A Universidade Numa Encruzilhada

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1 A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

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Livro Cristovam Buarque

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • I. A UNIVERSIDADE GLOBAL

    Cristovam Buarque*

    Ao longo de seus quase trs mil anos de histria, a Universidade representou:

    um estoque de conhecimentos que o graduado adquiria para durar por todaa vida. Hoje, esse conhecimento est em fluxo contnuo, e tem de ser constante-mente atualizado pelo ex-aluno;

    o conhecimento como propriedade especfica dos alunos em salas de aula oubibliotecas, transmitido por professores ou por livros. Hoje, o conhecimento algo que est no ar, alcanando pessoas de todos os tipos, por toda parte, peloscanais os mais diversos. A universidade apenas um desses canais, lado a ladocom a internet, a televiso educativa, revistas especializadas, empresas, laboratriose instituies privadas;

    o conhecimento como um passaporte seguro para o sucesso do aluno j for-mado. Hoje, isso j no basta, em razo da alta competitividade do mercadoprofissional, que exige atualizao constante, reciclagem e reformulao, para queo conhecimento adquirido no se torne obsoleto; e

    o conhecimento como algo que servia a todos, porque, ao aumentar onmero de profissionais, o produto da universidade se difundia. No mundo dehoje, o conhecimento de um profissional recm-formado serve, basicamente, aosdesejos e interesses daqueles que podem pagar por seus servios, fazendo uso deequipamentos caros, que no permitem a distribuio do conhecimento.

    No ocorreram grandes mudanas estruturais na universidade, nos ltimosmil anos. O papel da universidade pouco mudou. No entanto, a realidade dasituao social do mundo, bem como os avanos dinmicos em termos de infor-mao, conhecimento e novas tcnicas de comunicao e educao evidenciam anecessidade de uma revoluo no conceito de universidade.

    1. A ESPERANA NA UNIVERSIDADE

    O mundo, em incios do sculo XXI, passou por uma imensa desarticulaoideolgica, que incluiu uma enorme dissociao poltica e uma desigualdadesocial macia. Frente a essas transformaes radicais, a universidade ainda repre-senta patrimnio intelectual, independncia poltica e crtica social. Graas aessas caractersticas, a universidade a instituio mais bem preparada parareorientar o futuro da humanidade. * Ministro da Educao do Brasil. Trabalho apresentado na Conferncia Mundial de Educao Superior + 5, UNESCO, Paris, 23-25 de junho de 2003.

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  • As ltimas dcadas do sculo XX causaram grande desorientao:

    a economia, que foi o orgulho do sculo XX, entrou em desacelerao; essa economia, que, a princpio, aumentou o nmero dos que se beneficiavam

    do progresso, passou a ser instrumento da mais brutal desigualdade entre os sereshumanos j vista na histria;

    os partidos polticos, quer de direita quer de esquerda, deixaram de geraresperana;

    a democracia, que havia sido criada para os estados-cidade, tendo resistidopor mil anos, passou a se mostrar saturada e incompetente. Isso se deu numtempo em que um presidente eleito em um pas, pequeno ou grande, tem podersobre todo o planeta e sobre os sculos futuros, em termos das decises tomadaspor ele;

    as religies, que sempre foram guardis da cultura, sentem-se agora incapazesde frear o avano brutal do individualismo;

    as empresas, que antes criavam empregos, passaram a destruir empregos; a cincia e a tecnologia, que foram o orgulho da humanidade durante

    trezentos anos, chegaram ao sculo XXI tendo a imoralidade como uma de suasopes, uma vez que elas agora so capazes de manipular a vida e de destruir oplaneta. Isso se aplica, sobretudo, ao fato de a cincia e a tecnologia serem usadasem benefcio de uma minoria e, se continuarmos nesse rumo, no tardar para quea maioria, que deixar de ser vista como parte da humanidade, seja de todo excluda; e

    as ideologias se enfraqueceram. agora evidente que o socialismo foi incapaz deconstruir utopias, de assegurar a liberdade e de proteger o planeta. O capitalismoexibe a desumanidade que lhe inerente diante das exigncias de equilbrioecolgico e de respeito pelo bem comum de todos os seres humanos.

    Resta pouca esperana de que um novo sistema global de idias venha a sercriado para renovar a crena na utopia de um mundo em que o sonho humano deprogresso tecnolgico se alie liberdade e igualdade. Essa crena implicavaconfiana nos polticos, nos lderes religiosos e nos juzes, de quem se esperava ainveno de meios para a criao de coalizes entre os seres humanos. Noentanto, se examinarmos as instituies que sobreviveram ao longo desses ltimosmil anos, podemos ainda nos permitir ter esperanas, se voltarmos nosso olharpara a universidade.

    Para que a universidade seja um instrumento de esperana, entretanto, necessrio que ela recupere esperana nela prpria. Isso significa compreender asdificuldades e as limitaes da universidade, bem como formular uma novaproposta, novas estruturas e novos mtodos de trabalho. Lutar pela defesa da uni-versidade significa lutar pela transformao da universidade.

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  • 2. A HORA CERTA AGORA

    De todas as realizaes brasileiras da ltima metade do sculo XX, talvez amaior seja a fundao de sua universidade, em especial da universidade pblicafederal. Essa inovao foi, no mnimo, to importante quanto a industrializao,o sistema de telecomunicaes, a rede de transportes e a infra-estrutura energtica. Auniversidade um smbolo da nao brasileira e da fora do povo brasileiro.

    De incio, nas primeiras dcadas de seu desenvolvimento, a universidade foiproduto do apoio estatal. Ao longo das ltimas dcadas, contudo, sua sobre-vivncia e seu crescimento foram o resultado da resistncia da comunidade uni-versitria, no contexto de um pas que enfrentava enormes dificuldades. Com ofim do protecionismo estatal, as estradas se esburacaram, a energia foi racionadae o crescimento industrial estancou, causando a falncia de empresas. No entanto, osprofessores, alunos e funcionrios das universidades continuaram a crescer,abrindo cursos, ampliando vagas, pesquisando, formando, publicando e inventando.O universitrio brasileiro de fins do sculo XX foi, simultaneamente, um intelectualcriador e um militante da sobrevivncia em meio ao desnimo.

    Por essa razo, possvel ser otimista diante do futuro.

    O sculo XXI chegou, e j existe uma massa crtica consolidada, pronta aseguir adiante, embora depredada e desanimada; disposta a lutar, apesar da baixaauto-estima; pronta a enfrentar situaes de emergncia, mesmo sabendo que acrise mais profunda, atingindo o propsito, a estrutura, os mtodos operacionais eo financiamento da atividade universitria. E o que mais importante, chegamosao incio do sculo XXI com um governo comprometido com a educao, aindaque sem recursos suficientes para atender a toda a demanda. Sobretudo, estamosvivendo um momento nico na histria, quando a sociedade brasileira parece terdespertado para a importncia da educao, mesmo que no confiando no papelda universidade, que o povo v como uma entidade de acadmicos aristocrticosem meio ao mar do baixo nvel educacional da populao.

    Tudo indica que, apesar de todas as dificuldades, ou graas a elas, a hora certa agora.

    3. A ENCRUZILHADA DA UNIVERSIDADE

    A crise da universidade brasileira coincide com a crise global da instituio uni-versitria. A humanidade encontra-se numa encruzilhada, preparando-se paraescolher entre:

    a continuao de sua modernidade tcnica, desenvolvida ao longo de duzentos

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  • anos, que culminou com a brutal diviso da humanidade em dois gruposdessemelhantes em termos do acesso cincia e tecnologia. Essa divisodiferencia os seres humanos no apenas em termos desse acesso, mas at mesmode suas caractersticas biolgicas; ou

    a construo de uma modernidade tica alternativa, capaz de manter assimilaridades da raa humana e de assegurar a todos o essencial do progressocientfico e tecnolgico.

    Essa escolha ter de ser feita tambm pela universidade. Diante da encruzilhadade um mundo em mutao, a universidade ter de escolher entre:

    o conhecimento, que antes representava capital acumulado, passa a ser algoque flutua e que permanentemente renovado ou ultrapassado por obsolescncia;

    o ensino, que antes se dava por meio de canais bilaterais diretos, entre alunoe professor, e em locais definidos, como a universidade, agora acontece por outrosmtodos reconhecidos, como um espraiamento em todas as direes, em meio aooceano das comunicaes;

    a formao profissional, que antes representava uma base firme na luta pelosucesso, agora, na melhor das hipteses, um colete salva-vidas a ser usado noconturbado mar em que se chocam as ondas do neoliberalismo, da revoluocientfico-tecnolgica e da globalizao.

    Neste momento de encruzilhada, a esperana est na universidade. necessrioque ela se transforme e reinvente a si prpria, para servir a um projeto alternativo decivilizao. Quase oito sculos e meio se passaram desde a criao da universidadee, hoje, ela se encontra bem no meio da encruzilhada civilizatria que ir definiros rumos do futuro. A escolha ser entre uma modernidade tcnica, cuja eficinciaindepende da tica, ou uma modernidade tica, na qual o conhecimento tcnicoestar subordinado aos valores ticos, dos quais um dos principais a manutenoda semelhana entre os seres humanos.

    A universidade tem de entrar em sintonia com esse novo rumo, corrigindo odescompasso gerado por essa turbulenta virada de sculo.

    4. A CRISE DE RECURSOS E OS RECURSOS DA CRISE

    No h dvida de que a universidade foi duramente maltratada pelo neoliberalis-mo das ltimas dcadas. O Brasil um exemplo trgico dessa realidade. Duranteesse perodo, as universidades pblicas brasileiras perderam poder, recursos finan-ceiros e professores, no tendo crescido o suficiente para atender demanda porvagas. Em 1980, havia 305.099 alunos matriculados e, em 2001, 502.960.O crescimento das universidades particulares, por outro lado, foi espantoso: em

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  • 1981, o nmero de alunos matriculados era de 850.982, nmero esse que passoua ser de 2.091.529, em 2001, representando um aumento de mais de 56%.

    Em 1980, havia, nas instituies pblicas, 51.765 professores e, em 2001, essenmero foi de 51.765. Nas universidades particulares, entretanto, o nmero deprofessores, nesse mesmo perodo, aumentou de 49.541 para 128.997. Se com-pararmos o crescimento desses dois sistemas, veremos que enquanto o sistemaprivado cresceu 62%, o pblico teve um aumento de apenas 19%.

    A falta de recursos um indicador de crise nas universidades, e o Brasil no um caso isolado. Muitas regies do mundo assistiram a uma mudana no tratamentodado s universidades. A universidade pblica passou de protegida a abandonada.Verificou-se uma tremenda expanso das universidades particulares, financiadapor recursos privados e por recursos pblicos indiretos. freqente que essesfinanciamentos estejam claramente vinculados a interesses econmicos, e no liberdade de esprito que cabe universidade promover.

