Abdias Nascimiento De Nao Cidadao a...
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ABDIAS NASCIMENTO: DE NÃO CIDADÃO A PENSADOR Alain Pascal Kaly
Professor da Sócio-história e Culturas Africanas no Depart. História da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Pós-doutorando no departamento de História da Unicamp
« Une civilisation qui s´avère incapable de résoudre les problèmes que suscite son fonctionnement est une civilisation décadente. Une civilisation qui choisit de fermer les yeux à ses problèmes les plus cruciaux est une
civilisation atteinte »
(Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme)
Introdução Dois escritores africanos, Nadine Gordimer e Mia Couto, trouxeram nos seus respectivos
romances, A arma de casa e Cada homem tem a sua raça, temas caros e instigantes para o Brasil.
A primeira coloca em pauta de discussão, por meio da sua produção romanesca, a situação do negro
sul-africano pós-Mandela. Para mostrar que as mentalidades ainda não estão prontas para viver na
nova África do Sul, a autora constrói a sua trama em torno de um assassinato. Para surpresa de
todos, o assassino é um jovem branco, filho de uma família da classe média alta que durante o
tempo do apartheid nunca se havia posicionado politicamente em favor do sistema. Mas mesmo
assim os pais do jovem assassino acreditavam que os negros eram seres humanos inferiores e
incapazes. O filho, que já estava preso, é aconselhado a contratar o melhor advogado criminalista
do momento.
Acontece que este é um negro. Quando os pais do rapaz o encontram pela primeira vez, vão
procurar o filho para mudar de advogado. Para eles, o melhor advogado criminalista capaz de
salvar seu filho só poderia ser um branco. Mas, como já mencionei anteriormente, a temática do
romance consiste em trazer à tona discussões sobre o lugar do negro na nova sociedade sul-
africana: “Onde estamos, de onde viemos, aonde estamos indo?” Essas discussões não fariam parte
das questões tabus na sociedade brasileira?
O segundo escritor – moçambicano – traz discussões sobre como as preocupações
individuais fizeram com que cada corpo de um ser humano seja a sua própria fronteira
intransponível. Pensava-se que com a globalização as fronteiras seriam mais flexíveis, porém se
percebe que o ser humano nunca foi tão solitário e fechado como agora. Além da solidão, nunca a
humanidade viu o surgimento de tantas reivindicações e guerras étnicas. Ciente dessa nova
realidade, Mia Couto faz uma desconstrução do semelhante, colocando em debate a questão da
diferença construída: somos diferentes por nascermos com a pele preta, branca ou amarela? A
pergunta de Mia visa, na realidade, trazer à tona discussões sobre hierarquizações e tratamentos
com base na cor da pele. Mesmo estando o Brasil geograficamente distante dos países dos dois
escritores, as temáticas dos seus romances são muito atuais e caras a este país: as barreiras que
muitos afro-brasileiros devem enfrentar no mercado de trabalho devido à cor da pele e ainda à
crença na incapacidade e inferioridade do negro em certas áreas de conhecimento por causa dos
resquícios da escravidão.
Durante décadas, a biologia e a antropologia física elevaram a raça a categoria de estudo.
Mas vale salientar que a divisão das raças operada pelas duas ciências tinha como algumas de suas
funções, no século XIX, justificar a colonização e a exploração das matérias-primas pelas potências
européias. A colonização passou a ser vista como um “mal necessário”, na medida em que ia tirar
os povos colonizados da barbárie, elevando-os ao status de seres humanos civilizados.
À medida que a segunda metade do século se foi desenrolando, rumo a uma nova era de
expansionismo imperialista europeu, surgiram idéias racistas que foram entrando em moda para
justificar e apoiar a dominação formal e informal européia sobre povos de todas as demais regiões
do globo. Em escala cada vez maior, à medida que os antropólogos físicos europeus proclamavam a
inferioridade das “raças escuras” e que o trabalho de Darwin era mal interpretado e utilizado para
corroborar a afirmação de que algumas raças foram marcadas por sua superioridade material -
especialmente no âmbito tecnológico e industrial –, o racismo e o “fardo do homem branco”
passaram a substituir o ideal da igualdade por meio da conversão1.
As barbaridades da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais colocaram em dúvida e até em
xeque a civilidade da chamada “raça branca”. Isso levou as mesmas ciências e tantas outras a negar
a existências das raças. Hoje, sustenta-se que a humanidade compreenderia uma só raça, a raça
humana. Mas até que ponto o mea culpa das ciências conseguir reparar os males cometidos em
sociedades cujas hierarquias eram e continuam sendo baseadas na cor da pele, isto é, na raça? Seria 1 SPITZER, Leo (2001, 85). Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro, Ed. UERJ.
possível jogar fora de um dia para o outro a categoria que permite apreender algumas das causas da
hierarquização e da marginalização de determinados grupos sociais em países como o Brasil? Se é
verdade que há uma só raça humana, como hoje pregam as ciências, como explicar a existência de
empecilhos colocados para manter os seres humanos da “raça negra” quase que nos mesmos
lugares ocupados por seus antepassados no tempo da escravidão?
No Brasil, esse discurso de uma só raça humana foi e está sendo muito bem aplicado por
cientistas sociais ditos “progressistas”. É freqüente ouvi-los proclamar a inexistência de “brancos”
no Brasil, embora nunca preguem a inexistência de negros. Não percebem a perversidade e a
nocividade desse tipo de discurso num país onde a hierarquização se faz a partir da tonalidade da
pele. Saliento que o discurso dos “progressistas” é perverso e nocivo na medida em que a postura
adotada visa, sem que estes muitas vezes percebam, calar, minar e esfacelar qualquer possibilidade
de discussões esclarecedoras, para os novos alunos das ciências humanas, sobre as finalidades da
construção das diferentes raças e ao mesmo tempo sobre o conceito de uma só raça humana. Nas
salas de aula, é possível ouvir alguns desses mestres pedirem aos alunos: “Quem é branco nesta
sala levante a mão?” Mas eles não pedem aos negros que levantem a mão nem afirmam em sala de
aula que não há negros no Brasil. Muitos deles conseguem argumentar “cientificamente” sobre a
dificuldade de dizer “quem é negro” quando se trata de discussões sobre as ação afirmativa e cotas
para negros no funcionalismo público e no acesso ao ensino superior público. Parece que os
mesmos “progressistas” não têm nenhuma noção da perversidade e da onipresença do racismo
brasileiro na vida cotidiana dos estudantes negros e das pessoas negras em geral.
Não pretendo discutir aqui a existência ou não de discriminação racial no Brasil. A minha
reflexão visa analisar como é difícil para um afro-brasileiro ser um pensador e sobretudo conseguir
divulgar um trabalho científico que vai de encontro à ideologia da democracia racial. O trabalho é
centrado sobre Abdias Nascimento, mas discutirei também as produções de duas mulheres afro-
brasileiras cuja qualidade não foi suficiente para alçá-las ao panteão dos papas da questão racial no
Brasil.
Experiências como Pontos de Reflexão Acadêmica
Dois fatos fizeram-me interessar pela produção intelectual e pela vida do personagem aqui
examinado. O programa de literatura do segundo ano de segundo grau no Senegal concentra-se nas
produções literárias negro-africanas e da Diáspora. Porém a maior parte é consagrada à literatura
dos afro-norte-americanos e à dos escritores das Antilhas francesas e inglesas. O vigor intelectual
do afro-martiniquenho Aimé Césaire fez com que ele seja mais estudado nos países da África cuja
língua administrativa é o francês do que o senegalês Léopold Sédar Senghor. Lembro-me que um
dia um colega perguntou ao professor por que não se estudava a literatura dos negros brasileiros. O
professor, depois um silêncio que nos pareceu uma eternidade, respondeu: “Acho que não
escrevem.” Mas alguns minutos depois tentou corrigir-se: “Não conheço nada até agora escrito por
um negro brasileiro.” O mesmo professor que desconhecia a produção literária dos afro-brasileiros
e muitos colegas da turma podiam, com certeza, declinar os nomes de alguns excelentes jogadores
de futebol afro-brasileiros que brilharam em várias Copas do Mundo. Os negros do Brasil são mais
conhecidos em função do esporte (futebol) e da música (samba) do que no mundo acadêmico.
O segundo fato aconteceu em Salvador, quando eu cursava, na Universidade Federal da
Bahia, a minha primeira disciplina do mestrado sobre a questão racial. Ao receber a bibliografia do
curso, perguntei ao professor o porquê da não inclusão das obras de Abdias Nascimento.
Respondeu-me ele: “Abdias Nascimento é muito mais militante que intelectual.” Interessei-me
então pelas obras daquele pensador, que me lembrava o vigor intelectual do martiniquenho Aimé
Césaire. O fato de o autor ser um negro levou-me a ler os seus livros com muito cuidado e emoção
por ter pela primeira vez diante de mim a produção de uma pessoa que me fazia ver o racismo
brasileiro de um outro prisma. Pela primeira vez, eu estava diante das análises de um pensador afro-
brasileiro que descrevia de maneira minuciosa e profunda a realidade vivida cotidianamente no
Brasil por milhões de pessoas de origem africana, inclusive eu, e sobretudo as raízes de algumas
das causas da exclusão sócio-econômica e político-cultural da esmagadora maioria dos afro-
brasileiros. As suas análises e denúncias eram apoiadas em dados tirados dos arquivos oficiais do
Governo Federal e da realidade do dia-a-dia. Mas o que é ser um intelectual militante? A produção
intelectual não seria em si outra forma de militância numa sociedade cujas seqüelas da escravidão
estão ainda tão presentes? As potências coloniais não tinham os seus pensadores militantes? E os
antropólogos físicos do século XIX não poderiam ser vistos e tratados como militantes das
potências colonizadoras já que pregavam a inferioridade dos povos não-brancos para justificar a
colonização? Os nazistas não tinham os seus teóricos e ideólogos? Os judeus também não tinham
os seus? Por que, quando se trata dos grupos minorizados (mulheres, negros, homossexuais,
índios...), os teóricos desses grupos são tratados como militantes e não como teóricos e ideólogos?
Numa sociedade tão hierarquizada como a brasileira, o cientista social pertencente aos grupos
minorizados que vivem na situação de marginalização e de subalternidade deveria estar escrevendo
para qual “plataforma”? Por que a produção científica de Abdias Nascimento é tão desconhecida e
sobretudo tratada como apenas militante?
Escrever sobre Abdias Nascimento leva sempre à formulação de muitas perguntas. A
principal delas é: por onde começar e o que dizer sobre ele? Essas e tantas outras questões fizeram-
me buscar inspiração em Pierre Bouvier. Este começa a sua análise da obra de Franz Fanon, no seu
livro justamente intitulado Fanon, chamando a atenção do leitor para o fato de que, para apreender
o conteúdo da obra de alguns intelectuais e sobretudo o vigor das suas análises, seria necessário
conhecer o contexto social no qual esses pensadores nasceram e cresceram, assim como as
limitações que lhes foram impostas em razão de sua pertença racial. No caso de Abdias
Nascimento, comecei a conviver um pouco com o contexto social semelhante ao dele na cidade de
Salvador. Isso ajudou bastante durante a análise da sua marginalização no mundo acadêmico. Mas
o que caracterizaria um pensador vítima da colonização ou dos resquícios da escravidão e vivendo
na situação de marginalização e subalternidade?
Apesar de ter feito o curso de português em Florianópolis e de ter morado quatro meses São
Paulo, antes de ir para Salvador, acredito ter tomado o verdadeiro contato com o “Brasil
desconhecido” nesta última cidade, mais especificamente na Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, em 1991. Durante o curso de português e em São Paulo, discuti
bastante com os outros alunos africanos a situação do negro brasileiro. Mas em Salvador eu estava
na cidade com maior percentual de negros do país. Tinha vizinhos e colegas negros. O Brasil
desconhecido começou a me ser revelado pouco a pouco por um vizinho negro. Este vivia com a
mãe, os irmãos, a irmã e a sobrinha. A mãe, a irmã e a sobrinha eram as pessoas que tinham a pele
mais clara na família. Um domingo, como de costume, fiquei conversando sobre minhas primeiras
impressões a respeito de ser negro em Salvador e as múltiplas denominações usadas para não
chamar de preto ou preta uma pessoa cuja cor da pele é exatamente essa. Naquele dia, o vizinho
deu-me uma longa aula sobre cor da pele e no final revelou as confidências do seu falecido pai. “O
meu pai diz que se casou várias vezes com mulheres negras2, mas nunca teve filhos com nenhuma
delas. ‘Sou eu que não queria ter filhos com elas. Eu gostava muito de cada uma delas. Tive filhos
só com a mãe de vocês, que foi a minha última mulher. Não tive filhos com as outras porque tinha
medo que os filhos tivessem que sofrer muito por causa da cor da pele. Eu sabia que, ao ter filhos
com uma mulher mais clara que eu, os meus filhos seriam mais claros e sofreriam menos na vida.’”
