ACHCAR, Francisco. Carlos Drummond de Andrade (Folha Explica) (PDF)(Rev)

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  • CCAARRLLOOSS DDRRUUMMMMOONNDD

    DDEE AANNDDRRAADDEE

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  • CONSELHO EDITORIAL

    Alcino Leite Neto

    Ana Luisa Astiz

    Antonio Manuel Teixeira Mendes

    Arthur Nestrovski

    Carlos Heitor Cony

    Gilson Schwartz

    Marcelo Coelho

    Marcelo Leite

    Otavio Frias Filho

    Paula Cesarino Costa

  • FFOOLLHHAA EEXXPPLLIICCAA

    CCAARRLLOOSS

    DDRRUUMMMMOONNDD

    DDEE AANNDDRRAADDEE

    FRANCISCO ACHCAR

  • 2000 Publifolha: Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A

    2000 Francisco Achcar

    Editor Arthur

    Nestrovski

    Capa e projeto grfico

    Silvia Ribeiro

    Assistente de projeto grfico

    Marilisa von Schmaedel

    Reviso

    Mrio Vilela

    Editorao eletrnica

    Picture

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Achcar, Francisco

    Carlos Drummond de Andrade / Francisco Achcar So Paulo; Publifolha, 2000 (Folha explica)

    Bibliografia.

    ISBN 85-7402-213-6

    1. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. Crtica e interpretao

    2. Poesia brasileira Histria e crtica I. Titulo. II, Serie.

    00-2126 CDD-869.9109

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Poesia: Literatura brasileira: Histria e critica 869.9109

    2. Poetas brasileiros: Apreciao crtica 869.9109

    1 reimpresso

    PUBLIFOLHA

    Diviso de Publicaes do Grupo Folha

    Av. Dr. Vieira de Carvalho, 40, 11 andar, CEP 01210-010, So Paulo, SP Tels: (11)

    3351-6341/6342/6343/6344 Site: www.publifolha.com.br Os leitores interessados em fazer sugestes podem escrever poro Publifolha no

    endereo acima, enviar um fax para (11) 3351-6330 ou um e-mail para

    [email protected]

  • SSUUMMRRIIOO INTRODUO ................................................................... 7

    1. ALGUMA POESIA (1930) .............................................. 15

    2. BREJO DAS ALMAS (1934),

    SENTIMENTO DO MUNDO (1 940),

    JOS (1942) ................................................................. 31

    3. A ROSA DO POVO (1945) .............................................. 47

    4. NOVOS POEMAS (1948),

    CLARO ENIGMA (1951) ............................................ 69

    5. FAZENDEIRO DO AR (1954),

    A V/DA PASSADA A UMPO (1959) .................................. 91

    6. LIO DE COISAS (1962) ............................................. 99

    7. DE BOITEMPO (1968)

    A O AMOR NATURAL (1992) ................................... 109

    8. DEPOIS DE DRUMMOND .............................................. 115

    BIBLIOGRAFIA MNIMA .................................................. 119

  • Pg. 07

    IINNTTRROODDUUOO

  • Pg. 08

    e 1930, ano de sua estria em volume, at 1962,

    quando completou 60 anos, Carlos Drummond

    de Andrade (1902-87) publicou dez livros de

    poesia que contm um dos conjuntos de textos

    mais prestigiados e importantes de toda a nossa

    tradio literria. Esses poemas fizeram que a

    opinio predominante no Brasil consagrasse seu

    autor como o maior poeta do pas e um dos grandes do mundo em sua

    poca. Mesmo os que preferem atribuir a primazia brasileira a Joo Cabral

    de Melo Neto consideram que caberia a Drummond, no fosse o isolamento

    imposto pela lngua portuguesa, uma posio de destaque no panorama

    internacional.

    Sua obra, elaborada ao longo de mais de seis dcadas, compreende

    poesia e prosa. Apesar das qualidades e da quantidade da prosa (17 livros

    de crnicas e contos, fora o que ficou nos jornais), o ncleo de sua

    produo a poesia mais de 20 livros cuja poro capital o conjunto

    de poemas acima

    Pg. 09

    referido, ou seja, os melhores poemas das dez primeiras coletneas.

    E matria de discusso quais sejam, exatamente, os melhores poemas

    (ou mesmo apenas os bons poemas) daquela extraordinria srie de livros.

    Drummond irregular e h divergncias quanto ao que seriam seus altos e

    baixos.1 Por exemplo: boa parte dos crticos incluiria em sua antologia

    drummondiana dois poemas narrativos, "O Padre, a Moa" e "Os Dois

    1 H, naturalmente, os que s veem altos na "Obra" (com a maiscula ao gosto de um desses fervorosos

    drummondianos, e bom estudioso de Drummond, Antnio Houaiss).

  • Vigrios", que Haroldo de Campos descarta como "poemas padrescos".2

    A

    "mineiridade" (o que quer que seja), valorizada por muitos, para alguns

    parte da quota de "prendas" provincianas de que o poeta no se teria

    livrado. Os sonetos dos anos 50 so vistos por uns (Jos Guilherme

    Merquior, por exemplo) como uma das culminncias da obra do poeta;

    outros (Haroldo de Campos, notadamente) os tomam como retrocesso

    "neoclssico" e melanclico tributo ao gosto "restaurador" em voga na

    poca. H quem inclua entre os melhores poemas de Drummond numerosas

    composies das mais de dez coletneas de versos que ele publicou depois

    de 1962; outros, embora admitindo aqui e ali alguns momentos notveis,

    consideram esses livros secundrios, bem abaixo do nvel da produo

    anterior. Apesar das divergncias, porm, h um nmero significativo de

    poemas (todos dos dez livros iniciais) que constaria de todas as antologias,

    qualquer que fosse a tendncia do compilador.

    Aqui, propomos um passeio pela poesia de Drummond, privilegiando

    alguns livros capitais entre

    Pg. 10

    aqueles dez. O percurso dever ser necessariamente rpido, mas no

    deixaremos de nos deter em alguns poemas. Tratando-se de textos

    geralmente sobrecarregados de significao, explic-los ser, conforme o

    significado original do verbo, "desdobr-los" desfazer algumas das

    "dobras" onde se alojam seus sentidos.

    MMOODDEERRNNIISSMMOO

    Quando Drummond comeou a publicar poemas, na dcada de 20, o

    2 Haroldo de Campos, "Drummond, mestre de coisas"; em: Metalinguagem & Outras Metas (So Paulo:

    Perspectiva, 1992, p. 49-55). Desse ensaio procedem rodas as citaes de Haroldo de Campos que

    faremos adiante.

  • Brasil estava passando ainda pela fase inicial do abalo modernista, apesar

    de datarem dos anos de 1890 as tentativas dos simbolistas de atualizar a

    sensibilidade nacional. Gestos de renovao artstica e literria j eram

    perceptveis no fim dos anos 10 (despontavam Anita Malfatti, Villa-Lobos,

    Manuel Bandeira, Mrio de Andrade), mas eram gestos isolados, que s

    ganhariam momentum na Semana de Arte Moderna, realizada em So

    Paulo, em 1922. A partir da, o movimento se alastrou por grande parte do

    pas, como testemunham as revistas que se publicaram e os grupos que se

    formaram um pouco por toda a parte. A esses "anos hericos", de

    implantao polmica de novas atitudes culturais, sucedeu um perodo de

    consolidao e diversificao, em meio a agitado contexto social.

    A crise econmica, que se estendeu por toda a dcada, a partir de 1929

    afetou duramente o caf, e com ele a oligarquia dominante, logo golpeada

    pela Revoluo de 1930. A imposio ditatorial que inaugurou o Estado

    Novo em 1937, os anos de represso, a guerra iniciada em 1939, as

    esperanas conseqentes no fim da guerra e da ditadura Vargas em 1945

    espe-

    Pg. 11

    ranas que logo cederiam lugar ansiedade dos anos da Guerra Fria e da

    ameaa nuclear , estes so alguns dos acontecimentos que balizaram uma

    poca em que a literatura brasileira conheceu desenvolvimento e

    aprofundamento extraordinrios.

    O ano de 1930 foi memorvel tambm para a poesia (embora a

    "revoluo", no mbito da literatura, tivesse eclodido oito anos antes).

    Nesse ano, alm da estria de Drummond, houve outras novidades: Mrio

    de Andrade publicou Remate de Males, incio de um perodo em que sua

    escrita se afasta de exterioridades e trejeitos do perodo anterior, e ganha

    em concentrao e intensidade; Manuel Bandeira lanou Libertinagem, seu

  • quarto livro, mas o primeiro de fato moderno, com alguns dos melhores

    poemas de toda a sua obra; Murilo Mendes e Vincius de Moraes tambm

    estrearam em livro. Com Murilo e Jorge de Lima, iniciar-se-ia depois o

    influxo surrealista na poesia brasileira. Mas o modernismo, ao mesmo

    tempo que se afirmava diante da literatura acadmica combalida, conhecia

    tambm tendncias mais convencionais, de tons neo-romnticos ou ps-

    simbolistas (primeira fase de Vincius de Moraes, Augusto Frederico

    Schmidt, Ceclia Meireles).

    Nessa segunda etapa do movimento modernista que vai, grosso

    modo, de 1930 a 1945 , desenvolvem-se na poesia algumas das

    caractersticas mais marcantes de seu primeiro tempo (inovaes rtmicas,

    humor, pardia, temas cotidianos, linguagem coloquial, elipses e

    associaes surpreendentes), ao mesmo tempo que se amplia a temtica e

    se diversificam os recursos e as tendncias estilsticas. Esboa-se ento o

    perfil contemporneo da literatura brasileira, que, como a literatura

    internacional, testemunha a emergncia de trs sistemas explicativos do

    homem e da sociedade: o

    Pg. 12

    existencialismo, a psicanlise e o marxismo. Independentemente de adeso

    por parte dos escritores, esses sistemas fornecem diversas das grandes

    imagens que integram o horizonte mtico da poca. Contra tal fundo

    imaginrio, novo em muitos de seus aspectos, desenha-se a figura de uma

    conscincia fenomenolgica, ou autoconscincia artstica que, no caso da

    poesia, far da linguagem e do trabalho do poeta temas privilegiados da

    obra potica.

