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Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687
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A TRAGÉDIA ANTÍGONA DE SÓFOCLES:
ENSAIO DE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO
PIRATELI, Marcos Roberto (UNESPAR/Paranavaí)
PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM)
O presente texto tem como objetivo estudar a tragédia grega e suas implicações
educativas para o cidadão ateniense do século V. Para tal, optou-se por privilegiar uma
peça em específico, Antígona, um dos clássicos de Sófocles (496-406 a.C.).
Investigar os clássicos é investigar autores que para além da estética, semântica,
ou mesmo da hábil conotação política (tão marcante na Antiguidade), podem trazer à
tona a dinâmica da História. Para Pierre Vidal-Naquet (2002) os textos trágicos de
Ésquilo, Sófocles e Eurípides foram definidos como “clássicos” já em 406 a.C., nas Rãs
de Aristófanes, e continuaram sendo vistos dessa forma no século IV e na época
helenística e nunca deixaram de ser lembrados em Roma, ou mesmo nos teatros
elisabetanos, espanhóis ou franceses.
Nesse sentido, o diálogo com o passado poderá facilitar e entendimento de
elementos transformadores da sociedade.
A história, unidade de passado, presente e futuro, pode ser algo universalmente apreendido, por deficiente que seja a capacidade humana de evocá-la [...]. Talvez possam lançar luz não só sobre o sentido do passado de sociedades anteriores, mas sobre nosso próprio sentido, no qual a hegemonia de uma forma (mudança histórica) não exclui a persistência, em diferentes meios e circunstâncias, de outras formas de sentido do passado. [...] Nadamos no passado como o peixe na água, e não podemos fugir disso (HOBSBAWM, 2005, p. 35)
A recuperação do passado sob essas lentes passa pela investigação da
constituição e rompimento de respectivas práticas e modelos sociais, assim como o que
perdura e acompanha as mudanças. Estudar Sófocles como um clássico da literatura
grega passa a ser fundamental para compreender a dinâmica da constituição da Cidade-
Estado, a Polis.
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A tragédia e a comédia gregas são hoje, por historiadores, estudadas como fontes
históricas. A partir de estudiosos como Jean-Pierre Vernant, Philippe Gauthier, Louis
Robert, Moses Finley, Édouard Will, entre outros, foi e é possível entender como esses
textos literários foram capazes de expressar estruturas inteiras da sociedade grega. E
também quando foi estabelecida uma comparação com os vasos (a partir da
arqueologia), esses mesmos textos não perderam sua importância para o entendimento
das práticas sociais daquele período (VIDAL-NAQUET, 2002).
Para Moses Finley (1990) a tragédia seria o meio mais fácil para nos
“comunicarmos” com o mundo grego clássico.
Já na Antiguidade Sófocles foi considerado, pelo efeito cênico que produziu, o
melhor entre os tragediógrafos. Inclusive pela técnica e inteligência que lhe garantia
uma habilidade didático-educativa na elaboração-apresentação de suas peças. Isto se dá
porque as personagens de Sófocles não são construídas a partir de rigidez imóvel
(JAEGER, 2003); tal “movimento” parece permitir uma reflexão melhor dos dramas da
vida real. Essa forma de conceber – literariamente, artisticamente – a dinâmica do
espírito ático é fruto de momento específico: a época de Péricles.
Podemos assim chamar Sófocles de clássico, no sentido de que atinge o ponto culminante no desenvolvimento da tragédia. A tragédia consuma nele a “sua natureza”, como diria Aristóteles. Mas pode ainda ser chamado de clássico num outro e único sentido: na medida em que esta denominação exprime a mais elevada dignidade, obtida por quem leva um gênero literário à sua perfeição. Tal é a sua posição no desenvolvimento espiritual da Grécia, e aqui vemos como expressão deste desenvolvimento sobretudo a literatura. É em Sófocles que culmina a evolução da poesia grega, considerada como o processo de objetivação progressiva da formação humana (JAEGER, 2003, p. 320-1).
A partir disso, este texto foi estruturado em três momentos, onde se pretendeu
discutir: (I) o contexto grego e ateniense, (II) a tragédia grega, sua origem e função
formativa e, por fim (III) a peça Antígona de Sófocles.
I.