    No entanto, em vez de perceber a crise em toda a sua profundidade, as univer-sidades, em sua maioria, vm-se convertendo em prisioneiras de suas necessidadesimediatas. Elas tratam da crise como se conserta goteiras no telhado, sem perceberque o cu est desabando. A universidade tem de transformar sua crise de recursosnum recurso para entender a crise maior do conhecimento humano e de suarelao com o destino da humanidade.

    As dimenses da crise tm de ser entendidas a partir da realidade histrica decomo a universidade nasceu, enfrentou crises anteriores e, mais uma vez, sercapaz de se transformar.

    5. A PERDA DE SINTONIA

    Esta no a primeira vez que a universidade se v confrontada com anecessidade de mudar, mas nunca ela precisou mudar tanto quanto agora.Tampouco a primeira vez que a universidade parece no se dar conta de suaprpria crise, mas tambm no ser a primeira vez ela que ir superar suas difi-culdades e se reorganizar para servir humanidade.

    A universidade brasileira um local privilegiado para a compreenso da criseuniversitria do mundo de hoje. O Brasil diferente dos pases ricos, que nosofrem as mesmas dificuldades financeiras, nem esto rodeados to proximamentepela excluso social. O Brasil difere tambm dos pases pobres, onde o importanteso as condies de sobrevivncia, e a universidade tambm parte da pobreza.

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  • O Brasil um pas intermedirio, em que uma riqueza semelhante das melhoresuniversidades do mundo convive com uma pobreza prxima dos mais pobres. OBrasil no nem a Europa nem a frica, um pouco de cada um desses dois continentes.O Brasil um retrato do planeta e da civilizao contempornea, e o melhor indicadordo rumo tomado pelo mundo e tambm do rumo que o mundo pode vir a tomar.

    No Brasil, temos a sorte de ter todas as crises, mas tambm de contar com afora que vem da adversidade. Temos todos os tipos de tragdias, mas tambmtodos os recursos para super-las. Acima de tudo, temos a urgncia que vem desaber que ou encontramos sadas ou iremos naufragar. por essa razo que a uni-versidade brasileira, juntamente com todas as outras universidades do mundo, temde despertar para uma crise que vai alm da crise financeira, consistindo numacrise de propsitos muito mais ampla, num mundo em rpida transformao.

    A universidade, neste incio do sculo XXI, deixou de ser a vanguarda doconhecimento, tendo perdido tambm a capacidade de assegurar um futuroexitoso a seus alunos. Ela deixou de ser um centro de disseminao do conheci-mento, e no mais usada como instrumento na construo de uma humanidadecoesa. A universidade flutua em meio s correntes da globalizao, e corre o riscode um naufrgio tico, caso aceite a imoralidade de uma sociedade cindida.

    Quase oitocentos anos depois de sua criao, as universidades precisam entenderque mudanas tm de acontecer em cinco grandes eixos:

    a) voltar a ser a vanguarda crtica da produo do conhecimento;b) firmar-se, novamente, como capazes de assegurar o futuro de seus alunos;c) recuperar o papel de principal centro de distribuio do conhecimento;d) assumir compromisso e responsabilidade tica para com o futuro de uma

    humanidade sem excluso; ee) reconhecer que a universidade no uma instituio isolada, mas que ela faz

    parte de uma rede mundial.

    O conhecimento murado: mosteiros e universidades

    A universidade nasceu, h oito sculos e meio, porque os mosteiros medievaisperderam a sintonia com o ritmo e o tipo de conhecimento que vinha surgindono mundo ao seu redor. Por serem murados, esses mosteiros no foram capazesde atrair esse mundo externo para dentro de suas preocupaes e de seus mto-dos de trabalho. Prisioneiros de dogmas, defensores da f, intrpretes de textos,os mosteiros foram insensveis necessidade de incorporar os saltos do pensa-mento da poca. Muitas vezes, eles preferiram retornar ao pensamento clssicogrego, que havia sido interrompido alguns sculos antes.

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  • As universidades surgiram como um espao para o novo pensamento livre evanguardeiro de seu tempo, capaz de atrair e promover jovens que desejavam sededicar s atividades do esprito num padro diferente da espiritualidade religiosa.

    Ao longo dos sculos seguintes, a universidade floresceu como um verdadeirocentro de gerao de alto conhecimento, nas sociedades. Mas, para tal, ela teve dese reciclar, mudar e se adaptar, em diversos momentos, realidade a seu redor.

    Em fins do sculo XIX, os centros de pesquisa para inventores funcionavamindependentemente das universidades, sendo inclusive menosprezados por pro-fessores e estudantes universitrios. Ford, Bell e Edison no foram universitrios.Alm disso, as universidades no reconheciam o trabalho dessas pessoas comopossuindo nobreza intelectual. As universidades perderam ritmo e se atrasaram,enquanto o conhecimento tcnico avanava indiferente a elas.

    Em incios do sculo XX, contudo, as universidades tiveram a sabedoria deperceber que estavam se transformando em mosteiros modernos. Em vez demonges, havia estudantes universitrios. No lugar dos dogmas, o debate restritos disciplinas clssicas tradicionais. No lugar da participao no mundo doconsumo de massa, o esnobismo aristocrtico do saber bacharelesco. No tardoupara que as universidades se reciclassem, trazendo para dentro de si reas doconhecimento tcnico, como a engenharia e as cincias aplicadas. J em meadosdo sculo, a universidade estava to transformada que os campos tecnolgicoseram agora dominantes em relao aos campos tradicionais da filosofia, das artese da literatura. Os estudos clssicos, que por tantos sculos foram o cerne do saberuniversitrio, viram-se relegados a departamentos muitas vezes menosprezados etratados como reservas biolgicas de conceitos e interesses pr-histricos. Osestudos clssicos tornaram-se coisa do passado.

    O comeo do sculo XXI mostra que essa primazia do conhecimento tec-nolgico, mais uma vez, volta a cercear o conhecimento de nvel superior, impedindoos livres saltos do esprito humano em direo a um futuro libertrio, rico em termosestticos e ticos, eficiente em termos epistemolgicos, abrangente em termos decomunicao de massa, socialmente legtimo e universal em seu alcance.

    O conhecimento universitrio, mais uma vez, se v murado e defasado, per-dendo sintonia com o conhecimento e as demandas da realidade social externa aesses muros. A universidade sofre hoje do mesmo problema que afligiu osmosteiros h mil anos, e ela prpria, h um sculo.

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  • As perdas de sintonia

    a) Com o avano do conhecimento perda de eficincia epistemolgica.A primeira perda de sintonia, na universidade ocorre na velocidade com que o

    conhecimento avana no mundo atual. At tempos recentes, o conhecimento uni-versitrio atravessava geraes sem grandes modificaes. O conhecimento mdico eas teorias cientficas progrediam to lentamente, que um aluno formado numauniversidade poderia carregar pelo resto da vida, sem qualquer perda de eficincia, osinstrumentos de saber l adquiridos. Um diploma tinha a validade de pelo menoso tempo de uma vida profissional e, muitas vezes, uma validade ainda mais longa.

    Essa situao mudou radicalmente.

    A velocidade atual do avano do conhecimento no permite que um ex-alunopermanea preparado, a no ser que ele se atualize constantemente. Nenhumprofissional continua fazendo pleno jus a seu diploma, depois de cinco anos deformado. Em alguns casos, essa desatualizao ocorre at mesmo ao longo docurso, quando muito do que foi aprendido rapidamente se torna obsoleto, sendosubstitudo por novas teorias, novas informaes, novos conhecimentos.

    O saber avana rapidamente no apenas dentro dos campos especficos, e novoscampos surgem a cada dia.

    A universidade vem-se esforando por incorporar essas transformaes, massem sucesso. A estrutura dos cursos, a durao dos doutorados e as limitaes dosdepartamentos vm impedindo que o conhecimento, dentro da universidade,avance to rapidamente quanto fora dela.

    Isso faz com que muitos procurem produzir conhecimento fora dela, parasurpresa de todos os que se lembram da fora que a universidade tinha, at poucotempo atrs. No passado, poucos eram os professores ou pesquisadores que tra-balhavam fora dos muros da universidade. Era impossvel para um jovem criarsaber de ponta sem a orientao de um professor universitrio. Isso mudou, emdcadas recentes. Diversos campos do conhecimento se desenvolveram fora dasuniversidades: em centros de pesquisa pblicos que se distanciam e at evitamcontato com a universidade, dentro de empresas que mantm seus prprioscentros de pesquisa e em instituies de ensino superior que se autodenominam"universidades corporativas", como forma de indicar que elas oferecem ensinosuperior sem ensinar o mesmo que as universidades tradicionais.

    Essas parauniversidades existem porque as universidades tradicionais fracassaramno cumprimento de seu papel, atrasando-se em termos da gerao de conheci-

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  • mento e perdendo a sintonia com os tipos e a qualidade dos temas desenvolvidosou ensinados. Se as universidades no reconhecerem essa situao e alterarem seu rumo,elas deixaro de ter utilidade. Foi o que aconteceu com os mosteiros, h um milnio.

    A crise de recursos deve-se, em parte, indiferena dos governos, e tem muitoa ver com a perda de sintonia da universidade. O inverso tambm verdadeiro,entretanto. Se as universidade continuassem, de forma clara, a cumprir seu papelde vanguarda de todas as formas de conhecimento, essas parauniversidades noestariam surgindo e proliferando to rapidamente quanto hoje acontece, e oEstado no teria retirado apoio s universidades pblicas.

    b) Com a disseminao do conhecimento perda de abrangncia na comuni-cao de massas.

    Quando a Amrica foi descoberta, as universidades tiveram dcadas paradesenvolver e ensinar os novos mapas do mundo. Hoje, quando qualquer fen-meno novo criado ou descoberto, todos tomam conhecimento dele quase quesimultaneamente. No mundo atual, os mapas so criados no minuto em que ageografia se altera. Isso faz com que a universidade se defase em termos da dis-seminao do conhecimento.

    O jovem atento que navega na internet, assiste a programas especiais na tele-viso e freqenta grupos de chat especializados pode tomar conhecimento decerto tipo de informaes antes mesmo que seus professores.

    O conhecimento tornou-se urgente e simultneo: urgente devido velocidadede sua criao e simultneo devido rapidez de sua divulgao. O mundo inteirose converteu em uma grande escola para aqueles que esto atentos e que se com-portam como eternos alunos.