    Esquematicamente, o segundo momento modernista se distingue,

    sobretudo, por:

    generalizao e aprofundamento da mistura de estilos (estilo misto

  • ou mesclado), em que se combinam o elevado e o banal, o grave e o

    grotesco: temas srios e problemticos so tratados com linguagem vulgar e

    o tom sublime aplicado a assuntos "baixos" ou banais;

    renovao da temtica existencial, ou seja, busca de novos registros

    para temas como o tempo, o amor e a morte (lembre-se que, em seus

    incios, o modernismo brasileiro tem preferncia por assuntos nacionais,

    cotidianos e atuais, e no pelos "grandes temas1', associados poesia do

    passado);

    elaborao de imagens surpreendentes ou onricas, em associaes

    inesperadas, revelando influncia do surrealismo e da ento recente voga

    da teoria freudiana (importante na obra de Murilo Mendes e Jorge de Lima,

    a influncia surrealista, embora restrita, notvel em momentos isolados da

    poesia de Drummond);

    envolvimento do escritor nas questes sociais, em textos marcados

    por revolta e esperana socialista, (durante a guerra e sob a ditadura

    Vargas, a temtica social conheceu, compreensivelmente, seu momento de

    mais alta incidncia);

    Pg. 13

    reflexo da poesia sobre a prpria poesia, ou seja, autoconscincia

    do poeta em relao a seu trabalho com as palavras. Curioso notar que, se a

    temtica metalingustica interessou intensamente ao experimentalismo

    potico (que Drummond praticou no s nos anos "hericos" do

    modernismo, mas tambm, ocasionalmente, na poca de ebulio do

    vanguardismo a poesia concreta dos anos 50-60), os temas da

    linguagem e da prpria poesia no deixam de estar presentes no

    neoclassicismo do Drummond dos anos 50, com incidncias ocasionais em

    todo o seu desenvolvimento posterior.

    Ao longo de todo o arco de tempo que vai de Alguma Poesia a Lio

  • de Coisas (1930 a 1962), esse quadro de caracteres foi-se constituindo,

    desenvolvendo, alargando e aprofundando, de livro em livro. Com A Rosa

    do Povo (1945), a poesia drummondiana atingiu um dos pontos

    culminantes da esttica modernista no Brasil. A partir de ento, numa srie

    de obras que inclui Claro Enigma (1951), Drummond realizou uma das

    mais bem-sucedidas tentativas de associar o modernismo a formas poticas

    e lingsticas da tradio (metros regulares, soneto, fraseado de gosto

    clssico). Em seu ltimo perodo, o dado novo que se acrescentou ao

    repertrio drummondiano foi a poesia ertica, surpreendentemente franca

    em seu espantoso amoralismo.

    TTEEMMTTIICCAA

    No annus mirabilis de 1962, em que completou 60 anos de idade e

    publicou Lio de Coisas, Drummond lanou tambm a Antologia Potica,

    na qual distribuiu os

    Pg. 14

    poemas em nove sees, designadas segundo o "ponto de partida" ou a

    "matria de poesia" predominante em cada uma delas. Os nove ncleos

    temticos discernidos pelo poeta so (entre aspas os ttulos das sees, que

    valem por smulas do sentido de cada tema): 1. o indivduo: "um eu todo

    retorcido"; 2. a terra natal: "uma provncia: esta"; 3. a famlia: "a famlia

    que me dei"; 4. amigos: "cantar de amigos"; 5. o choque sosial: "na praa

    de convites"; 6. o conhecimento amoroso: "amar-amaro"; 7. a prpria

    poesia: "poesia contemplada"; 8. exerccios ldicos: "uma, duas

    argolinhas"; 9. uma viso, ou tentativa de, da existncia: "tentativa de

    explorao e de interpretao do estar-no-mundo".

    Diversos poemas (observa o poeta) podem caber em mais de uma

  • dessas sees; por outro lado (acrescento), sero poucos os poemas, no

    conjunto da obra, que no se encaixem em nenhuma dessas rubricas.

  • Pg. 15

    11..

    AALLGGUUMMAA PPOOEESSIIAA ((11993300))

  • Pg. 16

    m 1928, nas pginas da mais arrojada publicao

    modernista, a Revista de Antropofagia, sairia

    estampado um texto de Drummond, "No Meio do

    Caminho":

    No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas to fatigadas, Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

    O jovem autor mineiro era pouco mais que um annimo: tinha

    integrado, em 1925, o grupo de A Re-

    Pg. 17

    rista (trs nmeros), rgo do modernismo mineiro. Porem o texto, que

    seria republicado dois anos depois em seu livro de estria, causou

    escndalo: a literatura contava ento com mais espao social, a ponto de

    um atrevimento literrio ainda poder chocar crculos mais largos que os da

    "repblica das letras". Drummond passou a ser admirado ou ridicularizado

  • e at mesmo agredido por causa de seu poema repetitivo, ficando a

    imagem da pedra para sempre associada a sua poesia.

    "No Meio do Caminho" um ttulo carregado de aluses literrias

    ilustres. "No meio do caminho de nossa vida" ("Nel mezzo del cammin di

    nostra vita") o verso que inicia a viagem pelo inferno, purgatrio e

    paraso na Divina Comdia, de Dante Alighieri (1265-1321). No Brasil, era

    muito admirado "Nel Mezzo del Cammin...", soneto parnasiano do

    "prncipe dos poetas brasileiros", Olavo Bilac (1865-1918), que comea:

    "Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada/ E triste, e triste e fatigado eu vinha"...

    Para os detratores (os "passadistas", no jargo dos modernistas), o

    texto soava como brincadeira irreverente, pois j parecia um acinte que se

    chamasse poesia a um amontoado de repeties, sem vrgulas, com tema e

    imagem banalssimos, fraseado vulgar, desrespeitoso mesmo do decoro

    lingstico (tinha, por havia, por exemplo) e, alm de tudo, sem mtrica

    nem rima! Ou seja, sem nada do que um poema deveria ter, e com muito do

    que no deveria...

    Entre os admiradores,"No Meio do Caminho" provocou interpretaes

    variadas: geralmente, entendeu-se pedra como smbolo do obstculo e do

    cansao existencial (Mrio de Andrade, lvaro Lins, Antonio Cndido),

    mas o poema tambm foi lido como expresso da potica das primeiras

    obras de Drummond, uma potica para a qual "a poesia surge quando o

    Pg. 18

    universo se torna inslito, enigmtico, embaraoso quando a vida j no

    mais evidente".3

    Drummond colecionou, ao longo dos anos, crticas, comentrios de

    jornal, ataques pessoais, pardias um copioso material referente ao

    3 Jos Guilherme Merquior, Verso Universo em Drummond. Rio de Janeiro: Jos Olympio/SECCT, 1975.

    Procedem desse livro todas as citaes de J.G. Merquior que faremos adiante sem outra indicao.

  • ''poema da pedra", que reuniu numa antologia publicada em 1967, quando o

    poema fez 50 anos.4 Entre os crticos e comentadores que se detiveram no

    exame do texto, Haroldo de Campos dos mais esclarecedores: ele procura

    desvendar o sentido no de pedra, mas do modo de composio do poema,

    particularmente do papel que as repeties nele representam. A

    redundncia exagerada, por ser surpreendente, cria a novidade, a

    "informao esttica" (numa conferncia, Haroldo lembrou a respeito o

    Quadrado Branco Sobre Fundo Branco, 1918, do pintor russo Casimir

    Malvitch). Assim, a frase obsessivamente repetida carrega-se de sentido

    inesperado. A frase nova ("Nunca me esquecerei..."), que ocupa o centro da

    composio, apenas contrasta com a repetio para refor-la,

    reintroduzindo-a como registro indelvel da memria.

    "No Meio do Caminho" foi includo por Drummond entre os poemas

    de "tentativa de explorao e de interpretao do estar-no-mundo"; porm,

    o engenho formal da composio sugere a possibilidade de ainda outra

    classificao. Montado sobre um jogo simples e sutil de repetio e

    diferena, redundncia e informao, em que uma, paradoxalmente, se

    transforma na outra, o texto poderia bem contar entre os "exerccios

    ldicos" que, na Antologia mencionada, compem a seo "uma, duas

    Pg. 19

    argolinhas". (Para dissipar alguma possvel suspeita de frivolidade desses

    "jogos", note-se que entre eles tambm se encontra um dos mais "srios",

    intricados e engenhosos poemas de Drummond, "Aporo", que leremos

    adiante.)

    "No Meio do Caminho" no foi o primeiro poema que Drummond

    publicou, mas foi seu batismo de fogo. Os ataques sofridos foram

    lembrados, mais de uma vez, em poemas posteriores. No obstante a

    4 Uma Pedra no Meio do Caminho - Biografia de um Poema. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1967.

  • amplitude e a diversidade da poesia drummondiana, a imagem da "pedra no

    meio do caminho" constituiu-se em seu smbolo mais marcante, e no sem

    razo, de tal forma insistente em Drummond a expresso do impasse, da

    dificuldade, do obstculo, da frustrao, da no-transcendncia. Todos

    esses sentidos esto presentes na indiferena da pedra.5

    O "Poema de Sete Faces", que abre Alguma Poesia, ficou, j na poca,

    to clebre quanto "No Meio do Caminho", tendo sido um dos textos que

    mais expuseram o autor zombaria da crtica e dos leitores, como ele

    mesmo registrou depois:

    ...um poeta brasileiro, no dos maiores, porm dos mais expostos galhofa.6

    Pg. 20

    Sendo um dos melhores poemas do livro de estria de Drummond, ,

    consequentemente, uma das mais memorveis realizaes da poesia

    brasileira naqueles anos de ebulio criativa.

    Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos!, ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrs de mulheres.

    5 A imagem da pedra conta com passado ilustre na literatura brasileira: ela tem presena destacada, no

    por acaso, na obra de outro grande poeta mineiro, Cludio Manuel da Costa, cuja "imaginao rupestre"

    estudada por Antonio Candido (For-mao da literatura Brasileira. So Paulo: Martins, l959, vol. I, p. 80

    s.). Na gerao seguinte de Drummmond, com sentido bastante diverso, imagem freqente na poesia

    de Joo Cabral de Melo Neto. A identificao entre a pedra e a qualidade potica de Drummond ocorre

    at num ataque de um (outrora?) admirador: "Drummond perdeu a pedra: drummundano" o incio de

    "Sonoterapia'", soneto satrico de Augusto de Campos, do incio dos anos 70 (revista Navilouca, nmero

    nico, Rio de Janeiro, s/d [1972?]). O mesmo Augusto de Campos j empregara a imagem no incio do

    primeiro poema de seu primeiro livro (O Rei Menos o Reino, 1951. hoje em Viva Vaia Poesia 1949-1979.

    So Paulo: Brasiliense, 1986).

    6 "Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin" (A Rosa do Povo, 1945).

  • A tarde talvez: fosse azul, no houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu corao. Porm meus olhos no perguntam nada. O homem atrs do bigode srio, simples e forte. Quase no conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrs dos culos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu no era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, no seria uma soluo. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto meu corao.

    Pg. 21

    Eu no devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.

    As "sete faces" desse poema exploram cada uma um aspecto diferente

    do "eu todo retorcido"; em conjunto, elas funcionam como as diversas

    perspectivas de um quadro cubista, em que o sujeito, aqui feito objeto,

    decomposto em suas formas a partir de vrios ngulos e remontado pela

    juno dos fragmentos descontnuos.