Naquele dia o meu vizinho falou de maneira mansa, com a cabeça abaixada, e no final tinha
os olhos vermelhos. Depois da sua fala, ficamos sentados sem dizer nada. O nosso silêncio era a
maneira encontrada para compartilhar o sofrimento do seu pai, mas também dele.
Qual deve ser o dia-a-dia de um homem com tantos conflitos? Qual deve ter sido o
sofrimento do pai do meu amigo para poupar a sua futura prole de ter que ser julgada e condenada
somente pela cor da pele?
Leo Spitzer considera situações como as da família do meu vizinho soteropolitano, citando
Carl Degler (2001), como “saída de emergência do mulato”. Segundo Spitzer (2001), Degler
sustenta que, numa sociedade tão hierarquizada, a aceitação social no mundo dos brancos seria
muito mais fácil para os mulatos do que para pessoas de cor preta. Mas vale ressaltar que Matoso
(1996) e Fraga (1996) afirmam que durante a escravidão muitos ex-escravos, os livres e os libertos
de cor preta, tinham sérias dificuldades para encontrar trabalho. Nas profissões que exigiam
contatos com pessoas endinheiradas, os donos preferiam empregar pessoas livres de cor mais clara.
Essa realidade é ainda muito visível na cidade de Salvador3. É por isso que concordo com Spitzer
quando afirma que a solidez dos preconceitos faz com que seja quase impossível esquecer quem
somos. Acrescento que a solidez dos preconceito faz com que seja impossível esquecer a origem
dos nossos antepassados e que percebamos que não houve ainda uma ruptura umbilical com a
maior parte das condições sócio-econômicas e jurídico-culturais vivenciada pelos vitimados.
Foi depois desse relato que as múltiplas denominações de cor começaram a fazer sentido
para mim. A cor preta era e continuava sendo um fardo muito pesado naquela sociedade que
acabava de me acolher. Era muito mais que um peso: levava muitas pessoas a reprimirem
sentimentos, dificultava a ascensão social e profissional de homens e mulheres, transformando,
2 Entenda-se aqui por mulher negra uma mulher preta. Na maioria dos casos, quando se fala de pessoas negras no Brasil, envolvem-se pessoas de cor preta e as chamadas de morenas, pardas, mulatas... 3 Em julho de 2001, alguns militantes de várias entidades do movimento negro do Rio de Janeiro organizaram uma manifestação no Shopping Rio Sul denunciando a não contratação de funcionários negros como vendedores das lojas. Vale mencionar que o Rio Sul é um dos Shoppings freqüentados pelas pessoas endinheiradas do Rio de Janeiro. Essa manifestação mostra por si só que em alguns setores da vida brasileira há pouquíssimas mudanças de mentalidades. Os poucos funcionários negros que vimos na entrada e na saída desse shopping eram seguranças.
assim, milhares deles em cidadãos periféricos e em pessoas violentadas. Uma dimensão da
violência tão presente, mas ainda mal estudada.
Muitas pessoas podem sustentar que faltava uma estrutura psicológica ao pai do meu antigo
vizinho para enfrentar o racismo. Mas qual é o pai ou a mãe que gostaria de ver a sua prole sofrer?
E será que há estruturas psicológicas para agüentar humilhações por causa da cor ou pelo
pertencimento a um grupo marginalizado e subalternizado? A resposta a esta pergunta foi dada de
maneira brilhante por Spitzer na parte do livro consagrada a Stefan Zweig. Independentemente dos
meios usados para fugir da situação de marginalidade, o autor sustenta que o sucesso da fuga é
sempre curto. Os personagens do livro de Spitzer (Joseph May, Stefan Zweig e André Rebouças)
foram vítimas de um assimilacionismo fracassado. “Não há comentário mais pungente ou mais
amargamente irônico sobre o fardo do assimilacionismo fracassado, por parte de um indivíduo
marginalizado, do que o suicídio, em 1915, do escritor haitiano Edmond Laforest, que amarrou um
dicionário Larousse ao pescoço e saltou de uma ponte para a morte4.”
Percebe-se que o fracasso da assimilação pode levar seres humanos a um desespero
traumatizante. Essa realidade dolorosa que leva as vítimas a tirarem a própria vida faz com que
certas conclusões de Durkheim (1982)5 sobre o suicídio se mostrem inválidas. Para aquele
pensador, o suicídio seria um ato anti-social, aberrante e até desviante. No caso do Brasil, o
embranquecimento não poderia ser visto como uma válvula de escape para muitos brasileiros de
origem africana de ambos os sexos, que renasceriam de maneira humanamente dignificada a partir
de uma criança mais clara?
Um dia, quando eu fazia o segundo semestre da graduação em antropologia, o meu
professor chegou à sala de aula transtornado. Parou e olhou longamente para cada aluno e começou
a dizer: “Se fosse nos Estados Unidos, você seria negro/a.” Quando chegou a minha vez, disse a ele
que sei que sou de cor preta. No final desta estranha cena, perguntamos ao professor o que o tinha
levado a se comportar dessa forma. “Até ontem, eu fazia parte de um projeto de pesquisa
envolvendo pesquisadores norte-americanos e brasileiros. Tive um pequeno problema com um
colega norte-americano e ele me tratou de negro.” Nesse relato, havia muito de não dito por parte
do nosso professor. Este, pelas suas atitudes e colocações, por vezes racistas, achava-se um
“branquelo” de olhos azuis. Todos os alunos sabiam que ele era negro, menos ele. Qual não foi a 4 Spitzer (op.cit, 201). 5 Durkheim, Emile. O suicídio. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
minha surpresa ao entrar num terreiro de candomblé de Salvador: o nosso professor estava lá sem
sapatos, curvando-se para receber as bênçãos das mães e dos pais-de-santo. Assim é a vida em
Salvador. Sempre pensei que antropólogos fossem pessoas mais ou menos resolvidas. É por isso
que concordo com Fanon quando este afirma que “l’homme est ce par quoi la Société parvient à
l’être6”.
Acho que Abdias Nascimento é um dos poucos brasileiros que aprenderam muito bem com
as mazelas do racismo em seu país. Entendo por isso pessoas que, a partir de suas feridas
psicológicas profundas e das incapacidades profissionais e intelectuais atribuídas e legitimadas
devido à tonalidade da cor da pele, começaram a procurar parceiros no mundo intelectual, político e
artístico e meios para colocar em debate a realidade do negro brasileiro. Foi a morte social do
próprio negro devido ao cerceamento dos tentáculos invisíveis do racismo brasileiro que levou o
autor a sintetizar essa morte de maneira brilhante no título do seu livro O genocídio do negro
brasileiro. Para Abdias, a política do embranquecimento seria mais perversa que o homicídio
físico. Peço desculpas por fazer uma citação tão longa, porém ela aponta na mesma direção que
Nascimento no que diz respeito à política de embranquecimento.
Todavia, tal como o “embranquecimento” e outras respostas “escapistas”, como a conversão
religiosa ou o suicídio, passar-se por branco era, acima de tudo, uma solução pessoal para a
discriminação e a exclusão. Era um ato que, quando praticado com sucesso, em geral separava seus
praticantes individuais de outras pessoas do grupo subalterno, e que em nada questionava a
ideologia do racismo ou o sistema em que ela se enraíza. De fato, como os indivíduos que reagiam
à marginalização por meio da conversão, do embranquecimento e da falsa identidade podiam ser
vistos como cúmplices conscientes de sua própria vitimação – como pessoas que consentiam na
manutenção contínua das desigualdades e das ideologias excludentes -, é compreensível, por certo,
que muitas vezes despertassem críticas sarcásticas de seus contemporâneos7.
Disse anteriormente que tive colegas afro-brasileiros na faculdade. Vale lembrar que esta
fica ao lado de uma das maiores e mais antigas favelas de Salvador: Cala Boca Calabar. É uma
favela incrustada entre prédios de luxo no bairro de Ondina. Naquela favela morava um dos meus
colegas, Duda, que foi um dos fundadores da Associação dos Moradores de Calabar, organizada na
década de oitenta para enfrentar a ameaça de despejo. Como a grande maioria dos estudantes afro- 6 Fanon (1975; 8-9). Peau noir et masques blancs. Paris, Seuil. 7 Spitzer (op.cit, 205).
brasileiros, além de estudar ele trabalhava, em seu caso na Petrobrás. Ao longo dos anos percebi
que Duda decidira estudar para obter o diploma universitário, mas sobretudo para dispor de meios
acadêmicos que lhe possibilitassem uma boa apreensão e análise da sua realidade. Durante os
poucos momentos de discussões nas aulas, as observações dele eram de uma riqueza da qual os
cânones das ciências sociais não conseguiam dar conta. Em nome do respeito a esses cânones, os
professores pareciam estar perdendo tempo ao deixarem alguns dos nossos colegas favelados
trazerem suas experiências – o que constituía a especificidade do negro favelado – à discussão. A
constante repressão às discussões sobre a realidade dos afro-brasileiros haviam tirado de Duda o
gosto pela academia. Se os professores não conseguiram moldá-lo, silenciá-lo, conseguiram
introjetar-lhe o desgosto pelas ciências sociais na universidade.
A riqueza das suas experiências fazia com que eu o procurasse sempre. Uma tarde, entrei
na favela à sua procura. Quando cheguei, percebi que estava transtornado pela minha “invasão”...
Se de um lado Duda ficou sem jeito, surpreso, do outro seus pais ficaram muito felizes com a
minha visita. Durante as conversas, percebi que Duda, apesar de ser um técnico em segurança na
Petrobrás, era tratado dentro da favela como um zé-ninguém pelos policiais que entravam a
qualquer dia e hora “à procura de marginais”, com armas prontas para fomentar a morte e deixar
rastros fúnebres nas escadarias. Visitar o Calabar colocou-me em contato com um Brasil que
praticamente só ganha visibilidade nas páginas policias dos jornais.
Paralelamente às discussões com Duda na faculdade, passei a procurar bons romances e
poesias escritos por pessoas de origem africana falando de ser negro no Brasil. Iniciei essa procura
por causa das produções romanescas sul-africanas de autores negros e brancos que levavam o leitor
a mergulhar nas entranhas do apartheid. O livro L’odeur de mon père, de Mudimbé (1982;143), é
uma crítica ao uso indiscriminado de conceitos das ciências humanas, por pesquisadores africanos e
estrangeiros, para analisar a maioria dos problemas sociais de cada sociedade. Acontece que muitos
desses pesquisadores, sobretudo os africanos, não conseguem perceber que nem todos os conceitos
são aplicáveis. Essa falta de percepção dos pesquisadores fez com que Mudimbé acreditasse muito
mais na produção literária, pois os escritores captam bem melhor a “alma” dos seus problemas:
“Quoi qu’il en soit, il est plus que probable que la ferveur avec laquelle nombre d’écrivains de la
génération presente interrogent le contexte réel de leur vie et de leurs traditions concourt à
différencier les sensibilités et les écritures. Il est donc possible, pour chaque création, de voir,
comme l’écrivait J.P. Richard, une activité positive et créatrice à l’intérieur de laquelle certains
êtres parviennent à coincider pleinement avec eux-mêmes8.”
Mas Mudimbé não foi o único a destacar a importância da produção romanesca para a
apreensão da cultura de um povo. “En fait, si l’on veut comprendre (sans préjugé, sans cliché) la
question juive telle qu’elle se pose aujourd’hui, sans doute vaut-il mieux lire la Contrevie que tous
les traités historiques, politiques ou sociologiques qui lui sont consacrés9.”
Por que semelhante literatura era e ainda é quase impossível de encontrar no Brasil? Será
que houve um pacto entre os negros e os brancos brasileiros para não relatarem suas experiências
raciais? Por que tal silêncio sobre um tema tão atual e que mina as relações sociais no dia-a-dia da
maioria da população? Como explicar que a grande maioria das pessoas que militam contra o
racismo não consiga encontrar facilmente nas suas lembranças de leitura o título de um romance
tratando do assunto? Será que são as editoras que censuram romances sobre a questão racial.
