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ACUSADO E PROTAGONISTA – A ATUAÇÃO DE UM EX-ESCRAVIZADO
AFRICANO
Autor: Anderson Antonio De Santana Justino
Orientador: Prof. José Bento Rosa
Universidade Federal de Pernambuco
O artigo tem como objetivo compreender a crença na feitiçaria no período
imperial brasileiro. Durante o Império, não existiam leis que regulassem as acusações de
feitiçaria, diferentemente da colônia e do período republicano. Além disso, foi analisado
um processo criminal ocorrido no litoral norte do Estado de Santa Catarina. O
envolvido que foi estudado nesse processo tem como nome José Cabinda. Ele é um ex-
escravizado africano que é acusado de roubar duas aves e praticar mandingagem na
sociedade de Zimbros[SC].
A análise se estende na tentativa de entender como a sociedade imperial tratava
as questões das práticas religiosas aplicadas pelos africanos e seus descendentes na
questão da cura das enfermidades e de algumas necessidades que permeavam os
cidadãos. Além do mais como a medicina tradicional se relacionava com as práticas
africanas em relação à obtenção da cura das doenças.
No período colonial as manifestações religiosas afro-brasileiras eram
consideradas como práticas criminosas. A feitiçaria (como eram conhecidos os rituais)
estava sujeita a pena de morte pelas Ordenações Filipinas1. Já no Império,
diferentemente da colônia, a feitiçaria não era classificada como crime, nem pelo
Código Criminal tão pouco pela Constituição.
A imagem negativa do feiticeiro como o homo magus, conceito de Francisco
Bethencourt ao estudar processos inquisitoriais do século XVI que tinha relação com a
magia, foi nutrida pelo imaginário religioso propagado pelo Tribunal do Santo Ofício.
1 Ordenações Filipinas - LIVRO 5, Título III - Dos feiticeiros.
[...] qualquer pessoa que em circulo, ou fora delle, ou em encruzilhada invocar spiritos diabolicos, ou der
a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa para querer bem, ou mal, a outrem, ou a ontrem a
elle, morra por isso morte natural.
Esse órgão religioso perseguiu e foi fundamental na construção negativa do feiticeiro.
Conforme Bethencourt o homo magus possuía técnicas e poderes, dentre eles,
[...] a comunicação com os espíritos (almas, demônios anjos e
santos), obtida por revelação [...] conjuros, transes, fervedouros. [...] As
capacidades taumatúrgicas raras vezes se assumiam abertamente,
permanecendo envolvidas pela manipulação formal de algumas técnicas
tradicionais de cura: benção, unções, rezas, mezinhas, emplastros, ungüentos
e lavatórios (BETHENCOURT, 2004, p. 164).
No novo mundo esse imaginário ajudou a conceituar as características das
pessoas com crenças que divergiam da religião oficial, Católica Apóstólica Romana, e
que por causa dessa diferença religiosa deveriam ser punidas. Essas manifestações
religiosas poderiam ter diferentes nomenclaturas a depender do tempo e do espaço.
Feitiçaria, cura, magia, batuque são descritas nos documentos, algumas vezes
indistintamente, demostrando que ambas as palavras eram utilizadas para caracterizar o
uso de diferentes práticas erradas, marginalizadas e perigosas.
As práticas mágicas, no período colonial, eram inúmeras e estavam presentes no
cotidiano social. Entre as mais conhecidas estão o curandeirismo e a magia simpática.
A magia simpática é uma junção de superstições populares com credos religiosos
católicos, ela tenta solucionar questões costumeiras de saúde, casamento, dinheiro e
conflitos amorosos.
Para alguns historiadores o uso de alguns ritos da Igreja no paganismo, foi uma
maneira de interferência do Diabo na vida humana, invertendo os ritos da Igreja, como
os Sabás (missas às avessas). Isto é, as bruxas quando praticam seus rituais não
“construíam” algo novo, mas sim, faziam as mesmas práticas cristãs de uma maneira
diabólica.