Apesar dos gregos, no geral, pertencerem a uma mesma cultura (língua, deuses,
exercícios, pensamento, etc.), cada uma de suas cidades era um Estado autônomo, a
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Polis. Destas, Atenas é tida como destaque pela forte marca de sua história na
Antiguidade. Muitos documentos sobre ela sobreviveram, entre eles peças trágicas que,
em linhas gerais, ao mesmo tempo em que são frutos, expressam as transformações
sociais que marcaram a transição do seu período “Arcaico” para o “Clássico”.
Desde o século VIII (e seguintes) a Grécia era palco de conflitos entre as
famílias gentílicas – o génos –, e como elemento contraditório em meio a esse processo
o povo começou a assumir papel importante na cidade. O impacto desse processo
transformador fica claro quando se teve inicio a substituição das leis dos géne por leis
escrita, profundamente marcada no enfrentamento entre uma aristocracia “tradicional”
contra uma aristocracia “moderada” (MOSSÉ, 1997). Nesse momento de transição
algumas cidades-Estado presenciaram a figura do tirano. A tirania, em síntese, era
“nome dado pelos escritores gregos à autoridade absoluta exercida na cidade por um
indivíduo que chegara ao poder pela força e ao arrepio do quadro das instituições
legais” (MOSSÉ, 1997, p. 140), ou seja, à revelia da lei, tais homens em “essência”
desempenhavam práticas políticas tendo em vista combater a aristocracia (MOSSÉ,
1997; 1999). É interessante como Sófocles registrou isso em sua Antígona, no diálogo
entre Creonte e seu filho Hêmon, quando o rei/tirano de Tebas questiona de forma
irônica as indagações do filho: “Dita a cidade as ordens que me cabe dar? [...] Devo
mandar em Tebas com a vontade alheia?” (SÓFOCLES, Antígona, vv. 834; 836).
O tirano mais famoso da história ateniense foi Pisístrato (séc. VI) que, a partir de
suas reformas políticas, contribuiu de forma efetiva para o progresso da Polis, sobretudo
em questões urbanísticas e culturais (cite-se como exemplo a redação definitiva de
Homero e os concursos de peças teatrais). Em face disso, pode-se inferir que tiranos,
como o caso em tela, às vezes se mostraram como hábeis políticos, e não só isso, por
vezes também se cercaram de artistas e intelectuais, assim como contribuíram para uma
“unidade” ática ao promoverem culto comum a deuses populares como Atena e
Dioniso.
Esse quadro somente foi superado após as ações políticas de Clístenes, na
medida em que Atenas passava por profundas transformações, entre as mais marcantes
o advento da Boulé como principal instituição. Durante as chamadas “Guerras Médicas”
(aprox. 490-479 a.C.), esta instituição passou a ser reunida com mais periodicidade,
tornando a cidade como núcleo da vida política e quando Péricles ficou trinta anos no
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poder (461-429), revelando uma gestão cujas grandes lutas eram caracterizadas não
mais por disputas familiares, e sim por causas políticas. Definida como o apogeu da
democracia grega e pelo grande efervescer do desenvolvimento cultural, a Paidéia, este
período ficou conhecido como “escola da Grécia”.
II.
Segundo Pierre Grimal (1986), as origens do teatro grego podem ser encontradas
na civilização cretense (séculos XX a XIV a.C.). Após estudos arqueológicos, foram
encontrados lugares que foram identificados como “locais de espetáculo”, raiz grega
Théan, que significa “ver”, dando origem à palavra teatro tanto para gregos, com
Theatron, como para romanos, com Theatrum. Na antiga civilização cretense esses
espaços serviam como um tipo de distração para serem vistas as danças dos coros –
ainda não se sabe se para representação religiosa, simbólica ou mimética. Na Ilíada, por
exemplo, ficaram registrados esses espaços reservados na cidade (?) para danças de
festas “oficiais” quando empregou o termo Choros, no sentido de lugar sagrado, espaço
e/ou grupo de bailarinos.
Já as origens da tragédia parecem surgir de matriz religiosa, pois a palavra do
grego antigo trag-oidía significa “canto do bode”, ou seja, o trágico (traigoidós) ou
aquele que cantava para receber um bode com prêmio, ou aquele que cantava em um
sacrifício ritual do bode, o que, inclusive, levou a suposições como associar o altar no
centro da orkhestra como local onde se realizava, originalmente, o sacrifício do bode –
um tipo de vítima expiatória, para expurgar impurezas (VERNANT, 2005).
