, ela própria desapareceria: tinha"ido embora para o interior", era tudo o que sesabia.

No julgamento, o prisioneiro admitiu aculpa — "a conselho do advogado", segundoeste. Contudo, o juiz, em cuja mente circunstân-cias estranhas haviam feito surgir várias dúvidas,insistiu junto ao promotor para que o policialnúmero 13 sentasse no banco das testemunhas. Odepoimento da Sra. Barwell que, adoentada, nãopôde comparecer, foi lido para os jurados. Foibreve: ela nada sabia do assunto, exceto que o

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retrato era sua propriedade e que tinha sido, aoque sabia, deixado sobre a penteadeira quandoela fora se deitar, na noite do roubo. Elamandara-o fazer para dar de presente ao marido,na época e até então ausente em viagem de negó-cios à Europa para uma companhia de mineração.

A atitude dessa testemunha ao dar seudepoimento em casa seria depois descrita pelopromotor como muito estranha. Por duas vezesela se recusara a testemunhar e, em outra ocasião,quando faltava apenas sua assinatura no depoi-mento, ela o tomara das mãos do escrivão,rasgando-o em pedacinhos. Também chamara ascrianças para junto do leito e abraçara-as com osolhos cheios d'água. Em seguida, mandando-asembora do quarto, verificara o depoimento feitosob juramento, assim como a assinatura, e caíra

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desmaiada — ou "deslizara", segundo o promo-tor. Nessa hora, o médico dela, entrando noquarto e inteirando-se da situação, agarrara o rep-resentante da lei pelo colarinho e atirara-o portaafora, com o assistente atrás. Sua majestade orepresentante da lei não seria vingado. A vítimade tal indignidade não mencionou sequer uma pa-lavra do ocorrido diante da Corte. Queria muitoganhar a causa e as circunstâncias em que se deraaquele depoimento não teriam importância se re-latadas. Afinal, o homem que estava sendo jul-gado cometera uma ofensa à lei um pouco menosabominável do que a cometida pelo médicoirascível.

Por sugestão do juiz, o júri considerou oprisioneiro culpado. Nada mais havia a fazer eele recebeu uma sentença de três anos de prisão.

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O advogado, que nada objetara nem fizeraqualquer pedido de clemência — na verdade, malabrira a boca —, apertou a mão do cliente e saiudo recinto. Ficara óbvio para todo o tribunal queele aceitara o caso apenas para evitar que a Corteapontasse outro advogado, e este insistisse emfazer a defesa.

John Hardshaw cumpriu sua sentençaem San Quentin e, quando libertado, encontrou àsua espera na porta da cadeia a mulher, que viera"do interior" para encontrá-lo. Parece que forampara a Europa. Seja como for, um advogado, queainda está vivo — e que me relatou boa parte dosfatos desta história — recebeu uma procuraçãoem Paris. Esse advogado vendeu tudo o queHardshaw possuía na Califórnia e por muitosanos nada mais se soube do infeliz casal. Apesar

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disso, muitos dos que os conheceram, tendoouvido ecos imprecisos de sua estranha história,relembravam-nos com carinho e lamentavam porseu infortúnio.

Alguns anos depois, eles voltaram.Alquebrados, em fortuna e em espírito — no casodele, também na saúde. A razão dessa volta nãome foi possível determinar. Por algum tempoviveram, usando o sobrenome Johnson, numbairro razoavelmente respeitável ao sul da Mar-ket Street, bem afastado. Nunca eram vistos foradas vizinhanças de casa. Com certeza restava-lhes algum dinheiro, pois ao que parece o homemnão tinha qualquer ocupação, provavelmente pormotivos de saúde. A devoção da mulher ao mar-ido inválido chamava a atenção dos vizinhos.Nunca se afastava dele e estava sempre

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ajudando-o ou encorajando-o. Sentavam-se pormuitas horas num dos bancos de um pequenoparque público, onde ela lia para ele, segurando-lhe a mão, por vezes tocando-lhe de leve a facepálida, ou erguendo os olhos ainda belos paraolhá-lo e fazer algum comentário sobre o texto,ou ainda fechando o livro e, para afastar suatristeza, dizendo alguma coisa... O quê? Nuncaninguém ouviu o que falavam. O leitor que teveaté agora a paciência de ouvir a história podefazer suas conjecturas: talvez houvesse algum as-sunto a ser evitado. O fardo daquele homem erade um desalento profundo. Na verdade, os jovensda vizinhança, nada solidários, com aquelacrueldade que caracteriza os machos de nossa es-pécie, costumavam referir-se a ele como o Fant-asma Babão.

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Mas um dia aconteceu de John Hard-shaw ser tomado pelo espírito da inquietação. SóDeus sabe o que o fez ir até onde foi mas o fato éque atravessou a Market Street e seguiu em frenterumo ao norte, colinas acima, descendo emseguida em direção à região conhecida comoNorth Beach. Virando à esquerda ao acaso,seguiu os próprios pés por uma rua desconhecidaaté estar diante do que era ainda naquela épocauma casa enorme, e onde hoje funciona umafábrica medíocre. Erguendo os olhos quase semquerer, viu, numa janela aberta, aquilo que talveztivesse sido melhor não ter visto — o rosto e afigura de Elvira Barwell. Seus olhos se encon-traram. Com um grito agudo, como o de um pás-saro assustado, a mulher pôs-se de pé,debruçando-se na janela, ambas as mãos crispa-das sobre a balaustrada. Com o grito, as pessoas

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que passavam por ali olharam para cima. Hard-shaw estava paralisado, mudo, os olhos comoduas chamas. "Cuidado!", gritou alguém da rua,enquanto a mulher pendia mais e mais para afrente, desafiando a implacável e silenciosa lei dagravidade, da mesma forma como um dia desafi-ara as leis que Deus vociferara do Sinai. O movi-mento brusco fez seus cabelos negros caírem om-bro abaixo numa torrente e eles agorachicoteavam-lhe o rosto, quase ocultando-o. Umsegundo se passou e... um grito de medo varreu arua, no instante em que a mulher, perdendo oequilíbrio, despencou da janela, rodopiando,numa confusa massa de saias, pernas, cabelos,face pálida, que se estatelou no chão com umbarulho horrível, um impacto ouvido a centenasde metros dali. Por um instante, todos os olhos serecusaram a cumprir seu ofício e evitaram o

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espetáculo terrível sobre a calçada. E, quandopara lá afinal se voltaram, o que viram foi um ter-ror ainda maior. Um homem, sem chapéu, sen-tado sobre as pedras do pavimento, apertava con-tra o peito o corpo desfeito e sangrento, beijando-lhe por entre os cabelos úmidos as faces e os lá-bios destroçados, ele próprio uma só nódoa ver-melha, do sangue que quase o sufocava, escor-rendo como um rio da barba encharcada.

O trabalho do repórter está quase ter-minado. Os Barwells tinham voltado, naquelamesma manhã, de uma temporada de dois anosno Peru. Uma semana depois, o viúvo, dupla-mente enlutado, já que a horrível cena de Hard-shaw não deixara margem a qualquer dúvida, via-jou para algum porto distante. Não sei qual, sósei que ele nunca mais voltou. Hardshaw — não

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mais sob o nome de Johnson — passou um anono asilo de loucos de Stockton, para onde, graçasà influência de amigos piedosos, sua mulher tam-bém foi, a fim de cuidar dele. Quando ele saiu delá, não curado, mas inofensivo, o casal voltou àcidade, que parecia exercer sobre eles umfascínio sobrenatural. Por um tempo, viveramperto de Mission Dolores, em pobreza abjeta,embora menor do que a do lugar onde vivemagora. Mas lá era longe demais do ponto paraonde o homem seguia todos os dias em peregrin-ação. E eles não tinham dinheiro para a con-dução. Sendo assim, aquele infeliz anjo doParaíso — a mulher do lunático condenado —conseguiu, por um preço razoável, alugar a casade olhar vazio no terraço inferior de Goat Hill.Dali, até o prédio que um dia foi uma casa e hojeabriga uma fábrica, a distância não é muito

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grande. É na verdade um passeio agradável, a jul-gar pelo olhar ansioso e feliz do homem enquantocaminha. A jornada de volta parece um poucomais cansativa.

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A morte de Halpin Frayser

I

Porque através da morte forja-se umatransformação muito maior do que foi mostrada.Se em geral o espírito desaparecido volta numdeterminado momento, sendo às vezes visto emcarne e osso (com a aparência do corpo que teveem vida), já ocorreu também de surgir o ver-dadeiro corpo sem o espírito. E, segundo os quecom isso se defrontaram e que sobreviverampara fazer seu relato, tal fantasma não possuiafeição ou memória, mas apenas ódio. Sabe-se,também, que alguns espíritos que em vida forambenignos tornam-se, através da morte, totalmentemaléficos. — Hali.

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Numa noite escura de verão, um homemnuma floresta, acordando de um sono sem son-hos, ergueu a cabeça da terra e, depois de mirar aescuridão por um instante, disse: "CatherineLarue." Nada mais falou e desconhecia a razãopela qual havia dito aquilo.

Esse homem era Halpin Frayser. Viviaem Santa Helena, mas não se sabe onde viveagora, pois está morto. Quem cultiva o hábito dedormir no meio da floresta, deitado apenas sobreas folhas mortas e a terra úmida, tendo por tetosomente os galhos de onde caíram as folhas e océu de onde caiu a terra, não pode esperar teruma vida longa, e Frayser já completara 32 anos.Há pessoas neste mundo, milhões delas, esemdúvida as melhores, para as quais essa já é umaidade muito avançada. Falo das crianças. Para

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aqueles que encaram a viagem da vida desde oporto de partida, o barco que alcançou uma dis-tância considerável parece já aproximar-se damargem mais distante. Contudo não se sabe aocerto se a morte de Halpin Frayser foi provocadapor exposição.