A grande parte dos curandeiros eram homens indígenas, africanos e mestiços. O
curandeirismo colonial associava o conhecimento de ervas e procedimentos rituais de
matriz africana e indígena à medicina popular praticada na Europa. Além de realizar
cura de doenças também tinham uma característica de desfazer feitiços. Sendo ele
mesmo um feiticeiro, também poderia provocar malefícios. Segundo Pieroni (2006, p.
169) “quase sempre, o curandeiro era um homem que se dizia capaz de curar as chagas
do corpo e da alma, acumulando múltiplas funções como as de médico, de padre e de
sábio”. As pessoas que eram curandeiras tinham um grande prestígio entre a população
colonial, pois devido à falta de médicos, estas representavam esse papel de administrar a
cura. Algumas vezes quando o curandeiro não conseguia sanar uma doença, o doente
recorria aos padres exorcistas (esses casos eram raros, por causa do grau de
conhecimento que deveriam possuir para exercer esta função). A Inquisição acreditava
que os poderes de cura destes homens vinham do Diabo, sendo constantes as acusações
contra eles.
As benzeduras, alcovitarias (magia que tem por objetivo solucionar problemas
amorosos) e as adivinhações também estavam incluídas nas de práticas mágicas
coloniais. Estas eram as práticas mais frequentes neste período e ainda são devido ao
fato desse tipo de magia simpática continuar presente no Brasil atual.
Faziam parte do cotidiano colonial, feitiços realizados com o objetivo de
provocar danos e até mortes de inimigos. Nesse contexto colonial, existia uma grande
tensão entre senhores e escravos que se destacava. Por causa da exploração e violência a
qual o escravo estava submetido, a magia maléfica transformou-se em um mecanismo
necessário para a autodefesa do escravo. Ao mesmo tempo em que esta magia servia
como uma defesa do escravo contra o senhor, também assegurava a violência deste
sobre o cativo. Os escravos acusados de feitiçaria sofriam de grande violência física,
para que seus malefícios fossem desfeitos.
As práticas mágico-religiosas eram uma das questões que tiravam o sossego dos
senhores e das autoridades, pois tinham como objetivo envenenar, curar ou enfeitiçar
pessoas. As práticas das curas e adivinhações eram exercidas por diferentes grupos
sociais e classes, de várias etnias e procedências culturais nos oitocentos. Apesar da
diversidade de grupos sociais, entre os curandeiros, benzedores, adivinhos e feiticeiros,
existiam um grupo que se destaca que são os africanos e os crioulos. Esses sofriam
perseguições da polícia e de seus próprios clientes, pois souberam apropriar dos
conhecimentos mágico-religiosos, atrelados as tradições terapêuticas, com o objetivo de
atender as necessidades e desejos das pessoas que lhe procuravam no intuito de serem
favorecidas pelos seus poderes. Estes conseguiram alcançar fama, influência e capital
que o ajudaram no convívio social, em alguns casos por causa dos benefícios adquiridos
e em outros por causa do medo de seus poderes.
No Império a feitiçaria não era um crime. Não existia nenhum dispositivo na
Constituição de 1824 e no Código Criminal de 1830 que apontasse a feitiçaria2 como
crime. Entretanto existiam outras maneiras de torná-la crime e uma das principais era
atribuir ao fato a transgressão da moral e dos bons costumes além da associação com
outros crimes, como roubo e revoltas.
A crença da elite brasileira na mesma estava no limite do
aceitável como norma de comportamento e atingiu a Justiça através das
várias etapas de um processo criminal. Este não poderia ser instaurado
porque, segundo nossas pesquisas, a prática da feitiçaria e nem mesmo a
acusação de feitiçaria faziam parte do Código Criminal do Império.
Lembremos que a acusação de feitiçaria é uma acusação de natureza moral, e
que, no bojo de um processo criminal, entra na esfera jurídica pelo
entendimento do que era um comportamento negativo ou positivo por parte
do Estado imperial brasileiro. Para tanto, a elite senhorial devia acreditar na
existência da feitiçaria, ao menos em sua eficácia. (COUCEIRO, 2004, p. 23-
24).
