"A vida que ele vê"

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Pesca Brasil l 78 Perfil do pescador »Por: Janaina Quitério l Fotos: Luiz A. Tavares [email protected] 71-78.indd 1 26/11/2008 11:36:29

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Perfil publicado na Revista Pesca Brasil 14, em dezembro de 2008. (Txt sem aplicação da Nova Ortografia): A história de um pescador que ficou cego aos 44 anos de idade, mas não perdeu a visão que percebe a beleza da vida. Hoje com 53 anos, Antônio Carlos Grandi continua pescando — é a sua grande paixão —, e se mantém firme fisgando sonhos e objetivos

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Pesca Brasil l 78

Perfil do pescador

»Por: Janaina Quitério l Fotos: Luiz A. Tavares [email protected]

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A história de um pescador que ficou cego aos 44 anos de idade, mas não perdeu a visão que percebe a beleza da vida. Hoje com 53 anos,

Antônio Carlos Grandi continua pescando — é a sua grande paixão —, e se mantém firme fisgando sonhos e objetivos

Quando perdeu a visão, em 1999, Antônio Carlos Grandi passou a enxergar a vida com

uma feição diferente: voltou-se para si, reconheceu-se e compre-endeu que a interação com o outro fará definitivamente parte de sua própria natureza. Ao colocar na balança perdas e ganhos, sobram ganhos. É o que nos conta a voz branda, proferida por um homem firme — que só titubeia na compa-nhia de sua bengala branca: — Passei a enxergar a vida melhor: quando você perde a visão, torna-se mais introspectivo. Aí, pensa um pouco mais nas coi-sas da vida, na maneira como vive, no relacionamento com os outros. Eu passei a enxergar que preciso mais de outras pessoas. De Copa do Mundo a Copa do Mundo, Antônio Carlos sentia que a Retinose Pigmentar — gru-po de doenças causadas por varia-ções genéticas na retina — tirava dele a nitidez das jogadas. Dia a dia lamentava a partida gradual de sua acuidade visual. Embora de modo vago os médicos dissessem “você tem um problema aí”, a do-ença o rondava: acometera o avô e, desde a infância, ela importuna-mente o visitava durante a noite.

Era a chamada cegueira noturna — um dos primeiros sintomas da Retinose Pigmentar. Até os 38 anos de idade a doença não o impediu de ler, de andar de bicicleta, fazer faculdade de Ciências Biológicas e lecionar em três escolas da capital paulis-ta. Até os 34 anos, Antônio Carlos dirigiu — ele era apaixonado por carros e havia sonhado na infância em ser piloto de corrida. Só de-pois dos 38 anos a visão começou a piorar. E ele só matou a charada quando se deu conta de que o ir-mão e o sobrinho — filho de sua irmã — são portadores da mesma doença, ainda sem cura. No caso de sua família, o cromossomo X é quem repassa o gene.

Fisgando objetivos — Será que amanhã vai chover? — Uma ponta de preocu-pação atravessava Antônio Carlos enquanto ele juntava suas varas e montava o equipamento para a pescaria marcada no Pesquei-ro Tio Oscar – Itu (SP). Ele sabia que a pesca torna-se boa quando o tempo permanece estável — ou só chuva ou só sol — durante três ou quatro dias. Mas, naquela primavera de novembro, a tempe-

ratura não se decidia; com muita variação de pressão, o peixe aca-baria sentindo. Nada disso tirou a sua em-polgação. Já fazia alguns meses que ele não pescava; seu filho — o grande companheiro de pesca — mora atualmente na Austrália, onde trabalha como engenheiro de mi-nas. Quem então o acompanharia? Com o convite da equipe de reportagem da Revista Pesca Brasil, Grandi tirou as suas três varas de molho — cuidadosamente acomodadas em um quarto desti-nado às suas tralhas. Ele mesmo tratou de montar o equipamento assim que entrou no pesqueiro: uma vara Silstar, de ação média; uma vara leve; e uma terceira de ação média para rápida. O objetivo realmente era não sair de lá sem ter o prazer de fisgar. Por pesca, Antônio Carlos Grandi é apaixonado desde a infân-cia. Aprendeu com o pai, e ensinou essa arte ao filho. Hoje, ele neces-sita de uma companhia para indi-car qual a distância do arremesso ou em qual direção arremessar. E, mesmo sem visão, ele tem orgulho em reconhecer que poucas vezes enroscou a linha ou a vara enquan-to pescava.

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Perfil do pescador

A pesca em quatro sentidos Atento ao canto dos pas-sarinhos ou ao miado do gato que caminha atrás das tralhas, Grandi tem a sensação de estar rodeado por árvores. Sente o gostoso e a leveza do ar, e aspira o cheiro de mato e de natureza que o lago do Pesqueiro Tio Oscar consegue pas-sar. Ele se satisfaz com a descrição do local: nada de concreto ao re-dor, só meia dúzia de pescadores em plena quarta-feira ensolarada. Do nosso lado direito, o pescador usa bóia cevadeira e já fisgara um tambacu. Mas, nas varas de Antô-nio Carlos, as iscas são lesmas, e nada de peixe. — Acho que temos que passar catchup nas lesmas para os peixes comerem. Enquanto não se aproxi-mam, Grandi desfruta de uma boa conversa: papeia que gosta é de matão mesmo, e de pescar embar-cado na represa sob uma sombra, abastecido com lanchinhos. — Estou bem em frente ao lago? — Orientado, Grandi arre-messa a vara. De repente, sente a fisga-da. E pela corrida do peixe, dá o palpite: — O pacu morde a isca e dá uma arrancada em direção ao fundo. Já os peixes de couro fo-gem para o lado.