Ele passara o dia todo nas montanhas aoeste de Napa Valley, caçando pombos e des-frutando de outros pequenos prazeres típicos datemporada. No fim da tarde o céu ficara nubladoe ele se desorientara. Embora tivesse apenas quedescer a montanha — sempre o caminho seguropara quem esta perdido —, a falta de trilhas o at-rapalhara de tal forma que a noite findara porsurpreendê-lo em plena floresta. Vendo que eraimpossível, no escuro, vencer as densas manzan-itas e outras formas de vegetação rasteira,

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Frayser, completamente atordoado e vencido pelocansaço, tinha acabado por deitar-se junto à raizde um enorme madroño e mergulhado num sonoprofundo. Horas depois, no meio da noitç, umdos estranhos mensageiros de Deus, deslizando àfrente de seus inúmerc companheiros que desa-pareciam rumo a oeste na linha do horizonte, pro-nunciara no ouvido do homem adormecido as pa-lavras que iriam acordá-lo, fazendo com que sesentassee dissesse, sem entender por quê, umnome, sem saber a quem pertencia.

Halpin Frayser não era exatamente umfilósofo, nem um cientista. O fato de, acordandode um sono pesado, no meio de uma floresta ànoite, ter dito em voz alta um nome do qual nãose lembrava, e que talvez nem conhecesse, nãochegara a despertar sua curiosidade a ponto de

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querer investigar o fenômeno. Achou aquilo es-tranho, mas, sacudindo os ombros com desdém,quase como em deferência à crença de que,naquela época, as noites eram frias, deitou-seoutra vez e voltou a dormir. Só que dessa vez seusono não foi sem sonhos.

Pensou estar caminhando ao longo deuma estrada poeirenta, trilha esbranquiçada emmeio à densa escuridão da noite estival. De ondevinha e aonde ia dar a estrada não saberia dizer,nem por que motivo a trilhava, embora tudo pare-cesse simples e natural, como acontece nos son-hos. Porque na Terra Onírica as surpresas já nãonos assustam e todo tipo de julgamento desa-parece. Logo chegou a uma bifurcação. Partindoda estrada, havia um caminho menos utilizado,com a aparência de estar abandonado há muitos

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anos — talvez, pensou ele, porque levasse a al-guma coisa maléfica. E, mesmo assim, foi esse ocaminho que escolheu sem hesitar, levado poruma necessidade imperiosa.

À medida que se embrenhava pelo cam-inho, percebeu que a trilha era assombrada porseres invisíveis, os quais Frayser era incapaz devisualizar mentalmente. Por entre as árvores, deum lado e outro, ouvia sussurros incoerentesnuma língua estranha, que compreendia apenasem parte. Mas que lhe pareciam os fragmentos deuma conspiração monstruosa contra seu corpo esua alma.

Era noite fechada, mas a floresta inter-minável que atravessava era iluminada por umaluz difusa, de fonte indefinida, uma iluminaçãoestranha que não produzia sombras. Seu olhar se

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fixou numa poça rasa, formada por entre os sul-cos de velhas rodas, como se produzida por umachuva recente, e que exibia um brilho avermel-hado. Parou e nela molhou a mão. As pontas deseus dedos ficaram escuras. Era sangue! Esangue, agora percebia, era o que havia por todaparte à sua volta. As ervas daninhas que cresciamà beira do caminho tinham as folhas, largas egraúdas, manchadas e respingadas. A poeira as-sentada entre as marcas de rodas estava enchar-cada como se banhada por uma chuva vermelha.E os troncos das árvores traziam imensas marcascor de carmim, enquanto das folhas o sanguepingava como se fosse orvalho.

A tudo observou com um terror que lhepareceu compatível com o que seria natural.Parecia-lhe que tudo ali era em expiação a um

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crime que cometera e do qual, embora conscientede ser o culpado, não podia lembrar-se. E essaconsciência era um horror a mais, que se somavaàs ameaças e aos mistérios que o circundavam.Em vão tentou vasculhar o passado na memória,buscando reproduzir o momento de seu pecado.Cenas e incidentes se misturavam de forma caót-ica em sua mente, apagando-se umas às outras oumesclando-se em confusão e obscuridade, masem nenhum ponto pôde Frayser vislumbrar o queprocurava. Isso aumentou seu terror. Sentia comose tivesse cometido um assassinato no escuro,sem saber quem matara nem por quê. Tudo eraapavorante — a luz misteriosa que emanavacomo uma ameaça silenciosa e terrível; a veget-ação daninha, as árvores que, de comum acordo,pareciam investidas de um caráter melancólico emalfazejo, conspirando abertamente com o fito

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de perturbá-lo; os sussurros que o cercavam, tãonítidos, aterradores, e a visão de criaturas quecom certeza não eram deste mundo — a tal pontoque ele já não pôde suportar e, num esforço su-premo para quebrar o encanto maligno que omantinha imóvel e silente, gritou com toda aforça de seus pulmões! Sua voz lhe pareceupartida em uma infinitude de sons irreconhecíveise ecoou pela floresta afora, morrendo no silêncio,até que tudo voltou a ser como antes. Mas aquilofora um começo e ele se sentia encorajado. Disse:

"Não vou me submeter sem gritar.Talvez haja poderes não malignos caminhandopor esta trilha maldita. Para eles deixarei um re-gistro e um apelo. Relatarei meus erros, asperseguições que enfrento — eu, um simplesmortal, um penitente, um poeta inofensivo!"

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Halpin Frayser era um poeta tanto quanto era umpenitente: apenas em sonho.

Tirando do bolso um pequeno livro decouro vermelho, metade do qual reservava parasuas anotações, descobriu que não tinha lápis.Quebrou um graveto de um arbusto, mergulhou-ona poça de sangue e, depressa, pôs-se a escrever.Mal acabara de tocar o papel com a ponta dograveto quando ouviu, a distância, uma gar-galhada surda, que ecoou furiosa, em seguidacrescendo como se chegasse cada vez mais perto.Era uma risada fria, desalmada, desprovida dealegria, como o riso de um vagabundo solitário àbeira de um lago, em meio à noite. E a gar-galhada culminou com um grito sobrenatural,agora bem próximo, que foi morrendo aos poucosem lentas gradações, como se o ser maldito que o

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houvesse proferido tivesse retornado ao fim domundo de onde proviera. E, no entanto, o homemsabia que não era assim — sentia como se apresença continuasse ali.

Uma estranha sensação foi aos poucostomando conta de seu corpo e de sua mente. Nãosaberia dizer qual, se algum, de seus sentidos eraafetado por ela. Era mais como se tomasse con-sciência, como se sua mente se certificassedaquela presença avassaladora, algo maligno,sobrenatural diverso das existências invisíveisque o circundavam, e superior a elas em poder.Sabia que fora ela quem soltara a gargalhadamedonha. E agora parecia aproximar-se. Nãosabia de que direção vinha —nem ousavaimaginá-lo. Todos os seus medos passados es-tavam esquecidos, fundidos no terror gigantesco

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que o mantinha paralisado. Afora isso, tinhaapenas um pensamento: completar o apelo quefaria por escrito, dirigido aos poderes benignosque, acaso atravessando a floresta mal-assom-brada, poderiam um dia resgatá-lo, se a ele fossenegada a bênção do aniquilamento. Escreveu omais depressa que pôde, o graveto em suas mãosvertendo sangue sem que precisasse voltar amolhá-lo. Mas no meio de uma frase as mãos serecusaram a continuar, seus braços caíram aolongo do corpo e o livro foi ao chão. Foi quando,incapaz de mover-se ou gritar, viu-se diante dorosto severo, dos olhos mortos e vazios de suaprópria mãe, ali de pé, pálida e silenciosa, tra-jando as roupas do túmulo!

II

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Quando jovem, Halpin Frayser viviacom os pais em Nashville, no Tennessee. OsFraysers eram ricos, com uma boa posição na so-ciedade, ou no que restara desta após a GuerraCivil. Seus filhos tiveram as oportunidades soci-ais e de educação comuns à sua região e à suaépoca, tendo retribuído com maneiras agradáveise mentes cultas. Halpin era o caçula e, por nãoser muito forte, talvez fosse um pouco mimado.Tinha a dupla desvantagem de contar com apresença excessiva da mãe e a negligência do pai.O pai era aquilo que, no Sul, nenhum homem deposses é: um político. Seu país, ou melhor, suaregião e seu estado exigiam dele tempo eatenção, de forma que para a família ele reser-vava apenas um ouvido parcialmente surdo pelobarulho dos líderes políticos e pela gritaria geral,inclusive a sua própria.

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O jovem Halpin era sonhador, indolentee meio romântico, mais afeito à literatura do queao Direito, profissão para a qual fora criado.Entre aqueles de suas relações que professavam afé moderna na hereditariedade, era largamente re-conhecido que, em Halpin, o caráter do falecidoMyron Bayne, seu bisavô materno, reencontraraos vislumbres do luar — os mesmos que em vidatinham afetado Bayne o suficiente para que ele setornasse um poeta colonial de grande reputação.Era raro o Frayser que não possuísse uma cópiasuntuosa das "obras poéticas" de seu ancestral(impressas com dinheiro da família e há muito re-tiradas do mercado inóspito). Por isso, eranotável, embora não fosse notado, que ninguémparecesse disposto a honrar o falecido na pessoade seu sucessor espiritual. Na verdade, ele era emgeral visto como a ovelha negra intelectual, capaz

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de a qualquer momento desgraçar o rebanho aobalir em versos. Os Fraysers do Tennessee eramgente muito prática — não no sentido popular dedevoção a propósitos sórdidos, mas no sentido dedesprezar rotundamente qualquer qualidadecapaz de inadequar um homem para a saudávelvocação política.

Para fazer justiça ao jovem Halpin, épreciso dizer que embora reproduzisse fielmentea maioria das características mentais e morais at-ribuídas pela história e pela tradição familiar aofamoso bardo do período colonial, sua herança dotalento e da faculdade divina era apenas deduz-ida. Não só jamais se ouvira falar que ele tivessecortejado as musas, como na verdade teria sidoincapaz de escrever corretamente um único versopara se salvar do Assassino dos Sábios. Contudo,

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ninguém sabia se algum dia o dom adormecidonão acordaria e tomaria a lira nas mãos.

Enquanto isso não acontecia, o jovemvivia como um peixe solto. Entre ele e sua mãe aharmonia era perfeita, porque secretamente elaprópria era uma discípula devota do grande fale-cido Myron Bayne, embora, com o tato tão justa-mente admirado em seu sexo (apesar dos duroscaluniadores para os quais isso nada mais é queum ardil), ela escondesse essa sua fraqueza dosolhos de todos, exceto dele, que compartilhavasua admiração. A culpa comum em relação a issoera um fator a mais de união entre eles. Se, dur-ante a juventude de Halpin, sua mãe o estragara,ele também fizera sua parte para ser estragado. Àmedida que crescia e se tornava um homem, se-gundo os padrões de um sulista que não dá a

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mínima para o resultado das eleições, os laçosentre ele e sua bela mãe — a qual desde criançase acostumou a chamar de Katy — tornaram-se acada ano mais fortes e mais ternos.