    Na universidade pr-socrtica, o professor era o tutor praticamente individualde um pequeno grupo de alunos. Mesmo quando gregos, romanos e bizantinosse reuniam numa sala de debates, o nmero de alunos era reduzido, restrito aoalcance da voz alta do professor, sem qualquer outro suporte. Sculos mais tarde,o uso do quadro-negro provocou uma revoluo, permitindo, pela primeira vez,o uso de recursos visuais e ampliando o nmero de alunos. Mesmo com essa ino-vao, o aluno, para aprender, tinha de comparecer s aulas, estar presente, olharnos olhos do mestre e ver os desenhos e palavras usados por ele. O uso do micro-fone ampliou ligeiramente o nmero de alunos, mas o ensino continuou a se darem sala de aula, em prdios destinados especificamente s universidades.

    Em tempos bem mais recentes, surgiram os recursos modernos da mdiaeletrnica, permitindo o ensino a distncia. Quase todas as formas de conheci-

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  • mento, principalmente para adultos universitrios, podem hoje ser ensinadas sema presena fsica de um professor. A sala de aula deixou de ser um espao quadra-do, cercado de paredes. Ela aberta e tem uma dimenso einsteiniana: seu tempoe seu espao se misturam, o aluno podendo estar em qualquer lugar e o professor,em qualquer outro, sintonizados simultaneamente ou em tempos diferentes.

    Algumas universidades vm-se esforando para incorporar essa nova realidade,embora ainda no tenham conseguido entender ou aceitar a realidade de que osmuros de cada campus cercam o mundo inteiro. As universidades ainda noderam um salto compatvel com a realidade tcnica de hoje, capaz de demolir osmuros da universidade e conect-la on-line para, em tempo real, distribuir osconhecimentos para o mundo inteiro.

    c) Com a eficincia do diploma a perda de promoo socialNo faz muito tempo, as universidades tinham o papel de funcionar como pro-

    motoras de seus alunos. O diploma era um passaporte seguro para o futuro dequalquer jovem. A situao mudou.

    Nas duas ltimas dcadas, o diploma universitrio, apesar de continuar sendotil, deixou de ser um passaporte seguro para o sucesso. Milhes de jovensgraduados, em todo o mundo, no encontram emprego, ou porque h um excesso deprofissionais ou devido rpida obsolescncia do que eles aprenderam.

    A universidade, contudo, no assumiu de forma plena essa realidade: ela critica omercado, em vez de entender que ele decorrncia da realidade e exige novos camposde conhecimento e novos conhecimentos dentro dos campos antigos e, sobretudo,exige rapidez na formao e na reciclagem dos alunos.

    A universidade de hoje vive a mesma crise do incio do sculo XX, quando elase recusava a entender que a realidade exigia profissionais graduados nas reas tec-nolgicas, mais que nas reas bacharelescas.

    d) Com os excludos perda do papel de construtora de utopia.No decorrer do sculo XIX, os centros brasileiros de ensino superior coexistiram

    com o regime escravocrata, e eram poucas as demonstraes de insatisfao ou deprotesto, e mais rara ainda a luta pela abolio. Grande parte da comunidadeuniversitria assistiu com naturalidade ao absurdo da escravido, usando seusconhecimentos de direito, economia e engenharia para manter o sistema funcio-nando de forma eficiente.

    No sculo XX, a universidade brasileira permanece impassvel e colabora paratornar o Brasil um pas dividido entre os que se beneficiam dos produtos da

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  • modernidade e os que so excludos desses benefcios. Hoje, a universidade secomporta diante da pobreza de forma to alienada quanto o fez, no sculo XIX,com relao escravatura.

    A universidade brasileira um retrato da universidade mundial. Da mesmaforma que a universidade brasileira se aliena frente pobreza que a cerca, a uni-versidade europia se aliena diante da tragdia global.

    No sculo XXI, o sculo da globalizao, a universidade convive com a trag-dia de uma humanidade cindida em duas. De um lado, esto os includos nosbenefcios tcnicos do mundo moderno e, de outro, os excludos. A cortina deferro foi derrubada e o mundo passou a ser dividido por uma cortina de ouro,erigida, em parte, graas ao saber universitrio que beneficia apenas um dos lados.O ritmo atual da evoluo do projeto civilizatrio deixar a humanidade cindidaem duas partes, e no tardar muito, apenas algumas dcadas, para que essaspartes se diferenciem tanto, a ponto de no mais se sentirem relacionadas, e issograas ao trabalho daqueles que passaram por nossas universidades. O direitodefende uma parte, a economia beneficia uma outra parte e a biologia pode serusada para criar os instrumentos que podero provocar mutaes induzidas nosseres humanos, beneficiando apenas uma parte da raa humana e destruindo ascaractersticas comuns ainda existentes.

    A universidade ocupa-se agora do conhecimento tcnico, tendo deixado paratrs a tica, e pode ser usada como um dos instrumentos para a construo deuma diviso global.

    At tempos recentes, as universidades formavam profissionais que, direta ouindiretamente, promoviam o crescimento econmico e o aumento do bem-estarsocial, alm de serem instrumentos de distribuio da renda e dos benefcios sociais.

    A partir da dcada de 90, o modelo civilizatrio excludente fez com que osprofissionais formados pelas universidades passassem a servir quase que exclusi-vamente a um dos lados da sociedade: o lado dos includos nos benefcios sociais. Asociedade passou a se dividir internacionalmente, e dois setores passaram a se dis-tinguir claramente em todos os pases do mundo. Um dos setores formado pelosincludos nos bens e servios oferecidos pelos avanos tecnolgicos modernos e ooutro, pelos excludos.

    O produto dos avanos cientficos e tecnolgicos das universidades foi posto aservio das minorias privilegiadas tambm em outras reas. O uso e o consumodesses conhecimentos tambm ficou restrito s elites minoritrias. As universi-dades passaram a servir a uma parte especfica da sociedade, ignorando a outra.

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  • Os cursos oferecidos nas universidades pouco tm a ver com os interesses dasgrandes massas. Os cursos de Economia buscam maneiras de aumentar a riquezae, em raros casos, estudam a superao da pobreza. Os cursos de Medicina estomais interessados em no deixar que os ricos morram ou envelheam do que emevitar a mortalidade infantil. Os arquitetos se preocupam em construir mansese edifcios para os ricos, e quase nunca pensam em solues para os problemashabitacionais dos pobres. Os cursos de Nutrio do mais nfase a emagrecer osricos do que a engordar os pobres.

    Todos os campos da educao superior ignoram a grande massa da populao,tanto por omisso quanto pela ao. A sociedade optou pela excluso.

    Essa situao no diz respeito apenas ao produto do conhecimento, podendoser vista tambm nas lutas em que a universidade se empenha. Na dcada de 60,a universidade era uma instituio revolucionria, que buscava mudar a sociedadee construir justia. Hoje, os universitrios lutam basicamente por seus prpriosinteresses: mais verbas para as universidades pblicas, mensalidades menores paraas universidades particulares e iseno de impostos para os ex-alunos.

    Esta no a primeira vez, na histria brasileira, que os cursos universitriosdemonstram estar alienados em relao aos pobres. triste reconhecer que foimnima ou nenhuma a contribuio das universidades do sculo XIX para aabolio da escravatura. No Brasil, a abolio foi resultado dos esforos de polti-cos, poetas, jornalistas e at mesmo da nobreza, mas foram raros os movimentosabolicionistas nas escolas de Direito, Medicina ou Engenharia da poca.

    Isso mudou no sculo XX, com a promessa social de que a riqueza poderiabeneficiar a todos, e que o crescimento de seu produto se distribuiria, aumentando onmero dos empregos. A luta utpica por uma sociedade rica ingressou na agendadas universidades, que ento lutavam pela riqueza de todos. A universidadetornou-se revolucionria.

    A realidade do final do sculo XX e do incio do sculo XXI resultou bemdiferente. Os limites ecolgicos ao crescimento, as caractersticas desempregadoras datecnologia e a tipologia dos produtos valorizados pela sociedade modernamostraram que apenas uma pequena parcela da populao ser beneficiada pelocrescimento econmico, e a universidade retornou alienao do sculo XIX,tratando os pobres de hoje como tratava os escravos de antes.

    Mesmo quando afirma assumir os problema dos excludos, a universidade,muitas vezes, apenas finge. Os exames vestibulares favorecem os includos, os ricose a classe mdia, mesmo os que no tm condies acadmicas suficientes, cujo

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  • acesso facilitado por meio do aumento de vagas e de cotas para "minorias". Osexcludos no tm acesso aos cursos preparatrios e no passam nos exames deseleo. A universidade no pensa em reformar a estrutura e o contedo de seuscursos, de forma a beneficiar os excludos, que nela no ingressaro por falta decondies econmicas, defendendo apenas as reformas que beneficiam os queconcluram o ensino mdio, mas que no conseguem ser aprovados nos examesvestibulares, em lugar de comprometer a universidade com a melhoria do ensinona escola fundamental.

    como se a universidade tivesse tomado o claro partido de um dos lados dasociedade, pensando apenas nos excludos que esto convenientemente prximosa ela, que nunca so os verdadeiros excludos. como se beneficiar, a ttulosimblico, uns poucos representantes dos excludos, incluindo-os no mundo uni-versitrio, bastasse para desonerar a universidade do compromisso de lutar pelaverdadeira abolio da excluso.

    Essa realidade sufoca a universidade. Os universitrios a negam, por vergonha,ou demonstram desconforto sem nada fazer para mudar a situao. por essarazo que a universidade tem de recuperar a sintonia tica com os verdadeirosinteresses da populao.

    e) Com o mundo no-incorporao na globalizaoNa Europa, a universidade foi uma das primeiras instituies globais. Seus

    profissionais viajavam e trocavam informaes. Desde seus primrdios at o pre-sente, as universidades europias constituram uma das mais formidveis redes deconexes internacionais, embora, atualmente, elas no estejam conseguindo atuarda mesma forma diante da realidade do mundo globalizado. Os diplomas univer-sitrios so protegidos nacionalmente, os professores pertencem a universidadesespecficas e suas bibliotecas so mais integradas que os conhecimentos por elasdivulgados, uma vez que so automaticamente interconectadas pela tecnologiaque empregam, que, muitas vezes, passa por cima dos processos decisrios e, emalguns casos, da prpria vontade de seus dirigentes.

    comum que os professores confundam viagens com integrao, quando, narealidade, a universidade do sculo XXI ter de ser totalmente integrada em basesuniversais.

    A universidade do sculo XXI no conseguiu entender como ser global semperder a prpria nacionalidade. Elas sentem-se divididas entre se abrir porcompleto, negando sua singularidade nacional, e se defender das interfernciasexternas a ponto de negar a realidade atual do saber global.

