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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: UMA
ANÁLISE AO CASO BRASILEIRO
Brenda Camilli Alves Fernandes1
Carla Preciosa Braga Cerqueira2
Emília Rodrigues Araújo3
Resumo: O essencialismo biológico e o androcentrismo são ainda estruturais nas sociedades contemporâneas aonde
persistem várias formas de desigualdade entre homens e mulheres, assim como vários tipos de violência contra as
mulheres. No cenário brasileiro, a cada cinco minutos uma mulher é agredida, vítima de violência doméstica
(Waiselfisz, 2012). No Rio Grande do Norte, houve um crescimento de quase 100% das taxas de homicídio de mulheres
entre 2006 e 2013, sendo o segundo pior estado brasileiro neste ranking (Waiselfisz, 2015). Entre outras problemáticas
que urge questionar atualmente, situamos o debate, por um lado, em torno do papel e da importância que tem tido a
mídia na revelação destes fenômenos, assim contribuindo para elevar o grau de reflexividade dos sujeitos sociais acerca
desta problemática, e por outro, na sua desconstrução efetiva, contribuindo para a mudança de comportamentos e
atitudes. Assim, fazendo uma análise à cobertura jornalística dos casos de violência contra as mulheres presentes no
jornal Tribuna do Norte desde a Lei Maria da Penha até à atualidade, procuramos evidenciar a tipologia de casos
relatados, assim como o sentido e os significados construídos no próprio processo discursivo de narração e, por vezes,
de espetacularização característica nestas situações. Contamos com o alinhamento teórico diverso, nomeadamente a
partir das análises de gênero e mídia e outros relacionados com a construção social da desigualdade e discriminação.
Palavras-chave: Violência contra as mulheres.Mídia. Evolução Legislativa. Cobertura Jornalística. Rio Grande do
Norte.
Introdução
Diariamente milhares de pessoas, de todos os continentes, sofrem algum tipo de violência.
Isto se acentua se pensamos em grupos quese mantiveram por séculos subordinados e/ou
vulneráveis a outros grupos dominantes. Afirmam Bandeira e Batista que “Até há pouco, bater em
mulheres, negros e homossexuais [...] era uma prática corriqueira, mas despercebida como uma
forma de violência na sociedade. Os alvos da violência escondiam-se no próprio sofrimento sem
poder nomeá-lo, denunciá-lo ou compreendê-lo” (2002, pp. 119-120).Hermes expõe que o
preconceito tem definido o direcionamento da violência ao longo dos séculos “de um determinado
grupo maior sobre os pequenos grupos, com a formação desse grupo abrangendo diversos espectros
dessa cadeia de mortes e agressões, como a etnia, a religião, os times de futebol e o gênero” (2015,
p. 14).
O século XX foi marcado por profundas transformações ambientais, econômicas,
tecnológicas, sociaise culturais, mas este tipo de violência, profundamente relacionado com os
costumes e a cultura, ainda permanece comum no século XXI. Hobsbawn (1988 apud Araújo, 2013,
p. 14) defende que a cultura se (re)territorializa por meio da circulação das pessoas pelo mundo.
Wieviorka (2006 apud Araújo, 2013, p. 15) aponta que com o processo e circulação global de
1 IFRN, Natal, Brasil. 2 CECS, Universidade do Minho, Braga, Portugal. 3 CECS, Universidade do Minho, Braga, Portugal.
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conteúdos e formas midiáticas, os indivíduos agregam ao universo simbólico valores que
extrapolam os territórios físico-geográficos nacionais. É um fato que, ignorando territórios e
nacionalidades, a violência contra as mulheres persiste sendo uma das mais graves e marcantes
formas de violência nomundo atual.A Organização das Nações Unidas – ONU estima que o custo
da violência contra as mulheres represente 2% do produto interno bruto global (ONU, 2017).