Nessas duas naturezas românticas estavaclaro, embora apenas sinalizado, o domínio doelemento sexual em todas as relações da vida,fortalecendo, suavizando e embelezando mesmoas de consangüinidade. Os dois eram quase in-separáveis e, se observados por estranhos, muitasvezes eram tomados por dois amantes.

Um dia, entrando no quarto da mãe,Halpin Frayser beijou-a na testa, brincou por uminstante com um cacho de cabelos negros que lheescapava dos grampos repressores, e disse, tent-ando a todo custo soar natural:

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"Você se importaria, Katy, se eu fossechamado à Califórnia por algumas semanas?”

Dificilmente Katy precisaria respondercom palavras à pergunta para a qual a cor de suasfaces já era uma resposta instantânea. Evidente-mente que ela se importaria, e muito; e as lágrim-as, também, encheram seus grandes olhos castan-hos como um testemunho que isso confirmava.

"Ah, meu filho", disse, olhando-o nosolhos com infinita ternura, "eu deveria ter ima-ginado que isso aconteceria. Passei metade danoite acordada chorando porque o avô Bayneveio até mim em sonho e, de pé, junto ao próprioretrato — jovem, também, e tão atraente —,apontou para o seu retrato na mesma parede. E,quando olhei, não pude distinguir os traços. Vocêtinha sido pintado com um pano sobre o rosto,

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como se usa nos mortos. Seu pai riu de mim, masnós dois, eu e você, querido, sabemos que essascoisas não acontecem em vão. E, sob o pano querecobria seu rosto, eu vi marcas de mãos em suagarganta — perdoe-me, mas não costumamosesconder essas coisas um do outro. Talvez vocêpossa fazer outra interpretação. Talvez não signi-fique que você vá para a Califórnia. Ou quemsabe não poderia me levar junto?”

É preciso dizer que essa interpretaçãoengenhosa do sonho à luz da evidência queacabara de ser descoberta não teve muito eco namente mais lógica do filho. Halpin tinha, pelomenos naquele momento, a convicção de que elaprenunciava um desastre mais simples e maisimediato, embora menos trágico, que uma visita àCosta do Pacífico. Halpin Frayser tinha a

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sensação de que se ficasse ali é que acabariaestrangulado.

"Não existem águas medicinais na Cali-fórnia?", recomeçou a Sra. Frayser assim queHalpin teve tempo de lhe fazer a verdadeira inter-pretação do sonho. "Lugares onde as pessoas securam de reumatismos e neuralgias? Olhe —meus dedos estão tão enrijecidos; e estou quasecerta de que eles estavam doendo muito enquantoeu dormia.”

Estendeu as mãos para que ele as exam-inasse. Que diagnóstico o jovem achou adequadoconciliar com um sorriso, este narrador nãosaberia dizer, mas, por sua própria conta, ele sesente inclinado a comentar que dificilmente de-dos menos rígidos e com menos sinais de dor, pormínimos que fossem, teriam sido expostos a um

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exame médico, nem mesmo pelo paciente maishonesto que desejasse uma prescrição de novosares.

O resultado foi que dessas duas pessoasestranhas, tendo igualmente estranhas noções dedever, uma foi para a Califórnia, como era do in-teresse de seu cliente, e a outra ficou em casa,para atender ao desejo que o marido mal tinhaconsciência de alimentar.

Quando estava em São Francisco, numanoite escura, Halpin Frayser caminhava ao longoda orla da cidade quando, de forma tão repentinaque o surpreendeu e desconcertou, tornou-semarinheiro. Na verdade, foi embarcado à forçanum esplêndido navio, zarpando rumo a um paísdistante. Mas seu infortúnio não se resumiu àviagem; porque o navio foi atirado à costa de

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uma ilha do Pacífico Sul e seis anos se passaramantes que os sobreviventes fossem recolhidos poruma arrojada escuna comercial e levados de voltaa São Francisco.

Embora sem um tostão, Frayser con-tinuava com o mesmo espírito orgulhoso daqueletempo que agora lhe parecia tão distante. Nãoaceitaria ajuda de estranhos. E foi justamentequando aguardava notícias e dinheiro de casa,morando com outro sobrevivente perto da cidadede Santa Helena, que decidira sair para caçar esonhar.

III

Na floresta assombrada, a aparição di-ante do homem que sonhava — tão parecida econtudo tão diversa de sua mãe — era horrenda!

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De seu coração não emanava nem amor nemdesejo; parecia insatisfeita com as memórias fel-izes de doces tempos — e incapaz de inspirarsentimentos de qualquer espécie. Algumaemoção mais nobre fora engolfada pelo medo.Frayser tentou virar-se e correr para longe dali,mas suas pernas pareciam feitas de chumbo. Nãopodia sequer erguer os pés do chão. Os braçoscontinuavam inertes, largados ao longo do corpo.Tinha controle apenas dos olhos, os quais nãoousava desviar das órbitas opacas da apariçãoque, ele sabia, não era uma alma sem corpo, masa mais terrível de todas as existências que infest-avam a floresta assombrada — um corpo semalma! Em seu olhar vazio não havia nem amor,nem piedade, nem compreensão — nada a queFrayser pudesse apelar por clemência. "Não hámentira numa apelação", pensou ele, numa

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absurda referência ao jargão profissional e pior-ando ainda mais a situação, já que o fogo de umcharuto é incapaz de iluminar um túmulo.

Por um tempo, que pareceu tão longo aponto de tornar o mundo cinza de velhice epecado — e em que a floresta assombrada, tendocumprido seu propósito com o clímax monstru-oso de seus terrores, desapareceu de sua con-sciência com todos os cenários e sons —, a apar-ição continuou à frente de Frayser, olhando-ocom a malignidade inconsciente de um serselvagem. E então estendeu as mãos e lançou-ascontra ele com uma ferocidade espantosa. A açãoliberou a energia física de Frayser, embora suavontade continuasse algemada; a mente estavaenfeitiçada, mas o corpo poderoso e os membroságeis, como se movidos por uma força cega e

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insensata, resistiram com firmeza e bravura. Porum instante, ele pareceu ver essa luta bizarraentre uma inteligência morta e um corpomecânico apenas como se fosse um espectador— essas coisas estranhas que acontecem nos son-hos. Mas logo retomou sua identidade como seseu corpo tivesse sido golpeado, e o autômato emluta voltou a ter vontade, tão alerta e firmequanto sua hedionda antagonista.

Mas que mortal pode enfrentar uma cri-atura de seus sonhos? A imaginação que cria oinimigo já está vencida. O resultado do combateé a causa do combate. Apesar de sua luta —apesar de todo movimento e toda força, quepareciam perder-se no vazio —, Frayser sentiu osdedos gelados se fecharem em torno de sua gar-ganta. Lançado ao chão de costas, viu diante de si

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o rosto morto e anguloso, a um palmo do seu, eentão foi tudo escuridão. Um som como oretumbar distante de tambores — um murmúriode vozes emaranhadas, um grito agudo, longín-quo, que fez tudo o mais se calar, e HalpinFrayser sonhou que estava morto.

IV

À noite clara e morna seguiu-se umamanhã de névoa úmida. Na tarde do dia anterioruma leve concentração de vapor — um meroadensar-se da atmosfera, como o fantasma deuma nuvem — fora vista sobre o lado oeste doMonte Santa Helena, lá no alto, perto do cume.Era tão tênue, tão diáfana, tão semelhante a umafantasia tornada visível, que se podia dizer:"Olhe, rápido, pois num segundo vaidesaparecer.”

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Mas num segundo já estava visivel-mente maior e mais densa. Enquanto uma de suasextremidades se colava à montanha, a outra se es-tendia mais e mais pelo ar afora, acima dos picosmais baixos. Ao mesmo tempo, estendia-se paranorte e sul, fundindo-se a pequenos fios de brumaque pareciam surgir da encosta exatamente namesma altura, como se quisessem, deliberada-mente, ser absorvidos. E assim foi crescendo ecrescendo até que o cume estava encoberto e jánão se podia vê-lo do vale, e sobre o próprio valese criava um dossel, cinza e opaco, estendendo-se, interminável. Em Calistoga, que fica na pontado vale e no sopé da montanha, a noite foi semestrelas e a manhã seguinte sem sol. A névoa,descendo sobre o vale, chegara ao sul, engolindorancho após rancho, até apagar completamente acidade de Santa Helena, a quase quinze

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quilômetros de distância. A poeira nas estradasestava assentada; as árvores transpiravam umid-ade; os pássaros jaziam silenciosos em seusesconderijos; a luz da manhã era fraca e emba-ciada, sem cor ou fulgor.

Dois homens saíram de Santa Helena aoamanhecer e caminharam rumo ao norte pela es-trada que cortava o vale em direção a Calistoga.Levavam armas aos ombros, mas ninguém comum mínimo conhecimento das coisas poderiaconfundi-los com caçadores de pássaros ou feras.Eram o subxerife de Napa e um detetive de SãoFrancisco — Holker e Jaralson, respectivamente.E o que eles caçavam era um homem.

"É muito longe?", perguntou Holker, en-quanto caminhavam, seus pés revolvendo a

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poeira clara do chão, assentada sob a superfícieúmida da estrada.

"A Igreja Branca? Falta menos de umquilômetro", respondeu o outro. "Por falar nisso",acrescentou, "ela não é branca nem é igreja; éuma escola abandonada, que ficou cinzenta develhice e descaso. Houve tempo em que serezava lá — no tempo em que ela era branca,com um pequeno cemitério que encantaria umpoeta. Agora entendeu por que mandei chamarvocê e pedi que viesse armado?”

"Ah, eu nunca o aborreci com essascoisas. Sempre achei que você dizia as coisas nashoras certas. Mas, por falar nisso, afinal você mechamou para quê, foi para prender um dosdefuntos?”

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"Você se lembra do Branscom?", disseJaralson, sem ligar para o tom debochado docompanheiro.