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • 6. A REFUNDAO DA UNIVERSIDADE

    Mais de oito sculos aps sua fundao, a universidade se encontra em meio auma revoluo tecnolgica, num mundo dividido, precisando agora fazer suaprpria revoluo. Pelo menos sete vetores devero nortear essa revoluo:

    a) Universidade DinmicaA universidade no pode mais encarar o conhecimento de forma esttica, como

    se o saber tivesse longa durao, compatvel com o horizonte de vida de seus pro-fessores. Hoje, o conhecimento comea a mudar no instante em que criado, e auniversidade tem de incorporar essa dimenso no papel desempenhado por ela.

    Para tal: o diploma deve ter prazo de validadeA Universidade do sculo XXI no pode se responsabilizar pelos conheci-

    mentos de um ex-aluno formado h alguns anos. por essa razo que um diplomauniversitrio deve implicar a exigncia de reciclagem do conhecimento ao longode toda a vida profissional;

    a universidade deve ser permanenteNa verdade, a universidade deve extinguir o conceito de ex-aluno. O estudante

    j formado deve manter um vnculo permanente com sua universidade, conectan-do-se com ela on-line e recebendo conhecimentos ao longo de toda a sua vidaprofissional, de forma a evitar a obsolescncia;

    os doutorados devem ser atualizadosTodos os diplomas devem ser atualizados, e no apenas os de graduao. O que

    acontece hoje que os alunos de doutoramento concluem suas teses e carregampelo resto da vida um ttulo que demonstra apenas que um trabalho de mrito foirealizado no passado. Possuir um doutorado como ostentar uma medalha porfeitos hericos numa guerra, pouco servindo como prova de conhecimento emreas que mudam a cada instante;

    os professores devem ser submetidos a concursos peridicosSe os diplomas de graduao e de ps-graduao necessitam de revalidao, os

    professores no podem manter seus cargos com base em concursos antigos. Acoerncia exige que os professores universitrios prestem novos concursos, emprazos que permitam demonstrar a atualidade de seu conhecimento;

    flexibilidade no tempo de durao dos cursosSe, por um lado, um aluno no deve jamais chegar ao trmino definitivo de seu

    curso, por outro, impossvel definir, em termos de um perodo fixo, o temponecessrio para a obteno dos conhecimentos bsicos para a prtica de uma

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  • profisso. As universidades do sculo XXI no podem mais fixar a durao doscursos. Os alunos podero se submeter a concursos que determinem sua habili-tao para a prtica da profisso, de acordo com sua prpria capacidade e com otempo que lhes seja necessrio. Com o uso dos novos mtodos de ensino e depesquisa, o tempo exigido para a formao pode variar muito, de acordo com acapacidade de cada aluno. Graas aos novos mtodos pedaggicos e aos equipa-mentos de comunicao e informtica, a formao de um profissional tem delevar menos tempo do que levava h algumas dcadas.

    Alguns alunos vo mais rpido, outros, mais devagar, mas nenhum delesprecisar de todo o tempo que seus pais precisaram. Isso vale ainda mais para oscursos de ps-graduao. Simplesmente no possvel manter-se sintonizado coma velocidade do avano do conhecimento e, ao mesmo tempo, levar anos paraconcluir um doutorado. Hoje em dia, muitas teses de doutorado j esto superadasno dia em que so defendidas. So tantas as fontes computadorizadas de infor-mao acessveis s pesquisas, que no h razo para os cursos de doutoradoterem a mesma durao de antes.

    A dinmica atual do avano do conhecimento significa tambm que umdoutorado excessivamente longo pode significar um doutorado tornado obsoletopelo trabalho de outros alunos, em outras partes do mundo, ou ento, umdoutorado sempre inacabado, face impossvel tarefa de manter-se constante-mente em sintonia com o que h de mais novo naquela rea de conhecimento.

    Os estudos de ps-graduao no exigem o mesmo tempo que antes, e tampoucoseu produto ganha em qualidade em decorrncia direta do tempo dedicado a ele;

    as referncias bibliogrficas devem ser indicadas on-line, com a prpria elaborao dolivro pelos autores

    Hoje em dia, a elaborao de muitos livros demora mais que o desenvolvi-mento das teorias neles contidas. Uma universidade que se baseie em livrosimpressos uma universidade que se atrasa em termos do conhecimento de ponta.Embora a leitura e o estudo dos textos clssicos de cada rea devam ser incenti-vados, o estudo dos textos ainda em desenvolvimento deve acontecer por meio dodilogo permanente entre alunos e autores.

    b) Universidade UnificadaA globalizao ir eliminar as fronteiras entre as universidades. As universidades

    no apenas trocaro professores e alunos, como tambm tero acesso a todos osprofessores e a todos os alunos. Segundo o Relatrio Anual da UNESCO de1997, a universidade global possui 88,2 milhes de alunos e 7 milhes de pro-fessores. Hoje, h milhares de universidades mas, em breve, haver apenas uma

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • nica, integrada por todos os meios disponveis comunicao moderna. Nohaver mais barreiras lingsticas, graas aos mecanismos de traduo automticaj existentes na internet.

    Com essa rede mundial, a idia de limitar um aluno a um curso especfico nasua universidade de origem tornou-se antiquada e ineficiente. Cada aluno podeformular seu prprio programa de curso, escolhendo professores e disciplinas emescala global, numa rede que abrange o mundo inteiro.

    A universidade tornou-se uma entidade nica.

    c) Universidade para TodosA universidade tornou-se uma entidade nica, devendo estar aberta a todos. Deixou

    de haver razo para exigir exames de ingresso, e at mesmo os diplomas de segundo grauno so mais necessrios. Se, para os alunos que esto fisicamente presentes no campus,o exame vestibular uma necessidade imposta pela limitao do espao fsico e peloscustos elevados, os novos mtodos de ensino a distncia podem alcanar um imensonmero de alunos e acompanhar seu desempenho. Os alunos sero excludos em razode sua incapacidade de acompanhar o curso, no por sua incapacidade de neles ingressar.

    O sistema de ingresso deve mudar tambm para os alunos que esto fisica-mente presentes s aulas. O que um aluno conseguiu decorar na escola secundriano bastante para garantir que ele ser um bom universitrio. Os atuais examesno medem a capacidade de um aluno de captar conhecimento ou de navegar peloconhecimento existente no mundo, transformando as informaes recebidas emconhecimento que possa ser usado de novas maneiras e em outros contextos. Poressa razo, de importncia fundamental acompanhar o desempenho dos alunosna escola secundria e formular exames de seleo que sejam capazes de mensurar acapacidade do aluno de buscar e elaborar conhecimento, mais que sua capacidade deassimilar conhecimentos prontos e de responder perguntas com respostas decoradas.

    d) Universidade AbertaA universidade do sculo XXI no ter muros, nem um campus fisicamente

    definido. A universidade do sculo XXI ser aberta a todo o planeta. As aulas serotransmitidas pela televiso, pelo rdio e na internet, tornando desnecessrio que osalunos estejam presentes no mesmo campus, ou na mesma cidade que o professor.Os professores podero manter dilogo permanente com seus alunos de todo o mundo.

    e) Universidade TridimensionalA organizao da universidade por disciplinas baseadas em categorias de

    conhecimento incapaz de responder s exigncias das mudanas rpidas noconhecimento e incapaz tambm de atender s necessidades sociais. O conheci-

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  • mento muda a cada dia, novos campos surgem e outros desaparecem, e a realidadesocial vem construindo um mundo dividido. As universidades tm que inventarmaneiras de se reestruturar, que incluam centros de pesquisa sobre temas atuais, eno apenas os departamentos e os campos de conhecimento tradicionais.

    No h razo para que a universidade no possua os mecanismos para vincular-seintelectualmente realidade, mediante Ncleos Temticos multidisciplinares parao estudo da fome, da pobreza, da energia da juventude, do emprego e do meioambiente.

    Esses temas existem na realidade de hoje, mas no encontram lugar nas cate-gorias definidas do conhecimento. A universidade do sculo XXI tem, tambm,de ser organizada de forma multidisciplinar.

    A universidade dos prximos anos tem de trazer seus alunos de todo o mundopara a prtica das atividades estticas e do debate tico, o que poderia ser feitocom a criao de Ncleos Culturais.

    Com seus departamentos disciplinares, seus Ncleos Temticos e seus NcleosCulturais, a universidade ser tridimensional e formar profissionais tridimen-sionais, especializados numa rea do conhecimento, mas, tambm, comprometidoscom o entendimento de um tema da realidade e praticantes de uma ou mais ativi-dades ligadas dimenso humanista, nas artes ou na reflexo filosfica.

    f) Universidade SistemticaA universidade do futuro vincula-se universalmente a todas as outras universi-

    dades, mas ter de se vincular tambm com todo o sistema de criao do saber. Auniversidade dever incorporar as instituies de pesquisa pblicas e privadas,bem como todas as organizaes no-governamentais ligadas produo de pesquisasdevem fazer parte do sistema universitrio.

    A universidade ser como uma famlia para todos aqueles que participam datarefa de fazer avanar e disseminar o conhecimento.

    Quase um milnio aps sua criao, j tempo de ela dar o salto necessrio parao cumprimento de seu papel dentro da imensa riqueza do mundo do sculo XXI.

    g) Universidade SustentvelAs universidades devero ser instituies pblicas, sejam elas de propriedade

    pblica ou privada. A universidade no pode morrer por falta de recursos pbli-cos, nem pode recusar os recursos privados de quem nela quer investir. As razespara tal so as seguintes:

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • a universidade deve ser financiada por recursos pblicos a fim de garantir suapermanente sustentabilidade e sua coerncia com os interesses sociais, sobretudonas reas do conhecimento que no geram retornos econmicos, como a for-mao de professores de ensino fundamental e o campo das artes e da filosofia;

    a universidade deve ser aberta possibilidade de receber recursos de setoresprivados que desejem investir em instituies, sejam elas privadas ou estatais; e

    tanto as instituies privadas quanto as pblicas devem ser estruturadas demodo a servir aos interesses pblicos, sem torn-las prisioneiras dos interessescorporativos dos alunos, dos professores e dos funcionrios. Da mesma maneira,as universidades particulares podem ser privadas em termos de suas instalaesfsicas, mas sua organizao acadmica tem de ser controlada pela comunidadeacadmica. Os proprietrios dessas universidades podem permanecer como deten-tores do patrimnio fsico, mas seus reitores tm de ser escolhidos com base emseus mritos acadmicos.

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  • II. O CASO DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

    A universidade brasileira foi a ltima a surgir na Amrica Latina e irnico queela tenha sido criada para que fosse concedido o ttulo de Doutor Honoris Causaao Rei Leopoldo da Blgica, em visita ao Brasil, no ano de 1922. No fosse poraquela visita e a ingnua vaidade de um monarca ou o capricho de algum de seuscortesos, a universidade brasileira talvez tivesse demorado mais 10 ou 20 anos para sercriada1. Isso serve para demonstrar o obscurantismo e o servilismo da elite brasileira.