O feiticeiro é regido por parâmetros religiosos que o mostram de forma
negativo, acarretando em uma imagem social de um indivíduo perigoso e causador de
males. Devido a sua imagem negativa, existe um combate social para expulsão ou
afastamento, da pessoa identificada como feiticeira, do convívio da sociedade. Esse
distanciamento, algumas vezes, ocorre pelo acionamento de dispositivos legais, mesmo
quando a constituição garantia o direito a todas as outras religiões, não católicas, de
praticarem seu culto doméstico em casas que não parecessem com características de
templos.
O Código Criminal vigente no Império do Brasil em 1830 não classificava como
crime a prática de feitiçaria, como mencionado anteriormente, entretanto as Ordenações
Filipinas, agrupamento de leis das colônias portuguesas, e o Código Penal da República,
de 1890, previa a aplicação de punições para os indivíduas que fizesse uso dessa prática.
2 Não apenas a feitiçaria, mas a magia, bruxaria e outras nomenclaturas relacionadas às religiões de matriz africana não eram classificada enquanto crime.
No Título 3 do Livro 5 daquelas Ordenações, intitulado “Dos Feiticeiros”, é possível ler
vários atitudes que são consideradas como sendo ‘’feitiçaria’’, porém não fica claro a
definição desta palavra. A pessoa que fosse acusada de feitiçaria deveria pagar três mil
réis ao acusador, levar açoites no braço, na vila em que morasse, além disso, o indivíduo
era degredado para o Brasil. A feitiçaria também aparece em outras situações como
acusação nas Ordenações. No Título 88 do Livro 4, “Das causas porque o pai ou mãe
podem deserdar seus filhos”, o Item 7 diz respeito a deserção no caso de alguém “usar
de feitiçaria ou conversar com feiticeiros”. Existe também uma nota com um nome
chamado de “Feiticeiros” que não consegue definir a feitiçaria e também o feiticeiro (a).
Com relação ao Código Penal republicano, existe a regulamentação da crença,
mas não deixa aparente a feitiçaria, em três artigos. O artigo 156 reprovava: “Exercer a
medicina em qualquer de seus ramos e a arte dentária ou farmácia; praticar a
homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou o magnetismo animal, sem estar habilitado
segundo as leis e regulamentos”. Já o artigo 157 desaprovava “Praticar o espiritismo, a
magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancia para despertar sentimentos de ódio
e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis, enfim, para fascinar a
credulidade pública”, e o artigo 158 reprovava “Ministrar, ou simplesmente prescrever,
como meio curativo para uso interno ou externo e sob qualquer forma preparada,
substância de qualquer dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo, assim, o ofício
denominado de curandeiro”. (MAGGIE, 1992, p. 22-3)
O termo ‘’feitiçaria’’ não aparece no Código Criminal do Império3. Nos arquivos
brasileiros os crimes cometidos no Império são regulamentados por esse Código, e
nesse não há acusações referentes à prática e crença de feitiçaria como justificativa legal
para a abertura de um processo criminal. No entanto, essas acusações podem ser
encontradas dissolvidas em outras fontes, como: um processo criminal de homicídio,
outro de estelionato, notícias de jornais. Além do mais, a feitiçaria pode ser vista em
3 Foi utilizada a edição: Código Criminal do Império do Brazil annotado com os atos dos poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário, que têm sofrido mudança desde que foi publicado, e com o cálculo
das penas em todas as suas aplicações por Araújo Figueiras Júnior (Bacharel em Direito), 2ª Edição,
cuidadosamente revista e aumentada com os atos dos Poderes supra-referidos, expedidos depois da 1ª
Edição, [1876], Rio de Janeiro, Eduardo e Henrique Laemmert.
narrativas românticas, com personagens principais chamados de feiticeiros4. As pessoas
sofriam punições por diferentes delitos previstos no Código Criminal, como homicídio,
estelionato, e entre outro, mas pela prática ou crença na feitiçaria não.