8 Mudimbé (1982), L’odeur de mon père: “De qualquer maneira, é mais que provável que o fervor com o qual muitos escritores da geração atual interrogam o seu contexto real, suas vidas e tradições faça com que haja diferenças na sensibilidade e nas maneiras de escrever. É então possível, para cada criação, ver, tal como o salientava J. P. Richard, uma atividade positiva e criadora no meio da qual alguns seres humanos conseguem preservar suas identidades.” 9 Scarpetta, Guy (1996;73), L’âge d’or du roman. Paris, Bernard Grasset. “Mas, se alguém pretende apreender (sem preconceito e sem clichê) a questão judaica tal como é discutida hoje, seria melhor ler [o romance] A contravida, que é melhor que todo o conjunto dos tratados de história, de ciência política e de sociologia que já a analisaram.”
Carolina de Jesus e Neuza Santos Souza:
Duas “metidas a pensadoras”
Meu primeiro livro de cabeceira no Brasil foi Quarto de despejo: diário de uma favelada,
de Carolina Maria de Jesus. Trata-se do diário de uma catadora de papel em São Paulo na década
de cinqüenta, que analisa o seu dia-a-dia, mas também a luta dos favelados para sobreviver.
Realidade ainda presente em muitas favelas do país10.
13 de maio Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. Nas prisões os negros eram os bodes expiatórios. (...) E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual: a fome11!
Comprei esse livro por acaso numa calçada de Salvador. Foi ao chegar em casa que me dei
conta de que havia adquirido um clássico brasileiro sobre a vida nas favelas e também sobre a vida
da grande maioria dos afro-brasileiros. Como explicar que esse livro seja tão desconhecido? Mas
não fui o único estrangeiro a ficar maravilhado com as informações nele contidas. Robert M.
Levine (1994) sustenta que o adotou em suas aulas na Universidade de Nova York em 1966. Com o
passar do tempo, percebeu que muitos colegas estudiosos da América Latina haviam incluído a
obra de Carolina em suas bibliografias de curso. Esses estudiosos concordavam quanto ao fato de
que os livros que tinham sobre o Brasil tratavam mais do Estado brasileiro.
Levine12 trazia informações que talvez pudessem elucidar parte das minhas dúvidas sobre a
quase ausência de temáticas negras na literatura brasileira e principalmente sobre o lugar reservado
aos intelectuais de origem afro-brasileira.
Em 1977 aconteceu de eu estar no Rio de Janeiro quando o obituário de Carolina Maria de Jesus apareceu no Jornal do Brasil. Confesso que fiquei surpreso com o tipo perverso de insinuação que o repórter deixava vazar contra ela. Ela não havia aprendido a
10 Trabalho como voluntário na ONG Projeto-UERÊ na Baixa dos Sapateiros no Complexo da Maré no Rio de Janeiro. Os meninos atendidos na creche e nas diferentes atividades têm direito ao café da manhã e ao almoço de segunda a sexta-feira. As imediações da sede são tomadas todos os dias por muitas mulheres que não têm o que comer em casa. Aproveitam-se dos descuidos dos monitores para colocar os seus filhos na frente dos outros a fim de que estes não fiquem sem comer. Algumas alegam que os seus filhos não têm condições para comer sozinhos. Dizem isso para poder entrar e dividir o almoço com os filhos. 11 Carolina de Jesus (1983;29), Quarto de despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 50 ed. 12 Levine, Robert M. (1994;203-4), “Um olhar norte-americano”. In: Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ.
tirar vantagem de seu sucesso e era atacada por ser obstinada na busca pessoal. Sem comoção, os fatos narrados mostravam-na arredia e fracassada. Fiquei chocado com as insinuações, principalmente porque nada era dito a respeito do valor simbólico de sua obra – que eu percebia como norte-americano com bastante nitidez –, nem sobre seu papel como a primeira voz a falar, com propriedade e testemunho, sobre a sordidez da vida favelada. Simplesmente o valor histórico de suas denúncias e a sua luta pessoal para se manter na cena pública a fim de conseguir reconhecimento foram esquecidos.
Se Levine ficou surpreso com o tratamento dado pela imprensa a Carolina Maria de Jesus,
eu mesmo fiquei mais surpreso ainda com o texto do seu colega brasileiro Meihy (1994;215), cujo
título é “Um olhar brasileiro”.. Contrariamente ao pensador norte-americano, o brasileiro não
conseguiu apreender a importância da obra de Carolina de Jesus. Para ele, a pobreza e a
miserabilidade descritas pela autora seriam a realidade da passagem de um Brasil “semicolonial”
para um país industrializado que estaria colocando um amplo segmento social que tenderia a ser
superado”.. A grande maioria dos favelados descritos por Carolina de Jesus era e continua sendo de
origem afro-brasileira. Essa constitui uma das conseqüências da integração periférica do negro
antes e depois da abolição da escravatura em 1888. A obra de Carolina trata da concentração da
industrialização brasileira no Estado de São Paulo, em detrimento de outras partes do país. Foi isso
que fez com que a cidade de São Paulo se tornasse o ponto de chegada de brasileiros de todas as
condições “à procura de dias melhores”. O segundo ponto que perpassa todo o livro é a situação do
negro na sociedade brasileira. Seria por acaso que a autora se lembrou do 13 de maio e afirmou que
a escravidão que estaria assolando o negro era a fome?
Meihy, o nosso autor brasileiro, não percebeu que Carolina estava fazendo uma pergunta ao
dizer “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual: a fome”. Essa frase,
por si só, é um resumo da condição vivenciada por milhões de negros brasileiros. O fato de ela citar
o ano leva-nos a acreditar que a autora teria deixado no ar para o leitor as seguintes perguntas: Por
que o 13 de maio seria uma data importante para os negros? O que teria melhorado na vida dos
negros setenta anos após a abolição da escravatura? Passado pouco mais de um século da abolição
da escravatura, a última pergunta deixada pela autora continua atual. As duas perguntas não
puderam ser analisadas por Meihy porque este sequer conseguiu visualizar a possibilidade de que
uma favelada estivesse fazendo perguntas eternizadas por causa da condição sócio-econômica e
jurídico-cultural periférica na qual se encontra a esmagadora maioria dos afro-brasileiros. O próprio
Levine não conseguiu perceber que o desrespeito do repórter do Jornal do Brasil era a prova de que
Carolina havia feito perguntas que perturbavam as consciências de muitos dos crentes da
“democracia racial”. Como também não conseguiu visualizar as dificuldades encontradas pelos
intelectuais afro-brasileiros nas suas trajetórias de pensadores. Carolina de Jesus carregava consigo
todos os estereótipos que fazem parte da vida de muitos negros brasileiros: era preta, favelada,
catadora de papelão, mãe solteira e semi-analfabeta.
Mas eu vejo na postura de Meihy o medo. As idéias de Carolina de Jesus — uma pessoa que
deveria ser vista e tratada como um zé-ninguém — vão continuar atrapalhando as consciências de
muitos pesquisadores e políticos para os quais os moradores das favelas são seu objeto de pesquisa
ou seu eleitorado. Nas favelas de muitas cidades do país, os meninos vão para a escola por causa da
merenda, que para muitos constitui o único prato do dia. Prova disso é que, quando há falta da
merenda, a evasão dos alunos fica incontrolável.
Ao ler Quarto de despejo, parece que o leitor está passeando nas mãos com o poema de
Aimé Césaire intitulado “Cahier d’un retour au pays natal”. O poema, publicado em 1937, é um
grito de alerta sobre a situação do negro nas Antilhas. Acontece que a fome descrita por Césaire
(1983;11-12) é parecidíssima com a de Carolina de Jesus:
Et ni l’instituteur dans sa classe, ni le prêtre au catéchisme ne pourront tirer um mot de ce négrillon somnolent, malgré leur manière si énergique à tous deux de tambouriner
son crâne tondu, car c’est dans les marais de la faim que s’est enlisée sa voix d’inanition
(un–mot-un-seul-mot et je-vous-en-tiens-quitte-de-la-reine-Blanche-de-Castille, un mot-un-seul-mot, voyez-vous-ce-petit-sauvage-qui-ne-sait-pas-un-seul-des-dix-commandements-de-
Dieu) car sa voix s’oublie dans les marais de la faim, Et il n’y a rien à tirer vraiment de ce petit vaurien,
Qu’une faim qui ne sait plus grimper aux âgres de sa voix Une faim lourde et veule,
Une faim ensevelie au plus profound de la Faim de ce morne famélique13.
Nesse pequeno trecho do poema de Césaire vemos as conseqüências da fome e a
insensibilidade do professor e do padre que, sendo originários de outra realidade sócio-econômica,
não conseguem ver que a chamada burrice dos meninos negros provém da falta de uma boa
alimentação. Mas o mesmo autor também tenta mostrar que o padre e o professor foram de
fundamental importância para a implantação e a consolidação dos diferentes tipos de sistemas que
reduziram povos de várias partes do planeta a grupos de seres humanos famintos. O professor
13 Césaire (1983): “E nem o professor na sua sala de aula, nem o padre na aula de catecismo conseguirão arrancar uma palavra desse negrinho sonolento, apesar da maneira enérgica de ambos de tamborilar sobre sua cabeça tosada, pois sua voz está atolada nas profundezas da fome (uma palavra-uma-só-palavra e estou-em-paz-com-a-rainha-Branca-de-Castela, uma palavra-uma-só-palavra, vejam-este-pequeno-selvagem-que-não-sabe-um-só-dos-dez-mandamentos-divinos) pois a sua voz se perde nas profundezas da fome. E não há nada a arrancar deste moleque, só uma fome sem voz, paralisadora, uma fome contida na Fome profunda deste triste faminto.”
produziu os assimilados, os civilizados, enquanto o padre assimilou pela conversão religiosa. Os
dois criaram homens desenraizados e famintos.
Vimos que Carolina também destacou que a Fome constituiria agora as novas correntes que
mantêm presa a grande maioria dos negros brasileiros14. “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu
lutava contra a escravatura atual: a Fome15!” Utilizei o “F” maiúsculo na palavra fome, como o fez
Césaire, para me referir à carência aguda que faz parte da realidade da grande maioria dos negros
brasileiros: famintos de uma boa escolarização, de uma boa alimentação, de um bom saneamento
básico, em suma, do tratamento dispensado aos cidadãos.
O segundo livro que me marcou foi o de Neuza Santos Souza16 intitulado Tornar-se negro
ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Ao ler o livro de Neuza, é
como se o leitor tivesse nas mãos o Peles negras, máscaras brancas de Frantz Fanon, que faz uma
análise dos traumas psicológicos dos negros descendentes de escravos, ex-escravos e colonizados.
Para Fanon (1975;118), esses traumas psicológicos viriam do complexo de inferioridade imposto
ao negro pelo branco.
Un drame chaque jour se joue dans les pays colonisés. Comment expliquer, par exemple, qu’un bachelier nègre, arrivant en Sorbonne afin d’y préparer une licence de philosophie, avant toute organisation conflictuelle autour de lui, soit sur ses gardes?17.
Contrariamente do que se costuma dizer, para Fanon o problema do negro chama-se o
branco.
No caso brasileiro, segundo a visão de Neuza, parece à primeira vista não haver diferença
em relação àquilo que Fanon tinha apontado com respeito aos negros colonizados e descendentes
de escravos:
A história da ascensão social do negro brasileiro é, assim, a história da sua assimilação aos padrões de relações sociais. É a história da submissão ideológica de um estoque racial em
14 A implantação do programa “Fome Zero” do governo de Lula torna o livro de Clementina de Jesus mais atual ainda. 15 Carolina Maria de Jesus, op. cit. 16 Tive a oportunidade de entrevistar longamente Neuza na casa dela em 2002 . 17 Frantz Fanon (1975): “Como explicar, por exemplo, que um estudante negro que acabou de obter o seu diploma de segundo grau e vem preparar a sua licenciatura em filosofia, antes mesmo que aconteça qualquer briga ao seu lado, já esteja em constante alerta?” Vale ressaltar que a semelhança entre os livros de Clementina de Jesus e de Neuza com os de Césaire e Fanon provém do fato em que os negros cujos antepassados vivenciaram a escravidão ou a colonização sofrem, independentemente, da língua, a situação geográfica os mesmos problemas quase.
presença de outro que se lhe faz hegemônico. É a história de uma identidade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do conhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação18.