"O cara que cortou a garganta da mulh-er? Claro. Perdi uma semana de trabalho com elee ainda paguei as despesas. Tem uma recompensade quinhentos dólares, mas até agora ninguémconseguiu descobrir onde está. Não vá me dizerque...”

"Vou. Ele estava debaixo do nariz de vo-cês o tempo todo. À noite, aparece no velhocemitério da Igreja Branca.”

"Que bandido! Foi lá que ele enterrou amulher.”

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"Bem, vocês deveriam ter imaginadoque ele acabaria voltando ao cemitério em algummomento.”

"É o último lugar do mundo para ondese podia imaginar que voltaria.”

"Mas vocês procuraram por todos osoutros lugares. Sabendo do insucesso de vocês,fui procurá-lo lá.”

"E encontrou?”

"O cretino! Ele é que me encontrou. Obandido me pegou — para dizer a verdade, melevantou e me jogou longe. Foi mesmo pela graçadivina que não me matou. É, ele é um daqueles, eacho que me satisfaço com a metade da recom-pensa se você estiver precisando de dinheiro.”

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Holker riu, bem-humorado, dizendo queseus credores nunca o tinham perseguido tanto.

"Só queria mostrar a você o lugar, paratraçarmos um plano", explicou o detetive. "Masachei que era bom vir armado, mesmo de dia.”

"Ele deve ser louco", disse o subxerife."A recompensa é pela captura e condenação. Masse ele é louco não pode ser condenado.”

Holker sentiu-se tão profundamenteafetado pela possibilidade de não se fazer justiçaque estancou no meio da estrada sem querer, re-começando depois a caminhar com menosentusiasmo.

"Bem, ele parece mesmo maluco", con-cordou Jaralson. "Tenho de admitir que nunca vi

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um sujeito tão desgrenhado, malcuidado, mal-barbeado, mal tudo, fora da velha e honorável or-dem dos vagabundos. Mas estou atrás dele e nãovou deixá-lo escapar. De qualquer forma, é umaglória para nós. Ninguém mais sabe que ele estádeste lado das Montanhas da Lua.”

"Está certo", concordou Holker, "vamosaté lá dar uma olhada no lugar", e acrescentou,usando as palavras que costumam ser inscritasnos túmulos: "'onde em breve descansarás' —quero dizer, se o velho Branscom se cansar devocê e de sua intrusão impertinente. Por falarnisso, ouvi falar outro dia que 'Branscom' não é onome verdadeiro dele.”

"E qual é?”

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"Não lembro. Não estava muito ligadono assunto e acabei não gravando — mas achoque é alguma coisa como Pardee. A mulher cujagarganta ele teve o mau gosto de cortar era viúvaquando o conheceu. Tinha vindo para a Califór-nia atrás de uns parentes — tem gente que fazisso às vezes. Mas essa parte você sabe.”

"Claro.”

"Mas, se você não sabia o nome ver-dadeiro, como foi que encontrou o túmulo certo?O homem que me contou sobre o nome ver-dadeiro disse que ele tinha sido cortado nalápide.”

"Eu não sei qual é o túmulo." Jaralsonparecia um pouco relutante em admitir sua ig-norância de uma parte tão importante do plano.

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"Tenho vigiado o lugar de maneira geral. Uma denossas tarefas esta manhã é tentar descobrir otúmulo certo. Lá está a Igreja Branca.”

Por um longo trecho a estrada vinhasendo ladeada por campos, mas agora, à es-querda, havia uma floresta de carvalhos, mad-roños e abetos gigantescos, cuja parte de baixomal podia ser divisada, apagada e fantasmagóricaem meio à névoa. A vegetação rasteira era, emalguns pontos, fechada, mas não impenetrável.Por um instante, Holker não conseguiu enxergara construção, mas assim que entraram no bosqueela surgiu, sua silhueta apagada e cinzenta emmeio à bruma, parecendo gigantesca e longínqua.Mais uns passos c ela estava a pouca distância,bem definida, escura de umidade, e de tamanhoinsignificante. Tinha o formato típico dos

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colégios rurais — pertencendo à escola ar-quitetônica da "caixa-de-sapato". Tinha a base depedra, um telhado coberto de musgo e espaçosvazios no lugar das janelas, onde já não haviavidros ou caixilhos. Estava decadente, mas nãoem ruínas — uma típica representante na Califór-nia do que os guias turísticos impressos definemcomo "monumentos ao passado". Depois de umaolhada desinteressada na construção, Jaralsonembrenhou-se na vegetação úmida e seguiu emfrente.

"Vou lhe mostrar onde foi que ele mepegou", disse. "É aqui o cemitério.”

Por entre os arbustos havia pequenos es-paços contendo túmulos, às vezes apenas um.Dava para perceber que eram túmulos por causadas pedras descoradas ou lápides desfeitas,

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colocadas aos pés ou na cabeceira das covas, in-clinadas nos mais diversos ângulos, algumas caí-das. Ou por causa das cercas de estacas em tornodeles. Ou, mais raramente, por causa do própriomonte de terra, exibindo suas pedras em meio àsfolhas secas. Em vários casos, nada havia quemarcasse o local onde jaziam os vestígios de al-gum pobre mortal — aquele que, tendo deixado"inúmeros amigos sensibilizados", em troca foralargado por eles — a não ser por uma depressãona terra, mais duradoura que aquela deixada noespírito dos enlutados. As aléias, se aléias havia,estavam todas tomadas. Árvores de grande portetinham podido crescer sobre os túmulos, empur-rando as cercas com seus galhos e raízes. Portoda parte pairava um ar de abandono e decom-posição, que em nenhum lugar é mais apropriado

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e significativo do que num reduto onde os mortosforam esquecidos.

Quando os dois homens abriam caminhoatravés das árvores menores, Jaralson de guia,este parou de repente e ergueu a arma, soltandoum ruído de alerta e ficando imóvel, os olhosfixos à frente. Na medida do possível, com avisão obstruída pelos arbustos, seu companheiro,embora nada visse, fez o mesmo e ali ficou, pre-parado para o que pudesse acontecer. LogoJaralson recomeçava a andar, cauteloso, e o outroseguiu-o.

Sob os galhos de um imenso abeto jaziao corpo de um homem. De pé, diante dele, osdois observaram os detalhes que primeirochamam a atenção — o rosto, a posição, a roupa.Fossem quais fossem as respostas imediatas e

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completas, ali estava a pergunta não formuladade uma curiosidade solidária.

O corpo jazia de costas, com as pernasafastadas. Um braço jogado para cima, o outroaberto para o lado; mas este último se mostravadobrado num ângulo agudo e a mão estava pertoda garganta. Ambas as mãos estavam crispadas.Toda a atitude denunciava uma resistência deses-perada, embora inútil, contra — o quê?

Junto ao corpo havia uma espingarda eum saco de caça cuja trama deixava entrever aplumagem de pássaros mortos. Tudo em voltaevidenciava uma luta feroz. Brotos decarvalho venenoso estavam quebrados, semcasca ou folhas. Folhas secas e rasgadas tinhamsido empurradas formando montes do lado decada uma das pernas pela ação de outros pés que

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não os dele. E junto aos quadris havia visíveismarcas de joelhos humanos.

A natureza da luta tornava-se evidentecom um único olhar ao rosto e à garganta dohomem morto. Peito e mãos estavam brancos,mas aqueles eram de cor púrpura — quasenegros. Os ombros jaziam sobre um monte deterra, e a cabeça estava virada para trás num ân-gulo de outra forma impossível, os olhos ar-regalados mirando o vazio na direção oposta àdos pés. Da boca aberta e espumosa saía a língua,inchada e escura. A garganta exibia contusõeshorríveis; não simples marcas de dedos, mas feri-das e lacerações provocadas por duas mãos fortesque pareciam ter-se enfiado na carne que gritava,mantendo-se ali até muito depois da morte. Peito,garganta, rosto estavam molhados. A roupa

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encharcada. Gotas de água, condensada da névoa,saturavam o cabelo e o bigode.

Tudo isso os dois homens observaramsem nada dizer — quase que num único olhar. Eentão Holker falou:

"Pobre-diabo! A coisa foi dura.”

Jaralson examinava cuidadosamente afloresta em torno, segurando a arma engatilhadacom as duas mãos e com o dedo no gatilho.

"Isso é coisa de um maníaco", disse, semtirar os olhos da floresta. "Foi obra do Branscom-Pardee.”

Alguma coisa oculta em meio às folhasrevolvidas prendeu a atenção de Holker. Era umcaderno de bolso, de couro vermelho. Holker

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pegou-o e abriu-o. Tinha várias páginas embranco para anotações e, na primeira folha, umnome, "Halpin Frayser". Escritas em tinta ver-melha, ocupando várias folhas — como se rabis-cadas às pressas e quase ilegíveis — estavam asseguintes linhas, que Holker leu em voz alta, en-quanto seu companheiro continuava a perscrutaros confins cinzentos do mundo estreito que oscercava, sobressaltando-se com cada gota d'águaque caía dos galhos encharcados:

Nas garras de estranho fascínio, láestava

Em meio à penumbra de uma florestaassombrada.

Ali, mirta e ciprestes de galhosentrelaçados

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Eram o símbolo de uma malignairmandade.

Soturnos salgueiros sussurravam aosteixos;

E, além, só pesar e a noite profunda,

Onde os ramos das perpétuas ganhavam

Formas funéreas, em meio às ervasdaninhas.

Nem canto nem pássaro nem o zoar dasabelhas,

Nem folha pela doce brisa carregada:

No ar estagnado, o Silêncio era um serVivo,

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cujo hálito as árvores bafejava.

Espíritos conspiradores moviam-se napenumbra,

Sussurrando uns aos outros os segredosda tumba.

Nas árvores encharcadas de sangue, asfolhas

Cintilavam vermelhas, sob a luzassombrada.

Gritei! — mas o encanto sobre mim semanteve

Dono de meu espírito e de minhavontade

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Sem alma ou alento, desesperançado,

Eu seguia lutando, com os piorespresságios.

Até que o invisível...

Holker parou; nada mais havia para ler.O manuscrito acabava assim, no meio de umalinha.

"Parece o estilo de Bayne", disseJaralson, que era um erudito, à sua maneira.Tinha baixado a guarda e estava agora observ-ando o corpo.