    Cem anos depois da Independncia e trinta e trs anos depois da Proclamaoda Repblica, o Brasil ainda no possua uma universidade. E ela s foi criada paraatender s convenincias de um rei europeu.

    Esse um pecado original do qual ainda no nos livramos.

    Entre 1922 e 1934, a Universidade do Brasil e do Rei Leopoldo, no Rio deJaneiro, foi a nica e precria instituio universitria, embora j existissem no pasdiversos cursos de ensino superior.

    A primeira grande universidade brasileira nasceu em 1934, no mais pela vontadede um rei belga, aliado ao servilismo de polticos brasileiros. A Universidade de SoPaulo resultou da vontade de intelectuais brasileiros aliados a intelectuais franceses. OBrasil passou a olhar para dentro, e no mais para fora. Os polticos servis foram substi-tudos por intelectuais acadmicos, embora a forte dependncia do exterior tenha con-tinuado. Embora no mais servis, eles eram, ainda, fortemente influenciados pelo exterior.

    Entre 1935 e 1964, a universidade brasileira cresceu, embora lhe faltasse ovigor necessrio para o salto de que o pas tanto precisava. Durante esse perodo,o nmero de alunos passou de 27.501, em 1935, para 282.653, em 1970. Onmero de professores aumentou de 3.898 para cerca de 49.451, em 1980. Mas,dentre estes, apenas uns poucos possuam ps-graduao.

    Em incios da dcada de 60, Darcy Ribeiro e Ansio Teixeira criaram uma novaidia para a universidade a ser fundada em Braslia, a nova capital do pas,experimento esse que foi interrompido pelo golpe militar de 1964.

    Em 1964, a universidade brasileira foi paradoxalmente destruda e, ao mesmotempo, fundada. Destruda pela aposentadoria forada de centenas de professores,exilados ou expulsos pela ditadura recm-instalada, que ps fim tambm liber-

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

    1. Deve-se lembrar que a atual Universidade Federal do Paran reivindica ter-se antecipado em dez anos Universidade do Brasil, atualUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Mas, do ponto de vista do desenvolvimento explcito e da dimenso nacional, foi no Rio de Janeiro,em 1922, graas ao Rei Leopoldo, que surgiu a primeira universidade brasileira.

  • dade de ctedra. No foram poucos os alunos que perderam a vida nesse perodosombrio. Ao mesmo tempo, ela foi fundada numa estrutura mais moderna e, pelaprimeira vez, tentou-se criar um sistema universitrio nacionalmente integrado.Passou a haver farta disponibilidade de recursos financeiros e apoio construode novos prdios e compra de equipamentos. E, o mais importante, iniciou-seento a concesso macia de bolsas de estudos no exterior, para onde jovensbrasileiros foram enviados para cursarem seus doutorados e mestrados em univer-sidades estrangeiras.

    Essas transformaes consolidaram-se em 1968, e foram tornadas possveispela reforma empreendida pelos militares, com o apoio da USAID. Aqui, j nose tratava do servilismo dos polticos de 1922, nem da cooperao intelectual de1935. Essa reforma no foi orquestrada por intelectuais franceses, mas sim pelosfinanciamentos americanos, sob o patrocnio do autoritarismo militar da ditadura.

    A moderna universidade brasileira filha do regime militar e da tecnocracianorte-americana. Sob esse patrocnio e essa tutela, a universidade brasileira, entre1964 e 1985, conseguiu dar um enorme salto quantitativo e qualitativo, talvez omaior salto j ocorrido em qualquer pas do mundo, na rea da educao superior.Era como se quisssemos recuperar, embora sem liberdade, os quinhentos anosque havamos perdido. Ocorreu um notvel aumento no nmero de instituies,e tambm no nmero de alunos e professores, principalmente em relao aosprofessores com ps-graduao (mestrado e doutorado). Em 1985, j havia, noBrasil, 37.629 professores universitrios com graus de mestre e doutor.

    A partir de 1985, a reafirmao da democracia trouxe de volta a liberdade,inclusive o direito de escolha dos dirigentes universitrios, com eleio direta parao cargo de reitor. Mas trouxe, tambm, uma forte restrio de recursos finan-ceiros, chegando ao ponto do abandono da universidade pblica pelo poderpblico. A universidade federal chega a 2003 praticamente falida. Nestes quasevinte anos, cada avano, cada conquista, cada melhoria e crescimento foi resulta-do da rdua luta de professores, alunos e servidores contra o poder pblico, emmais de trezentos dias de greves nos anos letivos de 1985 e 2002. Sem essasgreves, possvel que as universidades federais j tivessem fechado suas portas, porabandono, mas as conseqncias dessas greves foram extremamente desgastantes,desmoralizando a universidade perante a opinio pblica e esgarando a trama derelaes sociais entre estudantes, professores e funcionrios.

    Nesse mesmo perodo, ocorreu uma mudana do perfil da universidadebrasileira, que passou de entidade pblica a entidade preponderantemente privada.Houve um surpreendente crescimento do setor privado e uma inesperada inte-

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  • riorizao da universidade estatal, voltada, na sua luta pela sobrevivncia, para adefesa dos prprios interesses. A universidade privatizou-se de duas formas: a pre-dominncia das instituies privadas no nmero total de alunos e a perda de umprojeto social nacional por parte das universidades pblicas.

    A universidade brasileira privatizou-se em razo de um crculo vicioso: fal-tavam recursos pblicos para financi-la, causando a deteriorao das instalaes,dos equipamentos e dos salrios, o que, por sua vez, levou realizao de grevesque visavam a resgat-la dessa situao. Como conseqncia, aumentou a ofertadas universidades particulares. Simultaneamente, ocorria o aumento do descon-tentamento e da desmoralizao. Agravando tudo isso, a falta de um projetonacional em um pas que acabava de sair do desenvolvimentismo para ingressar noneoliberalismo, passando do protecionismo para a abertura, da inflao sem con-trole destinada a financiar os gastos pblicos para o rgido controle desses gastospblicos por organismos internacionais. Some-se a isso a perda da msticanacional em relao ao futuro, e todas as condies estavam colocadas para agrande crise da universidade brasileira. E , alm de tudo, havia o agravante da crisemaior da prpria instituio no nvel mundial, j mencionada anteriormente.

    Lado a lado com o fato positivo de seu crescimento total e da capacidade deresistncia herica demonstrada pela universidade pblica, o comeo do sculoXXI mostra uma universidade cuja qualidade questionvel, e caracterizada porum grande ativismo corporativo aliado a uma lamentvel desmotivao acadmica,por intensas mobilizaes alienadas dos interesses da populao como um todo epela forte crise de identidade da prpria instituio universitria, que vem ocorrendopor todo o mundo. Simultaneamente, a universidade brasileira tem, a seu favor, ansia de estudar e aprender dos jovens que saem do ensino mdio, que se mani-festa agora com uma intensidade nunca antes vista.

    Esse o quadro, ao mesmo tempo adverso e estimulante, em que o Brasil e suauniversidade ingressam no novo sculo. Temos agora um governo historicamentecomprometido com a transformao da universidade numa instituio de ponta,em termos mundiais. Para tal, ser necessrio:

    atender s necessidades emergenciais de uma instituio herica, mas abandonada; organizar um sistema universitrio que se tornou catico devido ao cresci-

    mento descontrolado do setor privado, simultneo ao encolhimento do setorpblico; e

    refundar a universidade segundo as exigncias do momento histrico peloqual passa a humanidade.

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • 1. REORGANIZAO DO SISTEMA UNIVERSITRIO BRASILEIRO

    Nos ltimos anos, as universidade brasileiras passaram por rpido e surpreendentecrescimento, especialmente no tocante s instituies privadas.

    Nmero1985 2001

    Universidades e Instituies de Ensino Superior: Pblica .........................................................................................233.............................183 Privada .........................................................................................626.........................1,208Total ..........................................................................................859..........................1,391

    Estudantes: Pblica ................................................................................556,680...................939,225Privada .................................................................................810,929................2,091,529Total ................................................................................1,367,609................3,030,754

    Professores: Pblica .................................................................................64,449........................90,950Privada .................................................................................49,010.....................128,997Total ..................................................................................113,459.....................219,947

    Mas esse crescimento foi desordenado, exigindo agora imediata reorganizao.No se trata, aqui, de dar solues emergenciais que se apliquem principalmentes universidades pblicas, mas sim de reordenar todo o sistema universitriobrasileiro.

    O Sistema universitrio brasileiro

    Apesar da criao do sistema universitrio federal brasileiro, que teve incio em1968 e foi reafirmado em 1985, com a implantao da isonomia total e a criaode um sistema comum de avaliao, a universidade brasileira ainda no um sis-tema. Um conjunto de normas tem de ser formulado para regular esse sistema,aplicando-se a todas as universidades, pblicas ou privadas, e incorporando todasas entidades que fazem parte do sistema de produo de conhecimento superior,como institutos de pesquisas, empresas, hospitais, reparties pblicas e entidadesde formao profissional de nvel superior.

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  • O sistema universitrio brasileiro deve atuar no sentido de garantir autonomiaa cada entidade, devendo, entretanto, criar um conjunto harmnico, capaz defuncionar com sinergia, evitando as disperses caractersticas do momento atual.

    Regularizao de transferncias

    Num mundo j globalizado como o nosso, em que cada universidade deveriaser parte de um todo universal, a universidade brasileira ainda no estabeleceu umdilogo, no que se refere transferncia de alunos. Num tempo em que j se dis-cute a possibilidade de um aluno fazer cursos em diferentes instituies ao mesmotempo, trocar de universidade ainda difcil para ele. Essa dificuldade no se deveaos exames vestibulares, mas sim incompatibilidade de currculos.

    Ampliao de vagas

    Apesar de as vagas terem aumentado no conjunto das universidades brasileiras,seu nmero ainda muito pequeno em relao demanda j existente. A univer-sidade brasileira ter de, ao longo dos prximos dez anos, ampliar o nmero devagas, com a meta de, no mnimo, dobrar o nmero de alunos. Para tal, alm derecursos adicionais, ela precisar mudar seus sistemas de ensino, de maneira a adotar,cada vez mais, os sistemas de ensino a distncia.

    Cotas para grupos tnicos e escolas pblicas

    Num pas em que metade da populao de origem africana, no h justi-ficativa moral para a existncia de uma elite branca. Essa realidade deveu-se,principalmente, ao abandono sofrido pelo ensino pblico bsico no Brasil e aonmero reduzido de jovens que conseguem concluir o ensino mdio: ao excluir ospobres do ensino mdio, a sociedade brasileira exclui, sobretudo, os negros. Asoluo para a imoralidade da branquitude da elite brasileira est no investimentomacio na universalizao e na qualificao do ensino bsico. At que isso seja feito,a universidade ter de dar sua colaborao para mudar a vergonhosa situao de umpas cuja maioria da populao negra, mas que tem pouqussimos negros matricula-dos na universidade. Por servir como um trampolim para chegar elite, a universi-dade responsvel por esse desvio moral que vem manchando a sociedade brasileiranesses cento e quinze anos que se passaram desde a abolio da escravatura. Por estarazo, nada mais correto do que ampliar o nmero de alunos negros.