No século XIX, o uso das práticas de curandeiros parece ter sido comum. De
acordo com Oswaldo Cabral, quando tratado dos oitocentos em Santa Catarina, aponta
que “entre a gente fina, de altos coturnos, não era menor o temor ao sobrenatural” do
que entre as pessoas pertencentes às camadas menos favorecidas (CABRAL, 1942, p. 264-
65).
O século XIX foi marcado por várias circunstâncias, entre essas uma guerra
estabelecida entre médicos contra aqueles que exerciam práticas de cura. Eles
organizaram-se institucionalmente na defesa do monopólio da saúde e também das
práticas de curar, com a confecção de diplomas, que assegurava ao indivíduo portador
do mesmo a permissão para tratar das doenças. De acordo com Paula Montero, durante
todo o século XIX, o domínio da profissão médica não foi capaz de suficientemente
afastar outras maneiras de praticar a cura e de definições de doenças e devido a isso a
instituição médica não conseguiu se colocar na sociedade de forma absoluta.
A autora Gabriela Sampaio constatou que no período do Império uma grande
parte da população da Corte observava com certa apatia os conflitos internos entre os
médicos sobre as práticas médicas e afirmou como esse fato prejudicou a construção de
um grupo de influência política forte o suficiente para introduzir novas leis no Código
Criminal, que versassem a respeito de outras práticas de cura que não as denominada
como medicina. Com frequência, médicos faziam agressões uns aos outros através de
acusações de imperícia e, em alguns momentos chegando até mesmo, a afirmar
ineficácia dos tratamentos recomendados – queixas semelhantes àquelas realizadas pelos
médicos aos curandeiros – e acusavam-se, até mesmo publicamente, de
“charlatanismo”. A medicina não tinha um prestígio junto à população e também não
conseguia se firmar, o que reforçava ainda mais o “reconhecimento” das atividades mais
antigas de cura pela sociedade.
4 Em alguns romances foi analisada, percebe-se a presença de feiticeiros, por exemplo, por Gabriela dos
Reis Sampaio, “Majestades do oculto: imagens de líderes religiosos negros na literatura dos oitocentos no
Brasil.”
Segundo Maria Lúcia Schritzmeyer, embora tenha surgido na década de 1870 um
debate organizado entre médicos e jurisconsultos a respeito das maneiras de legalização
das práticas curativas, esse debate, ao longo de todo o Império, não conseguiu resultar
na inserção da feitiçaria como prática curativa no Código Criminal não aprovada pelo
Estado. Uma grande parte dos jurisconsultos, entretanto, preocupava-se com as relações
entre a criminalidade e as práticas curativas que não tivessem sob o controle do Estado.
Apesar de Sampaio e Schritzmeyer sustentar a ideia de que a instituição médica
no Brasil demorou a se constituir de maneira hegemônica por uma “falha” no combate
aos falsos médicos e curandeiros, Yvonne Maggie, estudando o período republicano,
descobriu outra estrutura do mesmo processo. A autora encontrou que a repressão aos
falsos médicos, curandeiros e mágicos obedecia a uma estrutura que em vez de extinguir
a crença na magia serviu para organiza-la, hierarquizá-la e, dessa maneira discipliná-la.
Há um caso interessante que ocorre em Tijucas, Litoral Norte de Santa Catarina,
no início da República, que mostra esse contexto de feitiçaria e práticas de cura como
um processo conflituoso entre o indivíduo que fazia uso dessas práticas e a sociedade
que o cercava. Esse era um ex-escravizado africano que tentou sobreviver dentro desse
meio social. Ele é indiciado e preso, provisoriamente para as investigações, pelo furto
de duas aves. Este tem por nome José Cabinda. Ele foi acusado pelo roubo das aves,
mas, no entanto o processo criminal é conduzido pelas testemunhas no intuito de acusa-
lo de práticas que o conduziam a fazer o mal para as pessoas que estão a sua volta.