No cenário brasileiro, a cada cinco minutos uma mulher é agredida, vítima de violência
doméstica (Waiselfisz, 2012) e a cada duas horas uma é assassinada, a maioria por homens com os
quais têm relações afetivas (ONU, 2017). No Rio Grande do Norte, houve um crescimento de quase
100% das taxas de homicídio de mulheres entre 2006 e 2013, sendo o segundo pior estado brasileiro
no ranking (Waiselfisz, 2015). Muitos são os fatores que podem influenciar a situação, tais como o
machismo, a inaplicabilidade das leis, o desinteresse/despreparo das polícias, a falta de efetividade e
celeridade nas ações punitivas, de informações e educação, bem como de fontes confiáveis que
orientem sobre os tipos de violência doméstica (muitas acreditam ser apenas a física), os direitos
das mulheres, os avanços legislativos e o caminho a ser percorrido, em caso de ocorrência da
violência.
Nesse contexto, situamos o debate, por um lado, em torno do papel e da importância que tem
tido a mídia na revelação do fenômeno da violência contra as mulheres, assim contribuindo para
elevar o grau de reflexividade dos sujeitos sociais acerca desta problemática, e por outro, na sua
desconstrução efetiva, contribuindo para a mudança de comportamentos e atitudes. Para isso,
realizamos uma análise à cobertura jornalística dos casos de violência contra as mulheres presentes
no jornal Tribuna do Norte desde a Lei Maria da Penha até à atualidade, procurando evidenciar a
tipologia de casos relatados, assim como o sentido e os significados construídos no próprio processo
discursivo de narração e, por vezes, de espetacularização característica nestas situações. Contamos
com o alinhamento teórico diverso, nomeadamente a partir das análises de gênero e mídia e outros
relacionados com a construção social da desigualdade e discriminação.
O papel da mídia na representação da violência contra as mulheres: muito mais que informar
Bourdieu (1998)defende que para compreender a dominação masculina perdurando através
dos tempos, é necessário compreender a história dos agentes e das instituições que concorrem
permanentemente para garantir essas permanências. Cita a igreja, o Estado e a escola como
exemplos e afirma que o peso relativo e as funções que desempenham podem ser diferentes,
conforme a época. Afirma que a pesquisa histórica não deve se limitar a descrever as
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transformações da condição das mulheres no decurso do tempo, mas empenhar-se em estabelecer,
para cada período, o estado do sistema de agentes e instituições (Bourdieu, 1998). Acrescentamos a
tais agentes/instituições a mídia.
O verdadeiro objeto de uma história das relações entre os sexos é, portanto, a história das
combinações sucessivas [...] de mecanismos estruturais [...] e de estratégias que, por meio
das instituições e dos agentes singulares, perpetuaram, no curso de uma história bastante
longa, e por vezes à custa de mudanças reais ou aparentes, a estrutura das relações de
dominação entre os sexos (BOURDIEU, 1998, capítulo III).
Porto entende que nas modernas democracias contemporâneas as mídias constituem “um dos
principais produtores de representações sociais, as quais, para além de seu conteúdo como falso ou
verdadeiro, têm uma função pragmática como orientadoras de condutas dos atores sociais”, “não
por serem as representações sinônimo de verdade, mas por se constituírem em veículos
privilegiados de crenças, valores e anseios de distintos setores da sociedade” (2009, p. 211). Pereira
diz que os jornais nos apresentam eventos, modelando e posicionando nossos olhares, razão pela
qual constituem uma poderosa tecnologia (2009, p. 485). O papel da mídia ultrapassa o informar; os
meios de comunicação social, em geral, influenciam a vida da sociedade, pois são uma das mais
importantes fontes de (in)formação. A forma como os conteúdos noticiosos são transmitidos e os
acontecimentos narrados é um veículo de significações, uma teia de significados, nem sempre
explícitos ou diferenciados (Penedo, 2003). “Muito para além da nossa vivência directa de
cidadania, é através dos media que o mundo nos chega - factos, acontecimentos, histórias, relatos,
testemunhos e imagens - e é, também, por esta via que formamos opiniões, reforçamos crenças [...]”