"Quem é Bayne?", perguntou Holker,sem muito interesse.

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"Myron Bayne, um camarada que surgiunos primórdios do país — mais de um século at-rás. Escrevia umas coisas lúgubres. Tenho asobras completas dele. Mas esse poema não estáincluído, deve ter sido omitido por engano.”

"Está frio", disse Holker, "vamos dar ofora daqui. Precisamos falar com o coronel emNapa.”

Jaralson não respondeu, mas concordouem silêncio. Passando pelo extremo da pequenaelevação sobre a qual jaziam a cabeça e os om-bros do morto, seu pé bateu em alguma coisadura em meio às folhas decompostas da floresta,e ele se deu ao trabalho de mexer com o pé paraver o que era. Era uma lápide caída, onde, pinta-das, mal se viam as seguintes palavras: "Cather-ine Larue".

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"Larue, Larue!", disse Holker, subita-mente animado. "Mas, é esse o nome verdadeirode Branscom, e não Pardee. E... Deus do céu!Agora me lembro — a mulher assassinada tinhaantes o sobrenome de Frayser!”

"Tem algum mistério horrendo nessahistória", disse o detetive Jaralson. "Detesto essetipo de coisa.”

Nesse instante, chegou até eles atravess-ando a bruma — como se viesse de uma distânciaimensa — o som de uma gargalhada. Um risoabafado, deliberado e cruel, que de alegria tinhatão pouco quanto o riso da hiena cortando a noiteno deserto. Uma gargalhada que foi crescendoem lenta gradação, tomando-se mais e mais alta,mais e mais nítida e terrível, até que parecia estarimediatamente além do pequeno círculo de visão

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dos dois. Um riso tão desumano, tão sobrenatur-al, tão demoníaco, que encheu aqueles embrute-cidos caçadores de homens com uma sensação deterror inominável! Eles não engatilharam asarmas, nem pensaram nelas; a ameaça daquelesom horrível não era do tipo que pudesse ser en-frentada com armas de fogo. E, assim como sur-gira do silêncio, a gargalhada foi aos poucosmorrendo a distância. Depois do grito culminanteque parecera explodir quase em seus ouvidos, elase foi afastando, até que as últimas notas, tristes erepetitivas até o fim, mergulharam no silênciomuito longe dali.

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Cruzando o umbral

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Um habitante de Carcosa

Pois há diversos tipos de morte. Em al-gumas, o corpo é preservado; em outras desa-parece, junto com o espírito. Geralmente issoocorre quando o indivíduo está só (esta é a vont-ade de Deus) e, como não nos é dado conhecer ofim, dizemos que o homem desapareceu, ou quese foi numa longa jornada — o que é verdade.Mas, às vezes, o fato ocorre diante da vista demuitos, como provam vários testemunhos. Numdeterminado tipo de morte o espírito tambémmorre e sabe-se de casos em que isso aconteceuquando o corpo ainda continuaria vivo por mui-tos anos. Em outras vezes, como tem sidoprovado, o espírito morre com o corpo, mas al-gum tempo depois volta a erguer-se, naquelemesmo lugar onde o corpo se decompôs.

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Refletindo a respeito dessas palavras deHali (que descanse em paz) e perguntando-mesobre seu verdadeiro significado — como o fariaalguém que, tendo recebido um sinal, aindativesse dúvidas e pressentisse algo por trás da-quilo que compreendera —, eu seguia sem pre-star atenção no caminho, até que um vento ge-lado no rosto reavivou meus sentidos para o quehavia em torno. Surpreso, observei que tudo alime era estranho. De um lado e outro, estendia-seuma vasta planície, descampada e desolada, re-coberta por um capim alto e seco, que assobiavae gemia ao vento de outono, provocandosensações misteriosas e inquietantes cujo signi-ficado só Deus poderia saber. Acima da veget-ação, a grandes intervalos, despontavam pedrasde formatos estranhos e cor escura, que pareciamter entre si um mudo entendimento, como se

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trocassem olhares de significado assustador, oucomo se houvessem erguido as cabeças para espi-ar alguma coisa que estivesse por acontecer. Aquie ali, surgiam umas poucas árvores, batidas pelovento, parecendo ser as líderes dessa conspiraçãomaligna de silenciosa expectativa.

O dia já ia alto, imaginei, embora nãopudesse ver o sol. E apesar de perceber o ar frio eúmido, minha consciência de tal fato era maismental do que física — não tinha qualquersensação de desconforto. Acima daquela terralúgubre, nuvens baixas, cor de chumbo, form-avam uma cobertura, como se fosse umamaldição visível. Em tudo havia ameaça e pressá-gio — um toque maligno, o sinal do juízo final.Pássaro, animal, inseto — nada disso existia. Ovento suspirava nos galhos nus das árvores

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mortas e o capim cinzento curvava-se para sus-surrar à terra seus segredos terríveis. Mas nen-hum outro som ou movimento quebrava a imobil-idade daquele lugar sombrio.

Notei que havia, por entre o capim, algu-mas pedras gastas pelo tempo, parecendo ter sidomoldadas por mãos humanas. Estavam partidas,recobertas de limo e meio enterradas no chão. Al-gumas caídas, outras inclinadas em vários ângu-los. Nenhuma estava de pé. Com toda a certeza,eram lápides de sepulturas, embora as sepulturasem si já não existissem, nem em forma demontículos nem como depressões na terra. O pas-sar dos anos nivelara tudo. Espalhados aqui e ali,blocos maiores de pedra apontavam o local ondealguma sepultura suntuosa ou monumento ambi-cioso lançara um dia seu débil desafio contra o

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esquecimento. Tão antigas pareciamaquelas relíquias, aqueles vestígios da vaidade eda memória de afeições e piedades, tão batidos,gastos, manchados — e tão abandonado, desertoe esquecido aquele lugar — que não pude deixarde pensar que acabara de descobrir o cemitério dealguma raça pré-histórica, de homens dos quaisaté mesmo o nome estava há muito extinto.

Caminhava tão impregnado dessespensamentos, que por algum tempo vaguei semprestar muita atenção no que fazia, até pensar:"Como vim parar aqui?" Um momento de re-flexão pareceu tornar tudo muito claro e aomesmo tempo explicar — embora de forma in-quietante — o cará ter estranho com que minhaimaginação revestira tudo o que via e ouvia. Euestava doente. Agora lembrava-me de que

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estivera prostrado com uma febre repentina.Minha família me dissera que, em meus delírios,várias vezes eu gritara, pedindo ar e liberdade,tendo sido amarrado à cama para não fugir. Nacerta eu vencera a vigilância de quem tomavaconta de mim e saíra para — para onde? Não po-dia sequer imaginar. Claramente estava a umaimensa distância da cidade onde vivia — a antigae famosa cidade de Carcosa.

Em parte alguma havia sinais audíveisou visíveis da existência humana. Nenhum rolode fumaça, nenhum cão latindo ou gado mu-gindo, nenhum barulho de crianças brincando.Nada. Apenas aquele cemitério sombrio, com seuar de mistério e terror, conseqüências de meucérebro comprometido. Não estaria eu tendo umnovo delírio, ali, onde não havia ninguém para

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me ajudar? Não seria tudo, afinal, uma ilusãoprovocada por minha loucura? Gritei os nomesde minhas mulheres e filhos, estendendo osbraços à sua procura enquanto caminhava porentre as pedras destroçadas, sobre o capim seco.

Um ruído atrás de mim fez com que eume virasse. Um animal selvagem — um lince —se aproximava. E, de imediato, pensei: se eu des-maiar aqui, neste lugar deserto, se a febre voltar eeu perder os sentidos, esse animal voará emminha garganta. E corri na direção dele, gritando.Ele continuou seu caminho tranqüilamente, pas-sando quase ao alcance de minha mão e desa-parecendo por trás de uma pedra.

Logo depois, a cabeça de um homempareceu surgir do chão, a poucos metros de mim.Ele subia um aclive a uma certa distância, numa

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colina baixa cujo topo mal se podia distinguir doresto do terreno. Logo, todo ele ficou visível, suafigura recortada contra o céu cinzento. Estavameio nu, meio vestido, em farrapos. Seu cabelodesalinhado, a barba imensa e embaraçada. Emuma das mãos, levava um arco e uma flecha. Naoutra, uma tocha acesa, de onde se desprendia umlongo fio de fumaça negra. Caminhava devagar,com cuidado, como se temesse cair num túmuloaberto que o capim alto escondesse. Essa es-tranha aparição me deixou surpreso, mas nãocom medo. E comecei a caminhar em sua direçãoaté que nos vimos frente a frente. Cumprimentei-o com a saudação usual:

"Que Deus esteja com você.”

Mas ele não me deu atenção, nem paroude caminhar.

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"Meu bom amigo", continuei, "estoudoente e perdido. Poderia me orientar, por favor?Preciso voltar para Carcosa.”

O homem começou a entoar um cantobárbaro, numa língua desconhecida, e seguiu emfrente.

No galho de uma árvore morta, uma cor-uja soltou seu pio lúgubre, sendo respondida, adistância, por outra coruja. Erguendo a vista, at-ravés de um claro que subitamente se formaraentre as nuvens, enxerguei as estrelas Aldebarane Hyades. Tudo fazia crer que era noite — olince, o homem com a tocha, a coruja. E contudoeu enxergava — via até as estrelas, mesmo nãohavendo escuridão. Via, mas aparentemente nãoera visto, nem ouvido. Sob aquele estranho en-cantamento, será que eu existia?

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Sentei-me na raiz de uma imensa árvore,tentando pensar no que fazer. Já não duvidavaque estivesse louco, porém reconhecia um resquí-cio de dúvida naquela minha certeza. Não sentiafebre. Além disso, tinha uma sensação de euforiae vigor que me eram desconhecidos — uma ex-citação física e mental. Todos os meus sentidosestavam alerta. Podia perceber o ar como se fosseuma substância palpável. Era capaz de ouvir osilêncio.