  • A primeira "face" ocupada por um tema que se tornaria

    caracterstico de Drummond: o "desajeitamento" existencial, que nunca

    tratado com autopiedade e quase sempre aparece envolvido em ironia. O

    motivo tradicional do poeta desadaptado vida reelaborado: no mais as

    costumeiras idealizaes romntico-parnasiano-simbolistas, mas uma

    prosaica condenao, no por um deus terrvel, e sim por um "anjo torto"

    cuja obscuridade s refora o seu carter grotesco.

    A segunda "face" nos confronta com uma cena de rua, inesperada

    depois do contexto simblico da "face" anterior. Agora aparece outro dos

    temas que seriam constantes na obra de Drummond: Eros, que transfigura o

    mundo e o sujeito, e que vem sorrateiramente acompanhado, aqui, da

    bisbilhotice representada numa metonmia7 prxima da que encontraremos

    adiante, em "Cidadezinha Qualquer" ("as janelas olham"). Inesperada

    tambm, no contexto "versilibrista" (ou polimtrico) do poema e do livro,

    a regularidade mtrica, aqui espe-

    Pg. 22

    cialmente adequada descrio do carter obsessivo ou iterativo dos

    movimentos do olhar e do desejo. A estrofe uma quadra de octosslabos

    acentuados na segunda e quinta slabas, salvo o ltimo verso, acentuado na

    terceira e na quinta, com um deslocamento de grande efeito rtmico e

    adequao ao movimento da frase (trata-se de uma orao condicional, com

    a elipse do se por razes de justeza mtrica e elegncia sinttica),

    A terceira "face" a do espanto diante do mundo, escondido atrs da

    percepo aparentemente indiferente das coisas aparentemente banais. A

    ausncia de vrgulas na enumerao ("pernas brancas pretas amarelas")

    expediente tipicamente modernista e visa aqui a criar uma justaposio

    7 Metonmia a figura de linguagem que consiste em designar uma coisa por outra, com a qual tem

    alguma forma de proximidade ("topo" por "bebida", "bronze" por "esttua de bronze", "bandeira" por

    "ptria").

  • rpida de imagens, sugestiva de simultaneidade.8

    A contraposio entre o

    corao e os olhos ("Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu

    corao./ Porm meus olhos/ no perguntam nada") parece exprimir um

    conflito entre o sentimento e o desejo, ou, nos termos de um crtico, entre a

    "sensualidade da percepo" e a "pureza do sentimento". Esse contraste

    aparecer outras vezes na obra de Drummond. Vista por outro ngulo, essa

    disjuno remete a uma concepo do corpo como, digamos, parte da alma.

    Mais propriamente, no se trata de uma disjuno, antes de urna integrao,

    que poderamos chamar homrica, pois implica um sentido do corpo, no

    como meramente exterior, mas como participante e agente no que estamos

    habituados a considerar a experincia interior ("Lembras-te, carne?",

    pergunta-se cm "Escada", de Fazendeiro do Ar).

    A quarta "face" apresenta o confronto com o outro o "semelhante

    diferente". De um lado, o frgil

    Pg. 23

    "eu lrico", desajustado e espantado diante do mundo, como o vimos nas

    "faces" anteriores; do outro lado, o homem convencional, o burgus forte,

    srio e seguro.

    A quinta "face" expe o indivduo "abandonado por Deus"

    sentimento tpico de uma poca de crise de crenas e valores tradicionais,

    uma poca em que, como se formularia depois no mbito do pensamento

    existencialista, o homem passou a sentir-se 'jogado no inundo" e

    "condenado liberdade". notvel aqui (embora pouco notada) a

    referncia s palavras de Cristo na cruz.9

    8 O simultanesmo um princpio modernista bastante generalizado, presente, por exemplo, no cubismo e

    no futurismo. No cubismo, servia a representao de aspectos diversos de um mesmo objeto, colhidos a

    partir de perspectivas diferentes; no futurismo, prestava-se ao objetivo de representar o movimento dos

    objetos e a rapidez da vida moderna.

    9 "Por volta da hora nona, chamou Jesus em voz alta dizendo: Eli, Eli, iam, sabactni. que quer dizer:

    Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" Mateus 27, 46, tambm Marcos 15, 34.

  • A sexta "face" reintroduz o tema do "espanto diante do inundo" e

    acrescenta notaes novas: a condenao do esteticismo (a "soluo" para o

    formalismo potico no soluo para a vida) e a gigantesca afirmao

    emocional do sujeito. Esta ltima se exprime num verso que retoma um

    trecho magnfico e clebre de outro poeta mineiro, este do sculo 18,

    Toms Antnio Gonzaga, que assim termina uma das mais belas "liras" de

    Marlia de Dirceu:

    Eu tenho um corao maior que o mundo; Tu, formosa Marlia, bem o sabes;

    Um corao, e basta, Onde tu mesma cabes.

    Na stima e ltima "face", a confisso relutante parece valer como

    desculpa pelo arroubo romntico da estrofe anterior (ou mesmo pelo carter

    confessional de todo o poema), atribuindo-o ao sentimentalismo causado

    por eflvios lunares e etlicos, como se o que foi dito se devesse "emoo

    do momento" e bebedeira...

    Pg. 24

    Alguma Poesia , por excelncia, um livro modernista; nele, pois, o

    registro lingstico coloquial e se pratica o epigrama (composio breve e

    ''picante") do tipo que os modernistas chamavam "poema-piacla".

    Epigramticos so, aqui, alguns dos poemas que desenvolvem o tema da

    "praa dos convites", ou seja, o "ser-com", a vida em sociedade. Eles

    podem ter a brevidade de "Anedota Blgara" ou conter uma narrativa de

    extenso um pouco maior, como "Sociedade", um "poema-piada"

    desenvolvido (em que, por sinal, o tema do "choque social" no tem carter

    poltico). Nesses textos, no est presente a gravidade das peas polticas

    posteriores de Drummond, sobretudo dos poemas de mais largo sopro de A

    Rosa do Povo (1945), embora o tom grave aparea, aqui, por momentos,

  • em outros poemas pertinentes ao assunto ("Outubro 1930",

    "Poltica","Corao Numeroso"). Em "Anedota Blgara", o registro jocoso

    mo mascara a denncia:

    Era uma vez um czar naturalista que caava homens. Quando lhe disseram que tambm se caam borboletas [e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade.

    A referncia a ditadores sanguinrios foi proftica no que se refere ao

    Brasil, que no tinha vivido ainda os dois regimes repressivos e violentos

    que conheceu no sculo 20; o "Estado Novo" (1937-45) de Getlio Vargas

    e a ditadura militar nascida da chamada "Revoluo" de 1964.10

    Pg. 25

    Outro epigrama, este clebre, "Cidadezinha Qualquer", que se refere

    a um tpico que se tornaria dos mais tpicos da poesia do autor a terra

    natal, ou a provncia que habitamos (lembremos que a seo da Antologia

    Potica dedicada ao tema se intitula "Uma Provncia: Esta").

    Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus.

    10

    O primeiro desses regimes pode-se dizer que Drummond conheceu bastante de perto, de "dentro"

    mesmo, pois ele trabalhou, de 1930 a 1945, como chefe de gabinete do ministro da Educao e Cultura,

    seu amigo Gustavo Capanema. face naturalista do czarismo varguista.

  • Aqui impera a "fanopia", ou seja, a construo do significado atravs

    de imagens (como ocorre tambm, nesse livro, no poema "Construo", por

    exemplo). De fato, o texto funciona como um cromo, um quadrinho singelo

    de aspectos de uma pequena cidade; mas no se trata, como habitual

    nesse tipo de evocao, de Lima ilustrao lrica, pitoresca ou sentimental,

    mas sim de um epigrama crtico: o lance decisivo a estocada final, de

    caipirismo irnico. A expresso "vida besta" (da exclamao to mineira

    em seu "eta"), passou a designar, para certos computadores da obra do

    poeta, um tema, ou subtema, associado rea temtica da vida provinciana,

    j se considerou o tema como criao de Drummond, mas talvez fosse mais

    adequado dizer que o que ele criou foi a expresso lapidar para um lugar-

    comum o topos, de

    Pg. 26

    gosto acentuadamente modernista, do desprezo urbano pela "idiotia rural",

    agora transposta para a pequena cidade. "Cidadezinha Qualquer" pode ser

    lido como um poema antibuclico.

    Ao tema da ''vida besta" pode tambm se associar o da famlia, como

    ocorre num epigrama brilhante ("Famlia"), essencialmente imagtico.

    Diferentemente do que se ver na quase totalidade dos poemas

    drummondianos da famlia, aqui no h amargura, nostalgia ou qualquer

    gravidade; ao contrrio, o poema tem leveza encantadora, que conduz

    imperceptivelmente, atravs de uma simples estrutura de coordenao

    aditiva, ao magnfico efeito cmico final. E uma longa enumerao de

    personagens e "materiais da vida" provinciana, limitada e satisfeita na

    mediocridade do aconchego familiar, com tudo no seu devido lugar,

    inclusive os preconceitos e injustias (os pretos e mulatos como serviais, a

    mulher como facttum, presente em toda a parte e concluindo todas as

    sees da enumerao), resultando o conjunto, muito ironicamente, na

  • "felicidade" o ideal pequeno-burgus de felicidade, que Flaubert

    considerava imoral.

    Tambm o tema amoroso foi, nesse livro, motivo de epigramas, dos

    quais o mais brilhante e mais famoso e "Quadrilha":

    Joo amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que no amava ningum. Joo foi para os Estados Unidos/Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que no tinha entrado na histria.

    Pg. 27

    A enfiada de desencontros amorosos que constitui essa engenhosa

    "coreografia" (lembremos que quadrilha uma dana de salo em que os

    membros dos casais danantes vo-se alternando) graciosamente narrada

    atravs de associaes ligadas aos nomes prprios, que constituem o

    principal material lingstico de que se serve aqui o poeta. Aos prenomes

    ope-se o nome J. Pinto Fernandes, o nico a que falta o prenome (s

    aparece a inicial) e o nico a ser apresentado com sobrenome. Pronomes

    (ou possivelmente apelido, no caso de Lili) so usados em relaes

    prximas, informais ou ntimas, e no sugerem mais do que relaes

    pessoais. Quanto a inicial e sobrenome, a sugesto no de relao pessoal,

    informalidade ou intimidade, bem ao contrrio: pensa-se em formalidade

    social ou relaes de negcio (J. Pinto Fernandes poderia ser o nome usado,

    no entre amigos ou amantes, mas numa conta bancria ou na designao

    de uma firma). Todos os prenomes, menos Lili, so, explicitamente,

    sujeitos do verbo amar (todos amavam) e, implicitamente, do verbo casar

    na negativa (nenhum casou). Lili , ao contrrio, sujeito do verbo amar na

    negativa ("no amava ningum") e, positivamente, do verbo casar. Muito

  • significativo que Lili casou, no com um prenome, mas com uma inicial e

    sobrenome. Portanto, no contexto do poema, ao grupo dos prenomes se

    associam os sentidos de intimidade, amor e no-casamento, enquanto o

    outro grupo, constitudo por Lili e J. Pinto Fernandes, em tudo oposto ao

    primeiro, pois aqui os sentidos so de no-intimidade, no-amor e

    casamento.11

    Pg. 28

    O mesmo tom brincalho est presente em outros poemas de tema

    amoroso constantes de Alguma Poesia ("Balada do Amor Atravs das

    Idades", "Toada do Amor", "Sentimental", sendo este ltimo um

    cruzamento do tema do amor com o do "eu todo retorcido").