(Penedo, 2003, p. 13).
Em razão do domínio exercido pelos meios de comunicação, percebe-se que podem ter uma
ação positiva e decisiva na discussão de temáticas relevantes da sociedade, como a da violência
contra as mulheres. Rajs (2014, p. 43) previne que estedomínio pode ser utilizado de forma
fomentadora ou enfraquecedora dos direitos das mulheres. Simões (2014, pp. 34-35) explica que a
perspectiva feminista tem sido crítica “em relação às intencionalidades subjacentes à ação das
forças que estão no epicentro da construção simbólica de diversos fenómenos, particularmente os
media”. Apesar de os estudos feministas dos media reconhecerem o incremento da visibilidade da
violência contra as mulheres como algo emancipador, advertem para a contingência dessa
visibilidade.
Com frequência, formas de violência que configuram, no direito internacional, um
problema da ordem dos direitos humanos são retratadas como questões privadas e pessoais
das mulheres. [...] no momento em que as agressões contra as mulheres perpetradas por um
parceiro íntimo contornam a barreira que as separa da publicidade, estas não tendem a ser
objeto de um profundo e aturado debate (SIMÕES, 2014, p. 35).
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Apesar da violência doméstica e da violência contra as mulheres em geral não ser um fenômeno
novo, a extensão de sua percepção como um problema de domínio público varia com o tempo ea
cobertura midiática é um dos principais fatores que influenciam tal variação (Maxwell et al., 2000).
No entender dos autores, é imprescindível deslegitimar o discurso de dominação que
contribui para a desigualdade de gêneros e para a opressão das mulheres no espaço doméstico,
nomeadamente no que concerne às relações assimétricas que se materializam em atos de violência.
Representar as situações de violência enquanto casos particulares e isolados reforça a ideia de
patologia ou desvio e não de um problema social. Além disso, Carter (2004, p. 15) afirma que este
tipo de notícias se tornaram banais, pelo que se faz necessário que os discursos que circulam no
espaço público parem de reproduzir de forma explícita mas sobretudo implícita, formas hierárquicas
de diferença de gênero.
Por isso,é relevante se observar a frequencia com que os meios de comunicação tratam da
violência contra as mulheres, especialmente daquela que ocorre em âmbito doméstico, do tipo de
abordagem utilizado e da profundidade que a temática tem recebido. Não parece razoável trivializar
uma violação dos direitos humanos eesta forma de violência foi reconhecida como uma violação
dos direitos humanos pela Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência Contra
as Mulheres, produto da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena em
1993. No mesmo caminho a Lei n. 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, prevê a
violência doméstica e familiar contra as mulheres como uma forma de violação dos direitos
humanos.
O enfrentamento daviolência doméstica contra as mulheres através dos avanços legislativos
Assim como a mídia podecontribuir para uma sensibilização e problematização acerca da
violência, as normas também possuem um papel interessante no combate às desigualdades de
gênero que culminam na violência,prevendo direitos e garantias da dignidade humana.No entanto,
há pontos em que o Direito, especialmente dos séculos passados, contribui(u) para a manutenção da
sociedade patriarcal e a normalização de práticas preconceituosas. Duarte (2013, p. 16), que
analisou a evolução legislativa do crime de violência doméstica em Portugal, apresentou em suas
reflexões finais que “é consensual entre as diferentes feministas que o Direito tem historicamente
contribuído para a perpetuação, legitimação e/ou reprodução de relações patriarcais”. Numa ótica
diferente, Simões (2011, p. 265) aduz que apesar do movimento feminista apresentar abordagens e
enfoques muito díspares ao longo do tempo, um denominador comum tem sido o entendimento do
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Direito como mola propulsora do progresso. As duas visões representam um pouco das
controvérsias que o Direito gera em razão de se portar conforme a sociedade na qual está inserido e
o momento histórico que o produz.