Uma imensa raiz da gigantesca árvoreem cujo tronco me apoiara estava enrolada emuma laje de pedra, parte da qual surgia por entreo vão formado por outra raiz. A pedra ficara as-sim parcialmente protegida das intempéries, em-bora bastante gasta. Seus cantos estavam arre-dondados, comidos pelo tempo, e a superfície

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muito sulcada e descamada. Partículas faiscantesde mica eram visíveis na terra sob a pedra —vestígios de decomposição. A pedra parecia termarcado o túmulo do qual a árvore brotara,muitas eras antes. Suas raízes possessivas tinhamtomado a sepultura, transformando a pedra emprisioneira.

Uma súbita lufada de vento varreu opunhado de folhas secas e gravetos que recobri-am a lápide. E, vendo as letras em baixo-relevode uma inscrição, curvei-me para lê-la. Deus! Erameu nome. A data de meu nascimento... e a datade minha morte!

Um raio de luz oblíqua iluminou todo olado da árvore no mesmo instante em que me pusde pé, aterrorizado. O sol nascia a leste, no céucor-de-rosa. Eu estava de pé entre a árvore e seu

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disco de fogo no horizonte — mas não haviaqualquer sombra no tronco!

Um coro de lobos uivando saudou oamanhecer. Podia vê-los, sentados nas patas tra-seiras, solitários ou em grupos, nos topos dosmontículos e dos túmulos, preenchendo em partea visão desértica que se estendia até o horizonte.E só então compreendi que estava nas ruínas daantiga e famosa cidade de Carcosa.

Tais fatos foram relatados ao médiumBayrolles pelo espírito de Hoseib Alar Robardin.

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A dificuldade de atravessar umcampo

Numa certa manhã de julho, em 1854,um fazendeiro de nome Williamson, que vivia apouco menos de dez quilômetros de Selma, noAlabama, estava sentado com a mulher e o filhona varanda de casa. Bem em frente havia um pá-tio, com quase cinqüenta metros de comprimento,separando a casa da estrada, conhecida como a"via principal". Para além da estrada havia umpasto de vegetação rasteira, com aproximada-mente dez hectares, plano e sem árvores, pedrasou qualquer outro objeto natural ou artificial emsua superfície. Naquela hora, não havia sequerum animal doméstico no campo. Em outrocampo, atrás do pasto, uma dúzia de escravos tra-balhava sob as ordens de um feitor.

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Jogando fora o toco de um charuto, ofazendeiro levantou-se, dizendo:

"Esqueci de falar ao Andrew sobreaqueles cavalos." Andrew era o feitor.

Williamson percorreu devagar o chão decascalho, arrancou uma flor no caminho, atraves-sou a estrada e entrou no pasto, parando um in-stante, enquanto fechava o portão de entrada,para cumprimentar um vizinho, Armour Wren,que vivia numa fazenda das redondezas. O Sr.Wren estava em uma carruagem aberta com ofilho, James, um rapaz de treze anos. Quando jáse tinham afastado cerca de duzentos metros, oSr. Wren disse ao filho:

"Esqueci de falar ao Sr. Williamsonsobre aqueles cavalos.”

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O Sr. Wren tinha vendido algunscavalos ao Sr. Williamson, e eles deveriam tersido mandados naquele dia, mas por uma razãoqualquer só seriam enviados no dia seguinte. Ococheiro recebeu instruções de voltar e, enquantoa carruagem fazia a volta, Williamson foi vistopor todos os três, atravessando calmamente opasto. Nesse exato instante, um dos cavalos quepuxavam a carruagem tropeçou e quase caiu. Malele se aprumara quando James Wren gritou:

"Ué, papai, o que aconteceu com o Sr.Williamson?”

Não é o objetivo desta narrativa respon-der a tal pergunta.

O estranho relato do Sr. Wren, feito sobjuramento durante os procedimentos legais

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relacionados às propriedades do Sr. Williamson,foi o seguinte:

"A exclamação de meu filho fez comque eu olhasse para o ponto em que vira o finado(sic) apenas um instante antes, mas ele já não es-tava lá, nem em qualquer outro lugar visível. Nãoposso dizer que, naquele momento, tenha ficadoespantadíssimo, nem que me tenha dado conta dagravidade do ocorrido, mas achei estranho. Meufilho, porém, ficou muito assustado e não paravade repetir sua pergunta, de diversas maneiras, atéchegarmos ao portão. Meu jovem escravo Samtambém estava impressionado, mais até do quemeu filho, mas eu me baseio mais nas maneirasde meu filho do que em alguma coisa que eletivesse falado. (Esta frase foi riscada do depoi-mento.) Assim que saltamos da carruagem junto

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ao portão que dava para o campo, e enquantoSam pendurava (sic) os cavalos na cerca, a Sra.Williamson, com o filho no colo e seguida devários empregados, atravessou o pátio correndo,muito alvoroçada e gritando: 'Ele sumiu, sumiu!Deus do céu, que horror!' e outras exclamaçõesdo gênero das quais não me recordo. Deram-me aimpressão de estar relacionadas com algumacoisa mais do que o simples desaparecimento deseu marido, mesmo este tendo ocorrido diante deseus olhos. Ela estava fora de si, ainda mais doque seria de se esperar numa situação daquelas.Nada me leva a crer que tivesse enlouquecidonaquele instante. Nunca mais vi nem ouvi falarda Sra. Williamson.”

Esse depoimento, como seria de se es-perar, foi reforçado em quase todos os detalhes

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pela única testemunha ocular (se é este o termocerto) — o jovem James. A Sra. Williamson en-louquecera e os empregados não tinham con-dições, é claro, de dar seu testemunho. No início,o jovem James Wren declarara ter visto o desa-parecimento, mas isso não consta de seu depoi-mento à Justiça. Nenhum dos trabalhadores docampo para o qual o Sr. Williamson se dirigiavira o patrão. E uma busca cuidadosa em toda afazenda e nos terrenos vizinhos mostrou-se in-frutífera. Histórias monstruosas e grotescas, in-ventadas pelos negros, seriam contadas durantemuitos anos na região, e talvez continuem a seraté hoje. Mas o que foi relatado aqui é tudo o quese sabe ao certo sobre o caso. A Justiça decidiuque o Sr. Williamson estava morto e suas pro-priedades foram distribuídas segundo a lei.

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Corrida inacabada

James Burne Worson era um sapateiroque vivia em Leamington, Warwickshire, naInglaterra. Tinha uma pequena loja numa estrad-inha secundária que levava à estrada de Warwick.Dentro de seu meio humilde ele era consideradoum homem honesto, embora, como muitos de suaclasse na Inglaterra, fosse de certa forma um al-coólatra. Quando estava bêbado, costumava fazerapostas malucas. Numa das muitas ocasiões emque isso aconteceu, ele estava se gabando de suasfaçanhas como andarilho e atleta, e o resultadofoi uma aposta contra a natureza. Para ganharuma libra, Worson apostou que conseguiria cor-rer até Coventry e voltar, uma distância de maisde sessenta quilômetros. Isso foi no dia 3 desetembro de 1873, Ele saiu em seguida e o

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homem com quem fizera a aposta — de cujonome não me lembro —, acompanhado por umtal Barham Wise, vendedor de tecidos, e deHamerson Burns, fotógrafo, acho, seguiu-o numapequena carroça, ou carro.

Por muitos quilômetros, Worson foibem, em bom ritmo, sem parecer cansado, porquede fato tinha grande resistência e ainda não se in-toxicara o suficiente para debilitá-la. Os três ho-mens no carro mantinham-se a uma pequena dis-tância na retaguarda, soltando de vez em quandouma piada para encorajá-lo, à medida que se iamanimando. De repente — no meio da estrada, adez metros de onde os três estavam, com os ol-hos grudados no corredor — este pareceutropeçar e, precipitando-se para a frente, soltouum horrível grito e desapareceu! Não caiu por

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terra — simplesmente desapareceu antes de tocaro chão. Dele, jamais se encontrou traço.

Depois de ficar no local por algumtempo, sem ânimo e sem saber o que fazer, ostrês homens voltaram para Leamington, contaramsua impressionante história e acabaram presos.Mas eram homens bem estabelecidos, consid-erados confiáveis, estavam sóbrios no momentodo ocorrido e nada jamais transpareceu queviesse desmentir a extraordinária aventura queeles juravam ter vivido. Aventura sobre cuja ver-dade a opinião pública se dividiu, por todo oReino Unido. Se eles tinham algo a esconder,certamente optaram por uma história que é dasmais estranhas já relatadas por pessoas sãs.

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O rastro de Charles Ashmore

A família de Christian Ashmore consis-tia em sua mulher, sua mãe, duas filhas crescidase um filho de dezesseis anos. Moravam todos emTroy, Nova York, eram pessoas de bom nível, re-speitadas, e tinham muitos amigos, alguns dosquais, lendo estas linhas, ouvirão falar pelaprimeira vez da história extraordinária ocorridacom o rapaz. Os Ashmores se mudaram de Troypara Richmond, Indiana, em 1871 ou 1872,seguindo, um ou dois anos depois, para os arre-dores de Quincy, Illinois, onde o Sr. Ashmorecomprou uma fazenda e se instalou. A pouca dis-tância da sede da fazenda havia uma fonte deágua limpa e fresca, que a família usava parasuprir suas necessidades durante o ano inteiro.

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Na noite de 9 de novembro de 1878, lápelas nove horas, o jovem Charles Ashmore deix-ou a família reunida em casa e, levando umapequena jarra, saiu em direção à fonte. Como de-morava a voltar, a família ficou inquieta, e o pai,indo até a porta por onde o rapaz saíra, chamoupor ele sem obter resposta. Acendeu então umalanterna e, junto com a filha mais velha, Martha,que insistiu em acompanhá-lo, saiu à procura.Naquela noite havia caído um pouco de neve, quecobria o caminho mas deixava evidente a trilhafeita pelo rapaz. Cada pegada era perfeitamentevisível. Quando eles já haviam percorrido poucomais do que a metade do caminho — cerca desessenta metros —, o pai, que ia na frente, esta-cou e, erguendo a lanterna, ficou espiando a es-curidão à sua frente.

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"O que houve, pai?", perguntou a moça.