A tragédia, de fato, surge no século VI – tendo como Téspis o seu criador –
quando a partir dessa especificidade artística a linguagem do mito deixa de apreender a
realidade dos gregos. O drama que compõe o conflito trágico é resolvido fora dos
elementos da tradição, ou seja, como memória dos heróis, reis, ou mesmo tiranos, posto
que nas tragédias o que se apresentavam era o triunfo dos valores coletivos impostos
pela cidade (que naquele momento caminhava para a democracia).
Em Atenas, a origem da tragédia pode estar ligada à poesia lírica escrita para ser
cantada por um coro – que aparece já no século VI a.C. Nessas líricas corais eram
cantados temas em torno de heróis do povo grego. Com o passar dos anos, houveram
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algumas modificações, por exemplo, o acréscimo de um “discurso” que era narrado
e/ou recitado. Acrescente-se a isto a possibilidade das tragédias serem um
desdobramento de rito, sobretudo por, em dado momento, estarem inseridas e
representadas nas chamadas “Grandes Dionisíacas” – fim de março/começo da
primavera, entre os dias 10 e 15 do mês Elaphêboliôn (GLOTZ, 1980) – na encosta da
Acrópole, também conhecidas como “Dionisíacas urbanas” [Isto porque também
haviam as “Dionisíacas rústicas”, realizadas durante o inverno nas aldeias (VERNANT,
VIDAL-NAQUET, 2005)]. As festividades de Dioniso duravam três dias, e nesses
estavam inseridas a representações trágicas – ao lado de outras cerimônias como
concurso de ditirambos, procissões de jovens, sacrifícios, exibição de ídolos. Essas
festas pareciam compor um ritual completo, e não por acaso, no edifício do teatro que
era consagrado a Dioniso havia um lugar reservado para esse deus, e seu sacerdote tinha
um trono esculpido só para ele.
Foi nessa conjuntura que Pisístrato, em 534, sabendo que Dioniso era um deus
popular entre os atenienses, fez uso da tragédia para atacar a aristocracia. Ao ser
apresentada dentro de uma festa alcançou duas características: (a) religiosa, por estar em
meio a culto para Dioniso, e (b) política, como patrocinada por esse tirano. No entanto,
em uma Atenas democrática do século V, apesar de ligação tradicional com esse deus,
sua figura é posta de lado no enredo (VERNANT, 2005) – e, por causa disso, essas
mesmas peças passam a serem custeadas pelo demos.
Para Werner Jaeger (2003) na medida em que a arte se situa no centro da vida
pública em Atenas a poesia e a literatura grega entram em um espírito de competição,
tal como ficou latente nos concursos dionisíacos. O próprio Estado fomentava e
premiava esses “embates”.
Assim, a tragédia rompe com sua origem ditirâmbica, atingindo sua plena
natureza: com forma dialogada e protagonizada diante de um público pela primeira vez
na literatura (ARISTÓTELES, Poética, 1449a [1999]).
O essencial na tragédia não era desvendar as suas origens, mas percebê-la como
invenção que traz à tona, como parte de uma festa pública e no plano da arte, um novo
tipo de espetáculo que traduz aspectos importantes da experiência humana que até
aquele momento estavam desapercebidos como etapa para a formação do homem
interior, como sujeito responsável:
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A invenção da tragédia grega na Atenas do século V não se limita apenas à produção de obras literárias [...] mas [...] da criação [...] do advento de um homem trágico [...] e elaboram uma visão trágica, um modo novo de o homem se compreender, se situar em suas relações com o mundo, com os deuses, com os outros, também consigo mesmo e com seus próprios atos. [...] tem como matéria, a lenda heróica. Não inventa nem as personagens nem a intriga de suas peças. Encontra-se no saber comum dos gregos, naquilo que ele acreditam ser o seu passado [...] Mas, no espaço do palco e no quadro da representação trágica, o herói deixa de se apresentar como modelo [...]: ele se tornou problema. [...] desempenhou um papel decisivo na tomada de consciência do “fictício” [...] foi ela que permitiu ao homem grego, na virada dos séculos V e IV, descobrir-se, na sua atividade de poeta [...] constituindo, ao lado do mundo real, o da ficção. [...] o poeta trágico desaparece totalmente atrás das personagens, que agem, e falam no palco [...] o autor dissimila-se nos protagonistas. Montar uma tragédia é [...] utilizar os nomes e o destino de figuras exemplares, conhecida de todos, para fabricar um roteiro. [...] e aos acontecimentos singulares, ligados ao quadro histórico e social que é o seu, adquirem um alcance e um significado muito mais amplo. Dessa forma, a tragédia propõe ao espectador uma interrogação de alcance geral sobre a condição humana, seus limites, sua finitude necessária. Ela traz consigo, na sua mira, uma espécie de saber, uma teoria relativa a essa lógica ilógica que preside à ordem de nossas atividades de homem. (VERNANT, 2005, p. 214-6;218-9).