    Isso no vai tornar a universidade socialmente mais justa, uma vez que apenasos negros de classe mdia e rica sero beneficiados, mas vai fazer da universidadeuma instituio que colabora para mudar a mancha branca da elite brasileira. Paraque as cotas tnicas possam desempenhar um papel social, alm de racial, as cotas

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • para estudantes negros deveriam beneficiar apenas os jovens que cursaram todo oensino mdio em escolas pblicas. Com isso, ainda no estaramos beneficiandoos pobres que, no Brasil, raramente completam a oitava srie do ensino fundamentale, quase nunca, o ensino mdio, mas estaramos conferindo algum benefcio social sclasses mdias baixas.

    Criao de novas fontes de recursos

    A universidade brasileira passa hoje por uma grave crise financeira: as universi-dades pblicas no contam com o apoio do governo e as universidades particularessofrem com altos ndices de inadimplncia, e seus alunos mal conseguem pagar asmensalidades cobradas.

    O Brasil no pode abrir mo do compromisso com a gratuidade do ensino emtodos os nveis, inclusive o superior. O fato de que 75% dos estudantes universitriosesto em escolas particulares no pode ser ignorado, e o pas no pode continuardependente do tradicional oramento governamental para financiar os 25%restantes, que estudam nas instituies pblicas. Se continuarmos nesse rumo, auniversidade pblica ser transformada num minsculo apndice no sistema univer-sitrio brasileiro. Se, nos prximos dez anos, o ritmo das matrculas em universidadesparticulares e pblicas se mantiver, o setor pblico ficar reduzido a apenas 10% donmero total de alunos. Esse cenrio no ser positivo para o futuro do Brasil, nemde sua cincia e de sua tecnologia.

    As universidades brasileiras devem dispor de fontes de financiamento que lhesassegurem um funcionamento sem crises, sem necessidade de recorrer a greves esolidamente embasado na democracia, na eficincia, na tica, tanto em relao fontequanto ao uso desses recursos. Todas as fontes devem ser consideradas, tanto as de origempblica quanto as privada; tanto as oriundas dos recursos gerais do tesouro quanto ascontribuies especificamente vinculadas; tanto os fundos especiais como os de vinculaopermanente, iguais aos que hoje financiam as universidades estaduais de So Paulo.

    Avaliao de todas as instituies

    A criao de um sistema de avaliao foi um dos avanos do conjunto das uni-versidades brasileiras, embora, nos ltimos anos, esse sistema tenha sido aindaimperfeito e incompleto. A reorganizao das universidades brasileiras vai exigir aformulao de um novo sistema de avaliao, que permita muito mais do queclassific-las como em um campeonato. O objetivo desse novo sistema dever sero de identificar as qualidades e os pontos fracos das universidades, a fim decapacit-las a desempenhar o papel que a sociedade delas espera.

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  • O crescimento do nmero de instituies de ensino no pode ser visto comonegativo. Quanto maior for o nmero de escolas de todos os nveis, melhor, desdeque elas realmente sejam capazes de atender s necessidades de conhecimentosuperior da sociedade e de promoo social dos alunos, no pas e na cidade ondese situam. Entretanto, no foi isso que ocorreu com as instituies particulares deensino surgidas nos ltimos anos.

    obrigao do setor pblico impedir que empresrios vendam como genunosdiplomas que so falsos passaportes para o sucesso. do interesse de todo osistema, especialmente das prprias universidades e de seus alunos, que essasinstituies sejam avaliadas, evidenciando assim os seus resultados positivos,juntamente com seus possveis aspectos negativos. Os alunos tm o direito deconhecer o valor dos diplomas que eles recebem em troca do pagamento demensalidades, e a sociedade tem o direito de saber que tipo de profissionais osegressos das universidades podem vir a se tornar.

    O governo pretende coordenar a avaliao de todas as universidades, em cooperaocom o prprio setor, por acreditar que de interesse de todos a avaliao dopotencial de cada instituio. Essa avaliao deve ser pblica, e as informaes rela-tivas a ela devem ser amplamente divulgadas. Ela deve, tambm, ser participativa, nosentido de ouvir a comunidade; corretiva, servindo para aperfeioar a instituio e osistema; e ampla, no se limitando a avaliar apenas alguns aspectos da universidade.

    Liberdade planejada

    O Estado no deve limitar o nmero de entidades que se proponham a oferecerservios educacionais. Entretanto, a regulamentao pblica imperativa, e as novas uni-versidades e centros universitrios devero se submeter a essas regras. Alm das avali-aes peridicas, o governo vem pensando em definir as localizaes e os campos deespecializao para os quais as novas universidades devem ser atradas, e selecionar asnovas universidades regulares com base em licitao. As autorizaes seriam concedidasquelas que melhor atendessem aos objetivos buscados pelo setor pblico, como qualifi-cao dos professores, relao professor/aluno, nmero de bolsas de estudos a seremconcedidas, valor das mensalidades e adoo de sistemas de cotas para grupos tnicos.

    Universidades livres

    Alm das universidades regulares, o governo deve incentivar a criao de uni-versidades livres, cujos diplomas no so reconhecidos pelo Estado. Quantomaior o nmero dessas universidades livres, melhor para a vida intelectual do pas.Embora sem gerar a iluso do diploma regular, possvel que alguns desses cen-tros acabem por despertar respeito, graas aos mritos de seus profissionais.

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • 2. AUTONOMIA PARA MUDAR OU NO MUDAR

    necessrio, hoje, discutir o papel da universidade dentro da prpria universi-dade. Esse debate muito mais importante at mesmo que os debates sobre a criseque vem afetando essas instituies.

    A universidade tem de lutar para evitar os pequenos problemas, como asgoteiras em seus telhados. Mas no basta resolver esses pequenos problemas semdar ateno ao quadro mais amplo.

    Da mesma forma que, acima, apresentei o que o governo pensa em fazer paraajudar a universidade a superar seus problemas, darei agora minha prpria contribuio mais como um apaixonado pensador da universidade do que como ministro para o debate sobre o cu que ameaa derrubar o telhado, mesmo que todas asgoteiras tenham sido consertadas.

    O governo no vai impor reformas. A universidade tem de ter autonomia,mesmo que isso signifique que ela venha a optar por seguir o rumo tradicional,ignorando as mudanas que ocorrem a seu redor. Autonomia significa fazer o queparece certo, tanto quanto o que parece errado, e o governo considera que melhorrespeitar o velho e fundamental princpio da autonomia do que impor reformasvindas de fora, mesmo que essas reformas estejam corretas.

    No entanto, dever do Ministrio, e principalmente do Ministro da Educao,incentivar, nas universidades, o debate interno, a fim de promover as reformas queeles julgam corretas e que gostariam de ver acontecer.

    O princpio da autonomia no deve ser quebrado, mas tambm no deve serusado como escudo de proteo para os ministros que sofram de covardia intelectualou de oportunismo poltico.

    Por essas duas razes, proponho aqui as linhas gerais do que imagino poderoser as reformas necessrias refundao da universidade brasileira, caso elas sejamadotadas nas universidades, aps o longo debate que se far necessrio.

    3. A REFUNDAO DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

    As universidades nasceram porque os mosteiros medievais se recusaram a mudar.Ao optarem por manter a mesma estrutura, os mesmos mtodos, os mesmos requisitosde ingresso e de permanncia, quando fora de seus muros vinha surgindo um mundo deidias novas querendo avanar, e de novos costumes querendo se impor, os mosteirosreligiosos provocaram o surgimento da universidade. Se eles tivessem se reformado para

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  • servir ao conhecimento laico e promoo da lgica e da cincia, os mosteirosteriam sobrevivido como centros do saber, e as universidades no teriam surgido.

    Tambm a prpria Igreja Catlica, caso tivesse a inteno e a capacidade deentender as mensagens recebidas por sculos a fio sobre a necessidade de se adaptaraos novos tempos, teria evitado a Reforma Protestante do sculo XVI. Foi, sobre-tudo, por ter insistido na infalibilidade de suas interpretaes, na perfeio desuas instituies e no rigor de seus rituais que ela veio a provocar o surgimentodo grande movimento evangelizador que fez surgir uma outra religio dentro dosmesmos princpios cristos. O mesmo pode ocorrer com a universidade, de umaforma ou de outra: ela pode ou vir a ser substituda por outras instituies que,de fora, esto exigindo que ela mude, ou ela pode transformar-se a si prpria. Essatransformao implicaria a ampliao, ainda maior, de seus princpios fundamentais,por meio do avano do conhecimento superior, criando instrumentos para libertar ahumanidade, aumentar a riqueza, tanto a material quanto a intelectual, ampliar ohorizonte social de igualdade de oportunidade, incluindo a todos, principalmenteos jovens, independentemente de classe, raa, gnero e lugar de nascimento.

    Ao longo de seus oito sculos e meio de existncia, a universidade foi refundadapor algumas vezes. Uma entidade secular s consegue sobreviver se houver umarazo muito forte para sua existncia e, ao mesmo tempo, se ela possuir uma fortecapacidade para se transformar e se adaptar s exigncias de cada momentohistrico. Os exrcitos, mais antigos que as universidades, mantendo o compro-misso maior de defender seus pases, passaram por inmeras transformaes aolongo da histria. As igrejas, por outro lado, tendem a resistir s mudanas,insistindo em manter seus dogmas intactos, provocando, assim, cismas e dis-sidncias. Elas preferem romper sua unidade a ter de se refundar.

    Por ser autnoma e no ter dogmas, a universidade, mais que qualquer outrainstituio, tem a obrigao de refundar-se a si prpria, sempre que necessrio.