Em 20 de outubro de 1890, o africano Cabinda foi preso em sua casa, que se
localizava em Zimbros, da comarca de Tijucas. A autoridade que efetuou a prisão foi o
inspetor do décimo quarteirão, Marcos João de Deus, que naquele momento contou com
a ajuda dos guardas Martinho Lourenço de Souza e João Batista Sobrinho. O processo
criminal foi iniciado com a Autuação do réu, para investigações, e em segue caminha
por várias etapas para o esclarecimento dos fatos que estão descritas no código do
processo criminal como peças processuais. Entre essas podemos citar: auto de prisão5,
5 Nessa peça processual o promotor público do Município da Comarca de São Sebastião de Tijucas –
Estado de Santa Catarina informa o mandado de prisão contra o acusado.
auto de qualificação6, inquérito policial7, interrogatório8, exame de corpo e delito9,
argumentos da promotoria e depoimento das testemunhas. As autoridades envolvidas
no processo são: Escrivães10, Subdelegado de Polícia11, Promotor Público12, Guarda
Policial 13e o Oficial de Justiça14.
Cabinda foi preso preventivamente para investigações e junto dele foi aprendida
uma caixa de madeira, chamada caixa de mandingagem pelos seus acusadores. Nela
foram realizados pelos peritos nomeados, os cidadãos Zeferino Antônio Rodrigues de
Carvalho e José Romualdo de Caldas, o Exame de Corpo e Delito. Dentro da caixa
foram encontrados objetos que contribuíam para a imagem negativa de Cabinda de ser
curandeiro. Entre os objetos encontrados estavam: um caramujo hermeticamente
fechado contendo dentro do mesmo alguns fragmentos de cascas de vegetais, um
pedaço de lixa de cação, um pedaço de uma vela de sebo e um cálice quebrado e grande
quantidade de raízes de vegetais, que era desconhecida a ação delas pelos peritos. Esses
instrumentos encontrados dentro da caixa reforçavam o argumento das testemunhas de
acusação. Elas diziam que esses utensílios eram usados por Cabinda nas práticas de cura
6 O Auto de Qualificação é uma peça necessária que antecede o Interrogatório, é a junção de várias
perguntas que são realizadas pela autoridade policial, com fundamento legal, que contribuem para dar
respaldo ao inquiridor a respeito dos dados pessoais e a personalidade do indivíduo a ser interrogado. 7 Inquérito policial: Procedimento que é formado por diversas diligencia apresentadas na lei que tem
como objetivo a obtenção de indícios de autoria e materialidade delitiva. 8 Interrogatório: É o ato pelo qual o juiz questiona o acusado a respeito do fato de objeto do processo e
também a respeito dos dados de sua qualificação pessoal. 9 Exame de Corpo e Delito: É o conjunto de características materiais ou vestígios que indicam a
existência de um crime. 10 Responsável por catalogar as informações do processo. Este organiza a fala de cada elemento
constituinte no processo criminal e também registra as resoluções de cada autoridade criminal. 11 Autoridade que representava um poder local. Foi o elemento jurídico responsável pela prisão
preventiva de José Cabinda para maiores investigações. 12 De acordo com o Código do processo criminal de 1832: ‘’Art. 36. Podem ser Promotores os que podem
ser Jurados; entre estes serão preferidos os que forem instruidos nas Leis, e serão nomeados pelo Governo
na Côrte, e pelo Presidente nas Provincias, por tempo de tres annos, sobre proposta triplice das Camaras
Municipaes.Art. 37. Ao Promotor pertencem as attribuições seguintes: 1º Denunciar os crimes publicos,
e policiaes, e accusar os delinquentes perante os Jurados, assim como os crimes de reduzir á escravidão pessoas livres, carcere privado, homicidio, ou a tentativa delle, ou ferimentos com as qualificações
dos artigos 202, 203, 204 do Codigo Criminal; e roubos, calumnias, e injurias contra o Imperador, e
membros da Familia Imperial, contra a Regencia, e cada um de seus membros, contra a Assembléa Geral,
e contra cada uma das Camaras. 2º Solicitar a prisão, e punição dos criminosos, e promover a execução
das sentenças, e mandados judiciaes. 3º Dar parte ás autoridades competentes das negligencias, omissões,
e prevaricações dos empregados na administração da Justiça. ‘’ 13 Profissional responsável pela captura de José Cabinda e também pela condução do mesmo para as
investigações. 14 De acordo como o Código do Processo Criminal no ‘’ Art. 21. Aos Officiaes de Justiça compete: 1º
Fazer pessoalmente citações, prisões, e mais diligencias. 2º Executar todas as ordens do seu Juiz.