O momento sobre o qual escreve/pensa Sófocles são os anos subseqüentes às
guerras pérsicas, quando o povo estava em união com o Estado, em que se pode pensar
uma nova educação, ou eudemonia própria de uma Polis como palco de lutas para a
superação da oposição entre cultura dos nobres e vida do povo, inclusive essa é a época
que se criou a palavra “urbano” () como símbolo da conduta do homem ático.
Mas também isso foi possível em Sófocles porque ele mesmo havia morrido antes do
colapso de Atenas durante a guerra do Peloponeso (JAEGER, 2003).
Os gregos entre os séculos VI e V a.C. após um longo processo de
metabolização social, ao contrário de outros povos, conseguiram caminhar para a
compreensão de sua própria processualidade, a consciência de si. (MAZZEO, 2009).
Desenvolvida dentro de uma situação de crise, a tragédia foi uma forma
específica de reflexão sobre a prática social pautada no (conflito), própria da
Polis, e, mesmo que diferente das conclusões dos filósofos da natureza, tanto a tragédia
como a política serão permeadas pelo pensamento religioso, tal qual as mediações
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próprias da vida cotidiana da cidade-Estado (MAZZEO, 2009). Isto se explica na
medida em que a tragédia tomava como base relações conflituosas: entre humano e
divino, passageiro e duradouro, banal e elevado:
A polis se funda, perdura e renova no conflito (“pólemos”) entre o humano e o divino, o passageiro e o duradouro, o banal e o elevado. Se o humano suprime o divino, a passageiro elimina o duradouro e o banal acaba com o elevado, a comunidade se desintegra, a polis desaparece e com ela desaparece também a tragédia. Tal como os atenienses a criaram, a polis é parte de seu modo de manter e renovar a comunidade deles. A tragédia, então, não nasceu da Poética, mas da política, da polis (KOSIK, 1996, p. 16).
O “homem trágico” situa-se entre dois universos contraditórios: aquele dos
valores heróicos e aquele das assembléias e tribunais da Polis. A tragédia insere a ação
heróica em um contexto jurídico que estava ultrapassando os valores aristocráticos, ou
seja, a tragédia revela o processo de transformação que marca a aurora da democracia.
(VIEIRA, 2005).
Para Pierre Vidal-Naquet, a tragédia em seu apogeu somente poderia ter sido
escrita em um ambiente democrático, apesar de não ter posto em cena tal regime. Para o
historiador, o coro não pode ser entendido como a boulé: “o povo ateniense não está na
orquestra nem no proscênio; ele está no teatro, é espectador, e não ator” (2002, p. 182).
Dessa forma, a tragédia era uma narrativa do político e do social, não pode ser
entendida como um espelho.
A tragédia camufla no palco as aparências da existência do real, pois a platéia,
de fato, sabia que os heróis não estavam ali (a sua época era outra). Desse modo, a obra
trágica é obra humana, ou seja, é ficção; Jean-Pierre Vernant (2005) fala de uma
“consciência da ficcção”. A ilusão teatral inaugurada pela tragédia acaba por se fazer
próxima de Dioniso, que misturava, segunda a mitologia, o ilusório e o real.
Para o espectador o texto/linguagem da tragédia era claro. Sua linguagem tinha
plena comunicação. A questão da ambigüidade desenvolvida pelas personagens não era
estranha à platéia que, a rigor, deveria compreender os dois sentidos possíveis,
conflituoso, mas que apontava para o entendimento dos valores humanos na negação
das certezas antigas para abrir-se para a visão problemática do mundo. Diferentemente
da epopéia e da poesia lírica, a tragédia desenha a categoria de ação, indivíduos em
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situação de agir diante de uma encruzilhada, decidindo qual o melhor opção a tomar;
aliás, a própria palavra “drama” provém do dórico drân e corresponde ao ático práttein:
agir. Esse é o drama: deliberar consigo mesmo, arriscando-se, às vezes, no
incompreensível (VERNANT, 2005).
Como “pedagogo”, o teatro mostrava aos seus espectadores novas relações,
novas interpretações e novos esquemas. Esse poder formador pode ser entendido na
medida em que no século V aproximadamente quatorze mil espectadores iam ao teatro;
Atenas, em 411, ciente de tal força, instituiu o thorikón, subsídio para que muitos
pudessem assistir essas peças.