No contexto brasileiro, período recente de um pouco mais de uma década em que um partido
de ideologia política de esquerda (o PT) esteve com a Chefia do Poder Executivo Federal
movimentou as questões de gênero e contribuiu parao empoderamento feminino através da
implementação das mais diversas políticas públicas, especialmente quando assumiu a Presidência a
primeira presidenta que o Brasil teve, que buscou fortalecer o gênero feminino, inclusive tentando
equiparar o número de Ministras e Ministros de Estado. Quanto ao combate à violência contra as
mulheres, entre 2005 e 2015registram-se avanços notáveis, dos quais destacamos a criação da
Central de Atendimento à Mulher (o ligue 180) em 2005, a publicação e a entrada em vigor da Lei
Maria da Penha em 2006 e a publicação e entrada em vigor da Lei n. 13.104, que previu o
feminicídio, em 2015. Estas leis, além de apresentarem mecanismos de proteção à mulher e redução
das desigualdades de gênero, tiraram a temática da violência doméstica contra as mulheres da esfera
privada e a inseriram no debate público.
A Lei n. 11.340/2006 criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra as mulheres, inclusive dispondo sobre a criação de Juizados especializados, além de
ter estabelecido medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica.
O artigo 6º previu que a “violência doméstica e familiar contra a mulher” constitui uma das formas
de violação dos direitos humanos. O artigo 17 vedou prática que vinha acontecendo até a vigência
da lei: “É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas
de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o
pagamento isolado de multa”. A Lei inovou ainda por ultrapassar o essencialismo biológico, pois,
em seu texto, refere-se à “mulher” e a “gênero”. Não há, na lei, sequer uma menção à palavra
“sexo”.
O artigo 8º da Leinos parece merecer especial atenção. O artigo inicia determinando que a
política pública que visa coibir tal tipo de violência far-se-á por meio de um conjunto articulado de
ações, tendo por diretrizes o previsto em nove incisos. O terceiro trata da mídia e estabelece como
diretriz desta política pública “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e
sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou
exacerbem a violência doméstica e familiar [...]”. O quinto também enfatiza a ideia de combater a
violência doméstica através da informação e da educação, determinando “a promoção e a realização
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de campanhas educativas de prevenção [...], voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a
difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres”.
Anos depois, em 2015, a Lei n. 13.104 alterou o Código Penal para prever o feminicídio
como circunstância qualificadora do crime de homicídio, além de modificar a lei dos crimes
hediondos para incluir o feminicídio em seu rol. Ocorrerá feminicídio, nos termos da lei, “contra a
mulher por razões da condição de sexo feminino”, sendo consideradas tais razões quando o crime
envolve violência doméstica e familiar e quando o crime envolve menosprezo ou discriminação à
condição de mulher. Diferentemente da Lei n. 11.340, que possui 46 artigos, a Lei n. 13.104 possui
apenas três, o que denota que veio apenas complementar as concepções estabelecidas na Lei Maria
da Penha, trazendo pequenas modificações ao Código Penal e à lei dos crimes hediondos. Nos
parece, apenas, que a lei nova poderia ter seguido as palavras da Maria da Penha e utilizado o termo
“gênero” no lugar de “sexo”, de modo a não gerar dúvidas de que a norma poderia ser aplicada em
razão da vulnerabilidade do gênero feminino ainda que a vítima não tivesse, biologicamente,
nascido “mulher”.
Apesar dos avanços legislativos no combate à violência doméstica contra as mulheres,
especialmente com a entrada em vigor das leis supra mencionadas, os índices de violência contra as
mulheres continuam elevados, o que faz perceber que é preciso ir além. As leis precisam ser
corretamente aplicadas, mas, mais que isso, precisam ser debatidas pela população que, em sua
maioria, sabe que as leis existem (principalmente a Maria da Penha), mas pouco as conhecem.
Neste ponto a mídia parece ter um papel de intervenção essencial, diante da proximidade que tem
com o público e da possibilidade de inserir tal temática em seus pontos constantes de pauta(agenda-
setting).