Enquanto travava a bata-lha, ele dava linha na vara. É disto que ele mais gosta: que o peixe bri-gue, leve a linha. — Ó que bobão... Este peixe não está brigando. Ê, bichão, como é? Não vai aparecer? Lá estava ele: um tambacu amarelado. Alex Gomes de Olivei-ra, que trabalha na loja de pesca do pesqueiro há nove anos, ajuda-o a tirar o peixe d’água. O segundo peixe fisgado por Antônio Carlos foi outro tambacu, só que mais briguento; apanhado pelo rabo, o peixe levou mais de 80 metros de linha, deixando o pescador emocio-nantemente extasiado. Pudera, o valente tambacu tinha dez quilos.

Se queres ser cego, sê-lo-ás A imagem vista por Antô-nio Carlos é de um vidro leitoso; dependendo da iluminação, o bran-co se transforma em meio sépia, ou meio tom, mas preto nunca. Entre-tanto, a sua deficiência nada se pa-rece com a metáfora da “cegueira branca” apresentada no enredo do livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Isso porque Gran-di enxergou a vida, as pessoas, o meio ambiente e os seus próprios desafios desde que se conhece por gente. Por um lado, nunca fechou os olhos para a preservação am-biental: — Em diversas pescarias, eu presenciei muitos pescadores que querem pegar tudo o que pu-derem de peixe para levar para casa e mostrar o quanto são bons. Eles não comem todos os peixes fisgados, e começam a distribuí-los nas vizinhanças. É uma burrice; um desperdício. Por outro lado, Grandi não demorou a aceitar a perda da vi-são. Quando fala que tirou a nova

situação de letra, ninguém acredi-ta. Não que tenha sido fácil: o dia mais triste da vida dele aconteceu quando entregou a sua carteirinha profissional de biólogo, pois não havia mais como exercer a profis-são. Aposentou-se. Mas aceitou a realidade. Fazer o quê? Passou dois anos isolado em casa até pro-curar a Fundação Dorina Nowill para reabilitação de deficientes vi-suais [ver box]. Hoje é coordenador de informática voluntário da mes-ma Fundação que o reabilitou para o mundo: ensina a 58 cegos como se comunicar no mundo virtual.

Do que sente mais falta sem a visão? — Poder olhar uma mulher bonita ou olhar uma foto da Gisele Bündchen. Embora não tenha o “olho no olho”, Antônio Carlos usa todos os outros sentidos para enxergar situações: ele é capaz de perce-ber se uma pessoa está sendo fal-sa, se está ansiosa ou angustiada pela voz, pela maneira de falar e até pelo cheiro da pessoa ou pela energia que ela emana. — Os próprios obstáculos têm um som. Quando estou pas-sando perto de um poste, consigo ouvi-lo. É como se fosse um sonar.

O tambacu de dez quilos é devolvido ao seu habitat

Na aula de informática, Antônio Carlos ensina os macetes para que os colegas deficientes visuais manipulem programas como Word, Excel e Internet

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Na Biblioteca Braille da Fundação Dorina Nowill estão expostos livros como: “Vestido de Noiva”, “O Primo Basílio” e “O Caçador de Pipas”

Dia Mundial da Bengala Branca Em 15 de outubro foi comemorado o Dia Mundial da Bengala Branca. Esse dia tem como objetivo reconhecer a independência de pessoas cegas e com baixa visão — e a “bengala branca” tornou-se símbolo da autonomia para os cegos. Na primeira foto, Antônio Carlos (à direita) pousa com Dona Dorina, no evento de comemoração ocorrido no vão do MASP. A Fundação Dorina Nowill organizou vivências com o público.

Serviços»Brasil Fishing — Website mantido por Antônio Carlos Grandi

www.brasilfishing.com.br»Pesqueiro Tio Oscar — Pousada / Pesca / LazerRodovia Castelo Branco, Km 75 – Sentido São Paulo

(11) 4246-2048 / 4246-2328

www.tiooscar.com.br

[email protected] » Fundação Dorina Nowill para CegosRua Doutor Diogo de Faria, 558 - São Paulo – SP

(11) 5087-0999

www.fundacaodorina.org.br

Fundação Dorina Nowill Dona Dorina tem 89 anos e foi a primeira alfabetizadora de cegos no Brasil. Há mais de 62 anos montou a fundação homônima com o objetivo de facilitar a inclusão social de pessoas com deficiência visual. Todos os anos, gratuitamente, milhares de pessoas são atendidas em programas especializados, que contam com reabilitação e colocação profissional, educação especial e áreas de avaliação e diagnóstico. Em sua sede, a instituição produz livros didáticos, paradidáticos e obras literárias em áudio e no Sistema Braille — gratuitamente distribuídos para mais de 1.700 escolas e para pessoas com deficiência visual.

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