Com a fundação dos concursos trágicos, a tragédia passa a ser, além de arte, uma
instituição social, e como espaço aberto a todos os cidadãos (tal qual, por exemplo, as
assembléias, tribunais), a “cidade de faz teatro” (VERNAT, 2005, p. 10). É o cidadão
que, ao olhar os mitos, as lendas do seu próprio passado, como cidadão constrói a
tragédia, refletindo sobre seus valores tradicionais e atuais: é o debate cívico com o
passado. Assim, a tragédia não tem pretensões de fazer com que desapareça os conflitos,
dando uma resposta pronta, ao “contrário, a tragédia, no momento em que passa de um
plano a outro, demarca nitidamente as distâncias, sublinha as contradições”
(VERNANT, 2005, p. 15), homem e ação se delineiam com problemas.
Segundo Jean-Pierre Vernant (2005), a tragédia grega pode ser caracterizada em
três pontos: (1) social, (2) estético e (3) psicológico. O primeiro diz respeito à sua
capacidade de abstração da realidade, conforme ocorrido nos concursos trágicos: “Sob o
impulso, talvez, desses primeiros representantes das tendências populares que são os
tiranos, a comunidade cívica instaura concursos trágicos, colocados sob a autoridade do
mais alto magistrado, o arconte, que obedecem, até nos detalhes da sua organização,
exatamente às mesmas normas que regem as assembléias e os tribunais democráticos.
Desse ponto de vista, pode-se dizer que a tragédia é a cidade que se faz teatro, que se
coloca ela própria em cena, diante do conjunto dos cidadãos” (p. 160-1); o segundo,
pode ser entendida como advento de novo gênero literário: “[...] no plano das formas
literárias, com a elaboração de um gênero poético destinado a ser representado e
gesticulado num palco, escrito para ser visto, ao mesmo tempo que ouvido, programado
como espetáculo e, nesse sentido, fundamentalmente diferente dos que existiam
anteriormente” (p. 161); e, por fim, a evidente marca da nova consciência expressa no
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sujeito trágico: “[...] no plano da experiência humana, com o advento de que se pode
chamar de consciência trágica, o homem e sua ação perfilam-se, na perspectiva própria
da tragédia, não como realidades estáveis que poderiam ser delimitadas, definidas e
julgadas, mas como problemas, questões sem resposta, enigmas cujo duplo sentido
continua à espera de ser decifrado” (p. 161).
A rigor, a tragédia foi uma inovação e/ou invenção de um novo gênero literário,
configurando-se em um novo tipo de espetáculo para festas públicas. Não somente isso,
traduzia aspectos da experiência humana, tais como apresentar etapas da formação
interior do homem, para que este se entendesse como sujeito responsável.
A tragédia surge quando a linguagem do mito deixou de apreender a realidade
política da Polis. Seu universo está entre dois mundos, ou seja, o conflito trágico que
coloca em cena herói, rei, tirano ainda se constrói sob a sombra do mítico; todavia, a
solução do drama escapa destes, não é feita pelo herói solitário, e sim é resolvido como
triunfo dos valores coletivos impostos pela nova Polis, democrática. A rigor, “O mito
está na tragédia e é, ao mesmo tempo, rejeitado por ela: Sófocles faz Édipo vir da era
mais remota, a que precede a cidade democrática, e o destrói” (VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2005, p. 150).
Apesar dos tragediógrafos terem feito uso dos temas heróis do passado existe um
distanciamento sobre esses mitos na medida em que são transpostos com muita
liberdade, sobretudo ao questioná-los em valores já contraditórios aos valores próprios
do advento das cidades e sua forma específica de direito.
O trazer o mito para a esfera material da vida dos homens implica, ainda, conceber uma essencialidade humana ambígua, composta pelo controverso, pelo bem e pelo mal, também eles elementos constituintes e conformadores do próprio direito que passa a reger a cidade e que constroem um equilíbrio que se realiza sob tensões (MAZZEO, 2009, p. 126).
Confrontam-se os comportamentos, as práticas sociais, do passado com o
presente, delineando claramente as novas responsabilidades humanas que se sobrepõe
aos planos divinos.
A matéria da tragédia termina por desvelar o pensamento próprio da cidade,
naquele momento marcado pelo pensamento jurídico (envolto em conflitos e
contradições), cujo clímax se dá quando os heróis e/ou o genos são questionados.