Metodologia
Para analisar o papel e importância que a mídia tem tido na revelação do fenômeno da
violência contra as mulheres desenvolvemos, como estratégia de pesquisa, um estudo de caso
instrumental da imprensa norte-rio-grandense, escolhendo, para tal, o jornal de maior tiragem que é,
também, considerado um jornal de referência no estado: a Tribuna do Norte. A coleta de dados,
consistente em leitura exploratória inicial e captura dos textos jornalísticos e imagens sobre
violência contra as mulheres através de fotografias dos textos encontrados nos exemplares do jornal
Tribuna do Norte, se deu através do acesso ao acervo preservado no setor de Arquivo do prédio
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histórico da Tribuna do Norte no bairro da Ribeira, em Natal, capital do Rio Grande do Norte.
Todos os jornais foram manuseados em sua versão impressa, entre fevereiro e maio de 2017.
Foram folheados e lidos os textos expostos em 153 exemplares, englobando seismeses,
sendo três de 2006 e três de 2015.A demarcação deste universo para análise, com fito de perceber
eventual evolução da cobertura noticiosa da violência doméstica em face dos avanços legislativos,
sucedeutendo como parâmetro o mês da publicação, o imediatamente anterior e o posterior à
publicação da Lei 11.340 e da Lei 13.104.O tamanho da amostra colhida foi de 19 peças
relacionadas à violência, constituindo ocorpus de análise em16 envolvendo a violência doméstica
contra as mulheres.
Quanto às dimensões de análise, procurou-se caracterizar a cobertura noticiosa em termos de
forma, conteúdo e discurso, ou seja, os próprios textos jornalísticos, o assunto abordado, a menção
às Leis e a aspectos criminais, as fontes de informação e o tipo de imagem (se) apresentada.Foram
consideradas 18 variáveis, referentes ao mês da publicação, título, gênero jornalístico, espaço
ocupado, destaque, caderno, assinatura, ocorrência, local da ocorrência,caracterização como
violação dos direitos humanos, citação de fontes, identificação da(s) vítima(s) e do(s) agressor(es),
utilização e enquadramento de imagem, espetacularização, menção legislativa e de aspectos
criminais. Estas variáveis nos permitiram fazer uma caracterização da forma, conteúdo e do
discurso dos textos jornalísticos analisados, comparando e analisando os dados obtidos em 2006
com os obtidos em 2015.
Análise e discussão exploratória
A Tribuna do Norte foi fundada em 1950 por uma família tradicionalmente envolvida em
política.É o jornal de maior circulação e vendagem do estado, publicado diariamente4, formado por
editorias em formato de cadernos: Geral, Natal5, Economia, Esportes, Cultura, TN Família e Fim de
Semana.Não possui jornalistasexclusivos de uma editoria, salvo as/os próprias/os editoras/es.
1. Jornais em 2006: 11 peças encontradas, sendo 8 sobre violência doméstica
Em 78 jornais, foram encontradas 11 peças sobre violência contra as mulheres, sendo oito
relacionadas à violência doméstica. Os três casos que não entraram na análise referiam-se a casos de
estupro,exploração sexual e àagressão de crianças e suas mães em uma praça, em que a(s) vítima(s)
não possuía(m) relação com o(s) agressor(es).A seguir iniciaremos a análise dos textos jornalísticos,
4 Sem exemplares apenas na segunda-feira e no dia subsequente a algum feriado. 5 Também chamado de caderno “cidades”, refere-se aos municípios do estado. Leva o nome “Natal” por ser a capital.
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tendo por base as três dimensões de análise apresentadas na metodologia. Algumas variáveis podem
importar para mais de uma dimensão, como a menção legislativa e de aspectos criminais.