Isso nos leva de volta ao meu antigo vizinho de Salvador cujo pai não tivera filhos com as
suas diferentes mulheres negras por medo de que estes fossem condenados pelo resto da vida em
função da sua cor num país cuja “democracia racial” foi e continua sendo um dos maiores produtos
de exportação. Num país onde ser negro é tão pesado que, para enganar o negro e fazê-lo acreditar
ser civilizado, moderno, foram-lhe atribuídas tantas denominações (moreno, pardo, chocolate,
marrom-bombom, cor-de-burro-quando- foge...) para que se ache uma pessoa mentalmente branca.
Essa realidade faz com que os traumas psicológicos do negro brasileiro passem a constituir uma
realidade mais brutal e específica. Foi essa percepção que tornou o livro de Neuza um clássico: o
negro rico perde a sua cor.
A especificidade do racismo brasileiro e o caráter minucioso da análise de Neuza foram
muito bem apreendidos por Jurandir Freire Costa no prefácio do livro, que o próprio intitulou “Da
cor ao corpo: a violência do racismo”.. Mas a melhor parte da análise de Jurandir está na conclusão,
em que ele questiona o silêncio dos cientistas brasileiros.
A violência racista pode submeter o sujeito negro a uma situação cuja desumanidade nos desarma e deixa perplexo. Seria difícil encontrar o adjetivo adequado para nomear esta odiosa forma de opressão. Mais difícil ainda, talvez, é entender a flácida omissão com que a teoria psicanalítica tratou até então este assunto. Pensar que a psicanálise brasileira, para falar do que nos compete, conviveu tanto tempo com esses “crimes de paz”, adotando uma atitude cúmplice ou complacente ou, no melhor dos casos, indiferente, deve conduzir-nos a uma outra questão: Que psicanálise é esta? Que psicanalistas somos nós19?
As duas perguntas feitas por Freire Costa no final do livro não são, na realidade, perguntas a
serem respondidas. Constituem antes uma análise intelectual muito sofisticada sobre a conivência
de boa parte dos cientistas brasileiros, em que o autor destaca, sobretudo, a importação não-filtrada
de conceitos que por vezes não permitem dar conta da realidade brasileira. De tal forma que as duas
perguntas poderiam ser formuladas da seguinte forma: Qual foi ou é a contribuição dos
psicanalistas e dos outros cientistas nacionais nas discussões sobre as conseqüências do racismo
para a população negra? Antecipando a negatividade da resposta, o autor expressa, na realidade, o
silêncio vergonhoso da sua classe profissional, e talvez a sua participação na criação e consolidação
18 Souza, Neusa Santos (1983;23), Tornar-se negro. Rio de Janeiro, Graal. 19 Costa, Jurandir F. (1982;16), “Da cor ao corpo: a violência do racismo”. Prefácio de Santos, Neuza Souza, Tornar-se negro.
dos meios para melhor desumanizar o negro. Mas foi Sartre (1991;54) quem melhor sintetizou as
razões que levaram tantos escritores e cientistas das ex-colônias vítimas das diferentes formas de
assimilação as serem tão virulentos:
Qu’est ce que vous espériez, quand vous ôtiez le baillon qui fermait ces bouches noires?
Qu’elles allaient entonner vos louanges? Ces têtes que nos pères avaient courbées jusqu’à terre par la force, pensiez-vous, quand elles se relèveraient, lire l’adoration dans leurs yeux?20
Parece que a elite brasileira encontrou muito cedo mecanismos para não ter de enfrentar
esses olhares de que nos fala Sartre: iniciar o processo de negação de si, de desumanização e de
inferiorização desde o nascimento dos negros. Há barreiras em todos os cantos para aprisionar o
corpo e a mente. Tudo foi previsto para evitar qualquer recurso à conotação racial: o mito das três
raças, como diria Da Matta, mas também o da docilidade do povo brasileiro. Fica patente que no
Brasil a pertença racial continua sendo classificatória.
20 Sartre, Jean-Paul (1991;54), Prefácio de Fanon, Frantz, Les damnés de la terre, Paris, Gallimard: “O que vocês esperavam quando arrancaram as mordaças que aprisionavam essas bocas pretas? Que iriam entoar-lhes louvações? Essas cabeças encurvadas à força até o chão por nossos pais, vocês pensavam que quando elas se erguessem estariam com os olhos cheios de adoração?”
Domesticação do Discurso: Intelectual Pensa,
Militante Milita21
Eu tinha de olhar o homem branco nos olhos. Um peso desconhecido me oprimia. No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades no desenvolvimento de seu esquema corporal.Eu era atacado por tantas, canibalismo, deficiência intelectual, fetichismo, deficiências raciais... Transportei-me para bem longe de minha própria presença... O que mais me restava senão uma amputação, uma excisão, uma hemorragia que me manchava todo o corpo de sangue negro22.
Mais que as obras de Carolina e de Neuza, foi a produção de Nascimento que me marcou
mais profundamente. A primeira impressão que me ficou da leitura de O genocídio do negro
brasileiro foi a despreocupação do autor com possíveis ou prováveis perseguições de colegas
pesquisadores cujos argumentos sobre o racismo foram mis à terre com dados e argumentações
irrefutáveis. Porém, indagados sobre ele, os diferentes interlocutores negros e brancos o
apresentavam como sendo apenas um grande militante do Movimento Negro.
Em 1998, passando em frente à Câmara de Vereadores de Salvador, vi muitos negros nas
escadas e fui informado de que Abdias Nascimento ia proferir uma palestra sobre a contribuição do
negro à sociedade brasileira. Ao entrar, informaram-me que a Câmara estava homenageando
algumas personalidades negras. As cadeiras do plenário foram tomadas, naquele momento, por
pessoas de origem afro-brasileira ligadas aos movimentos negros da cidade. E como o racismo de
Salvador é bem específico, os poucos brancos presentes não pareciam participar daquele evento.
Pelas suas atitudes, pareciam dizer: “É coisa para negros.”
Abdias, antes de começar a sua fala, olhou os diferentes retratos de personalidades políticas
de Salvador pendurados nas paredes e perguntou se “essa cidade tão negra não tem heróis negros”:
“Cadê os retratos destes heróis negros aqui?” 21 É preciso ressaltar que a dúvida sobre as capacidades do intelectual negro não é somente uma realidade brasileira. Toni Morrison (1993) no seu livro Playing in the dark mostra que os negros nortes-americanos foram vítimas do mesmo tratamento por parte dos intelectuais brancos. A autora analisa o papel do personagem negro nas produções romanescas de alguns dos maiores escritores, tais como Melville, Twain, Poe.. Senghor já tinha também tratado deste assunto em 1954 no seu texto intitulado “Comme les lamantins vont boire à la source” (in Leopold Sedar Senghor,. Poèmes. Paris, Editions du Seuil, 1984). O poeta sustenta que, para muitos críticos europeus, a grande maioria dos escritores negro-africanos e da diáspora não faziam mais que imitar o estilo de poetas brancos famosos. No seu artigo,, o autor mostra o que é a poesia e o lugar que ela ocupa nas culturas negro-africanas para enfim revelar os preconceitos embutidos nessas críticas sem fundamento. Vê-se que duvidar da capacidade intelectual do negro não é fenômeno recente. Porém a grande diferença entre os negros norte-americanos e o grupo de Senghor é que nos Estados Unidos os intelectuais negros conseguiam publicar porque muitos negros eram donos de editoras como também Senghor e companhia podiam publicar os seus livros na Editora Présence Africaine em Paris por pertencer a um senegalês. O caso do afro-brasileiro torna-se mais complicado porque a quase totalidade das editoras pertence aos brancos. 22 Fanon(1975, 110).
No final da solenidade, não foi possível conversar um pouco com ele, rodeado de políticos
de carteirinha e militantes interessados em serem fotografados ao lado do palestrante. Salvador é
muito carente de personalidades intelectuais que vivam na cidade. Quando chega uma para
palestrar, sobretudo sobre questões raciais, é preciso ser apadrinhado para poder chegar perto e
conversar.
O discurso de Abdias, que deveria causar nos políticos presentes um profundo mal-estar, no
final parecia versar sobre a realidade cotidiana dos Estados Unidos ou da África do Sul antes de
Mandela. É por isso que acredito que as perguntas introdutórias do discurso criaram um mal-estar
fingido. Salvador é uma cidade onde a ideologia da democracia racial está profundamente
enraizada. A ausência, na Bahia, de políticas públicas que possibilitem a ascensão em massa do
negro faz com que a produção de Abdias permaneça atual. Para ele, o racismo brasileiro teria suas
bases nas instituições da federação. Em sua visão, a subordinação racial foi e continua sendo um
dos pilares do desenvolvimento do seu país, cujo maior beneficiário era e ainda é o branco. Para
reverter essa situação, de modo a que o desenvolvimento em todos os setores possa beneficiar a
maioria da população, seria indispensável atacar os pilares fomentadores dessa subordinação racial.
Em novembro de 2001, durante a Semana da Consciência Negra, a Companhia dos
Comuns23 organizou um ciclo de palestras na Fundição Progresso, na Lapa, Rio de Janeiro. Essa
companhia caracteriza-se pela dignificação de atores negros brasileiros e por levar ao palco as
problemáticas que fazem parte da vida cotidiana do negro e das pessoas carentes do país. Abdias
Nascimento foi o palestrante mais esperado, pois os responsáveis técnicos da Companhia dos
Comuns eram seguidores desse fundador do Teatro Experimental do Negro. Não havia maior
autoridade que o próprio fundador do TEN para falar não só do negro no teatro brasileiro, mas
também da temática negra nas artes cênicas do país. Depois da palestra, diferentemente do que
ocorrera em Salvador, foi possível procurar o palestrante, felicitá-lo pela qualidade da palestra,
fazer uma breve apresentação e pedir para marcar um possível encontro.
Ler a produção acadêmica de alguém cujas argumentações e análises nos fascinam é uma
sensação menor que a de estar em frente dele. Essa sensação aumenta ainda mais quando nos
deparamos com uma pessoa de mais de oitenta anos disposta a nos ceder o seu precioso tempo. Por
onde começar as perguntas? Qual deve ser a primeira delas? Como fazer para não parecer muito
23 A Companhia dos Comuns é um grupo de teatro cujas peças tratam da questão racial no Brasil.
ignorante diante dessa biblioteca viva? Enquanto essas e tantas outras questões surgiam, ao mesmo
tempo eu estava muito feliz em poder ser recebido por esse senhor que, durante mais de uma hora,
ia me dar uma aula sobre as questões raciais no Brasil. Isso não quer dizer que eu não tenha
preparado antecipadamente o roteiro das perguntas.
Quando toquei a campainha na hora combinada, foi o próprio Abdias Nascimento que nos
abriu a porta, a mim e a Carlos Medeiros24, e nos convidou a entrar. Eu estava sentado em frente de
um senhor que havia acompanhado alguns dos maiores eventos da história do seu país, que
participara de diversos fóruns internacionais organizados por intelectuais africanos e da diáspora,
que acompanhara atentamente as lutas de independência dos países africanos e os diferentes
movimentos de libertação no século XX. Não só acompanhara como também se posicionara
política e intelectualmente para que o negro fosse visto e tratado como um cidadão em várias partes
do mundo.
Depois de uma conversa de quase duas horas, saí do apartamento com muito mais
perguntas:
Como explicar o silêncio sobre a produção acadêmica de Nascimento por parte de
muitos “especialistas” brasileiros da questão racial? Por que a grande maiorias dos militantes
desconhece a sua produção? Por que suas idéias são pouco aproveitadas pela nova geração
afro-brasileira? Será que ter morado muito tempo fora do país e ter se casado com uma
mulher branca fizeram dele, diante dessa geração tão carente, um traidor da causa25?