e também nos trabalhos realizados pelo mesmo para se desfazer de algum desafeto.
As testemunhas apontam que Cabinda era um curandeiro. Elas afirmavam que o
mesmo se utilizava de práticas mágicas para ganhar dinheiro e se sustentar. Algumas
pessoas afirmavam que ele vivia como um Paxá, 15que não ganhava a vida do suor de
seu trabalho físico. Para as testemunhas a vida de Cabinda não requeria tanto esforço.
Em alguns depoimento é percebido um sentimento de inveja da vida do ex-escravizado,
pois como um africano livre conseguia ter uma qualidade de vida melhor do que os que
nunca conheceram a escravidão.
Nenhuma das testemunhas que se apresentaram no processo criminal defendeu
Cabinda. Essa atitude pode ser explicada pelo fato do ciclo de amizade do ex-
escravizado ser fechado. Nos primeiros anos da República, era difícil para um ex-cativo
se integrar dentro da sociedade brasileira, pois existiam mecanismos que privavam seu
ingresso. Entre os obstáculos enfrentados estão o fato da repressão social as práticas
religiosas africanas exercidas por Cabinda. Por ser africano carregava consigo cultura e
religiosidade que dentro da sociedade brasileira era enxergada de maneira
marginalizada. A religião africana era e ainda é colocada como diabólica16.
As testemunhas de acusação em grande maioria exerciam atividades relacionadas
com o cultivo da terra. Eram pessoas que cuidavam e tiravam da terra seu sustento.
Existia dentre os lavradores um que se diferenciava ocupando a função de negociante.
Esse se chamava Francisco José dos Santos.
Cabinda no início do processo criminal, Inquérito policial, se coloca como
fazedor de esteiras, passado algum tempo, ocorre uma mudança na sua resposta quando
interrogado a respeito da sua ocupação. No segundo momento, no Interrogatório,
quando questionado sobre sua ocupação, Cabinda afirmou que era um lavrador. Essa
mudança na resposta demonstra como era difícil à vida de um ex-escravizado nos
primeiros anos da República. Este deveria exercer várias funções para tentar sobreviver
e provar para a sociedade que poderia desempenhar uma ocupação. Ele quando
demonstra a necessidade de exercer várias funções, aponta para uma hipótese de que
estava tentando se integrar na sociedade de uma maneira que não infringisse as normas
15 Indivíduo que tem uma vida faustosa. Sujeito que demonstra pompa, poderoso e rico. 16 Que faz oposição ao cristianismo. As suas práticas religiosas se colocam como antagonistas a doutrina
cristã.
do Código do Processo Criminal. Ele com essa atitude provavelmente não queria ser
apontado como vagabundo assim como regia o Art. 300 do Código do Processo
Criminal:
[...]São considerados vagabundos os individuos que, não tendo
domicilio certo, não têm habitualmente profissão ou officio, nem renda, nem
meio conhecido de subsistencia. Serão considerados sem domicilio certo os
que não mostrarem ter fixado em alguma parte do Imperio a sua habitação
ordinaria e permanente, ou não estiverem assalariados ou aggregados a
alguma pessoa ou família[...].