O que havia era o seguinte: a trilha dojovem terminava de repente e dali para a frente aneve fofa estava intocada. As últimas pegadaseram tão visíveis quanto as anteriores, sendo pos-sível mesmo distinguir a marca da ponta dos de-dos. O Sr. Ashmore olhou para cima, usando ochapéu de anteparo para que a luz da lanterna nãoo ofuscasse. As estrelas brilhavam. Ficou assimafastada a hipótese que chegara a lhe ocorrer, pormais improvável que fosse, de que houvessecaído neve outra vez, e só dentro de um limite tãobem definido. Seguindo um caminho maior erodeando o local onde estavam as últimas pega-das, de forma a deixá-las intocadas para voltar aexaminá-las mais tarde, ele foi até a fonte, en-quanto a moça seguia atrás, sentindo-se fraca e

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apavorada. Nenhum dos dois disse uma só palav-ra sobre o que tinham visto. A fonte estavacoberta de gelo, obviamente endurecido haviamuitas horas.

Voltando para casa, observaram a nevede ambos os lados, ao longo de todo o caminho.Não havia qualquer marca de pegadas afastando-se da trilha.

A luz do dia não trouxe qualquer novaevidência. Por toda parte havia neve, não muitoprofunda. E sempre macia, sem marcas, intocada.

Quatro dias depois, a mãe, arrasada, foiaté a fonte em busca de água. Ao voltar, contouque, quando passava pelo local onde tinham sidovistas as últimas pegadas, ouvira a voz do filho esaíra, desesperada, chamando por ele, andando a

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esmo pelo lugar, já que a cada momento tinha aimpressão de ouvir a voz vindo de uma diferentedireção. Até que não agüentara mais, vencidapelo cansaço e pela emoção. Quando lhe pergun-taram o que a voz falava, não conseguiu dizer,embora asseverasse que as palavras eram perfeit-amente audíveis. Imediatamente, toda a famíliafoi até o local, mas ninguém ouviu nada e a con-clusão foi a de que tudo não passara de uma alu-cinação causada pela ansiedade da mãe e por seusnervos destroçados. Acontece que nos mesesseguintes, com intervalos irregulares de algunsdias, a voz foi ouvida por todos os membros dafamília, e também por outras pessoas. Todos de-clararam estar absolutamente certos de que era avoz de Charles Ashmore, e todos concordaramque o som parecia vir de muito longe, fraco, masarticulado de forma perfeitamente audível. E,

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contudo, ninguém foi capaz de precisar de quedireção vinha o som ou de repetir as palavrasditas. Os intervalos de silêncio foram aos poucostornando-se mais longos, e a voz ficando maisfraca e distante, até que, no verão, parou de serouvida.

Se alguém conhece o destino de CharlesAshmore, esse alguém provavelmente é sua mãe.Ela está morta.

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A ciência à frente

Ainda a respeito dessa questão dos "de-saparecimentos misteriosos" — sobre os quais to-dos têm sempre na memória muitos exemplos —,é pertinente mencionar o que pensa disso o Dr.Hern, de Leipzig. Não como explicação, a nãoser que o leitor assim o encare, mas devido a seuinteresse intrínseco, na qualidade de especulaçãointeressante. Esse renomado cientista expôs suasteorias num livro intitulado Verschwinden undSeine Theorie, que chamou muita atenção. Se-gundo um determinado escritor, isso ocorreu par-ticularmente "entre os seguidores de Hegel eentre os matemáticos que acreditam na existênciado chamado espaço não-euclidiano — isto é, umespaço que, além de comprimento, largura e pro-fundidade, tem outras dimensões —, um espaço

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dentro do qual seria possível dar um laço numacorda sem fim e virar uma bola de borracha peloavesso sem provocar uma 'solução de continuid-ade', ou seja, sem quebrá-la ou rasgá-la".

O Dr. Hern acredita que no mundovisível existem espaços vazios — vácuos, e algomais —, buracos através dos quais objetos anim-ados ou inanimados podem cair, penetrando ummundo invisível, sem que jamais se volte a vê-losou ter notícias deles. A teoria é mais ou menos aseguinte: o espaço está impregnado pelo éter lu-minoso, que é algo material — uma substânciacomo o ar ou a água, embora infinitamente maisdiluída. Todas as forças, todas as formas de ener-gia devem ser propagadas por ele. Todos os pro-cessos que ocorrem devem fazê-lo nele. Massuponhamos que existam cavidades nesse meio

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que do contrário seria universal, cavidadessemelhantes às cavernas que existem na Terra, ouaos buracos de um queijo suíço. Nessas cavid-ades não haveria nada. Seria um tal vácuo quenão poderia ser produzido artificialmente.Porque, se bombearmos o ar para fora de um re-cipiente, ainda restará dentro dele o éter lu-minoso. Através de uma dessas cavidades a luznão poderia passar, pois nada haveria parasustentá-la. Dela não poderia ser emitidoqualquer som. Dentro dela, nada poderia ser sen-tido. Tal cavidade não teria sequer uma das con-dições necessárias à ação de qualquer um de nos-sos sentidos. Em um vácuo como esse, resum-indo, nada poderia jamais ocorrer. Reproduzoagora as palavras do escritor citado — já quenem o próprio médico conseguiu uma explicaçãotão concisa: "Um homem preso dentro de tal

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cavidade não poderia ver nem ser visto. Nemouvir ou ser ouvido. Ou sentir e ser sentido. Nemsequer viver ou morrer, porque tanto a vidaquanto a morte são processos que têm lugar apen-as onde existe uma força motriz, e no espaçovazio tal força não tem como existir." Serão essasas terríveis condições (alguns se perguntarão) nasquais os amigos dos desaparecidos devem acred-itar que eles se encontram, e onde estariam con-denados a permanecer pela eternidade?

Tendo sido descrita aqui de forma im-perfeita e superficial a teoria do Dr. Hern, se con-siderada como explicação adequada para os "de-saparecimentos misteriosos", está aberta a ob-jeções óbvias. Por parte de um número menor depessoas do que ele próprio admite na "espaçosavolubilidade" de seu livro. Mas, mesmo da

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maneira como foi exposta por seu autor, a teorianão explica — e em alguns casos chega a ser in-compatível com determinados incidentes — asocorrências relatadas neste memorando. Por ex-emplo: o som da voz de Charles Ashmore. Masnão cabe a mim gostar ou não de fatos e teorias.

A.B.

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Visões da noite

I

Acredito que o Dom dos Sonhos temgrande valor literário — e que se, por algummétodo ainda não conhecido, fosse possívelapreender, fixar e por fim utilizar a fantasia im-palpável neles contida, teríamos uma literatura deenorme qualidade. Uma vez em cativeiro, do-mesticado, esse dom poderia sem dúvida sermuito aperfeiçoado, assim como os animais que,a serviço do homem, adquirem novos poderes ecapacidades. Domesticando os sonhos, poder-íamos dobrar nossas horas de trabalho e as tarefasmais frutíferas seriam feitas enquanto dormísse-mos. Mesmo as coisas sendo como são, a Terra

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dos Sonhos é uma província que paga tributos,como demonstra o "Kubla Khan".

O que é um sonho? Um conjunto dememórias, à solta e sem lei — a sucessão de-sordenada de fatos que um dia fizeram parte daconsciência desperta. Uma ressurreição de mor-tos, misturados — novos e velhos, o justo e o in-justo —, saltando de seus túmulos desfeitos, cadaum "com as roupas que usou em vida", pression-ando, de forma caótica, tentando obter umaaudiência com o Mestre do Festim, agarrando-seuns aos outros na confusão da corrida. Mestre?Não. Ele abdicou de sua autoridade e são eles queo dominam. Sua vontade está morta e não seergue como os demais. Sua capacidade de julgartambém se foi e, com ela, o dom de surpreender-se. Talvez sinta dor e prazer, terror e

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encantamento, mas assombro não sentirá. O mon-struoso, o grotesco, o insólito — tudo é simples,certo e razoável. O que é cômico não diverte, oque é impossível não espanta. Aquele que sonhaé seu único e verdadeiro poeta; ele é sóimaginação.

E imaginação não é mais do quememória. Tente imaginar algo que jamais viu,experimentou, ouviu ou sobre o qual leu. Tenteconceber um animal, por exemplo, sem corpo,cabeça, membros ou rabo — uma casa semparedes ou telhado. Acordados, com a ajuda doarbítrio e da capacidade de julgamento, aindapoderemos controlar e dirigir as coisas; podere-mos selecionar e escolher do estoque damemória, pegando aquilo que nos convém, ex-cluindo, embora às vezes com dificuldade, o que

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não nos interessa. Mas dormindo nossas fantasias"nos herdarão". Elas surgem tão amalgamadas,tão mescladas e coesas, de tal maneira forjadascom os elementos umas das outras que o todo nosparece novo; mas as velhas e familiares partes daconcepção estão lá, e nada foi posto de lado. Dor-mindo ou despertos, nada recebemos de novo daimaginação, a não ser novos ajustes: "a matériada qual são feitos os sonhos" foi composta pelossentidos físicos e pela memória estocada, comoesquilos que juntam suas nozes. Mas pelo menosum sentido não contribui em nada para a fábricado sonho: ninguém jamais sonhou com umcheiro. Visão, audição, sentimento, talvez gosto,são todos operários que trabalham para nossa di-versão noturna; mas o Sono não tem nariz. É sur-preendente que os poetas antigos, velhos obser-vadores, não tenham descrito assim esse deus

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sonolento e que seus servos obedientes, os es-cultores da Antiguidade, não o tenham repres-entado dessa forma. Talvez esses últimos notá-veis, trabalhando para a posteridade, tenham con-cluído que o tempo e o desgaste acabariam porfazer sua parte, adaptando suas obras aos fatos danatureza.

E, sendo assim, quem consegue descre-ver um sonho de forma que continue parecendoum sonho? Nenhum poeta é capaz de tal leveza.É como tentar descrever a música de uma harpaeólia. Há uma determinada espécie da família dosChatos (Penetrator intolerabilis) que, ao ler umconto ou romance — escrito, talvez, por algummestre do estilo —, faz um esforço descomunalpara descrever o enredo para você, para sua edi-ficação e entretenimento. Com isso, acredita, boa

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alma que é, que você já não precisará lê-lo. "Sobcircunstâncias e condições substancialmente sim-ilares" (como reza a lei do comércio entre os es-tados), não devo ser acusado de semelhanteofensa; mas quero descrever aqui alguns sonhosque tive, sendo "as circunstâncias e as con-dições", na minha opinião, diferentes neste caso,já que os sonhos não estão acessíveis ao leitor.Ao tentar registrar aqui a parte mais pobre dessessonhos não é sucesso que procuro. Falta-me salpara temperar o rabo impalpável do espírito dossonhos.