    A poesia metalagustica, isto , a poesia voltada para a prpria poesia

    ("poesia contemplada"), corresponde a algumas das mais ambiciosas

    realizaes de Drummond, sobretudo em seu grande livro de 1945, A Rosa

    do Povo. Mas, mais modestamente, j em Alguma Poesia o assunto aparece

    num poema, talvez em dois.

    PPOOEESSIIAA

    Gastei uma hora pensando um verso que a pena no quer escrever. No entanto ele est c dentro inquieto, vivo. Ele est c dentro e no quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.

    11

    Claro que uma leitura mais arrojada certamente uma "sobreleitura" veria "malcia" no nome do marido

    de Lili e acrescentaria, aos mentidos ligados a casamento, a aluso sexual ausente dos amores antes

    relatados.

  • Muito curiosamente, essa idia de poesia como algo inefvel, algo

    para que pode no haver palavras, corresponde a uma concepo

    substancialista de todo diferente daquela que encontraremos, 15 anos

    depois, nos mencionados poemas metalingusticos de A Rosa do Povo.

    Trata-se de uma concepo substancialista porque a poesia vista como

    algo em si, uma substncia independente das palavras, que existe tora delas

    e para a qual elas podem no ser suficientes: a poesia pode no estar no

    poema, o poema pode no

    Pg. 29

    se realizar, mas existe "a poesia deste momento", que nao demanda

    palavras. No livro de 1945, como veremos adiante, a considerao do

    fenmeno potico ser inteiramente diversa, oposta mesmo ao que aqui est

    implicado.

    O outro poema metalingstico, ou passvel de leitura metalingustica,

    em Alguma Poesia "Poema que Aconteceu", que forma um par muito

    interessante e revelador com o texto que acabamos de ler.

    Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nesta vida o mundo

    parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem

    comeo.

    A mo que escreve este poema no sabe o que est escrevendo mas

    possvel que se soubesse nem ligasse.

    Este como que o oposto complementar de "Poesia": num, o poema

    no acontece, apesar dos esforos do sujeito, mas existe "a poesia deste

    momento"; no outro, o momento no parece particularmente potico (nada

    ocorre, nem no mundo, nem no sujeito), mas o poema acontece, apesar (ou

    por causa) da total indiferena de tudo. Portanto, parodiando a frase bblica,

    pode-se dizer que o esprito da poesia, para o Drummond estreante, sopra

    onde quiser, a despeito dos esforos do poeta. Por outro lado, alm do seu

  • contedo metalingstico, podemos ver aqui um elemento de contemplao

    zen, antecipador dos sonetos j chamados "budistas" que Drummond

    escreveu nos anos 50. Curioso observar que, como se

    Pg. 30

    pretigurasse aquele perodo, em que se d o retorno s formas tradicionais,

    aqui o "verso livre" se regulariza em octosslabos cercados de dois

    eneasslabos, sendo o ltimo seguido de um "arremate" que lhe duplica a

    sequncia mtrica final (fraca-fraca-forte-fraca: "se soubesse/ nem

    ligasse"), maneira de uma clusula12

    da mtrica antiga.

    12

    A. clausula uma forma convencional dos ritmos da poesia da Antiguidade. Inventadas pelos oradores

    gregos, as clausulae servem para marcar o final de uma frase ou sentena. Cada clausula um padro de

    acentos, em determinado nmero de slabas.

  • Pg. 31

    22..

    BBRREEJJOO DDAASS AALLMMAASS ((11993344)),,

    SSEENNTTIIMMEENNTTOO DDOOMMUUNNDDOO ((11994400)),,

    JJOOSS ((11994422))

  • Pg. 32

    sses livros desenvolvem as linhas mestras de

    Alguma Poesia, com a incorporao decidida,

    sobretudo a partir de Sentimento do Mundo, da

    poesia de cunho social. Assim, por exemplo,

    termina a "Elegia 1938":

    Cotao orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro sculo a felicidade coletiva. Aceitas a chupa, a guerra, o desemprego e a injusta distribuio porque no podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

    Tambm em Sentimento do Mundo, a poesia da terra natal ganha nova

    amplitude e tons graves, mas freqentemente tocados de ironia.

    "Confidencia do Itabirano" uma elegia em que o andamento lento e o

    registro melanclico no evitam algum neto sarcstico:

    Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira.

    Pg. 33

    Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. [...] A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem

    [horizontes. E o hbito de sofrer, que tanto me diverte, doce herana itabirana. [...]

    Eros, em Brejo das Almas ("No se Mate", por exemplo), j revela o

  • ar de "particular tristeza" caracterstico da poesia posterior do "amar-

    amaro". Nesses livros, em que os poemas do "eu todo retorcido" so

    amplamente representados, tambm aparece (em Jos) o primeiro dos

    poemas metalingsticos antolgicos de Drummond, "O Lutador". E

    surpreendente que uma densa arte potica (onde Drummond se afasta da

    concepo "substancialista" de poesia expressa em seu livro anterior) no

    destoe dos poemas do eu e do amor, graas ao tratamento lrico que o tema

    recebe. Ademais, o poeta realiza aqui o tour de force de compor uma pea

    de psicologia da linguagem no ritmo gil da redondilha menor (o

    tradicional metro de cinco slabas, o mesmo, alis, do poema que d nome

    ao livro, talvez o mais popular dos poemas drummondianos do eu).

    Lutar com palavras a luta mais v. Entanto lutamos mal rompe a manha.13

    Pg. 34

    A luta, desproporcional ("so muitas, eu pouco") e inglria ("sem

    maior proveito/ que o da caa ao vento"), se tinge de erotismo feroz em

    seus lances mais encarniados ("e que venha o gozo/ na maior tortura"),

    ocupa todos os espaos da vida consciente e no cessa nem quando a

    conscincia sai de cena:

    O ciclo do dia ora se inclui e o intil duelo jamais se resolve. O teu rosto belo, palavra, esplende na curva da noite

    13

    Esse incio "parece, pelo ritmo e pela entrada no assunto, uma espcie de transposio irnica do hino

    escolar que abria o Segundo Livro de leitura de Toms Galhardo, usual na gerao de Drummond".

    Antonio Candido, "Inquietudes na poesia de Drummond", em: Vrios Escritos. So Paulo: Duas Cidades,

    1095, p. 111-45. A esse ensaio remetem as referencias a Antonio Candido feitas a seguir.

  • que toda me envolve. Tamanha paixo e nenhum peclio. Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono.

    Em Brejo das Almas (nome, como informa a epgrafe do livro, de uma

    cidade mineira ento prestes a trocar de nome), encontramos um soneto,

    pela primeira vez na obra de Drummond. Soneto no era comum naqueles

    tempos modernistas, mesmo em se tratando de soneto sem rimas (a no ser

    no dstico final, rimas toantes) e com versos de controlada polimetria, que

    oscilam em torno de sete ou oito slabas, podendo subir a nove ou descer a

    seis. A despeito da disposio grfica com que apresentado, o "Soneto da

    Perdida Esperana" corresponde mais ao modelo ingls (trs quadras e

    dstico final) que ao italiano (duas quadras e dois tercetos).

    Pg. 35

    Perdi o bonde e a esperana. Volto plido para casa. A rua intil e nenhum auto passaria sobre meu corpo. Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princpio do drama e da flora. No sei se estou sofrendo ou se algum que se diverte por que no? na noite escassa com um insolvel flautim. Entretanto h muito tempo ns gritamos: sim! ao eterno.

  • O impacto do primeiro verso se deve enumerao de concreto e

    abstrato, particular e geral, que representa uma modalidade do que Leo

    Spitzer 14

    chamou "enumerao catica" e, nessa forma mnima e peculiar,

    responsvel pela fora de pelo menos uma outra abertura "irruptiva" de

    Drummond: "Preso minha classe e a algumas roupas" o incio de "A

    Flor e a Nusea" (de A Rosa do Povo). A atitude em que o sujeito se

    descreve tpica do Zeitgeist existencialista desesperana, sentimento de

    inutilidade, vazio e absurdo. A imagem da "ladeira lenta", com sua boa

    hiplage,15

    parece servir de metfora

    Pg. 36

    para a existncia, pois a ladeira em cujo topo se fundem os caminhos,

    todos os caminhos, que, ao contrrio do que se esperaria, levam para baixo,

    para o "princpio do drama e da flora" a terra, que nos espera. Nesse

    percurso, o sujeito elabora uma conjectura metafsica que lembra Borges,

    com imagens diversas.16

    O dstico final parece uma retomada do topos

    hugoano17

    do "ardent sauglot qui roule d'ge en ge/ et vient mourir au

    pied de votre ternit '' ("soluo ardente que rola de era em era/ e vem

    morrer aos ps da vossa eternidade") uma retomada em registro

    modernista, sem Deus e com o soluo transformado em grito.

    Embora, a partir de Sentimento do Mundo, comece a se adensar e a

    ganhar outro nervo a poesia social, conforme a hora exigia, a temtica do

    14

    Um dos grandes tericos da estilstica, a "cincia do estilo", Leo Spitzer foi um autor muito influente

    nos anos de ps-guerra em seu pas de adoo, os Estados Unidos.

    15 Hiplage e um ripo de metonmia no qual se transpe a referencia de um determinante, da palavra

    logicamente determinada para outra prxima no contexto. Em ladeira lenta o adjetivo que se referiria ao

    caminhante foi aplicado ao caminho.

    16 Chuang Tzu sonhou que era um mariposa e no sabia ao despertar se era um homem que havia sonhado

    ser uma mariposa ou uma mariposa que agora sonhava ser um homem." Herbert Allen Gilles, Chuang

    Tzu; (1889) J. L. Borges.. Libro de los Sueos, Compare-se aos versos de Drummond: ''No sei se estou

    sofrendo..."