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Quando o herói é questionado diante do público, é o homem grego que, nesse século V ateniense, no e através do espetáculo trágico, descobre-se ele próprio problemático (VERNANT, 2005, p. 161).
É valido destacar que para o grego, a educação, a Paidéia, ia além da gramática,
retórica e filosofia. A literatura de forma alguma estava fora desse processo. A didática
teatral (pela tragédia ou pela comédia) tinha condições de levar os espectadores para
novos tipos de comportamentos, hábitos ou práticas sociais:
A proposta pedagógica nova, nesse sentido, é incitar o povo a reflexões mais aprofundadas sobre os processos da vida em comunidade. É, pois, reeditar, didaticamente, aquele espanto típico do grego que, nesse momento, busca e cria significados diante de paradoxos entranhados nas forças vivas da materialidade. Limitação de poder, intransigência, inconstância, conseqüências de ações destrutivas vão subindo ao palco com o homem que já pensa o aparente e o oculto. Exerce, assim, um papel imprescindível na compreensão de um mundo movido por leis, basilar para o aprimoramento da auto-consciência que passa a reconhecer a diferença entre destino e necessidade (NAGEL, 2006, p. 87).
Na Grécia antiga não é possível falar em educação, poesia, escultura, etc., de
forma separada/autônoma, para os gregos isso era impossível, pois, para se chegar à
forma humana, a uma de Homem, partia-se de um esforço modelar em que todas
essas artes eram necessárias (JAEGER, 2003).
Com base nisso, à tragédia poder ser atribuído status formativo, pois nela
percebe-se um evidente exame de consciência do cidadão grego. Não só isso,
revela/reflete também a passagem do saber mítico para o racional. Nesse sentido, o
teatro possuía uma importante finalidade prática para o grego/ateniense.
Lizia Nagel (2006) acentua a tragédia também como prática educativa por
induzir no espectador novas práticas ou posicionamentos na vida real, isto é, demonstrar
ao cidadão a emergência de novas práticas sociais com o advento da Polis. O poeta, por
isso, possui uma missão didática, e a cidade, como uma comunidade de hábitos, é o
local da tragédia.
Assim, o texto trágico, por apreender o homem na trama dos conflitos reais, é
fonte para a história da educação. Sua narrativa colocava o grego de frente com aquilo
que eram suas relações sociais, ou seja, a tragédia tratava do homem real, não do ideal,
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tendendo, com isso, formar o homem para a realidade. “Os homens são convidados,
pelo teatro, a fazer novas perguntas e a dar novas respostas, sem medos” (NAGEL,
2006, p. 86).
Ao penetrar na compreensão da condição humana, das emoções, e tudo aquilo
que acompanha a vida em sociedade, a tragédia insere-se como agente do processo
educacional. A Antígona de Sófocles é matéria privilegiada, principalmente por colocar
em confronto políticas e comportamento antagônicos que marcaram o desenvolvimento
da cidade-Estado ateniense (NAGEL, 2006).
III.
Sófocles nasceu em Colonos de uma família que enriqueceu com a fabricação de
armas, e apesar de não ter origem nobre, em 480 já figurava como corifeu do coro de
rapazes para apresentações públicas em homenagem a Atenas para as celebrações em
ocasião da vitória de Salamina. Sabe-se que ocupou, ao lado de Péricles, o cargo de
estratego na campanha de Samos, assim como fora também tesoureiro dos fundos da
liga depositados em Atenas. Sófocles era membro das novas classes de dirigentes – com
poderes econômicos e boa formação – que não tinham as mesmas tradições nobres. A
participação desse novo grupo, de fato, dependia de seus recursos econômicos aplicados
na obtenção de uma boa educação superior para que assim alcançassem postos nas
magistraturas financeiras. Para Mario Attilio Levi (1991, p. 241) o “requisito essencial
para a nova classe eram precisamente a educação, a capacidade de comunicar-se, a
superioridade da cultura, que proporcionavam a superioridade na vida pública”.