II

Na penumbra, eu caminhava em meio auma floresta de árvores estranhas. Não sabia deonde vinha nem para onde ia. Percebia a imen-sidão da floresta e tinha a consciência de ser o

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único ser vivo ah. Pelo que pude vagamente ima-ginar, enquanto caminhava contra o sol quecomeçava a nascer, estava atormentado por umfeitiço terrível, em expiação por um crime hámuito cometido. Mecanicamente,desesperançado, movia-me sob os galhos dasárvores gigantescas através de uma trilha estreita,que se perdia na solidão assombrada da floresta.De repente, dei com um riacho, que fluía, vag-aroso e escuro, à minha frente, e vi que era umrio de sangue. Virando à direita, segui-o durantealgum tempo, até chegar a um lugar onde afloresta se abria numa clareira circular, em cujocentro, sob a luz tênue e irreal, havia um tanquede mármore branco. Estava cheio de sangue e eradali que fluía o riacho que eu acabara de seguir.Em torno do tanque, entre ele e a floresta que ocircundava — um espaço de talvez três metros de

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largura, todo pavimentado com imensos blocosde mármore —, havia corpos de homens. Erammuitos e, embora não os tivesse contado, sabiaque seu número tinha uma forte e significativa re-lação com o crime por mim cometido. Talvezmarcassem o tempo, em séculos, desde que eu ocometera. Mas reconheci o número e sabia queestava certo, mesmo sem ter feito a conta. Oscorpos estavam nus e arrumados de formasimétrica em torno do tanque, dele irradiandocomo se fossem os raios de uma roda. Os pés es-tavam para fora, as cabeças dependuradas sobre aborda do tanque. Todos deitados de costas, comas gargantas cortadas, o sangue correndo lenta-mente da ferida aberta. Olhei para tudo aquilosem qualquer emoção. Era o resultado natural enecessário de meu crime, e portanto não meafetava. Mas havia algo que me enchia de

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apreensão e terror — uma pulsação monstruosa,batendo e batendo, lenta e inexoravelmente. Nãosei através de que sentido a apreendia ou se elame alcançava a mente por algum caminhodesconhecido para a ciência e os homens. Masseu ritmo imenso, que batia a intervalos regularese sem piedade, era capaz de enlouquecer. Eusabia que o som atravessava a floresta inteira, eque era manifestação de uma malignidade gi-gantesca e implacável.

É tudo de que me lembro. Sufocado peloterror que sem dúvida se origina no desconfortode alguma dificuldade circulatória, provavel-mente soltei um grito e fui acordado pelo som deminha própria voz.

III

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O sonho cujo arcabouço vou agora re-latar aconteceu quando eu era muito jovem. Nãoteria mais do que dezesseis anos. Já tenho bemmais do que isso agora e contudo me recordo doque aconteceu de forma tão vívida que é como sea visão tivesse ocorrido há apenas uma hora e euestivesse, ainda, encolhido sob as cobertas, tre-mendo de terror diante de sua lembrança.

Eu estava só, num plano infinito, e eranoite — em meus pesadelos, estou sempre soz-inho e geralmente é noite. Não havia uma sóárvore à vista, nem casas, nem rios ou montan-has. A terra parecia coberta por uma vegetaçãorasteira, áspera, que era escura e cheia de grave-tos, como se a planície tivesse sido varrida pelofogo. À medida que andava, meu caminhar erainterrompido, não sei bem por quê, por pequenas

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poças d'água que ocupavam as depressões dosolo, dando a impressão de que, depois do fogo,havia chovido. As poças estavam por toda parte,desaparecendo e reaparecendo assim que asnuvens, pesadas, empurravam de través o pedaçode céu que elas refletiam e, ao desaparecer,voltavam a revelar o brilho das estrelas, cuja luzfria as águas mostravam em seu cintilar escuro.Eu caminhava na direção oeste, onde junto àlinha do horizonte cintilava o fogo de uma luzavermelhada em meio a farrapos de nuvens,dando o efeito de uma distância imensurávelcomo aquela que desde então aprendi a ver nosdesenhos de Doré, cuja mão, a cada pincelada,lança um presságio e uma maldição. À medidaque caminhava, vi, recortada contra essa pais-agem sobrenatural, a silhueta de edificações etorres que, aumentando a cada quilómetro

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percorrido, cresceram até alcançar altura e lar-gura inimagináveis — a construção finalmentetomando um imenso ângulo de visão, embora nãoparecesse estar mais perto do que antes. Em de-salento e desespero, eu seguia em frente pelaplanície deserta e proibida, enquanto a con-strução continuava crescendo, até alcançar di-mensões tais que eu já não podia envolvê-la comum único olhar, e suas torres desapareciam nasnuvens, acima de minha cabeça. Então penetreiatravés de um portal aberto, por entre colunas deestrutura tão absolutamente gigantesca que cadapedra era maior do que a casa de meu pai. Ládentro, tudo era vazio; tudo recoberto pela poeirado abandono. Uma luz tênue — a luz sem sentidoque existe nos sonhos e que se alimenta de simesma — permitia-me passar de um a outrocorredor, de um a outro quarto, as portas cedendo

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ao toque de minhas mãos. Em cada quarto, eragrande a caminhada entre uma parede e outra; ejamais pude chegar ao fim de qualquer um doscorredores. Meus passos provocavam o som ocoe estranho que só é ouvido nas casas abandon-adas ou dentro dos túmulos. Durante muitas hor-as vaguei por aquela estranha solidão, conscientede que tinha um propósito, embora não soubesseo que procurava. Até que, no lugar que imagineiser um dos cantos extremos da construção, entreinum aposento de dimensões normais, com umaúnica janela. Através dela vi a luz vermelha aindacolada ao horizonte na distância imensurável doOeste, como a visão do juízo final, que eu recon-hecia por causa do fogo persistente da eternidade.Olhando para a ameaça rubra daquele cintilar sin-istro e soturno, senti-me invadir por uma verdade

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que, anos depois, por uma fantasia extravagante,tive a coragem de expressar em versos:

Por toda parte, o homem está morto, hámuitas eras,

Os anjos se foram rumo a túmulosdesconhecidos;

Os demônios, também, por fimtornaram-se frios,

E Deus jaz morto ante o imenso tronobranco!

A luz não conseguia sobrepujar a escur-idão do quarto e foi só depois de algum tempoque descobri, no canto mais afastado, a silhuetade uma cama, dela me aproximando com opresságio de um infortúnio. De alguma forma

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sentia que ali o malefício de minha jornada ter-minaria nalgum clímax terrível, e contudo nãopodia resistir ao chamado que me fazia querer iraté o fim. Sobre a cama, parcialmente vestido,jazia o corpo morto de um ser humano. Estavadeitado de costas, com os braços esticados.Inclinando-me sobre ele, o que fiz com nojo masnão com medo, vi que estava horrivelmente de-composto. As costelas emergiam da carne enrije-cida; através da pele do ventre encovado, viam-seas marcas da espinha. A face estava enegrecida eseca, e a boca, desfeita sobre os dentes amarelos,exibia um sorriso medonho, como uma maldição.Protuberâncias sob as pálpebras pareciam indicarque os olhos tinham sobrevivido à decomposiçãogeral; e tinham mesmo, pois, assim que me in-clinei sobre o rosto, eles se abriram e me en-cararam com um olhar tranqüilo e firme.

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Imaginem, se puderem, qual foi meu horror — enenhuma palavra minha poderá ajudar; porque osolhos eram os meus! Aquele fragmento querestava de uma raça extinta — aquela coisa inom-inável que nem o tempo nem a eternidade tinhamsido capazes de apagar — aquele detestável e re-pugnante pedaço de mortalidade, capaz ainda desentir, embora o Deus e os anjos já estivessemmortos, era eu!

IV

Há sonhos recorrentes. Pertence a essaclasse um sonho que tenho e que me parece sufi-cientemente singular para justificar que o relate,embora tema que o leitor vá pensar que osdomínios do sono são tudo menos um felizcampo de caça para esta minha alma que vagueiaà noite. Não é verdade; na maioria, minhas

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incursões pelo mundo dos sonhos, o que imaginoaconteça com quase todo mundo, são pautadaspor resultados mais felizes. Minha imaginaçãovolta ao corpo assim como uma abelha à colméia,repleta de provisões que, com a ajuda da razão,transmuta-se em mel e é estocada nas células damemória para felicidade eterna. Mas o sonho quevou contar agora tem um caráter duplo; a exper-iência em si é estranha e apavorante, mas o hor-ror por ela inspirado é tão ridiculamente despro-porcional ao incidente que o produz que, em ret-rospectiva, sua fantasia é capaz de divertir.

Estou atravessando uma clareira, numbosque de vegetação esparsa. Através das árvoresnuas que circundam o espaço irregular, vejo cam-pos cultivados e as moradas de seres estranhos. Oamanhecer parece estar próximo, pois a lua,

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quase cheia, vai baixa no céu, a oeste, vermelhacomo sangue por entre a bruma fantasmagóricaque recobre o lugar. A relva sob meus pés estápesada de orvalho e todo o cenário parece o deuma manhã de início de verão, brilhando ante aluz incomum da lua cheia que se põe. Junto aocaminho há um cavalo que, posso nitidamentever e ouvir, está pastando na relva. Ele ergue acabeça ante minha passagem, olha-me por um in-stante sem se mover, depois começa a andar emminha direção. É branco como leite, defisionomia suave e aspecto amistoso. Digo a mimmesmo: "Este cavalo é uma alma mansa" e vouacariciá-lo. Mantendo os olhos fixos em mim, elese aproxima e fala comigo com uma voz humana.Não é surpresa que sinto, mas terror. E, imediata-mente, estou de volta a este nosso mundo.

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O cavalo sempre fala minha língua, masnunca sei o que diz. Acho que fujo da terra dossonhos antes que ele acabe de expressar o quetem em mente, deixando-o, com certeza, tão as-sustado com meu súbito desaparecimento quantoeu com a forma como ele se dirige a mim.Gostaria muito de saber o que ele quer dizer.

Talvez, numa manhã, eu possacompreendê-lo — e então nunca mais voltarei aeste nosso mundo.

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