    17 Referencia ao poeta romntico francs Victor Hugo (1802-85).

  • eu continua ocupando amplo espao, e espao de honra. No se trataria

    mais (como o prprio poeta observou) do indivduo dos livros anteriores,

    considerado em seu isolamento; tratar-se-ia agora do "ser-com" o indivduo

    assimilado ao mundo, cujo sentimento seria o dado novo da poesia de

    Drummond a partir de ento. O eu que agora se questiona e questiona a

    vida mais universal, como em "Dentaduras Duplas", um dos mais

    extraordinrios poemas do indivduo em toda a obra de Drummond.

    Dentaduras duplas! Inda no sou bem velho para merecer-vos... H que contentar-me com uma ponte mvel

    Pg. 37

    e esparsas coroas (Coroas sem reino, os reinos profticos de onde proviestes quando produziro a tripla dentadura, dentadura mltipla, a serra mecnica, sempre desejada, jamais possuda, que acabar com o tdio da boca, a boca que beija, a boca romntica?...)

    E assim segue o poema sem desfalecimento por mais duas pginas de

    versos curtos e ntidos, pentasslabos (a maioria) ou de medida prxima,

    calculados antes rtmica que metricamente, num fluxo vigoroso de imagens

    que renovam o repertrio do velho tema do envelhecer, com associaes

    que parecem naturais, at forosas, e resultam do manejo virtuosstico da

  • tcnica que O.M. Garcia chamou "palavra-puxa-palavra". 18

    A seo final do texto, em tenso montante, leva o pattico at quase o

    paroxismo, para faz-lo concluir com uma imagem em que a distenso no

    nada apaziguadora uma imagem que, misto de horror e humor, das

    mais surpreendentes metforas do apetite onvoro do tempo.

    Largas dentaduras, vosso riso largo me consolar

    Pg. 38

    no sei quantas fomes ferozes, secretas no fundo de mim. No sei quantas fomes jamais compensadas. Dentaduras alvas, antes amarelas e por que no cromadas e por que no de mbar? de mbar! de mbar! fericas dentaduras, admirveis presas, mastigando lestas e indiferentes a carne da vida! Acrescentar algo e no pouco a um tema que percorre a lrica de

    todas as pocas, desde pelo menos os elegacos gregos, no pequeno

    feito!

    Em Jos, pequena coletnea (12 peas) que abriga vrios grandes

    poemas (dos quais "Jos", geralmente mal lido, foi o predileto nas escolas),

    encontramos "Edifcio Esplendor", um polptico (cinco partes) que contm

    18

    O.M. Garcia. Esfinge Clara e Outros Enigmas.. Rio de Janeiro TopBooks.1996, p. 39 s.

  • cenas do nascimento, da vida e da decadncia de um edifcio, moderna

    "mquina de morar" dos anos 40, projetada por aquele que viria a ser o

    emblema da arquitetura moderna no Brasil (e o mais oficial dos arquitetos

    brasileiros), Oscar Niemeyer.19

    No interior do prdio, assistimos a lances

    da "vida moderna", equipada, isolada

    Pg. 39

    e frequentada por nostalgias do passado provinciano (a "dor da

    urbanizao" um dos temas aqui presentes).

    O relato do nascimento do edifcio se faz em lances secos, lacnicos,

    com rapidez e vivacidade, numa sequncia de prodigiosa eficincia

    narrativa:

    Na areia da praia Oscar risca o projeto. Salta o edifcio da areia da praia. No cimento, nem trao da pena dos homens. As famlias se fecham em clulas estanques. O elevador sem ternura expele, absorve num ranger montono substncia humana. Entretanto h muito se acabaram os homens. Ficaram apenas tristes moradores.

    19

    A expresso "'mquina de morar" (machine habiter), lembrada por J.G. Merquior neste contexto, e

    como se sabe, de Le Corbusier. Alterada para machine amouvoir, e evidentemente aplicada ao poema,

    mas ainda atribuda a Le Corbusier, ela viria a servir de epgrafe a O Engenheiro (l945), de Joo Cabral

    de Melo Neto (livro, por sinal dedicado a Drummond).

  • A terceira estrofe dessa abertura, de enxuta simetria, vivida e intensa

    na expresso do aspecto "desumano" da ento nova forma de habitao. No

    seu centro se confrontam dois verbos antitticos e complementares

    ("expele, absorve"), modulados pelas locues sem ternura e num ranger

    montono, que os enquadram, e cujos sujeito (elevador) e objeto (a notvel

    expresso substncia humana) enquadram a estrofe e parecem ter trocado

    entre si os atributos de animado e inanimado.

    Pg. 40

    Na segunda parte, a metonmia inicial (magnfico achado, entre os

    tantos desse poema) nos conduz ao mundo ntimo daqueles que j nos

    foram apresentados como "tristes moradores", a "substancia humana"

    fechada naquelas "clulas estanques":

    A vida secreta da chave. Os corpos se unem e bruscamente se separam. O copo de usque e o blue destilam pios de emergncia. H um retrato na parede, um espinho no corao, uma fruta sobre o piano e um vento martimo com cheiro de peixe,

    [tristeza, viagens... Era bom amar, desamar, morder, uivar, desesperar, era bom mentir e sofrer. Que importa a chuva no mar? a chuva no mundo? o fogo? Os ps andando, que importa? Os mveis riam, vinha a noite, o mundo murchava e brotava a cada espiral de abrao.

  • E vinha mesmo, sub-reptcio, em momentos de carne lassa, certo remorso de Gois. Gois, a extinta pureza... O retrato cofiava o bigode.

    Pg. 41

    A "vida secreta" dos moradores revela-se em cenas de sexo e em

    emoes ligadas ao amor, assim como no remorso 20

    do passado rural (o

    verso "Gois, a extinta pureza..." mais um achado). Na segunda estrofe, a

    enumeraro dos objetos da sala e do corao os justape de forma a que

    fsico e psicolgico, exterior e interior se contaminem mutuamente e

    resultem indiscernveis. A chuva, cujo sentido emocional parece aqui

    protelado ou preterido ("que importa a chuva...?"), reaparecer adiante na

    efetividade de sua funo de "correlativo objetivo". 21

    No verso de arremate

    dessa seo, a imagem imprevista do retrato em movimento consegue dar

    contorno concreto e vivo e muito finamente humorstico ao que seria

    a presumvel reao do passado provinciano ao presente urbano.

    A terceira parte apresenta um desfile de figuras da fantasmagona da

    memria que fazem pensar em cenas do Fellini memorialstico:

    Oh que saudades no tenho de minha casa paterna. Era lenta, calma, branca, tinha pastos corredores e nas suas trinta portas trinta crioulas sorrindo, talvez nuas, no me lembro.

    20

    J se disse que, na leitura de Drummond, frequente fazermos descobertas ao procurar no dicionrio o

    sentido das palavras que conhecemos ou julgamos conhecer (ver Heitor Martins, A Rima na Poesia de

    Carlos Drummond de Andrade, p. 104, n. 1). o caso, aqui, de remorso, ou seja, o "remordimento" de

    que o passado ainda capaz.

    21 "Correlativo objetivo" a expresso do poeta modernista T.S. Eliot (1888-1965) para o que, "de fora",

    sugere o que "de dentro", na experincia relatada num poema.

  • E tinha tambm fantasmas, mortos sem extrema-uno,

    Pg. 42

    anjos da guarda, bodoques e grandes tachos de doce e grandes cismas de amor, como depois descobrimos. Chora, retrato, chora. Vai crescer a tua barba neste medonho edifcio de onde surge tua infncia como um copo de veneno. A casa da infncia, esconjurada na pardia de Casimiro de Abreu

    ("Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida..."), e o retrato na

    parede signo do passado que acompanha o presente participam de um

    clima surreal, envolvidos no catlogo de figuras de tempos perdidos. No

    cortante arremate, a fantstica (e nova!) imagem do passar do tempo e do

    advento da decadncia a barba crescendo no retrato introduz outra

    representao de impacto: o retorno do passado (a desforra do reprimido)

    transformado num copo de veneno. O que pode parecer felliniano na

    lembrana da casa paterna de "vastos corredores" so suas "trinta portas"

    com "trinta crioulas sorrindo, talvez nuas". Mas Drummond sutil: "no

    me lembro"...

    A quarta parte como que nos encaminha para espaos mais recnditos

    do edifcio e da vida:

    As complicadas instalaes do gs, teis para suicdio, o terrao onde camisas tremem, tambm convite morte, o pavor do caixo em p no elevador,

  • Pg. 43

    o estupendo banheiro de mil cores rabes, onde o corpo esmorece na lascvia frouxa da dissoluo prvia. Ah, o corpo, meu corpo, que ser do corpo? Meu nico corpo, aquele que eu fiz de leite, de ar, de gua, de carne, que eu vesti de negro, de branco, de bege, cobri com chapu, calcei com borracha, cerquei de defesas, embalei, tratei? Meu coitado corpo to desamparado entre nuvens, ventos, neste areo living! Os recessos do corpo do edifcio e o corpo do sujeito considerado na

    intimidade do banheiro esses so os objetos do confronto com a morte,

    que domina toda a penltima parte do poema, com imagens originais e

    admirveis. pattica e cheia de humor a enumerao dos ingredientes e

    cuidados envolvidos na "feitura" do corpo, em contraste com seu

    desamparo nas alturas do edifcio. Aqui como em outros de seus pontos

    altos, a considerao drummondiana do corpo ("verdade to final, sede to

    vria") instaura um pathos cuja singularidade conta entre os maiores ttulos

    de grandeza do poeta.

    Na quinta e ltima parte, quase tudo sinal da passagem do tempo e

    da decadncia:

  • Pg. 44

    Os tapetes envelheciam pisados por outros ps. Do cassino subiam msicas e at o rumor de fichas. Nas cortinas, de madrugada, a brisa pousava. Doce. A vida jogada fora voltava pelas janelas. Meu pai, meu av, Alberto... todos os mortos presentes. J no acendem a luz com suas mos entrevadas. Fumar ou beber: proibido. Os mortos olham e calam-se. O retrato descoloria-se, era superfcie neutra. As dvidas amontoavam-se. A chuva caiu vinte anos. Surgiram costumes loucos e mesmo outros sentimentos. Que sculo, meu Deus! diziam os ratos. E comeavam a roer o edifcio.

    Em meio s imagens do passar do tempo, das transformaes, da

    decadncia imagens que culmi-

  • Pg. 45

    nam na sentena condenatria dos ratos, os "operrios da runa" (como

    disse dos vermes Augusto dos Anjos) , em meio a essas imagens, a da

    chuva ganha outro sentido, ou atualiza seu sentido latente, apenas sugerido

    na segunda parte, quando apareceu pela primeira vez. L, a chuva perdia

    importncia, corno se seu sentido ficasse em recesso, diante dos momentos

    de amor. Agora, ausente este ltimo, nada vence o tdio, e o balano final

    acusa 20 anos chuvosos no saldo devedor da vida.