Segundo Mário da Gama Kury (2006, p. 7):
Em 468, portanto aos 28 anos de idade, obteve sua primeira vitória num concurso trágico em que venceu Ésquilo, o mais velho dos três grandes tragediógrafos da Grécia clássica. Durante sua longa vida Sófocles presenciou a expansão do império ateniense, seu apogeu com Péricles e finalmente sua decadência após a derrota na Sicília durante a Guerra do Peloponeso. O poeta participou ativamente da vida política de sua pátria; foi tesoureiro-geral (hellenotamias) de Atenas em 443/2 e foi eleito no mínimo duas vezes estratego (strategôs, comandante do exército em expedições militares). Nessas atividades ele ficou muito aquém, em termos de renome, de sua excelência como poeta. Sófocles compôs aproximadamente 123 peças teatrais e obteve 24 vitórias nos concursos trágicos; isto significa que 76 de suas obras
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foram premiadas; nos outros concursos de que participou obteve o segundo lugar, feitos jamais igualados na história literária de Atenas. Desta vasta produção chegaram até nossos dias sete tragédias completas (Aias, Antígona, Édipo Rei, Traquínias, Electra, Filoctetes e Édipo em Colono), um drama satírico incompleto (Os Sabujos) e numerosos fragmentos de peças perdidas, conservados em obras de autores posteriores (páginas 131 a 360 dos Tragicorum Graecorum Fragmenta editadas por Nauck). Sófocles morreu em 406 em sua querida Colono, cujas belezas cantou nos versos 749 e seguintes do Édipo em Colono.
Do início do século V em diante a cerâmicas vermelhas registram de forma
predominante a religião olímpica e a mitologia épica e homérica. Isto significa dizer que
a religiosidade está mais próxima de interpretações populares, sobretudo quanto ao culto
de Dioniso. Nesse período, mesmo que ameaçada, tem-se o governo democrático de
Péricles, quando Anaxágoras e Protágoras encontraram-se em Atenas, e, posteriormente
Heródoto também ali esteve a partir de 446, período que marcou um momento de paz
com Esparta. Foi nessa época que Sófocles começou sua carreira literária com a peça
Antígona, em 442. (LEVI, 1991).
As características da obra de Sófocles fazem parte do ambiente cultural e mental
da época de Péricles; época cuja cultura sob impulso da política descobriu rapidamente
a individualidade. Isto se efetiva nas personagens da tragédia sofocliana em suas
intencionalidades e movimentos como sinal de autonomia individual, e isto, de fato, foi
a marca da política pericléia, quando a política foi condicionada a novas concessões que
novos grupos políticos queriam impor à Polis (LEVI, 1991).
Para Werner Jaeger poetas como Sófocles pensam um modelo de homem, ou
seja, em sua arte podemos identificar a manifestação da consciência, do despertar, dos
gregos para a importância da educação, da formação humana; em síntese, em sua
tragédia podia-se almejar um novo tipo de homem diante da sociedade; portanto “um
escultor de homens como Sófocles pertence à história da educação humana” (2003, p.
321). Isto posto, colocou como ponto central a ideal de conduta humana, fazendo de sua
arte uma arte educativa, e, evidentemente, intencional, por isso entendido como
consciente, logo, “Sófocles humanizou a tragédia e fez dela o modelo imortal de
educação humana” (p. 321).
Foi no tempo de Sófocles que teve inicio o movimento espiritual que abordou a
educação no seu sentido mais estrito, em grego, Paidéia, entendida como formação
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completa, por abarcar um conjunto de exigências ideais, físicas, espirituais, políticas,
isto é, uma formação espiritual consciente, sobretudo por apontar para um homem
vinculado a um Estado jurídico. Apesar desse ideal de homem, a nova sociedade
civil/urbana ática carecia de um sistema de educação em sentido formal, por isso a Polis
não abriu mão de imitar os passos da antiga nobreza cuja educação envolvia o Homem
total, ligando assim educação com o serviço cívico, superando dessa forma a idéia de
comunidade de sangue para a de comunidade política. Isto implicava em pretensões
singulares, tais como racionalidade, formação consciente do espírito. Portanto, esse
movimento educativo é integralmente político-pedagógico, visando as necessidades
intrínsecas da vida do Estado (JAEGER, 2003).
Em toda a tragédia sofocliana ao mencionar os eventos, dramas e tensões sobre
Tebas, estes podem/devem ser relacionados com Atenas, aliás, o público ateniense
facilmente conseguiam associar a cidade encenada com a aquela em que vivam (LEVI,
1991). A peça que destacamos para investigação, Antígona, foi representada pela
primeira vez em 441 em Atenas, [e apesar de escrita antes] e é o desfecho daquilo que
ficou conhecida como “trilogia tebana” de Sófocles, com Édipo Rei (em 430) e Édipo
em Colono (em 401).
Antígona pode ser o melhor exemplo para se entender os ideais éticos e sociais
da Atenas do século V, já que sua personagem principal é símbolo de uma desdita
consciência religiosa e moral que marca a luta de forças do passado diante da nova
forma política, a Polis.