A partir dessas perguntas e de tantas outras, pretendo enveredar pelas causas do incômodo
causado pelos escritos de Abdias Nascimento, destacando o papel desempenhado pelo teatro. O
homem que me abriu a porta do seu apartamento era um senhor sereno, calmo. Mas, quando a
conversa começou, a tonalidade da sua voz era a de um homem violentado, humilhado, que sofrera
a vida inteira. Mas era também a voz de uma pessoa que parecia nunca ter parado de lutar, de
denunciar, mas também de propor soluções, de combater e de desmascarar, em todas as
oportunidades, os mecanismos da violência contra o negro brasileiro em fóruns nacionais e
internacionais. A insensibilidade das pessoas e até de alguns pesquisadores que já o entrevistaram
não lhes permitiu apreender naquele senhor, tido como alguém que fala muito, a vontade de bem 24 É mestrando na UFF em sociologia e direito e trabalhou durante muito tempo com Abdias Nascimento. 25 Acrescento essa pergunta porque muitos críticos de Senghor destacavam esse fato.
informar os jovens pesquisadores. O que é falar muito para um velho intelectual cujo desejo é
passar informações menos distorcidas sobre a situação do negro brasileiro e sobre a falta de
políticas públicas específicas para o afro-brasileiro, “dividido por afiliação cultural, cidadanias e as
demandas de identidade nacional e racial”, como diria Gilroy26 ao analisar o personagem negro de
Richard Wright.
A grande maioria dos intelectuais negros africanos e da diáspora (Aimé Césaire, Leon C.
Damas, Frantz Fanon, Senghor, Birago Diop, Cheikh Anta Diop...) precisou viajar para a França
para melhor sentir o peso da cor da pele. Dentre esses escritores, foi Aimé Césaire quem melhor
expressou a dolorosa realidade vivenciada pelas pessoas descendentes de escravos e pelos povos
colonizados ou transformados em párias em várias partes do planeta.
Partir. Comme il ya des hommes-hyènes et des hommes-panthères, je serais um homme- juif Un homme-cafre Un homme-hindou-de-Calcutta Un homme-de-Harlem-qui-ne-vote-pas L’homme-famine, l’homme-insulte, l’homme-torture on pouvait à n’importe quel moment le saisir le rouer de coups, le tuer – parfaitement le tuer – sans avoir de compte à render à personme sans avoir d’excuses à presenter à personne Un homme-juif Un homme-pogrom Un chiot Un mendigot Mais est-ce qu’on tue le Remords, beau comme la face de stupeur d’une dame anglaise qui
trouverait dans sa soupière un crâne de Hottentot?27
O partir de Césaire não deveria ser visto e interpretado como sendo uma fuga do poeta. É
uma tomada de distância, um recolher-se para melhor poder executar um salto de qualidade. Se
Césaire expressou a realidade dos colonizados e descendentes de escravos em várias partes do
mundo, também ressaltou que há dois tipos de seres humanos na face da terra: o primeiro é
composto por pessoas medrosas que se contentam com os restos deixados pelos mais fortes para
sobreviver (hommes-hyènes), enquanto o segundo é formado por pessoas cruéis que matam sem
26 Gilroy, Paul (2001;307), O Atlântico negro.. Rio de Janeiro, Editora 34. 27 Césaire, Aimé (1983;20), Cahier d’un retour au pays natal, Paris, Présence Africaine: “Partir. Como há homens-hienas e homens-panteras, serei um homem judeu, um homem-cafre, um homem-hindu-de-Calcutá, um homem-do-Harlem-que-não-vota. O homem-fome, o homem-insulto, o homem-tortura que pode a qualquer momento ser agarrado, espancado, assassinado, perfeitamente assassinado sem que haja necessidade de prestar contas a ninguém, sem pedir desculpas a ninguém. Um homem-judeu, um homem-pogrom, um cãozinho, um mendigo. Mas será que se pode matar o Remorso, lindo como o rosto de espanto de uma senhora inglesa que encontra na sua sopeira um crânio de hotentote?”
piedade, embora por necessidade (hommes-panthères). Por serem famintos, aceitam qualquer valor
para realizar os “serviços sujos” encomendados por aqueles que concentram todos os seus esforços
para evitar a mudança do sistema existente, que os privilegia. Mas os mais temidos são homens-
hienas. Conhecem os matadores, que eles próprios seguem a fim de comer seus restos, enquanto
apagam os vestígios deixados por estes porque precisam desses restos para continuar vivos. Assim,
os matadores continuarão agindo sem se preocupar em serem descobertos.
Porém, no que lhe diz respeito, ele seria o carregador da cruz de todos aqueles sofredores,
perseguidos: homens transformados em párias sociais, em não-cidadãos, em subumanos e em quase
animais.
Como há homens-hienas e homens-panteras, serei um homem-judeu Um homem-cafre Um homem-hindu-de-Calcutá Um homem-do-Harlem-que-não-vota.
Ele tem certeza de que ninguém poderia fingir que não é da sua conta ou que isso não lhe
diz respeito. Para esse autor, um ser humano que virar as costas ao seu próprio povo nunca terá a
consciência tranqüila, pois será sempre perseguido pelo remorso. “Mas será que se pode matar o
Remorso, lindo como o rosto de espanto de uma senhora inglesa que encontra na sua sopeira um
crânio de hotentote?” Essa imagem de Césaire foi não somente apreendida, mas também adotada
por Abdias Nascimento: “Para mim, a militância é também o trabalho acadêmico, porque nós
precisamos exatamente tirar da nossa mente essa lavagem cerebral de que a ciência, de que a
literatura, de que o saber é o monopólio da elite branca28.”
O partir de Aimé Césaire seria andar com a cruz, como os judeus que não foram perdoados
da suposta responsabilidade pela morte de Cristo. Assim, ele poderá revelar a realidade dos povos
oprimidos ao resto do mundo. Foi a missão que Césaire se auto-impôs a partir da França na década
de trinta. Vale ressaltar que naquele tempo houve uma grande troca de informações sobre a situação
dos negros africanos e da diáspora, assim como de outros povos colonizados. Mas será que Césaire
e muitos outros intelectuais negros africanos e da diáspora conheciam a realidade do negro
brasileiro? Não! Senghor, no seu discurso na Universidade Federal da Bahia em 1963, ressaltou que
o futuro da humanidade dependeria da mistura racial, e que o Brasil daria uma lição à humanidade.
Baseou a sua argumentação somente na obra de Gilberto Freyre Casa grande & senzala.
28 Entrevista com Abdias do Nascimento no dia 10 de janeiro de 2002.
Se Césaire fez da poesia e do teatro as suas armas de denúncia e de resgate da auto-estima
do negro em várias partes do mundo desde a década de trinta, Nascimento, tendo percebido como
Césaire a profundeza dos males cometidos contra os descendentes de africanos no Brasil, fez uso
do teatro para resgatar a auto-estima do negro, mas sobretudo para colocar em discussão a
problemática do afro-brasileiro na sociedade. Vale salientar, contudo, que a grande maioria dos
intelectuais (escritores e poetas) negros africanos e da diáspora encontrou no teatro um dos meios
de “descolonização das mentes”. Nascimento percebeu cedo que o sucesso da sua luta dependeria
das suas capacidades criativas e intelectuais, e também das alianças que pudesse estabelecer. Mas o
sucesso da sua empreitada como brasileiro de origem africana deveria começar pelo trabalho de
resgate da auto-estima, pela denúncia e pelo desmascaramento da ideologia da democracia racial
em fóruns internacionais, sobretudo aqueles organizados por intelectuais e artistas negros. Para
Nascimento, a especificidade e sobretudo a perversidade do racismo obriga a uma constante
mobilização para lutar contra as diversas formas de racismo e discriminação.
“Eu vou começar falando sobre essa última questão: todo negro, todo afro-descendente de
vergonha nesse país tem que ser militante. Só se ele não tiver vergonha de querer ser um
subserviente, de querer ser sempre um pau-mandado dos brancos, porque não existe racismo pior
do que o racismo brasileiro. Ele esconde as unhas, ele esconde toda a sua crueldade e perversidade
através duma capa falaciosa de democracia racial. Assim que a resposta é simples [para o fato] de
não aparecerem os escritores negros.”
Ferrarotti (1990,17) salienta que um grande um escritor fica tão compenetrado pelo o
problema que o move que sem a resolução deste ele não é mais ninguém. “Neste sentido, um
grande escritor é sempre uma testemunha importante, retrospectiva e prospectiva, ao mesmo tempo.
Um poeta pode ensinar-nos mais a respeito da qualidade de uma época e das suas carências do que
um exército de sociólogos.” Uma das preocupações centrais do grande escritor gira em torno do
valor do ser humano. O escritor costuma colocar em discussão essa problemática a partir de
questionamentos sutis: “onde estamos?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?”. Essas e tantas
outras questões propostas por grandes escritores fazem deles os mais lúcidos “fiscais” de uma
sociedade. A afirmação de Ferrarotti sobre o grande escritor poderia ser aplicada a Nascimento
como dramaturgo brasileiro engajado. Seria ter uma visão limitada tratá-lo como um dramaturgo na
medida em que os seus escritos cênicos trazem para o palco realidades que fazem parte da
sociedade brasileira. A situação na qual se encontra a grande maioria dos afro-brasileiros será
incompreensível se a discussão não envolver toda a sociedade. A qualidade de uma obra artística
pode fazer do artista uma pessoa sem cor e sem nacionalidade, como também a qualidade de uma
peça de teatro a torna desprovida de nacionalidade, desde que a temática por ela abordada
ultrapasse as fronteiras do seu criador.
Abdias Nascimento ressalta que fundou o Teatro Experimental do Negro para dar um passo
à frente em relação ao trabalho começado pela Frente Negra, cujo ponto central era a integração do
negro na sociedade brasileira. Nascimento, porém, sustenta que sempre se posicionou contra a
integração pregada pela Frente Negra “porque a integração no Brasil é desaparecer, é ficar branco,
é isso aqui que é a tradução correta dessa expressão no Brasil”. Vale salientar que a recusa do autor
visa a preservação dos valores da cultura de origem africana no Brasil, mas sobretudo tirar o afro-
brasileira da sua condição de ser humano inferior e mimetista.
A chamada eliminação da raça negra se deu no terreno simbólico, com as múltiplas
denominações baseadas na cor da pele (moreno, pardo, sarará, jambo...). Hoje, os defensores do
status quo estão se apoiando nessa multiplicidade de denominações para sustentar a
impossibilidade da implantação do sistema de cotas em instituições públicas. “Como definir quem é
negro no Brasil29?”
Fundado em 1944 no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro - TEN fixou-se as
seguintes metas, segundo Nascimento (2002,187-188):
(..) resgatar os valores da cultura africana marginalizados por preconceitos à mera condição folclórica, pitoresca e insignificante; através de uma pedagogia estruturada no trabalho de arte e cultura, tentar educar a classe dominante ‘branca’, recuperando-a da perversão etnocentrista de se autoconsiderar superiormente européia, cristã, branca, latina e ocidental; erradicar dos palcos brasileiros o ator branco maquilado de preto, norma tradicional quando o personagem negro exigia qualidade dramática do intérprete; tornar impossível o costume de usar o ator negro em papéis grotescos ou estereotipados: como moleques levando cascudos, ou carregando bandejas, negras lavando roupas ou esfregando o chão, mulatinhas se requebrando, domesticados Pais Joões e lacrimogêneas Mães Pretas; desmascarar como inautêntica e absolutamente inútil a pseudocientífica literatura que a pretexto de estudo sério focalizava o negro, salvo raríssimas exceções, como o exercício esteticista ou diversionista: eram ensaios apenas acadêmicos, puramente descritivos, tratando de história, etnografia, antropologia, sociologia, psiquiatria, e assim por diante, cujos interesses estavam muito distantes dos problemas dinâmicos que emergiam do contexto racista da nossa sociedade.
29 Muniz Sodré, durante seminário organizado pela UNESCO no Sesc de Botafogo, em março de 2002, deu uma resposta que considero a melhor de todas. “Teoricamente, podemos vir a ter problemas para saber quem é negro. Mas peguem o porteiro de um edifício luxuoso e perguntem a ele quem deve pegar o elevador de serviço e perguntem ao policial quem deveria ser revistado.”
Percebe-se, a partir dos objetivos fixados, que o projeto do teatro visava trazer à discussão
as perguntas que movem, segundo Ferroratti, os grandes escritores: “onde estamos?; de onde
viemos?; para onde vamos?”.