    Pg. 46 (Pgina em branco)

  • Pg. 47

    33..

    AA RROOSSAADDOO PPOOVVOO ((11994455))

  • Pg. 48

    sse o mais extenso (55 poemas, alguns

    longos) e o mais variado dos livros de

    Drummond. Nele desfilam os principais temas

    de sua obra; o verso livre e a estro-faco

    irregular se alternam com versos de mtrica

    tradicional dispostos em estrofes regulares; o

    estilo ora "puro" (elevado,"potico"), ora "mesclado" (mistura de

    elevado e vulgar, srio e grotesco). Livro difcil, dos mais discutidos e

    apreciados da poesia moderna brasileira: celebrado como ponto alto da

    poesia de participao social, , ao mesmo tempo, marco da linguagem

    modernista, por sua expresso vigorosa e arrojadamente inventiva.

    Esse duplo compromisso com a linguagem potica e com a

    participao social coloca problemas para um poeta moderno como

    Drummond. Para ele, a poesia se faz de palavras, um compromisso com a

    linguagem; por isso, aconselha: "no faas versos sobre acontecimentos"

    nem acontecimentos pessoais,

    Pg. 49

    nem coletivos. A poesia uma decifrao do difcil mundo das palavras, e

    no propriamente comunicao ou auto-expresso. "A poesia elide sujeito e

    objeto", diz-nos o mesmo poema ("Considerao da Poesia"): ela abole

    tanto o poeta, mesmo quando ele cr expressar-se nela, quanto o mundo, do

    qual capta no mximo alguns "ecos". Construo de palavras, o poema se

    emancipa do sujeito assim como das circunstncias objetivas que esto na

    sua origem.

    Mas a poesia 6 tambm "a linguagem de certos instantes, e sem

    dvida os mais densos e importantes da existncia", disse o poeta num

  • prefacio. E a densidade da experincia do mundo naquele momento fazia

    que a poesia se abrisse para a luta social, para a participao na vida

    coletiva da poca. Esse envolvimento tem sentido oposto ao do

    compromisso com a linguagem, pois impe ao poema que se volte para a

    comunicao, para a ao, quando ele , por natureza, investigao,

    contemplao.

    A poesia um jogo com a linguagem e a vida, e um jogo de risco

    total, porque envolve toda a vida do poeta. "Abrir" o poema para o mundo,

    fazer que ele seja cortado pela realidade social, significa acrescentar ainda

    um risco ao trabalho do poeta o de, buscando a comunicao, fracassar

    como poesia. Em outras palavras: fazer poesia empenhar a vida na luta

    com as palavras, na depurao das palavras, na construo de objetos de

    palavras; de outro lado, participar da luta social, voltar-se contra as

    injustias, solidarizar-se com suas vtimas, entregar-se a impulsos

    humanitrios, ou seja, a boas intenes. E, como disse Andr Gide, " com

    boas intenes que se faz a m literatura".

    Os poemas de A Rosa do Povo foram escritos nos anos sombrios da

    ditadura de Getlio Vargas e da Segunda Guerra Mundial. Os

    acontecimentos pro-

    Pg. 50

    vocam o poeta, que se aproxima da ideologia revolucionria anticapitalista,

    de inspirao socialista, e manifesta sua revolta e sua esperana em poemas

    indignados e intensos. Mas seu envolvimento com a situao coletiva, com

    a temtica do "choque social", no o levou a deixar de lado nem a

    qualidade potica de seus versos, nem os grandes temas do eu e do "estar-

    no-mundo" (o amor, a famlia, o tempo, a velhice), nem a reflexo

    metalingstica ou metapotica, ou seja, a considerao potica da prpria

    poesia, nem ainda os "exerccios ldicos".

  • A Rosa do Povo se abre com uma "arte potica" intitulada

    "Considerao do Poema":

    No rimarei a palavra sono com a incorrespondente palavra outono. Rimarei com a palavra carne ou qualquer outra, que todas me convm. As palavras no nascem amarradas, elas saltam, se beijam, se dissolvem, no cu livre por vezes um desenho, so puras, largas, autnticas, indevassveis.

    A referncia inicial rima traz lembrana o "Poema de Sete Faces".

    Mas dizer, como disse l o poeta, que a rima no soluo para a vida e,

    como diz aqui, que no repetir rimas cansadas dizer isso no significa

    rejeitar a rima. Ao contrrio, ele dos maiores mestres da rima na poesia

    moderna, e o uso constante, surpreendente e original que faz dela foi

    estudado num dos bons livros que se escreveram sobre sua obra.22

    Pg. 51

    Para o poeta, nessa prescritiva arte potica, no o uso de prestigiosas

    combinaes de palavras ou a repetio de clichs "poticos" que

    constituiro o poema. Ao contrrio, este deve ser um "desenho", ocasional

    e raro, no "cu livre" da linguagem, desenho engendrado pelas foras de

    atrao e repulsa, identidade e diferena, das palavras tomadas em sua

    pureza, amplitude e segredo ou seja, as palavras tomadas em suas

    potencialidades originais, para alm do desgaste e da degradao

    produzidos pelo uso. Jos Guilherme Merquior viu nesses versos a defesa

    da "democracia das palavras" de que falou Spitzer: no mais a hierarquia,

    clssica ou romntica, entre palavras nobres e vulgares, poticas e no-

    poticas.

    22

    Ver p. 41, nota 20.

  • Na sequncia do poema, considerada a relao do poeta com outros

    poetas, a prpria obra e a "incorporao" s suas emoes e idias ("o fatal

    meu lado esquerdo") daquilo que foi lido em autores "irmos".

    Uma pedra no meio do caminho ou apenas um rastro, no importa. Estes poetas so meus. De todo o orgulho, de toda a preciso se incorporaram ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vincius sua mais lmpida elegia. Bebo em Murilo. Que Neruda me d sua gravata chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakvski. So todos meus irmos, no so jornais nem deslizar de lancha entre camlias: toda a minha vida que joguei.

    Aqui Drummond enumera alguns desses poetas "incorporados" a si e a

    sua obra: Vincius de Moraes (1913-80), cujas romnticas Cinco Elegias

    (1943) terminam numa exploso renovadora, a "Ultima elegia";

    Pg. 52

    Murilo Mendes (1901-75), que na poca estava em sua grande fase de

    embriaguez visionria; Pablo Neruda (1904-73), cuja retrica abundante de

    metforas fogosas referida na imagem de "sua gravata chamejante";

    Guillaume Apollinaire (1880-1918), lder da revoluo moderna na poesia;

    Vladimir Marakvski, cone da poesia revolucionria, cujo suicdio em

    1930 d lugar ao "adeus" que Drummond lhe enderea. So poetas

    "irmos" de Drummond naquele espao que instauram e habitam com sua

    poesia, e no qual se cruzam, se "furtam", se nutrem mutuamente. No

    reportam o mundo ("no so jornais"), nem so provedores de idealizaes

    existenciais, de sonhos delicados ("deslizar de lancha entre camlias").

    A seguir, so mencionados os objetos do poema os seus possveis

    assuntos que so todos os objetos da vida: terra, pessoas, lugares,

  • incidentes, tempo, amor, sordidez. Aberto a tudo, o poema inicia sua

    viagem mortal (porque destinada ao fracasso), movendo-se "em meio a

    milhes e milhes de formas raras, secretas, duras" as formas do mundo

    e da linguagem. O poema, que o interlocutor do poeta nas ltimas

    estrofes, abre-se tambm para a realidade social e percorrido por ela,

    como diz a forte imagem final do poema:

    ...Tal uma lmina, o povo, meu poema, te atravessa.

    A segunda pea do livro, "Procura da Poesia", tambm uma arte

    potica, e tambm, como "Considerao do Poema", se inicia com

    preceitos negativos:

    No faas versos sobre acontecimentos. No h criao nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida um sol esttico,

    Pg. 53

    no aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversrios, os incidentes pessoais

    [no contam. No faas poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortvel corpo, to inferno

    [ efuso lrica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro so indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equvoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda no poesia.

    No final, as proibies cedem lugar s prescries de uma potica que

    se pode chamar "lingustica":

    Penetra surdamente no reino das palavras. L esto os poemas que esperam ser escritos.

  • Esto paralisados, mas no h desespero, h calma e frescura na superfcie intata. Ei-los ss e mudos, em estado de dicionrio. [...] Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse peta resposta, pobre ou terrvel, que lhe deres: Trouxeste a chave? [...]

    Depois dessas duas grandes peas metalingusticas, encontramos "A

    Flor e a Nusea", cuja abertura antolgica:

    Preso a minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.

    Pg. 54

    Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir at o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me? O passeio pela "rua cinzenta" leva o sujeito a nusea, ao enjo, ao

    desejo de "vomitar esse tdio sobre a cidade". Desse enjoo, revolta, nusea

    e dio brota uma flor feia, sem cor e inclassificvel que fura o asfalto, ao

    mesmo tempo que parece armar-se uma tempestade, smbolo de uma

    violenta perturbao na ordem (ou desordem) desse tempo "de fezes".

    Nusea, em sentido psicolgico, termo do vocabulrio existencialista da

    poca (LA Nanse justamente o ttulo do famoso romance publicado em

    1938 por Jean-Paul Sartre); quanto a flor, encontramo-la, j no ttulo do

    livro, como imagem da poesia e do desabrochar revolucionrio.23

    23

    Merquior faz um julgamento severo, mas certeiro (no obstante o que possa haver nele de antipatia

    ideolgica". ao criticar o patetismo ("bastante espordico") e as imagens vagas de "A Flor e a Nusea" e

    poemas aparentados; " preciso reconhecer que o simbolismo fcil das imagens inorgnicas, esses

    grandes nomes abstratos (tdio, nojo, dio) enfraquecem o poema. A cor esttica desses versos to

  • "A Flor e a Nusea" foi includo por Drummond entre os poemas do

    indivduo, do "eu todo retorcido" ele exprime a reao do sujeito lrico

    diante do "desconcerto do mundo". Outros aspectos desse desconcerto

    sero tematizados em poemas do "choque social", como "O Medo"/'Carta a

    Stalingrado","Telegrama de Moscou", "Mas Viveremos", "Viso 1944",

    "Com o Kusso em Berlim", "O Elefante","Morte do Leiteiro", "Anncio da

    Rosa", "Nosso Tempo". Este ltimo um poema longo, um grande painel,

    em oito partes, da vida contempornea, de sua agitao desolada e

    dilacerante:

    Pg. 55

    Este tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vo percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em p na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis no bastam. Os lrios no nascem da lei. Meu nome tumulto, e escreve-se na pedra.