1.1 Quanto à forma
Todos os meses analisados apresentaram pelo menos um texto relacionadoà violência
doméstica contra as mulheres, sendo um do mês de julho, três de agosto e quatro de setembro. Três
tiveram chamada na capa do jornal, sendo uma a manchete da edição (sem foto). O maior texto
jornalístico ocupou ¾ de página, enquanto os menores (três) ocuparam ⅛.Sete estão situados no
caderno Natal, enquanto um está situado no Geral, sendo seis notícias e duas reportagens. Quanto à
assinatura, tem-se que seis textos não estão assinados, não sendo possível verificar sua autoria,
enquanto dois estão assinados por jornalista homem com formação na área de comunicação.
Quanto à utilização e o enquadramento de imagens, o que envolve as três dimensões, tem-se
que quatronão possuem qualquer imagem. Nos demais destacam-se fotos provocativas,
normalmente do agressor, por vezes em situação degradante (como o agressor sem camisa no chão,
algemado).
1.2 Quanto ao conteúdo
Dos títulos analisados percebemos que apenas um foi expressivo apelativo. A maioria dos
títulos, cinco, foram curtos, enquadrando-se como categoriais e informativos indicativos; dois foram
informativos explicativos. Dentre os oito títulos, apenas um menciona legislação (lei aumenta
punição) e um utiliza a palavra “violência”, mas sem detalhamentos (seminário discute violência).
Nenhum texto caracteriza a violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos.
Quatro textos versam sobre casos concretos de violência, todos relacionados à violência
física, sendo três casos de violência física em que a vítima foi a óbito e um caso de violência física
em que amigo da vítima foi morto.Todos os casos ocorreram no Rio Grande do Norte, sendo três
em Natal. Os agressores foram o companheiro em três casos e o ex-namorado em um. Quanto aos
demais textos, dois trataram sobre iniciativas públicas para garantir atendimento às mulheres; um
sobre seminário que discutirá tipos de violência, inclusive a doméstica e; um da Lei Maria da Penha
e do aumento da punição para os agressores. O enquadramento é temático em quatro textos e
episódico em quatro.
Quatro textos citam, pelo menos duas fontes. Quatro utilizam fontes oficiais/institucionais,
tais como a polícia e a prefeitura. Em um dos casos, além de citar o delegado, cita-se também o
agressor. Dois parecem usar apenas fonte documental (legislação). Dois textos utilizam como fontes
testemunhas (anônimos e vizinhos) e um deles também cita familiares dos envolvidos.
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1.3 Quanto ao discurso
Dois textos jornalísticos analisados parecem espetacularizar o caso de violência ocorrido, o
que se percebe pelo tom apelativo utilizado, o uso de adjetivos e advérbios de tempo. Um dos
textos, inclusive, aparenta tratar a Lei Maria da Penha com deboche e ironia afirmando que “As
modificações nas penalidades [...] ainda vão demorar a fazer efeito" e que "A criação da Lei [...] não
impediu que o policial civil Francisco [...] espancasse […]”. Nos demais textos não se percebe juízo
de valor ou adjetivação. Apenas três textos mencionam aspectos criminais e/ou legislação (Maria da
Penha), dentre eles, contudo, um não busca conscientizar ou informar sobre a norma, mais parece
ironiza-la.As peças envolvendocrimes predominantemente identificaram a vítima e o agressor pelo
nome completo e idade, variando, contudo, conforme o tom mais informativo ou mais apelativo, na
apresentação de outras características, por vezes pejorativas.
2. Jornais em 2015: 8 peças encontradas
Em 75 jornais analisados, foram encontradas 8 peças relacionadas à violência contra as
mulheres, todas relacionadas à violência doméstica, embora uma indiretamente.
2.1 Quanto à forma
Todos os meses analisados apresentaram pelo menos um texto relacionado à violência
doméstica contra as mulheres, sendo dois em fevereiro e abril e quatro em março. Duas peças
tiveram chamada textual na capa do jornal, nenhuma foi a manchete. O maior texto jornalístico
ocupou¾ de página e o menor ⅛.Cinco peças estão situadas no caderno Geral, ao passo que três no
Natal, sendo seis notícias e duas reportagens. Quanto à assinatura, tem-se que cinco textos não estão
assinados, um está assinado por um jornalista homem com formação na área de comunicação, um é
de uma agência noticiosa estrangeira e outro de agência nacional.Quanto à existência ou não de
imagens e seu destaque, tem-se que dois documentos não possuem qualquer imagem. Os que
possuem, mais uma vez, focam, predominantemente, em imagens apelativas, ora do agressor ora da
vítima morta.