Nascimento e o grupo do TEN não tinham quase nenhum motivo para responder com
orgulho a qualquer das três perguntas, pois as políticas públicas então implementadas não visavam
a inclusão deles nem do restante dos afro-brasileiros num país onde os seus antepassados haviam
chegado como imigrantes compulsórios. O TEN pretendia fazer com que o afro-brasileiro se
sentisse parte integrante da sociedade, e ao mesmo tempo trazer para a mesa de discussão os
fomentadores das políticas públicas. Seus dirigentes tinham certeza de que sem esse trabalho não
haveria possibilidade de diálogo entre iguais dispostos a encontrar meios de reverter a situação
antes que fosse tarde demais. E que o afro-brasileiro continuará se comportando de maneira
subalterna.
Ao mesmo tempo em que levou para os palcos de teatro um assunto (a situação do negro na
sociedade brasileira) sempre escamoteado, negado, simplificado ou silenciado, o TEN, por meio do
resgate da auto-estima, permitia pela primeira vez que um número crescente de negros,
provenientes de várias camadas sociais, dispusesse de recursos irrefutáveis para responder às três
perguntas já mencionadas: “onde estamos?; de onde viemos?; para onde vamos?”.. Ao recrutar os
atores entre pessoas carentes, Nascimento e os seus colegas pretendiam mostrar com isso que não
há uma pessoa, um grupo humano ou uma raça que seja aprioristicamente incapaz ou inferior. É,
segundo o próprio autor, a classe dominante que, para continuar mantendo os seus privilégios,
aleija, fragiliza, fragmenta, incapacita, inferioriza e rebaixa à condição animal uma pessoa, um
grupo humano ou uma raça, e sobretudo minoriza um grupo social. Devido a séculos desse tipo de
tratamento, poucos descendentes de antepassados tartamudeados, curvados e animalizados
conseguiriam andar de cabeça erguida. Assim, o primeiro trabalho consiste exatamente em fazer
levantar a cabeça e encarar o outro nos olhos. Um homem que consegue encarar nos olhos aqueles
que sempre o viram e trataram como coisa é um homem com a auto-estima resolvida. Pela primeira
vez, esse homem será capaz de dizer de onde veio e que nunca conseguirá chegar aonde gostaria
porque os meios que poderiam facilitar a sua caminhada não o satisfazem30. A partir de então, a
30 É por isso que os franceses tinham proibido o teatro em suas colônias na África. Se as duas guerras mundiais deixaram conseqüências negativas em várias partes, elas permitiram aos colonizados conhecer de perto o mundo de seus colonizadores, e também que a raça tida como mais civilizada era capaz de cometer as piores barbaridades com as chamadas “raças inferiores”. Muitos dos soldados africanos que voltaram vivos das guerras mundiais foram os primeiros a se levantar contra a opressão colonial. Ir à guerra permitiu a muitos africanos ver que eram pessoas como as
maioria dos agrupamentos dessas pessoas consistiria em debates sobre o seu futuro porque elas
sabem do que estão necessitando para ultrapassar as fronteiras nas quais foram consignadas
estética, sócio-econômica e psicologicamente31.
E, como naquela sociedade, o cidadão era o branco, os serviços respeitáveis eram os “serviços-de-branco”, ser bem tratado era ser tratado como branco. Foi com a disposição de ser gente que o negro organizou-se para a ascensão, o que equivale a dizer: foi com a principal determinação de se assemelhar ao branco – ainda que tendo que deixar de ser negro – que o negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente32.
Os dados históricos de Mattoso e Fraga, já mencionados anteriormente, e a realidade
quotidiana por nós vivenciada levam a sustentar que, no Brasil, o branco já nasce gente, doutor e
cidadão, independentemente do seu futuro profissional e do seu nível intelectual. O negro de pele
mais clara pode chegar a ser visto e tratado como gente, doutor e cidadão a partir de suas
conquistas profissionais. Mas o indivíduo de cor preta, mesmo que acumule títulos acadêmicos ou
seja muito rico, terá sempre de provar, no mínimo, que é um trabalhador honesto, gente de bem, um
cidadão de bem. Será chamado de professor, senhor... mas dificilmente de doutor, porque ser
doutor no Brasil está no sangue, não bastando para isso conquistar diplomas nas universidades. A
negação da sua cor e dos valores culturais de matriz africana tornou-se um dos poucos meios que
esse negro possui para começar a ser visto e tratado, em determinados locais – ou seja, naqueles em
que é conhecido – como gente. Caso contrário, deve fazer uso ostentatório de bens materiais a fim
de se proteger contra as constantes humilhações vindas de todos os lugares e de todas as pessoas
cuja pele seja um pouquinho mais clara e chamar a atenção para a sua condição: carro de luxo,
roupas caras, novas companhias33.... Mas vale ressaltar que esse negro se tornou, perante os seus
amigos de ambos os sexos, uma pessoa sem cor. “O preto sofre tantas humilhações no seu dia-a-dia
que, quando não estou dando aula, prefiro ficar em casa para não sofrer novas humilhações34”. Essa
outras, com suas próprias práticas culturais. Soldados senegaleses rebelaram-se, depois da Segunda Guerra Mundial, no quartel de Thiaroy, contra o tratamento desumano e os salários que recebiam, muito inferiores aos de seus colegas franceses, e foram fuzilados. O filme realizado por Ousmane Sembène sobre esse fato, na década de setenta, foi censurado pelo presidente da República do Senegal devido à interferência da diplomacia francesa. 31 Senghor sustenta que os trabalhos do etnólogo alemão Leo Frobenius na África Ocidental, assim como o romance de René Maran intitulado Batouala, foram determinantes no resgate da auto-estima de muitos intelectuais africanos. Maran, francês de origem antilhana, era o governador-geral da África Central na década de vinte. Na introdução de seu romance, ele ressalta que aqueles que os franceses chamavam de não-civilizados tinham uma civilização tão complexa e tão rica quanto qualquer outra. Essa constatação de Maran colocava por terra o principal instrumento usado pelos franceses e outros europeus para justificar a colonização. 32 Neuza Santos Souza (1983, 21). 33 Papa M. Ndiaye é um senegalês que faz doutorado na COPPE/UFRJ em engenharia química. Há dois meses tornou-se responsável por uma estudante de química em iniciação científica. Ela abandonou o seu orientador: “Me deram um preto para fazer o meu acompanhamento.” A estudante que fez esse comentário aos seus colegas é uma negra brasileira. 34 Santos, Milton. Entrevista à revista Democracia Viva, n. 2, fev. de 1998. Rio de Janeiro, Ed. Moderna.
afirmação do falecido e consagrado geógrafo Milton Santos resume muito bem a triste realidade da
vida cotidiana da esmagadora dos afro-brasileiros.
No caso brasileiro, Abdias Nascimento percebeu cedo que os chamados homens-panteras
eram as estruturas políticas, diplomáticas e acadêmicas montadas para invisibilizar o negro
pensador e qualquer de suas manifestações culturais que pretendesse questionar ou enfrentar o
sistema. “O poder de decisão sobre quem vai e quem não vai aos Festivais está as mãos dos
brancos, e não dos próprios artistas negros35.” Levando em conta o sentido atribuído por Aimé
Césaire, diríamos que os homens-panteras seriam, no caso brasileiro, pessoas cujos discursos são
legitimados pelos diplomas universitários: os doutores de todas as áreas da vida pública (políticos,
intelectuais, diplomatas – em suma, todos aqueles que criaram, defenderam e exportaram a
ideologia da democracia racial). Os títulos que ostentam, mais as estruturas montadas para facilitar
seu trabalho e seu deslocamento, fazem deles os mais perigosos homens-panteras. Ao perceber o
perigo que estes representavam, Nascimento passou a privilegiar sua própria participação em
fóruns internacionais organizados por intelectuais negro-africanos e da diáspora.
A incômoda voz de Abdias Nascimento irrompeu pela primeira vez no âmbito internacional
quando ele enviou sua “carta-declaração-manifesto” ao I Festival Mundial das Artes e das Culturas
Negras, realizado em Dacar, Senegal, em 1966. Foi nessa cúpula de intelectuais da vertente pan-
africana chamada de “Negritude” que, com esse documento, pela primeira vez se abriu uma
importante brecha ideológica e acadêmica com relação à natureza intrínseca da sociedade brasileira
e do governo no poder no Brasil. Por extensão, também se abriu um espaço de análise crítica das
estruturas sócio-raciais das sociedades latino-americanas e das práticas eurocêntricas de seus
governos. Até então, poucas e débeis eram as opiniões que contrariavam a visão comparativa
dominante, pela qual as sociedades latino-americanas eram consideradas paraísos raciais, enquanto
a sociedade norte-americana era enxergada como verdadeiro inferno racial36.
Partindo do raciocínio de Moore, percebe-se que Abdias seria o primeiro intelectual negro
brasileiro a conseguir mostrar ao resto do mundo uma realidade oculta pela ideologia da
democracia racial. Para ele, o entendimento dos avanços brasileiros em vários setores da vida
econômica, cultural e tecnológica passava pela compreensão da forma de racismo prevalecente no
35 Nascimento (op.cit, 227). 36 Moore, Carlos (2000,18/9). “Abdias do Nascimento e o surgimento de um pan-africano contemporâneo global”. Prefacio do livro O Brasil na mira do pan-africanismo de Abdias do Nascimento. Salvador, Edufba.
país. Ao falar da modernidade do Brasil, o orador, se honesto, teria necessariamente de abordar
alguns conceitos-chaves ressaltados por Gilroy: o problema do tempo e da consciência do tempo. A
apreensão das mudanças sócio-econômicas e suas conseqüências para a população só poderia ser
possível aliando-se o passado ao momento atual.
São eles que viajam, participam dos congressos internacionais e costumam falar em nome
daqueles que eles mesmos matam. Mas o fato de serem doutores e pertencerem às estruturas do
Estado faz com que suas decisões políticas, econômicas e jurídicas, elaboradas numa estrutura
lingüística sofisticada, sejam aceitas pelos analfabetos políticos, econômicos, religiosos e jurídicos
como verdades. Hoje, muitas dessas verdades que marginalizaram o negro continuam
vivas/presentes, ou sob a forma de piadas.
“Os negros foram domesticados para não se atreverem a tantas coisas nesse país. O negro
não deve se atrever, deve ficar no seu lugar, como dizem. Assim que um dos trabalhos
verdadeiramente colossais do Movimento Negro é exatamente descolonizar a cabeça do negro.
Mostrar que ele tem direitos, se ele é igual, ele tem as mesmas oportunidades que o branco, basta
ele meter a mão na porta. A porta está fechada, ele tem que meter a mão e falar, gritar. Ninguém vai
construir o futuro do negro brasileiro37.”
É por isso que, paralelamente ao trabalho em palcos de teatro, o TEN começou a organizar
encontros para discutir a situação do negro brasileiro. Vale ressaltar que, pela primeira vez, as
maiores autoridades intelectuais afro-brasileiras puderam expor coletivamente os seus trabalhos na
Convenção Nacional do Negro (São Paulo e Rio de Janeiro, 1945-6) e no I Congresso do Negro
Brasileiro (Rio de Janeiro, 1950). A maior parte dos trabalhos apresentados encontra-se no livro
intitulado O negro revoltado (Nascimento, 1968). Esse congresso coincidiu com a realização da
famosa pesquisa financiada pela UNESCO.
Na década de cinqüenta, a UNESCO financiou uma grande pesquisa sobre as relações
raciais nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. A do Rio de Janeiro foi coordenada
por Luiz da Costa Pinto. Entre os estudiosos da questão racial no Brasil, Costa Pinto é uma
referência importante. Mas não para Nascimento: “Ele não era sociólogo, ele era um ladrão das
coisas dos outros. Ele ficou com grande parte dos trabalhos apresentados no I Congresso do Negro 37 Abdias Nascimento, entrevista do dia 10 de janeiro de 2002.
Brasileiro. Eu, que era o secretário-geral do congresso, emprestei a ele em confiança e ele nunca
devolveu, distorceu tudo e fez um livro mentiroso e nós denunciamos esse livro à UNESCO. Tanto
que a UNESCO acho que nunca publicou o livro dele lá. Ele publicou aqui, nas editoras comerciais
do Brasil.” (Abdias do Nascimento, entrevista.)
Talvez a mais eloqüente expressão da natureza de sua abordagem científica e de sua relação
com o movimento negro seja a resposta de Costa Pinto, publicada em importante diário carioca da
época: “Duvido que haja biologista que depois de estudar, digamos, um micróbio, tenha visto esse
micróbio tomar a pena e vir a público escrever sandices a respeito do estudo do qual ele participou
como material de laboratório”i.