    A realidade social obstculo, mas no impede a busca da "precria

    sntese", o sonho de uma "chave" que explicasse o mundo, redimindo-o;

    uma "chave" buscada inutilmente nas horas insones de estudo, com a "luz

    dormindo acesa na varanda". As poucas certezas continua o poeta

    no so prprias, mas emprestadas, e no h qualquer sinal, na relao

    entre os homens, da utopia, da sociedade ideal sonhada. A atitude possvel

    de tensa expectativa, que desencadeia a revolta diante do "mundo errado"

    (disse Camus, um autor ligado ao existencialismo, que "a arte a expresso

    da mais alta revolta"), uma revolta expressa com veemncia nos versos

    imperceptvel quanto a de seu smbolo" (op. cit., p. 105).

  • seguintes.

    Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. So to fortes as coisas! Mas eu no sou as coisas e me revolto. lenho palavras em mim buscando canal, so roucas e duras, irritadas, enrgicas, comprimidas ha tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir.

    Pg. 56

    Note-se a experincia de impasse, de beco sem sada ou aporia

    (veremos adiante essa palavra), na relao entre a linguagem e o mundo. As

    imagens desse mundo tm por vezes contornos absurdos, aparentemente

    surrealistas, na viso da vida como atomizao, fragmentao, mutilao:

    Este e tempo de divisas, tempo de gente cortada. De mos viajando sem braos, obscenos cestos avulsos. [...]

    Na quinta parte do poema, desenha-se um quadro terrvel da vida

    cotidiana na grande cidade, caracterizada por automatismo, alienao,

    "reificao" ("coisificao"), rebaixamento dos instintos, tristeza

    entorpecida, falsificao, degradao:

    Escuta a hora formidvel do almoo na cidade. Os escritrios, num passe, esvaziam-se. As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas. Salta depressa do mar a bandeja de peixes argnteos! Os subterrneos da fome choram caldo de sopa, olhos lquidos de co atravs do vidro devoram teu osso.

  • Come, brao mecnico, alimenta-te, mo de papel, tempo [de comida,

    mais tarde ser o de amor. Lentamente os escritrios se recuperam, e os negcios,

    [forma indecisa, evoluem.

    Esse quadro impressionante termina com a execrao do mundo

    capitalista, revelando que Drummond, influenciado nessa poca pelo

    marxis-

    Pg. 57

    mo, confiava que os males da vida moderna pudessem ser superados apenas

    com a destruio da sociedade burguesa:

    O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuies, smbolos e outras armas promete ajudar a destru-lo como uma pedreira, uma floresta, um verme.

    Antonio Candido referiu-se, a propsito da poesia do "choque social"

    em Drummond, a "uma espcie de alargamento do gosto pelo quotidiano,

    que foi sempre um dos fulcros de sua obra e inclusive explica a sua

    qualidade de excelente cronista em prosa". Continua o mesmo crtico: "Ora,

    a experincia poltica permitiu transfigurar o quotidiano atravs do

    aprofundamento da conscincia do outro. Superando o que h de pitoresco

    e por vezes anedtico na fixao da vida de todo o dia, ela aguou a

    capacidade de apreender o destino individual na malha das circunstncias e,

    deste modo, deu lugar a uma forma peculiar de poesia social, no mais no

    sentido poltico, mas como discernimento da condio humana em certos

  • dramas corriqueiros da sociedade moderna".

    Candido cita o verso de "Carta a Stalingrado" "A poesia fugiu dos

    livros e est agora nos jornais" e comenta: "Este verso manifesta a

    faculdade de extrair do acontecimento ainda quente uma vibrao profunda

    que o liberta do transitrio, inscrevendo-o no campo da expresso. E o que

    faz Drummond no apenas com os sucessos espetaculares da guerra e da

    luta social, mas com a

    Pg. 58

    monte do entregador de leite baleado pelo dono da casa, que o tomou por

    um ladro ('Morte do Leiteiro1); com o anncio que pede notcias da moa

    desaparecida ('Desaparecimento de Lusa Porto' [de Novos

    Poemas]);sobretudo com o homem da grande cidade que vai cumprindo

    maquinalmente as obrigaes do dia para morrer noite, na mquina que o

    arrebatou ('Morte no Avio')". Ao lado de grandes poemas do ''choque

    social", A Rosa do Povo apresenta, ainda mais numerosos e de qualidade

    elevadssima, poemas de considerao existencial. Em "Versos Boca da

    Noite", desenvolve-se uma meditao sobre o envelhecimento que coloca

    Drummond ao lado dos grandes autores que escreveram de senectute (no

    fosse ele j um deles, depois de poemas como "Dentaduras Duplas"). Em

    "Morte no Avio", a perspectiva diante do fim fantstica: o poema

    contado no por um narrador defunto, mas por um defunto narrador, para

    fazer uso do jogo de palavras machadiano. E o homem j morto, que

    recorda os lances de seu dia, vividos sem qualquer conscincia da situao

    extrema. Os gestos banais da vida ganham o sentido grave que no tm no

    cotidiano e que lhes conferido pela iminncia da morte a situao,

    afinal, de todos os que vivemos: rondados sempre pelo abismo, mas

    geralmente inconscientes dele. O filsofo Heidegger fala do homem como

    ser-para-a-morte, tal como no poema de Drummond;

  • Acordo para a morte.24

    Barbeio-me, visto-me, calco-me. meu ltimo dia: um dia cortado de nenhum pressentimento.

    Pg. 59

    tudo funciona como sempre. Saio para a rua, Vou morrer.

    Em "Os ltimos Dias", a vida tambm contemplada da perspectiva

    da morte; mas, ao contrrio de "Morte no Avio", poema da morte no-

    pressentida, o que temos aqui a expresso do pressentimento ou melhor,

    do sentimento da morte, da conscincia de ser-para-a-morte:

    Que a terra h de comer. Mas no coma j. Ainda se mova, para o ofcio e a posse.

    Depois de um inventrio do que ainda sobra para "os ltimos dias" (e

    a vida toda assim encarada), a hora final antecipada em versos de

    pathos extraordinrio intensificado pela invarivel simplicidade da

    escrita , num dos pontos altos da poesia de Drummond e, pois, de toda a

    poesia de lngua portuguesa:

    E que a hora esperada no seja vil, manchada de medo, submisso ou clculo. Bem sei, um elemento de dor ri sua base. Ser rgida, sinistra, deserta, mas no a quero negando as outras horas nem as palavras ditas antes com voz fume, os pensamentos maduramente pensados, os atos que atrs de si deixaram situaes.

    24

    Exemplo notvel de incio ex. abrupto, ou seja. incio em que j se entra de chofre no assunto, in

    medias res, "no meio das coisas", como se diz em latim. Repare-se na anttese do primeiro verso, que

    funde o incio do dia com o fim da vida.

  • Que o riso sem boca no a aterrorize e a sombra da cama calcria no a encha de splicas, dedos torcidos, lvido suor de remorso.

    Pg. 60

    E a matria se veja acabar: adeus, composio que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade. Adeus, minha presena, meu olhar e minhas veias grossas, meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro, sinal meu no rosto, olhos mopes, objetos de uso pessoal,

    [idia de justia, revolta e sono, adeus, vida aos outros legada.

    Outro tema importante em A Rosa do Povo o da famlia: "Retrato de

    Famlia", "Como um Presente" e "No Pas dos Andrades" so trs das mais

    memorveis variaes do poeta em torno desse assunto central de sua

    poesia. "Retrato de Famlia" refere-se ao mistrio da hereditariedade

    atravs de uma velha fotografia, na qual os sinais da crnica familiar,

    afastados no tempo e no amarelo da imagem, tornados estranhos,

    indistintos, levam contudo o sujeito a perceber no corpo, na carne, a

    presena da "estranha idia de famlia". O passeio pela fotografia e pela

    memria anima a antiga imagem esttica, Corno num filme preto-e-branco

    que se fixasse ocasionalmente em detalhes de uma foto e lhes desse

    contornos fantsticos, o travelliug drummondiano, explorando a superfcie

    da imagem e o recesso do sujeito, chega a toques quase surrealistas."Como

    um Presente" uma grave evocao da figura spera e enigmtica do pai

    morto, no dia de seu aniversrio, e tambm unia meditao sobre a

    existncia,como"Rua da Madrugada", outro poema em que comparece a

    lembrana do pai e que termina com um movimento desalentado de volta

    origem. Em sentido oposto, "No Pas dos Andrades" termina com o

    abandono do espao original, agora "dissipado".

  • No pais dos Andrades, onde o cho forrado pelo cobertor vermelho de meu pai,

    Pg. 61

    indago um objeto desaparecido h trinta anos, que no sei se furtaram, mas s acho formigas. [...] No pas dos Andrades, secreto latifndio, a tudo pergunto e invoco; mas o escuro soprou; e ningum

    [me secunda. Adeus, vermelho (viajarei) cobertor de meu pai.

    So famosos os poemas da terra natal constantes de livros anteriores:

    Itabira, cidade onde o poeta nasceu, passou a fazer parte da geografia

    potica brasileira, lembrada pelas caladas de ferro ou pela "vida besta".

    Mas h, em A Rosa do Povo, uma variante do motivo da terra natal: a

    "Nova Cano do Exlio", "traduo" moderna da clebre idealizao

    romntica da ptria, a "Cano do Exlio" de Gonalves Dias ("Minha terra

    tem palmeiras/ Onde canta o sabi"...):

    Um sabi na palmeira, longe, Estas aves cantam um outro canto. O cu cintila sobre flores midas. Vozes na mata e o maior amor. S, na noite, seria feliz: um sabi, na palmeira, longe.

  • Pg. 62

    Onde e tudo belo e fantstico, s, na noite, seria feliz. (Um sabi, na palmeira, longe.)

    Ainda um grito de vida e voltar para onde tudo belo e fantstico: a palmeira, o sabi, o longe.

    interessante acompanhar o poema de Drummond em cotejo com o

    de Gonalves Dias, do qual uma espcie de parfrase. O processo aqui

    utilizado concentrar o texto, reduzi-lo aos seus elementos essenciais

    lembra as "tradues para o moderno" de poemas de 13ocage ou dos

    romnticos brasileiros realizadas por Manuel Bandeira no auge do

    modernismo. O trabalho de Drummond, contudo, no humorstico como

    o de Bandeira; o poema "traduzido" no objeto de ironia, mas de

    penetrao compreensiva. O longe de Drunnuond traduz o l (= minha

    terra) de Gonalves Dias e equivale ao l-bas de Baudelaire no poema

    "Invitation au Voyage" ("Convite Viagem"), ou Pasrgada de Bandeira:

    o lugar-comum do ideal distante, da utopia, do sonho. Trata-se, no poeta

    moderno e no romntico, da expresso de um certo "platonismo": a viso

    de uma ptria ideal, essencial, "fantstica". Associado a esse platonismo, h

    tambm no poema, por via do estilo, o anseio de "reduo" da "ptria" a

    uma sntese admirvel e concisa, que deixe fora tudo que seja rudo,

    porosidade, tagarelice ("a ptria a saciedade" uma das associaes que

    ocorrem

  • Pg. 63

    no poema "Isso Aquilo", que leremos adiante). Enfim, celebra-se aqui o

    sonho de uma ptria finalmente livre da prpria ptria.