2.2 Quanto ao conteúdo
Dos títulos analisados percebemos que a maioria utilizou mais de cinco palavras. Os
menores indicaram os temas, sem sintetizar o assunto, enquadrando-se como categoriais. Um foi
expressivo apelativo, três informativos indicativos e um informativo explicativo. Dentre todos, dois
mencionam legislação (feminicídio) e um violência contra as mulheres (elevado número de
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processos). Nenhum texto caracteriza a violência contra as mulheres como uma violação dos
direitos humanos.
Dos oito textos, três versaram sobre casos concretos. As situações relacionaram-se à
violência física (feminicídios).O único caso em que a vítima sobreviveu envolveu também violência
sexual. Um caso ocorreu no Rio de Janeiro e três no Rio Grande do Norte, sendo dois em Natal. Os
agressores foram o marido/companheiro em três casos ena situação descrita ao fim do texto sobre o
grande número de processos judiciais, não há informação sobre os agressores. Quanto ao assunto
dos demais textos, um foi sobre desigualdades de gênero no Islamismo; dois sobre a Lei que
introduziu o feminicídio como um crime hediondo; e um sobre o aumento das denúncias de
violência através da Central de Atendimento à Mulher. O enquadramento é temático em cinco
textos e episódico em três.
Dois textos citam, pelo menos duas fontes. Quatro apresentam fontes oficiais/institucionais,
tais como a polícia e a Ministra da SPM. Em um dos casos, além de policiais, cita-se também o
agressor e seus familiares. Três textos parecem usar apenas fonte documental (legislação).
2.3 Quanto ao discurso
Nenhum dos textos parece espetacularizar as situações de violência. Um dos casos, contudo,
informa sobre a ocorrência mas o enfoque não é na violência e sim no estado (psicológico) em que
se encontra o agressor, ex-policial. Parece haver maior preocupação com o agressor do que com a
vítima. As fontes utilizadas pelo jornalista realçam este enfoque. Três textos mencionam aspectos
criminais e/ou legislação (feminicídio), dentre eles, um apresenta um erro sobre o número da lei.
Considerações finais
O texto que apresentamos é ainda exploratório. No entanto, oferece pistas de reflexões
importantes. Verificamos para a análise elaborada que o perfil principal dos conteúdos encontrados
é basicamente informativo e justificativo: o conteúdo descreve uma história sobre o sucedido e, a
seguir, tenta justificar o acontecido na base de representações ancoradas em estereótipos de gênero.
Em razão da visibilidade de que a mídia goza, é necessário refletir sobre os sentidos produzidos e as
temáticas colocadas no discurso público. Grande parte da população não tem conhecimento jurídico
e legislativo profundo, nem mesmo compreende certos termos, servindo-se do que os meios de
comunicação transmitem para conhecer as normas e suas atualizações. Se a mídia omite algo ou não
trata com a frequência e problematização adequada, da mesma forma superficial transmitida aquilo
será apreendido pelo público. Dentre os 153 exemplares analisados, apenas 19 tinham um texto
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sobre violência contra as mulheres, sendo 16 relacionados à violência doméstica. Este número
torna-se ainda menor se relembrarmos que a demarcação do universo de análise coincide com
momentos de debate público sobre a violência doméstica, em razão da publicação de importantes
leis.