    A refundao por que passou a universidade brasileira ocorreu em fins da dcadade 60 do sculo XX, sob os auspcios dos militares e da influncia americana, pormeio do acordo MEC-USAID. Desde essa poca at o comeo do sculo XXI:

    o regime militar chegou ao fim; no houve censura oficial a qualquer forma de atividade intelectual; o Brasil tornou-se democrtico, chegando at mesmo a eleger um presidente

    metalrgico, proveniente de um partido nitidamente de esquerda; as universidades foram reorganizadas em segmentos corporativos que, rapi-

    damente, descobriram possuir um poder que, alguns anos antes, seria inimaginvel, eusaram esse poder com uma intensidade que os governos e a sociedade jamais sus-peitaram ser possvel;

    h eleies diretas para reitor;

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • as bandeiras de luta pelas utopias do sculo anterior desapareceram ou seinstrumentalizaram em mos de uns poucos militantes;

    o crescimento econmico passou a provocar desemprego, ao invs de gerarempregos. Um nmero menor de pessoas tem hoje acesso aos produtos industrializa-dos, cuja produo passou a ser mais lucrativa devido aos preos mais altos, e noporque eles tenham se tornado mais acessveis a um maior nmero de consumidores;

    pela primeira vez na histria, os jovens passaram a ter a perspectiva de umavida mais difcil, em termos econmicos, do que a que tiveram seus pais;

    os jovens foram abandonados, transformando-se nos rfos do neoliberalismo; parte da juventude passou a usar drogas, a fim de preencher o vazio causado

    pela falta de bandeiras de luta e de oportunidades de enriquecimento pessoal,quer econmico, intelectual ou espiritual;

    a cincia passou pela mais radical de suas revolues, com o surgimento dabiotecnologia, da engenharia gentica, da informtica e da microeletrnica;

    novos campos do conhecimento surgiram e continuam a surgir no mundo doconhecimento;

    outros se tornaram obsoletos, desaparecendo na mesma velocidade; a durao das verdades cientficas e, mais ainda, da eficincia das tcnicas

    tornou-se cada vez mais curta; o mundo globalizou-se. As informaes so agora distribudas instantaneamente,

    o poder econmico concentrou-se nas mos dos poucos donos do planeta, e osprodutos e tcnicas chegam simultaneamente a todas as partes do mundo;

    uma nica e indiscutvel potncia nacional assumiu a conscincia de seupoderio, de seu papel, de sua ambio e de sua funo de polcia do mundo, como fim de forar todos os povos a adotar seus princpios de democracia poltica ede liberalismo econmico, e at mesmo seus valores religiosos;

    o Muro de Berlim foi derrubado; o mapa do mundo est sendo redesenhado; armas inteligentes passaram a ser usadas nas guerras; os pobres do mundo, especialmente na frica, foram abandonados pelos

    donos do poder mundial, sendo deixados margem no apenas do progresso, masat mesmo da esperana;

    por todo o mundo e internamente a cada pas, o sistema social reconheceu arealidade da excluso, aceitando a diviso da sociedade, em vez de propor a dis-tribuio da riqueza;

    os costumes mudaram por toda parte, afetando a todos, mas principalmenteos jovens, sobretudo no tocante sexualidade;

    as minorias passaram a ter seus direitos reconhecidos, em especial as mulheres,os homossexuais, os grupos indgenas, os negros;

    a cultura se universalizou, mas a diversidade cultural agora reconhecidacomo um direito;

    o fundamentalismo, seja religioso ou econmico, agora adquirido por meio da fora;

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  • os norte-americanos, pela primeira vez, foram derrotados em campo debatalha, na longa guerra no Vietn. Posteriormente, contudo, eles travaram umasrie de guerras curtas e vitoriosas, submetendo o mundo ao seu controle;

    os problemas locais se universalizaram, assumindo dimenses catastrficas,tais como o uso de drogas, o poder do narcotrfico, as armas do terrorismo,a disseminao de doenas, o poder do sistema financeiro.

    Apesar de tudo isso, a universidade, em todo o mundo, pouco mudou emrelao a seus aspectos fundamentais.

    Nmero de vagas e formas de admisso

    O atual governo assumiu o firme compromisso de, at 2010, possibilitar aconcluso do ensino mdio para todos os jovens brasileiros. Essa nova situao irgerar uma forte presso por mais vagas nas universidades. As universidades pbli-cas, em especial, tero de duplicar, nos prximos cinco anos, o nmero de vagasoferecidas por elas. Isso no ser possvel, caso o exame vestibular seja mantidocomo forma de ingresso, uma vez que ele funciona mais como uma barreira quecomo processo de seleo justa dos alunos mais capacitados. A multiplicao dosbancos escolares tambm no ser uma soluo, pois provocaria a queda daqualidade de ensino j alcanada pela universidade.

    O caminho que propomos possui quatro vertentes: considerar a possibilidade de adoo da educao a distncia para alunos

    de graduao, sem fazer distines entre esses diplomas e os obtidos pormeio de presena s aulas. Essa seria uma forma de aumentar as vagas semprejuzo da qualidade do trabalho dos professores que se dedicam pesquisa;

    considerar a adoo de sistemas de seleo que tm lugar dentro daprpria escola secundria. Esse sistema foi desenvolvido e j vem sendo apli-cado pela Universidade de Braslia _ UnB, sob o nome de Programa deAvaliao Seriada (PAS). Esse mesmo sistema foi adotado e aperfeioadopela Universidade Federal de Santa Maria, com o nome de Programa deIngresso ao Ensino Superior (PIES) e tambm pela Universidade Federal daParaba, com o nome de Processo Seletivo Seriado (PSS);

    considerar, depois de ouvidos a comunidade e os especialistas no assunto, aconcesso de maior peso para as disciplinas portugus e matemtica, umavez que elas servem de base para o desenvolvimento do conhecimento emtodos as reas;

    considerar a possibilidade de adoo de sistemas de cotas tnicas, a fimde reformular, democratizar e corrigir as desigualdades de oportunidadespara os diferentes grupos tnicos, dando maior fora escola pblica.

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • Estrutura

    O mundo de hoje j no permite que a universidade continue dividida emdepartamentos. Os novos campos do conhecimento e o compromisso com arealidade social exigem que seja adotado um enfoque multidisciplinar. Almdisso, a disseminao do conhecimento e de sentimentos humanistas entre todosos alunos da universidade no poder ocorrer se o ensino permanecer limitado sdisciplinas oferecidas dentro das amarras do sistema de departamentos.

    Sugerimos que a universidade pense na possibilidade de uma mudana de suaestrutura, nas linhas j adotadas, h dcadas, por algumas instituies, intro-duzindo os Ncleos Temticos e os Ncleos Culturais.

    Com esses ncleos, somados aos atuais departamentos, a universidade ganharuma estrutura matricial tridimensional, que poder servir de base formao doprofissional em trs diferentes nveis: sua rea de conhecimento ser desenvolvidano departamento especfico; seu compromisso social e tico, no Ncleo Temtico,e o cultivo e exerccio de seu gosto esttico se dar nos Ncleos Culturais.

    Formao permanente e durao flexvel dos cursos

    No mundo de hoje, trinta anos aps a reforma MEC-USAID, de autoria dosmilitares, as carreiras tornam-se obsoletas em poucos anos se os profissionais nose dedicarem a um permanente processo de reciclagem de seus conhecimentos.Por essa razo, a universidade deve, urgentemente, examinar a possibilidade demanter um sistema de acompanhamento e formao permanente de seus alunos,que dever durar at o fim de sua vida profissional. No mundo do futuro, nohaver lugar para ex-alunos; todos sero permanentemente alunos ou no seroprofissionais.

    O caminho a ser seguido consistir, basicamente, na criao de diversos sistemas deeducao permanente e a distncia, para todos os alunos formados pela universidade.

    Juntamente com o diploma provisrio, o aluno, ao sair, receber um cdigo deingresso nos sistemas de educao permanente da universidade. Ser possvel aoaluno fazer consultas sobre as inovaes ocorridas na sua rea de conhecimento,obter informaes sobre cursos de reciclagem naquela rea e, at mesmo, redire-cionar seu campo de estudo, de profisso e de especializao, de acordo com aevoluo do conhecimento.

    A universidade deve-se converter numa presena permanente na vida de seus for-mandos, que devem continuar sendo alunos. Deve tambm ser examinada a possibili-

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  • dade de flexibilizar os horrios de permanncia do aluno no campus, ao longo detoda a sua vida acadmica. Se os alunos podem-se manter em contato permanente comsua universidade, sua presena fsica no campus no precisar ser to longa quanto hoje.

    Com todas as invenes modernas nos meios de comunicao e nos instru-mentos pedaggicos, no possvel que a universidade continue precisando, hoje,do mesmo tempo para formar um profissional que precisava h cem anos, quandoessas carreiras foram criadas. A universidade no pode continuar ignorando arealidade dos novos mtodos e instrumentos de ensino e tem de examinar seriamentea possibilidade de reduzir o tempo necessrio para a formao de alunos, se noem todos, pelo menos em muitos de seus cursos.

    Ligao com a sociedade

    A ligao da universidade com a populao no se dar por meio da universalizaodo ingresso, que beneficiaria apenas os que conseguissem concluir o ensino mdio elevaria a uma queda na qualidade. A extenso universitria tambm no a soluo, pois,embora com honrosas excees, ela se transformou numa espcie de assistencialismo.

    O atual governo brasileiro quer passar do assistencialismo abolio. No fazendo assistencialismo que a universidade se aproximar da populao, mas simefetuando uma reforma que lhe permita levar em conta os problemas da sociedadeem geral e participar de sua transformao, por meio de:

    um firme compromisso para com a qualidade, em todas as reas. Se o pasmantm uma universidade, ele deve poder-se orgulhar dela e da qualidade de seuproduto, representado pelos profissionais e por seu trabalho. O objetivo tornaro mundo um lugar mais belo, eficiente e justo;

    os currculos dos cursos das reas tcnicas aquelas que transformam omundo, como, por exemplo, a Medicina, a Engenharia, a Arquitetura e a Economia tm de passar por reformas, de modo a adaptar seus princpios tica de ummundo mais justo, do qual um nmero cada vez maior de pessoas possa se bene-ficiar, independentemente da renda, do gnero, da raa, do local de nascimento;

    a universidade tem de ter participao nas atividades polticas da sociedade,o que no pode se dar internamente produo do conhecimento em si, que deveser livre, mas por intermdio dos diversos tipos de prticas de mobilizao.

    Diferentemente das instituies de ensino superior do sculo XIX, quefecharam os olhos ao abolicionismo e se dedicaram a ensinar formas de manterintacta a escravido, o atual governo brasileiro v a universidade do sculo XXI comoum dos motores para a consecuo da tarefa de Abolir a Pobreza e Construir aRepblica, iniciada h cento e quinze anos e jamais concluda por uma elite reacionria,aristocrtica, que desprezava o povo e que cooptou a universidade.

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • Fontes de financiamento

    Nos ltimos anos, os principais debates estiveram sempre vinculados ao problemado financiamento, questionando muito menos a prpria universidade (o seu existir)do que as maneiras de financi-la. As universidades queriam para si mais recursosdo governo, maiores salrios e mais verbas, embora sem permitir o aumentos dasmensalidades e concedendo subsdios. A universidade tem de ser discutida na pro-fundidade de sua crise, mas os debates sobre o financiamento tm de continuar.A universidade do sculo XXI tem de ter clareza sobre quem paga pelo ensino denvel superior e o que deve receber em troca aquele que paga.