Mas o fato de mandar uma carta à UNESCO refutando a qualidade do trabalho de Costa
Pinto constituía uma virada no mundo acadêmico brasileiro, sobretudo para a diplomacia, que tinha
na ideologia da democracia racial um produto de exportação. Esse fato consolidava também a
credibilidade dos intelectuais afro-brasileiros envolvidos nos trabalhos do TEN. Se pela primeira
vez um negro levantou a voz para desmentir a qualidade do trabalho de um membro da classe
dominante, esse questionamento também levantava, indiretamente, muitas dúvidas sobre a
qualidade das pesquisas anteriores. Ao mesmo tempo, Nascimento trazia à tona a discussão sobre a
ética do pesquisador e levantava uma outra discussão sobre a escolha dos pesquisadores por
instituições internacionais como a UNESCO: “Ele não era sociólogo, ele era um ladrão das coisas
dos outros.” E além disso, pela primeira vez também, um afro-brasileiro proporcionava a abertura
de um espaço para enfrentar, no campo das idéias, pesquisadores que ele acreditava estarem
deturpando a realidade dos fatos. O confronto nas idéias entre descendentes dos dois mundos
antagônicos já tinha sido assinalado por Sartre.
O que vocês esperavam quando arrancaram as mordaças que aprisionavam essas bocas pretas? Que iriam entoar-lhes louvações? Essas cabeças encurvadas à força até o chão por nossos pais, vocês pensavam que quando elas se erguessem estariam com os olhos cheios de adoração38?
A década de setenta constitui uma dos períodos mais ricos para muitos afro-brasileiros.
Parece que o trabalho de conscientização do TEN e outros acontecimentos históricos envolvendo,
sobretudo, o negro africano (a independência dos países africanos cuja língua administrativa é o
português e o levante dos estudantes de Soweto) e o norte-americano teriam contribuído para a
38 Sartre, Jean-Paul (1991;54). Prefácio a Les damnés de la terre, de Frantz Fanon. Paris, Gallimard.
mobilização politizada dos afro-brasileiros em várias cidades do país. Pela primeira vez, surgiram
simultaneamente várias instituições brasileiras de matriz africana para questionar o sistema vigente,
como por exemplo o Núcleo Afro-Brasileiro na Bahia.
A primeira dessas organizações de que se tem notícia foi o Grupo Palmares, de Porto
Alegre, fundado em 20 de julho de 1971, e que já nesse ano celebrava pela primeira vez o 20 de
novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695, que mais tarde viria a ser festejado
nacionalmente – e declarado feriado em algumas cidades, a exemplo do Rio de Janeiro – como o
Dia Nacional da Consciência Negra. No mesmo ano, em São Paulo, é criado o Grupo de Teatro
Evolução, com proposta semelhante à do Teatro Experimental do Negro. Pouco anos mais tarde
seriam fundados, entre outros, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba) e o Instituto de
Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), no Rio de Janeiro, o Centro de Cultura e Arte Negra
(Cecan) e a Associação Casa de Arte e Cultura Afro-Brasileira (ACACAB), em São Paulo3839.
Vale salientar que, além das agremiações de caráter político, havia também aquelas voltadas
às pesquisas sobre a situação do negro brasileiro. Seus fundadores haviam percebido que, sem
dados e publicações respeitados, as análises e propostas desses “novos atores socais” continuariam
sendo tratadas, de modo estereotipado, como discursos de militantes, sem fundamentos analíticos e
sem nenhum peso acadêmico. Mas a maior realização dessa década foi a criação do Movimento
Negro Unificado contra a Discriminação Racial – MNU. Entre a fundação do TEN e a do MNU,
passaram-se trinta anos, o que mostra que este último surgiu numa fase madura do ponto de vista
político, intelectual e psicológico para a defesa dessas idéias.
Se Nascimento conseguiu desmascarar muitos trabalhos dos doutores escalados para
defender a ideologia da democracia racial, a sua tarefa tornou-se mais difícil quando o governo
brasileiro percebeu que o pilar da sua ideologia de exportação estava sendo desmontado. O texto
intitulado Sitiado em Lagos mostra como o governo não poupava recursos (financeiros, materiais e
humanos) para desencorajar qualquer tentativa de desmascarar essa ideologia. E Abdias
Nascimento não escapou disso40 “até em solo dos meus antepassados”. “Se um homem da estatura
do autor de Quilombismo é barrado, se uma voz tão autorizada é silenciada porque pretendia
39 Agradeço Carlos Medeiros por me ceder gentilmente essas informações, que constituem dados do seu mestrado. 40 A mais famosa vítima desse tipo de perseguição foi Malcolm X. Mas Fanon escapou da morte várias vezes quando foi lutar ao lado dos argelinos. Paul Gilroy sustenta que o governo norte-americano tinha colocado agentes federais para vigiar Richard Wright na França. Como também muitos ditadores africanos tentaram assassinar os seus opositores dentro do país ou fora. Senghor, que era tido como um dos presidentes africanos mais tolerantes, perseguiu alguns dos seus opositores, tais como Cheikh Anta Diop. Na França, os jovens da Martinica (Menil e companhia) que criaram a revista Légitime Défense para denunciar o racismo francês tiveram a revista censurada.
denunciar um crime oculto que o réu teima em negar, pode-se imaginar o que acontece por aí,
consciente ou inconscientemente, com milhões e milhões de negros que não têm nem a bagagem
intelectual nem o renome internacional de Abdias do Nascimento” (José Maria Pires, 1981;254,
Prefácio de Sitiado em Lagos).
Porém o que mais chama a atenção são as recomendações de Abdias endereçadas ao
governo do seu país durante o colóquio organizado na Nigéria, há mais de duas décadas. Das 17
recomendações, cinco foram consagradas à questão da “ação compensatória” ou “ação afirmativa”,
envolvendo cotas, no funcionalismo público brasileiro e nas instituições federais de ensino. A
primeira recomendação ressalta a necessidade de inclusão dos itens raça e etnia nos censos
realizados por instituições governamentais para a melhor apreensão da situação sócio-econômica
dos afro-brasileiros. Os dados atuais do IPEA e do IBGE já contemplam essa recomendação feita
em 1976. Mas é a 12a recomendação que faz de Abdias Nascimento um dos primeiros intelectuais
brasileiros a levantar no Brasil a discussão sobre as ações compensatórias/afirmativas:
Este Colóquio recomenda que o Governo Brasileiro estimule ativamente o ingresso de negros no Instituto Rio Branco, órgão de formação de diplomatas pertencente ao Ministério de Relações Exteriores41.
Já foi mencionado que as recomendações elaboradas durante o Colóquio chamam a atenção
na medida em que algumas estão sendo colocadas em prática depois da Conferência Mundial contra
o Racismo, realizada na África do Sul em 2001. Depois do Ministério da Reforma Agrária, alguns
ministérios estão reorientado suas políticas, como é o caso do Itamaraty, para se adequarem à ação
afirmativa e às cotas para afro-brasileiros em concursos públicos federais. De tal forma que o que
talvez parecesse um sonho para Nascimento está sendo realizado pelo Itamaraty: conceder bolsas
(vinte) para que afro-brasileiros desafortunados, mas interessados em cursar o Rio Branco, possam
preparar-se. “É natural que o Brasil queira ver a população afro-descendente representada na
diplomacia. O Brasil tem contas a ajustar com o passado escravocrata42”.
Mesmo sem nunca ter o seu nome mencionado pelos defensores da aplicabilidade da ação
afirmativa no Brasil, um “teste de DNA” intelectual possibilitaria perceber que Nascimento foi o
“pai” dessa política no Brasil. Respondendo a uma pergunta minha durante a entrevista, ele afirmou
que as primeiras propostas de ação afirmativa foram apresentadas na Constituinte de 1946.
41 Nascimento (2002.202). 42 “FH: país tem débito com o passado escravocrata”. O Globo, 22 de março de 2002, Caderno 1, p. 10.
Contrariamente às alegações de importação de uma realidade norte-americana, Nascimento mostra-
nos que o assunto já fazia parte da sua luta intelectual/militante.
Mas como explicar então que um intelectual afro-brasileiro que produziu sobre diversas
temáticas que fazem parte da vida do negro brasileiro seja tão desconhecido ou tenha mesmo o seu
trabalho engavetado? Por ter produzido fora do mundo acadêmico? Por causa do seu
posicionamento político? E o Gilberto Freye, que escreveu fora do mundo acadêmico, por que
conseguiu ficar tão conhecido? Por ter reafirmado o que o imaginário coletivo brasileiro acreditava
ser a verdade: a democracia racial. Será que a nova geração de pesquisadores brasileiros de origem
africana está relendo esses clássicos para questioná-los ou usá-los como ponto de partida para um
salto de qualidade acadêmico?
Porém alguns artigos de jovens pesquisadores afro-brasileiros de ambos os sexos sobre a
questão racial estão revelando que o diálogo intra e intergerações está ainda longe de começar.
Seria por causa da dificuldade de circulação das publicações neste país continental? Seria por causa
da falta da cultura de confronto de idéias, por medo de machucar a sensibilidade/o ego do colega?
A ausência do confronto de idéias não seria a mãe da repetição? A realidade narrada por Ari Lima
no seu texto mostra que o intelectual afro-brasileiro está sempre no fio da navalha. Deve gastar
muito do seu tempo para provar que as suas reflexões são acadêmicas e não as de um militante do
movimento negro.
O texto de Ari Lima (“A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro:
negação de inferioridade, confronto ou assimilação intelectual?”43) cativa pelo título, obrigando-nos
a sentar e lê-lo rapidamente. Traz no título uma problemática muito antiga: a luta do pensador afro-
brasileiro para ser reconhecido e aceito pelos seus colegas em função do seu merecimento. O título
do artigo já assinala ao leitor que está diante de um pensador cujas capacidades intelectuais foram
colocadas em dúvida em razão do seu pertencimento racial. Porém, ao avançar no artigo, o mesmo
leitor se dará conta de que o autor caiu de novo na armadilha que lhe foi montada por aqueles que
suspeitavam das suas capacidades: tentar provar que é culto, que fala a muito bem a mesma língua
que aqueles que duvidavam das suas capacidades e que tem o domínio de produções intelectuais
que na realidade não lhe permitem comprovar que o seu drama já fazia parte da vida cotidiana dos
negros “metidos a intelectuais” e de todos aqueles que deviam fazer parte do panteão dos heróis 43 Agradeço ao colega Osmundo Araújo Pinh,o que me indicou o artigo de Ari Lima. Vale ressaltar que não pretendo analisar a veracidade do fato ou não. Só a apresentação da problemática pelo autor é que me interessa.
nacionais. Muitos deles tiveram os seus nomes e realizações heróicas silenciados, folclorizados, ou
foram simplesmente “embranquecidos”.
Spitzer faz uma excelente análise do drama de André Rebouças numa sociedade que não
tolerava a ascensão social e profissional de um negro. Partindo da análise de Spitzer, pode-se
perguntar: apesar das mudanças ocorridas no país, qual seria a diferença entre os dramas do
intelectual André Rebouças e os de Abdias de Nascimento, Carolina de Jesus, Neuza Santos Souza
e de Ari Lima? Apesar do tempo e dos contextos que os separam, todos são negros que tiveram e
continuam tendo problemas para serem reconhecidos, tratados e vistos como pensadores. Vê-se que
até agora os que são ainda vivos continuam recebendo os mesmos tratamentos e tendo suas
capacidades intelectuais questionadas exatamente como aqueles falecidos há décadas. E o maior
pecado do nosso pensador é ter relegado a sua problemática ao segundo plano, em vez de começar
por ela e dialogar com aqueles autores que viam o negro somente como objeto de pesquisa e com
aqueles cujas produções foram silenciadas ou tratadas como produções de militantes. O livro de
Neuza pode não ter sido desqualificado pelo mundo da academia porém é raramente que se ouve
falar dele e sobretudo da própria autora. A própria sustenta que se isolou por discordar com a
maneira como os movimentos negros foram cooptados pelos partidos políticos. Segundo a Neuza
até os partidos tidos de progressistas continuam tratando a questão racial como algo sem
importância.