    O amor, o amar-amaro, comparece nesse livro em dois importantes

    poemas, "O Mito" e "Caso do Vestido". Este ltimo, como "A morte do

    Leiteiro", pode ser classificado como "drama do cotidiano", como sugere

    J.G. Merquior, que assim resume essa narrativa em 73 dsticos (estrofes de

    dois versos) em redondilhos maiores (versos de sete slabas), geralmente

    no-rimados: "Cercada pelas filhas, uma me conta o terrvel

    acontecimento passional que primeiro lhe levou e depois lhe devolveu o

    mando". Cria-se nesse poema, desde os primeiros versos, o tom dramtico

    e sombrio que dominar todo o seu desenvolvimento:

    Nossa me, o que aquele vestido, naquele prego? Minhas filhas, o vestido de uma dona que passou.

    "O Mito" tambm um caso de obsesso sexual; mas, diferente de

    "Caso do Vestido", seu tom no grave, antes satrico, com algo de farsa.

    Seus versos so tambm heptassilbicos, mas aqui eles se dispem em

    quadras no-rimadas, sempre rpidas e concentradas:

    Sequer conheo Fulana, vejo Fulana to curto, Fulana jamais me v, mas como eu amo Fulana. Amarei mesmo Fulana? ou iluso de sexo?

    Pg. 64

    Assim, ao longo de 178 versos, o amor absurdo e as loucas fantasias

  • do sujeito vo sendo apresentados e analisados: a semente do cime, a

    idealizao estapafrdia, os impulsos sdicos e masoquistas, o delrio

    ertico. O sofrimento se reveste de humor seco, o desespero chega

    aberrao, mas logo substitudo pelo arrependimento sensato. Fulana

    moderna e cheia de energia, sua sade e vitalidade destri os mitos

    literrios de amor idealizado, mas ela mesma um mito do sujeito:

    Fulana, como sadia! Os enfermos somos ns. Sou eu, o poeta precrio que fez de Fulana um mito, nutrindo-me de Petrarca, Ronsard, Cames e Capim. Petrarca,o grande modelo do idealismo amoroso renascentista, e seus

    seguidores Ronsard e Cames fazem parte da enumerao que culmina em

    Capim: "comida de burro". A auto-ironia do "poeta precrio", criador de

    Fulana, no poupa, em sua fina crtica ridicularizante, nem a utopia

    socialista que, como vimos, o poeta abraa, nesse livro, em momentos

    inflamados de retrica "socialista". Ele imagina reconstruir Fulana num

    mundo livre das contradies burguesas, onde ela, refeita e reeducada, j

    outra, como o sujeito:

    E digo a Fulana: Amiga, afinal nos compreendemos. J no sofro, j no brilhas, mas somos a mesma coisa.

    Pg. 65

    (Uma coisa to diversa do que pensava que fssemos.)

    A Rosa do Povo se encerra com dois longos poemas que constituem,

    nos termos do poeta, "cantares de amigos": "Mrio de Andrade Desce aos

  • Infernos" e "Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin". Temos, pois,

    nesse livro, uma ampla amostra dos "compartimentos" em que Drummond

    dividiu sua poesia. No falta tambm exemplo dos jogos verbais de "uma,

    duas argolinhas". "poro", um sonetilho (soneto em versos curtos) que

    surpreende por sua densidade:

    Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape. Que fazer, exausto, em pas bloqueado, enlace de noite raiz e minrio? Eis que o labirinto (oh razo, mistrio) presto se desata: em verde, sozinha, antieuclidiana, uma orqudea forma-se. poro, palavra formada com os elementos gregos a (prefixo

    negativo) e poros ("passagem","sada"), pode significar, em portugus, (1)

    situao sem sada, problema difcil, (2) uma espcie de inseto cavador, (3)

    um

    Pg. 66

    tipo de orqudea. Ativando esses trs sentidos, o poema relata a estria de

    um poro (inseto cavador) que, num poro (urna situao sem sada, um

    impasse uma aporia), se transforma num poro (uma orqudea). O texto

    se monta, pois, sobre um jogo de palavras, motivo de sua incluso entre os

    ''exerccios ldicos".

    Mas os jogos verbais no param a. Dcio Pignatari, numa anlise

  • minuciosa e reveladora de inmeros aspectos desse poema tenso e rico,25

    chamou a ateno para o sentido etimolgico de inseto, cuja raiz, se-/sec

    (a mesma de seo, seccionar) indica o fato de o corpo do inseto se dividir

    em sees. Pignatari mostrou que o inseto cavador, representado por sua

    slaba mediai, se, aparece ao longo do poema, metamorfoseando-se ou

    disfarando-se de diversas formas (ce, es, ze, ez, ex), sempre "bloqueado"

    no interior dos versos, sumindo s vezes e reaparecendo adiante, insistente,

    e assim compondo uma trilha semelhante do inseto em seu caminho de

    perfurao. No fim, ele desponta liberto, em forma-se, como uma orqudea

    surgindo na ponta de seu caule.

    No meio do poema (verso 7), o poro j se afasta de sua forma de

    inseto, o que sugerido pelo jogo que combina a slaba se com outras duas

    que tambm decorrem da palavra inseto e recorrem no texto: ENlaCE de

    noiTE encete. Pouco antes de a orqudea irromper no poema, ela

    anunciada na palavra que a descreve, antiEUCLIDIAna metamorfose

    final que aponta para o carter inslito dessa flor antigeomtrica (ou, mais

    propriamente, perturbadora da geometria corrente, instauradora de uma

    nova geometria). Mais uma vez, a imagem da flor indica o desabrochar de

    algo estranho e

    Pg. 67

    inovador, surpreendente e impondervel uma revoluo no mundo

    estabelecido.

    Outros jogos adensam a trama sonora e semntica do texto. Assim, a

    expresso sem alarme, em vez do habitual sem alarde, exibe e oculta o

    nome de um grande mestre da escavao no solo mineral da pgina branca:

    Stphane Mallarm (1842-96). Quando o se-inseto se livra da priso escura

    e enceta sua transformao em orqudea, num verso em que sua presena

    25

    Dcio Pignatari, "'poro'- um Inseto Semitico"; em: Contracomunicao. So Paulo: Perspectiva,

  • cambiante macia ("prESto SE dESata"), pode-se ler uma referencia

    crptica libertao, ento ocorrida, do lder comunista Lus Carlos Prestes,

    que estivera nas prises tia ditadura de Getlio Vargas. No sem razo, esse

    jogo envolve a palavra presto, um pouco estranha ao vocabulrio nada

    rebuscado que majoritrio no poema (as outras fugas ao lxico mais

    habitual so tambm pontos em que o sentido se adensa e as palavras se

    superpem: o poro do ttulo, a expresso sem alarme e o inusitado

    adjetivo antieuclidiana).

    Assim, o impasse, a aporia de "poro" no simboliza apenas o beco

    sem sada existencial de vrios outros poemas de Drummond (como "Jos",

    cujo refro se tornou lugar-comum: "E agora Jos?"). A referenda poltica

    que tambm h no texto a abertura revolucionria do "pas bloqueado"

    (e o pas vivia as esperanas decorrentes do fim da ditadura Vargas, aps o

    trmino da guerra) soma-se ao sentido metalingustico, de considerao

    do poema como flor antigeomtrica, brotando no solo difcil da pgina

    branca, dos subterrneos da linguagem em que se misturam "noite, raiz e

    minrio". (Lembremo-nos aqui do final de "Procura da Poesia".) Portanto,

    "poro", sob a capa de uma brincadeira, um "exerccio ldico", um ponto

    de cruzamento de trs reas temticas centrais de A Rosa do Povo, assim

    como de toda a poesia de Drummond: a existncia, a sociedade e a prpria

    poesia.

    Pg. 68 (pgina em branco)

    1971. Semitica significa "relativo a signos, feito de signos".

  • Pg. 69

    44..

    NNOOVVOOSS PPOOEEMMAASS ((11994488)),,

    CCLLAARROO EENNIIGGMMAA ((11995511))

  • Pg. 70

    m Novos Poemas, iniciam-se as transformaes

    que se confirmariam nos prximos livros.

    Ganham cada vez mais espao os textos em tom

    homogeneamente grave, de interrogao

    existencial, mnguam a poesia do cotidiano e os

    temas sociais. Essa breve coletnea, porm,

    apresenta ainda alguns poemas cujos elementos temticos e estilsticos

    esto em perfeita continuidade com a fase anterior. E o caso de

    "Desaparecimento de Lusa Porto" e do inquietante "Pequeno Mistrio

    Policial, ou A Morte pela Gramtica".

    A necessidade de exprimir o que atual e premente, que atinge seu

    clmax em A Rosa do Povo e est quase inteiramente ausente de Novos

    Poemas, ser decididamente abandonada em Claro Enigma, como o poeta

    anuncia desde a epgrafe "Les vnemens m'nnuient" ("Os

    acontecimentos me entediam"), de Paul Valry (1871-1945). A frase

    anuncia explicitamente que o poeta se despede da temtica social e poltica,

    em favor de temas ditos filosficos. Outra mudana que ele cultiva com

    mais insis-

    Pg. 71

    tncia o verso metrificado e as formas da tradio, notadamente o soneto.

    Sua linguagem j pouco ostenta do modernismo dos livros anteriores; ao

    contrrio, tende para um idioma potico mais tradicional, mais em

    consonncia com as normas lingsticas do passado.

    Houve quem celebrasse essa direo como sinal do amadurecimento

    do poeta, como expresso de aprofundamento em suas preocupaes

    existenciais e especulativas, e testemunho de grande mestria verbal. Outros

  • os que privilegiavam o lado mais renovador de Drummond viram no

    livro uma "virada" reacionria, um retrocesso afinado com a campanha,

    promovida pela "Gerao de 45",26

    de restaurao de convenes pr-

    modernistas.

    Qualquer que seja a opinio que tenhamos sobre essa fase de

    Drummond, certo que Claro Enigma contm poemas magistrais, alguns

    dos quais contam (mesmo os contemptores do livro o reconhecem) entre o

    melhor de toda a nossa literatura. Esto neste caso, especialmente, dois

    altssimos momentos os que encerram o livro nos quais a emulao

    com Dante e Cames nos mostra o quanto Drummond estava distante de

    qualquer decadncia.

    O ttulo do livro um oxmoro anttese em