    O governo tem toda clareza de que a privatizao da universidade est fora dequesto, como tambm a idia de pr fim sua gratuidade. Na verdade, o governogostaria que todo o ensino superior fosse gratuito no Brasil, caso isso fosse finan-ceiramente possvel, uma vez que ele de importncia ainda mais essencial parao pas do que para o aluno. Mas, atualmente, essa possibilidade ainda no existe.

    At que ela venha a existir, contudo, o governo pretende, juntamente com acomunidade acadmica, encontrar formas de financiamento alternativo para osalunos das universidades particulares e, tambm, de financiamento das atividadesacadmicas nas universidades pblicas, tais como:

    aumentar o nmero dos alunos que recebem bolsas do governo para estudarnas universidades particulares, por meio do Programa de Apoio ao Estudante,lanado para ampliar o FIES e conceder bolsas sem necessidade de pagamentofinanceiro;

    regularizar as fontes alternativas de financiamento das universidades pblicas,pela total transparncia de sua administrao e a aplicao de processos decisriosdemocrticos e autnomos;

    considerar a possibilidade de transformar os alunos das universidades particu-lares em co-proprietrios dos estabelecimentos em que estudam.

    Prioridades de temas

    O Brasil e o mundo mudaram, continuam mudando e iro mudar ainda mais nofuturo. Se no percebermos esse fato, no tardar muito para que muitos de nossostemas de estudo estejam superados, sem que novos temas sejam examinados. Aolongo dos ltimos anos, demos muita importncia aos planos anuais de adminis-trao e nenhuma aos planos decenais de atividades acadmicas. A universidade temde gerenciar mais do que recursos, ela tem de gerenciar o conhecimento e tem de terconscincia do risco de insistir em conhecimentos que se tornaram obsoletos e ignoraros conhecimento que apontam para o futuro, de modo a compatibilizar o ensinocom as necessidades ticas, sociais, epistemolgicas e econmicas desse futuro.

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  • Publicizao do ensino

    A reforma da universidade, realizada durante o regime militar, incutiu a idiade que a universidade propriedade do Estado, seu dono, e no do pas, de seusalunos e da sociedade como um todo. Durante o regime militar, o Estado demitia,prendia e financiava suas universidades como bem entendia. Com a chegada dademocracia, os ditadores foram substitudos pelos professores e servidores, ou porministros. A autonomia passou a ser entendida como a troca de proprietrio,transferindo-se dos quartis militares para as salas de reunies dos professores eservidores administrativos, ou para os gabinetes dos ministros. Nestes quase vinteanos, pouca coisa realmente radical foi feita no sentido de levar em conta as reaisexigncias e necessidades da sociedade civil, e at mesmo dos alunos.

    A democratizao da universidade trouxe as eleies diretas, muitas vezes comparticipao reduzida do corpo discente, ou por desinteresse ou porque a capaci-dade dos alunos de participar do processo de escolha era subestimada por muitos.Nos conselhos universitrios, os alunos tm participao mnima ou nenhuma; osex-alunos nunca so consultados e ainda menos os representantes da sociedadecivil como um todo, salvo em rarssimas excees, que mais parecem a encenaode uma falsa gesto participativa.

    O rpido aumento do patrimnio de muitas universidades, graas s mensali-dades pagas pelos alunos ou ao apoio pblico, tem levado a sociedade, em geral,e os estudantes, em particular, a criticarem aquilo que deveria ser visto como positivo:o crescimento de uma universidade.

    Recentemente, por ocasio da inaugurao de uma biblioteca numa universidadeparticular, o que deveria ser visto como um feito louvvel, numa poca em que oEstado no vem cumprindo com suas obrigaes de ampliar as bibliotecas das univer-sidades pblicas, um aluno comentou: "Eles construram tudo isto com o dinheirode nossas mensalidades e depois usaro esta biblioteca para justificar o aumento dasmensalidades para os futuros alunos". Os alunos das universidades particulares, com rarasexcees, sentem-se to desengajados de suas instituies quanto da sociedade em geral.

    O Brasil precisa criar o conceito de alma mater, o amor que a sociedade e, prin-cipalmente, os ex-alunos tm por suas universidades. A nica maneira de incentivar acriao dessa idia ampliar o sentimento de que a universidade pertence a todos.

    A maneira de alcan-lo incentivar o envolvimento da sociedade, dos alunos e dosex-alunos nas decises da universidade. E, sobretudo, pela criao do conceito de que ainstituio pertence sociedade, e no a um Estado distante ou a um dono nico.

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • No caso das universidades estatais, o caminho chamar alunos e ex-alunos aparticipar nas decises e nas responsabilidades da comunidade. O reitor o lderintelectual e administrativo da instituio, no o representante do Estado. Nasuniversidades particulares, tambm necessrio separar a figura do dono da figura dolder acadmico: o dono o proprietrio do prdio, o reitor o coordenador dasatividades acadmicas. O primeiro compra ou herda, enquanto o segundo tem deser eleito pela comunidade.

    Relao com o ensino bsico

    Apesar de serem da responsabilidade de um mesmo ministrio, a relao dasuniversidades com o ensino bsico tem sido muito mais restrita do que deveria,num pas em que a realidade educacional to trgica. A universidade brasileiratem de ser parte integrante do processo de educao do povo brasileiro, a comeardo ensino bsico, e no apenas de seus prprios alunos no ensino superior.

    A universidade pode ser o elemento dinmico, por excelncia, do ensino bsico, se: participar dos programas de reciclagem de professores; der preferncia aos professores, por meio de um sistema de cotas, quando

    estes prestam vestibular; ampliar as vagas em cursos de licenciatura; ampliar as vagas nos cursos de pedagogia; reduzir as mensalidades para professores; criar cursos para especializao em tcnicas de alfabetizao, tanto de adultos

    quanto de crianas; em todos os demais cursos, como Arquitetura, Nutrio, Economia,

    Filosofia, Histria, considerar seu papel na educao como objetivo dos estudos.

    Relao com a sade pblica e os demais setores sociais

    Da mesma forma que a universidade tem responsabilidades para com a escolapblica, ela as tem tambm para com a sade pblica. Parte dos currculos doscursos relacionados rea mdica deve-se centrar em estudos relativos medicinae odontologia preventivas e sociais. Os cursos de engenharia civil poderiamcontribuir com tecnologias relacionadas ao abastecimento d'gua e aos sis-temas de esgoto.

    O setor de transporte poderia se orientar para transporte pblico. Todos oscampos do conhecimento podem dar sua contribuio. Como j acontece em algunscasos, os cursos de comunicao poderiam deixar de lado os meios de comuni-cao tradicionais e ensinar a seus alunos tcnicas de comunicao para as massas.

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  • Compromissos sociais imediatos

    Alm de oferecer uma formao voltada para o objetivo de construir um passem pobreza, necessrio que a universidade se envolva, tambm, nos compro-missos sociais imediatos da sociedade brasileira, como a alfabetizao de adultos.A meta de erradicar o analfabetismo em apenas quatro anos seria facilmentecumprida, se apenas 3% dos alunos das universidades trabalhassem como alfa-betizadores. Se todos os universitrios trabalhassem na alfabetizao durante quatroanos, o Brasil poderia ensinar um nmero 30 vezes maior de pessoas a ler e escrever 120 milhes de analfabetos, ou 15% do total dos analfabetos do mundo. Secada universitrio dedicasse oito horas semanais ao trabalho de alfabetizao,durante um nico semestre, apenas 24% dos universitrios seriam o bastante paraque, em quatro anos, o analfabetismo fosse erradicado. Isso no pedir muito.

    Se isso no for feito, dentro de algumas dcadas, quando for escrita a histriada campanha pela alfabetizao do Brasil nos anos 2003-2006, ser dito de nos-sos universitrios atuais o que hoje dizemos dos universitrios do sculo XIX: quenos alienamos frente a um dos problemas sociais mais dramticos de nossotempo, da mesma forma que eles se alienaram frente escravatura.

    Compromissos com o futuro nacional

    O mundo se encontra numa encruzilhada, e o Brasil est bem no centro dela.O futuro de nosso pas incerto, no apenas pela falta de investimento social epela diviso interna, mas devido, tambm, em razo do cenrio internacional. Auniversidade tem um papel fundamental a desempenhar para ajudar o Brasil naconstruo de seu futuro em relao ao resto do mundo, da seguinte forma:

    criar as bases cientficas e tecnolgicas necessrias para enfrentar o futuro; compreender as relaes internacionais, num mundo em que existe hoje uma

    nica grande potncia; compreender a realidade de um mundo globalizado, onde h excluso e diviso; contribuir na definio de formas de defesa de nossa soberania num mundo

    globalizado.

    Conhecimentos futuros

    Para ser instrumento do futuro, a universidade de hoje tem de definir quaisconhecimentos sero necessrios ao mundo, nesse futuro. A universidade, junta-mente com a Coordenao do Aperfeioamento do Pessoal de Nvel Superior CAPES, tem a capacidade de, dentro de poucos meses, definir os conhecimentosdo futuro, nos quais deveramos investir desde j, para que o Brasil esteja prepara-do para comemorar o segundo centenrio de sua independncia em 2022.

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    A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA

  • Com base nessa definio, a universidade tem de ir mais adiante, redefinindo ascarreiras nas quais devemos investir mais e as que devem receber menos investimentos,uma vez que, em breve, estaro superadas pela dinmica do avano do conhecimento eda demanda de conhecimento. E, sobretudo, temos de definir quais carreiras so per-manentes, por servirem aos valores fundamentais do humanismo.

    Globalizao, regionalizao, nacionalizao

    Por ocasio da ltima reforma, realizada pelos militares, o Brasil tinha ainda a pretensode possuir um projeto nacional independente do cenrio mundial. Apesar do tradi-cional alinhamento com os Estados Unidos e do apoio recebido da USAID para areforma e, acima de tudo, do apoio norte-americano para o ambicioso programa deformao de ps-graduao, que representou uma mudana positiva para a realidadedo ensino superior brasileiro, o sonho de um projeto nacional continuava vivo. Hoje,a universidade brasileira no pode ignorar o fato de fazer parte de um projeto global.

    O saber universitrio, hoje em dia, j no cabe dentro das fronteiras de pasalgum. E a universidade brasileira tem de fazer parte do saber internacional, tantoem termos de suas qualidades quanto de seus temas.

    Mas, a universidade tem de alcanar o objetivo de ser global e, ao mesmotempo, ser tambm nacional. Ela deve manter vivos os compromissos e as especifici-dades do Brasil, entendendo quais conhecimentos especficos so necessrios ao pas.

    Alm disso, cada universidade, individualmente, deve reconhecer a importncia do seuentorno imediato, tendo, portanto, de se regionalizar, ao mesmo tempo em que se globaliza.