Como já mencionei, entrevistei Abdias no dia 10 de janeiro de 2002. Ou seja, alguns dias
depois do carnaval. E qual não foi a minha surpresa ao ouvi-lo comentar com alegria a escolha da
África como o tema do carnaval baiano. A primeira pergunta que eu me fiz foi a seguinte: “Será
que este velho senhor, que lutou a sua vida inteira contra a discriminação do negro, conhece um
pouco da situação dos afro-baianos? Como é que a mesma pessoa que chamou a atenção dos
vereadores de Salvador para a ausência de retratos de heróis negros nas paredes da Câmara ficou
tão contente com uma escolha tão obviamente política?” No imaginário da maioria dos brasileiros,
a Bahia é considerada “o pedaço mais africano do Brasil”. Quando se pensa na Bahia, vêm logo à
mente algumas imagens “típicas”, muito veiculadas na linguagem cotidiana: carnaval, capoeira,
samba de roda, eterna felicidade, candomblé, baianas de acarajé, entre outras representações que
parecem sempre traduzir a alegria, que seria permanente, desse povo “festeiro”.
Abdias Nascimento parece não ter percebido como as autoridades baianas transformaram
grande parte dos afro-soteropolitanos em bonecos no imenso parque de diversões montado em
determinados pontos de Salvador para atrair turistas de várias partes do país e do mundo. Os
“brinquedos”, isto é, os negros, são usados em tudo que possa estimular o interesse do turista em
visitar a cidade.
Alguns negros, mesmo conscientes da perversidade do racismo local, não param de
proclamar com orgulho que a cidade de Salvador é a melhor do país e que nunca a trocariam por
nenhuma outra. Mas o que esses negros conhecem sobre as outras cidades do país? A maioria das
universidades do Rio de Janeiro (federais, UERJ e PUC/Rio) têm os seus colégios de aplicação,
cuja qualidade de ensino constitui, para muitos alunos carentes, a porta de entrada para a educação
superior. Além dessas instituições, o Rio tem o Colégio Pedro II e o CEFET, ambos federais,
enquanto a PUC dá bolsas de estudo integrais para alunos negros e carentes provenientes de
cursinhos comunitários. Como explicar a falta de um colégio de aplicação da Universidade Federal
da Bahia44? Como explicar que em Salvador os alunos tenham de pagar meia passagem, enquanto
no Rio os seus colegas têm passe livre nos transportes municipais para irem estudar? Como
explicar que a cidade com maior percentual de negros não tenha um busto de Zumbi em praça
pública? Como explicar que o 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra – seja feriado
na cidade do Rio de Janeiro e não em Salvador?
Mas a violência em Salvador contra os afro-brasileiros não pára por aí.. Entre 1996 e 1999
(CPJ/Salvador, 2000) os jornais da cidade noticiaram 4.248 assassinatos na Região Metropolitana
de Salvador – embora seja preciso ressaltar que nem todos os assassinatos são noticiados pela
imprensa baiana. Dentre esses, 78,1% foram por arma de fogo, 10,8% por arma branca, 7,8% por
outros meios, e em 3,6% deles a arma do crime não foi informada. A grande maioria dos
assassinados é de sexo masculino (92,3%), 7,3% de sexo feminino e 0,4% sem informações. A falta
de informações decorre da decomposição avançada do corpo. Entre todos os dados, o que chama a
atenção é a cor das vítimas: 30,7% negros, 1,0% brancos e 68,3% não tiveram a cor informada.
Suponhamos que as vítimas cuja cor não foi declarada sejam afro-brasileiras – somando as vítimas
de cor declarada e não-declarada, teríamos 99,0%, ou 4.206 afro-brasileiros, assassinados em três
anos. Essa realidade está muito bem sintetizada no duro/deprimente artigo de Lutz Mulert Sousa
44 Parece que a Universidade Federal da Bahia tinha o seu colégio de aplicação. Mas ninguém soube me explicar o porquê do seu fechamento.
Ribeiro: “Você é negro, jovem e trabalhador? Não venha para Bahia: morre-se fácil”45. As maiores
vítimas da polícia e dos grupos de extermínio (majoritariamente compostos por policiais e ex-
policiais) são jovens trabalhadores afro-brasileiros.
O que é a África para a grande maioria dos afro-baianos? Um país ou um continente com
mais de cinqüenta países? O que as autoridades municipais e estaduais pretendiam ao escolher o
continente africano como tema do carnaval? E como homenagear esse continente numa cidade
onde o negro era e continua sendo visto e tratado como “animador” de turistas e subcidadão? Essa
realidade foi muito bem captada pelos cantores-compositores baianos Caetano e Gil na música
“Haiti”:
Quando você for convidado para subir no adro da Fundação Casa Jorge Amado pra ver do alto a fila dos soldados, quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos tratados como pretos Só para mostrar aos outros quase pretos que são quase todos pretos como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos, quase pretos de tão pobres, são tratados e não importa se olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo.
Vale salientar que Abdias Nascimento não foi o único que precisou buscar “alianças” fora
do seu país. Houve entre 1920 e 1970 uma grande circulação de idéias de pensadores negros
africanos e da diáspora. Nascimento sustenta que os negros brasileiros foram tão destituídos que
“não têm as televisões, eles não são proprietários de editoras. A estrutura de dominação branca
jamais promove as expressões, as manifestações, não só de escritores mas de qualquer setor, a não
ser o carnaval, o futebol e o samba.” Muitos escritores caribenhos (Aimé Cesaire, Leon C.
Damas...), africanos e asiáticos que moravam na França conseguiram publicar os seus livros pela
editora Présence Africaine46, que editava a revista de mesmo nome, pertencente ao senegalês
Alioune Diop. A França, tida como país avançado no que se refere ao respeito aos direitos
humanos, opunha todas as dificuldades quando se tratava de idéias que contrariavam os pilares da
ideologia dominante: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Vê-se, assim, que os negros e qualquer outro povo colonizado que advogue a luta pela
independência, o resgate da auto-estima e da igualdade enfrentarão sempre a resistência dos
45 Ribeiro, Lutz Mulert Sousa. “Você é negro, jovem e trabalhador? Não venha para Bahia: morre-se fácil”. In: Violência na Bahia: a outra face da moeda. Salvador, Gráfica Envelope e Cia, 2000. Org. Comissão da Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador, p. 98-100. 46 Além da editora, havia também a revista com o mesmo nome cuja função, segundo Paul Gilroy (2001;290), consistia em “juntar o pensamento de africanos e africanistas com o dos negros norte-americanos, caribenhos e europeus, pelo menos para que suas similaridades e diferenças pudessem ser sistematicamente exploradas”.
detentores do poder. No caso brasileiro, creio que dois elementos dificultam ainda mais a
circulação e a troca das informações: a língua portuguesa e a precariedade material e intelectual que
assola a grande maioria dos afro-descendentes.
Aimé Césaire disse que, como há homens-hienas e homens-panteras, serei um homem-
judeu. Mas não é por acaso que ele fez uso da expressão “hommes-panthères”. A pantera parece
estar alheia a tudo por causa da sua força física, da sua agilidade, da sua leveza e esperteza na hora
de atacar a presa, e sobretudo pela elegância com que a derruba. Como ela ataca e mata de maneira
elegante, ninguém lhe presta atenção – e é exatamente isso que a torna perigosa. Essa atitude da
pantera foi adotada pelas autoridades governamentais baianas. Ao homenagearem o continente
africano durante o carnaval, fizeram com que uma pessoa como Nascimento não pudesse perceber
nessa escolha uma jogada política muito mais nociva que um sistema racista aberto. A inteligência
com que as autoridades baianas mostraram ao resto do país e ao mundo o lugar do negro em
Salvador foi de uma fineza que conseguiu conquistar até mesmo o olhar de Nascimento. Mas talvez
isso tenha ocorrido em função da idade ou da sutileza do racismo à brasileira muito bem sintetizada
por Michael Kepp (2001,49): “O preconceito é como um camaleão: às vezes engana o olho. Pode
ser explícito, como uma suástica, ou adocicado em músicas racistas escritas por palhaços ingênuos.
Ou pode ser camuflado em expressões e atos implícitos de um modo tão sutil, que passa
despercebido.”
Partindo do final dessa observação de Michael Keep, parece que Abdias Nascimento, tão
lúcido e tão atento à sutileza do racismo brasileiro, esqueceu a eficácia da estrutura montada para
manter o negro como boneco e subcidadão. E é da força invisível dessa estrutura que nos fala
Neuza Santos em Tornar-se negro. O mesmo Nascimento sempre esteve tão ciente disso que
enfrentou a ideologia da democracia racial em várias frentes: nos partidos políticos, no teatro e no
mundo acadêmico, pela participação em congressos internacionais.
Nascimento salientou que caberia ao negro continuar lutando, porque ninguém lhe abriria
portas por bondade. A mesma ressalva vale também para a nova geração de pesquisadores afro-
brasileiros interessados em estudar a temática brasileira de matriz africana. Se eles próprios não
começarem a valorizar a produção intelectual de seus antecessores, tais como Nascimento, Carolina
de Jesus, Neuza Santos e tantos outros, quem os engrandecerá? Dificilmente poderão responder as
três perguntas daquele grande escritor e pesquisador.
Homi Bhabha (1998), ao analisar a produção de Fanon (Pele negra, máscaras brancas),
salienta que a pergunta principal da obra é: “O que quer o homem negro?” E em seguida Bhabha
ressalta que Fanon não estava preocupado com a opressão política, com a violação dos Direitos do
Homem e nem com o homem colonial alienado. Segundo Bhabha, Fanon pretendia apreender o
“sujeito colonial sempre sobredeterminado a partir de fora”.. Partindo dessa afirmação de Bhabha,
direi que a preocupação de Fanon continua sendo atual. Mas a outra questão apresentada por
Nascimento é como reverter essa realidade numa sociedade onde todos os atores implicados
pertencem ao mesmo país. Como fazer para que o negro brasileiro seja tratado como cidadão e
possa ter acesso aos benefícios a que o cidadão tem direito?
Conclusão
Era uma vez um sapo que, cansado de ser humilhado por um porco selvagem, apostou uma
corrida com ele. O porco selvagem disse que não precisava se preparar porque sabia que ia ganhar a
corrida. O sapo procurou os anciãos da sua nação para traçar uma estratégia. Os anciãos gostaram
da idéia e apoiaram o jovem sapo. “A sua vitória vai ser para toda a comunidade. Se você ganhar,
os porcos vão nos olhar de maneira diferente.” No dia seguinte, uma assembléia foi convocada
pelos sapos para discutir as formas de treinamento e a escolha do lugar da corrida. No final da
assembléia, os anciãos concordaram em que o sapo nunca poderia ganhar a corrida. De repente um
velho sapo se lembrou que os porcos selvagens tratavam os sapos como se fossem todos iguais.
“Eles nos tratam assim porque nunca nos olham nos olhos. Para ganhar a corrida, vamos ter que
colocar um sapo de cinco em cinco metros na beira da estrada.”
A notícia sobre a aposta correu o país. Horas antes, cada nação mandou os seus
representantes para conferir o impossível. O leão, rei da Floresta, presidiu a cerimônia. O porco
chegou se gabando e fazendo gozações com o sapo. Este, quietinho, só fazia alongamento. Quando
a corrida começou, o porco virava sempre a cabeça para trás e perguntava: Cadê o sapinho? E,
naquele momento, o sapo escondido na beira da estrada pulava em frente do porco e respondia:
“Estou aqui na sua frente”. O porco ficava cada vez mais com raiva e corria mais, até que, perto da
linha de chegada, o último sapo pulou em frente do porco selvagem e ganhou a corrida.
A notícia se espalhou pelo país da Floresta. O porco veio e cumprimentou o vencedor, e o
leão entregou o troféu. O sapo recebeu o troféu, mas os anciãos aconselharam os jovens a não
organizar nenhuma festa. A volta para a cidade foi a mais silenciosa. “Como vamos fazer uma festa
se conseguimos ganhar porque os outros nunca nos trataram como gente, nunca nos olharam nos
olhos? É por isso que não perceberam, como também os outros presentes, que foram muitos os
sapos que correram. Mas o importante da vitória foi que vocês, jovens, se lembraram de nós. Sem
essa consulta, vocês não iam saber que os porcos não nos olhavam.”
Durante várias noites, ninguém ouviu os sapos cantarem, mas ninguém se preocupou com
esse silêncio porque eles nunca foram olhados como gente e os seus problemas jamais foram uma
preocupação de ninguém47.
47 Trata-se de um conto do sul do Senegal.
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