As testemunhas, no Inquérito Policial, acusaram Cabinda de práticas que traziam
males para a sociedade que estava a sua volta. Os seus depoimentos eram embasados
em discursos que anunciavam a presença de cada testemunha no momento da ocorrência
dos fatos, mas em outros momentos os depoimentos eram sustentados por discursos de
falas de terceiros, o ouvir dizer. Em outro momento do processo, no Interrogatório,
pode-se perceber que as testemunhas não estavam mais seguras dos seus relatos. Esse
fato de abrandamento das acusações pode ter ocorrido devido ao distanciamento do fato
ocorrido do roubo das aves até o Interrogatório.
Cabinda falou que não sabia com certeza quantos anos possuía, mas que fazendo
alguns cálculos tinha aproximadamente oitenta anos no início do processo. Entretanto
quando o processo criminal avança passando por diferentes peças processuais, ocorre
uma mudança na afirmação do acusado. Ele quando é indagado pelo juiz a respeito de
sua idade no Auto de Qualificação, fala com mais firmeza sua idade e diz que tem cem
anos de idade. Além disso, ele se coloca como um preto velho que não poderia causar
mal para ninguém.
Cabinda quando questionado no Interrogatório se possuía uma residência, falou
que sim, e que no momento do roubo das aves passou o dia todo fora de casa e só a
noite retornou para sua residência. Quando chegou a sua casa, foi abordado por sua
esposa que pediu para este recolher a ave do casal que estava no quintal da sua casa com
seus filhotes. Cabinda fala que se dirigiu ao quintal para recolher as aves e não percebeu
que existia um quantitativo maior de aves, devido ao fato de sua ave ter gerado
recentemente filhotes. Só quando amanheceu é que Cabinda falou que percebeu que
entre as suas aves estava as do vizinho, o senhor Fermiano Mathias. Ele afirma que na
circunstância do furto das aves não tinha conhecimento do que estava fazendo e que
acreditava que o ocorrido aconteceu devido ao fato de que sua ave, um peru, tinha
gerado filhotes e que as aves de Fermiano haviam acompanhado esses filhotes o dia
todo, por isso estas estavam na sua casa. Ele no decorrer do processo percebe que
precisava se defender para não ser condenado pelo crime que foi acusado. Este começa
a informar as autoridades elementos que demonstravam seu vinculo com o meio que
estava inserido. Ainda no Interrogatório, Cabinda é questionado por qual motivo ele
achava que Fermiano Mathias tinha o acusado de roubo. O ex-escravizado se defende
dizendo que Fermiano tem um desafeto com ele e que este havia pedido para que as
testemunha jurassem em seus depoimentos contra Cabinda. Ele ainda alegava que nada
tinha feito do que foi acusado, portando inocente de todas as acusações, sejam essas
diretas, dentro do código criminal, ou indiretas, aquelas que não possuem registro de
infração no código criminal do Império.
No dia 15 de dezembro de 1890 Cabinda foi absorvido pelo promotor público
Henrique Carlos Boiteux após dois meses em que esteve preso. O promotor julgou
improcedente a denúncia feita contra o réu José Cabinda alegando que não existiam
exames cadavéricos que comprovasse o crime. Além disso, Boiteux falou que o
depoimento das testemunhas não são claros e constantes, e que não existe nenhuma
prova da culpabilidade do acusado no crime. Dessa maneira, Cabinda é inocentado no
processo criminal. Este processo judicial na qual teve como participante José Cabinda
ajuda a fornecer alguns elementos de como era o contexto do pós-abolição. Além disso,
nesse processo podem-se perceber algumas maneiras e estratégias de sobrevivência de
um indivíduo escravizado durante a vigência do Código Criminal de 1830 e o Código
do processo criminal de 1832. Esse indivíduo se apresenta dentro do processo criminal
como um sujeito histórico ativo que foi construindo sua identidade ao longo do
processo. Identidade essa confusa devido ao fato de que estava dentro de uma sociedade
que não criou mecanismos para a sua inserção na mesma após o período da abolição.
FONTES
Processo manuscrito no qual é réu José Cabinda. Esse processo já foi transcrito pelo professor Dr. José
Bento (arquivo do Fórum de Tijucas) .
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