Tendo o poder social de tranformação, que possibilita a desconstrução de discursos
androcêntricos, a imprensa local nos parece ter preferido não enfrentar as relações sociais
preponderantes. Na realidade, a análise quanto aos textos de 2015 chocam, pois, os índices de casos
de violência contra as mulheres, inclusive de feminicídio no Rio Grande do Norte estavam em uma
crescente e, ainda assim, a cobertura noticiosa dos casos pouco diferiu da realizada em 2006. Talvez
por ser considerado um jornal de referência, com maior público próximo à terceira idade, a Tribuna
opte por alterações muito sutis, ao longo dos anos, tentando seguir as mudanças sociais com algum
atraso proposital. Nenhum dos textos jornalísticos assinados foi de autoria de uma mulher. Nenhum
dos textos problematizou as questões de gênero com profundidade, não havendo sequer uma
menção à violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos.
Fato é que além do ínfimo número de textos publicados relacionados à violência doméstica
contra as mulheres, o que não representa a importância do tema e o número de casos ocorridos,
nenhum deles chegou a ocupar uma página inteira, sendo que os maiores ocuparam ¾ de página
(apenas dois). Não houve aumento do número de reportagens entre 2006 e 2015, o que demonstra
que a forma de tratar a temática pouco sofreu alteração. O destaque dado aos textos não aumentou,
pelo contrário, pois em 2006 um dos casos foi a manchete e em 2015 isso não ocorreu. As
publicações continuaram entre as editorias das cidades (Natal) e geral. Percebe-se, contudo, uma
pequena melhoria quanto ao enquadramento, que em 2015 passou a ser um pouco menos episódico
e mais temático, o que pode indicar uma tendência a ampliar o debate real, de modo a perceber as
situações como parte de um problema social e não como casos isolados. Percebe-se tendência
também de aumento do uso de fotos, tornando os textos jornalísticos mais atrativos visualmente.
Tem-se, em suma, quea pouca visibilidade atribuída à temática da violência contra as
mulheres pelo jornal e a não apresentação do crime como uma violação dos direitos humanos
transparece a ideia de um crime comum, banalizado, contribuindo para o silêncio e a perpetuação da
opressão feminina. Além disso, nas peças encontradas os crimes são justificados e normalmente
apresentadas razões para a violência ancoradas na dominação masculina e na necessidade de o
homem manter a posse sobre as mulheres. É, por isso, importante, repensar a maneira de apresentar
casos que envolvam crimes que outrora foram pensados como da esfera privada, aumentando a
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
reflexividade e a conscientização junto dos meios de comunicação. Acreditamos que poderia ser
oportuno que fosse ofertada e, posteriormente exigida, uma capacitação específica sobre leis, crimes
e fatos históricos aos agentes que escrevem sobre isso para garantir uma cobertura noticiosa mais
aprofundada.
Referências
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da violência em Natal-RN. 2013. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – UFRN, Natal.
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Brasil. Caderno complementar 1: Homicídio de mulheres no Brasil. 2012. Instituto Sangari, São
Paulo.
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Flacso Brasil, Brasília.
Violence against women in the media: an analysis of the Brazilian case
Astract: Biological essentialism and androcentrism are still structural in contemporary societies
where various forms of inequality between men and women persist, as well as various types of
violence against women. In the Brazilian scenario, every five minutes a woman is assaulted, victim
of domestic violence (SPM, 2012). In Rio Grande do Norte, there was an almost 100% increase in
the rates of homicide among women between 2006 and 2013, being the second worst Brazilian state
in this ranking (SPM, 2015). Among other issues that we need to ask today, we situate the debate,
on the one hand, about the role and importance of the media in revealing these phenomena, thus
contributing to raise the degree of reflexivity of social subjects about this problem, and another, in
its effective deconstruction, contributing to the change of attitudes and behaviors. Thus, by
analyzing the journalistic coverage of cases of violence against women present in the newspaper
Tribuna do Norte from the Maria da Penha Law to the present day, we have tried to highlight the
typology of reported cases, as well as the meaning and meanings built in the process discursive of
narration itself and, sometimes, characteristic spectacularism in these situations. We have diverse
theoretical alignment, namely from the analysis of gender and media and others related to the social
construction of inequality and discrimination.
Keywords: Violence against women. Media. Legislative Evolution. Journalistic Coverage. Rio
Grande do Norte.