A peça narra o drama vivido por Antígona após seu retorno para Tebas junto
com sua irmã Ismene, após a morte de seu pai, Édipo, em Colono. Lá assiste seus
irmãos, Etéocles e Polinices, matarem-se em combate. Isto ocorre porque Etéocles
descumpre o trato de revezar o trono com o irmão. Com isso, Creonte, tio desses, então
ocupante do trono, permite sepultamento honroso a Etéocles e proíbe que Polinices seja
enterrado, deixando seu cadáver às aves de rapina e aos cães, por este ter se aliado com
estrangeiros contra a pátria. Todavia, Antígona desobedece o decreto real e realiza os
ritos fúnebres, encolerizando Creonte, que em defesa da Polis, encerra a sobrinha nas
catacumbas dos antepassados. Antígona se mata. Seu noivo e primo, Hêmon, filho de
Creonte, ao falhar na tentativa de salvá-la também comete suicídio. Eurídice, mãe de
Hêmon, esposa de Creonte, ao saber da tragédia, também se suicida. E Creonte,
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defensor da nova ordem, das razões de Estado, em sua solidão, sofre as conseqüências
de suas opções.
Para Kasel Kosik (1996, p. 15-6):
A tragédia de Sófocles tem sido interpretada como conflito entre duas necessidades igualmente legítimas: a colisão entre o poder do Estado, que precisa punir o traidor, e o sentimento de piedade familiar, que leva a irmã a insistir em enterrar o irmão morto, em lugar de deixá-lo ser devorado pelos abutres. A razão mais profunda desse conflito, contudo, se acha na contradição entre leis passíveis de modificações (instituídas pelos homens) e leis eternas (as de Deus). A contradição entre o que passa e o que permanece. Esse é o conflito que põe inexoravelmente dois indivíduos – Creon e Antígona – em guerra, um contra o outro.
O conflito entre Antígona e Creonte opõe dois tipos diferente de religiosidade: a
primeira, de uma religião familiar-privada limitada a circulo específico de parentes
próximos, assim como nos mortos/antepassados; e, no segundo, de uma religião pública
onde deuses e valores de Estado se confundem (VERNANT, 2005). Velho e novo estão
presentes na sociedade e a escolha marca o drama das personagens (cf. Antígona,
vv.109-111).
No diálogo entre Creonte e Antígona (Antígona, vv. 506-537), esta se coloca
como resistente à nova ordem, negando seus regimentos, visto que para ela,
representante da família aristocrática entendia que a lei escrita promulgada pelo
governante da cidade ia de encontro com a tradição, o mito, isto é, os valores que
cimentavam a antiga sociedade grega, portanto, manter essa tradição, honrando o
passado, era necessário mesmo que as conseqüências de tal ato a levassem à morte.
Nesse mesmo diálogo, porém, a argumentação de Creonte é que sempre existe a
possibilidade de mudança, visto que a sociedade muda, os homens mudam:
Fica sabendo que os espíritos mais duros dobram-se muitas fezes; o ferro mais sólido, endurecido e temperado pelo fogo, é o que se vê partir-se com maior freqüência, despedaçando-se; sei de potros indóceis que são domados por um pequenino freio. (Antígona, vv. 541-548).
Esse processo de transformação pode ser entendido quando o coro faz alusão às
diferenças entre as gerações, sobretudo pelas “mais novas” não “resgatarem as gerações
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passadas” (Antígona, vv.677-678). E ainda parece como que algo inevitável, quando
argumenta que o “tempo envelhece tudo” (vv. 694).
Esse complexo momento, em que velho e novo coexistem, contraditoriamente,
pode ser percebido quando Hêmon alerta seu pai Creonte, falando de “na sombra/ ouço
o murmúrio, escuto as queixas da cidade” (Antígona, vv.785-786).
Mas, é na violência que a velha ordem chega ao seu fim:
Levando-a por deserta estrada hei de enterrá-la numa caverna pedregosa, ainda viva, deixando-lhe tanto alimento quanto base para evitar um sacrilégio; não desejo ver a cidade maculada. Lá, em prece ao deus dos mortos – único que ela venera – talvez obtenha a graça de não perecer, ou finalmente aprenderá, embora tarde, que cultuar os mortos é labor perdido (Antígona, vv. 874-882).
Antígona, já no início da peça, demonstra ter conhecimento do novo decreto
proposto pelo rei (Antígona, vv. 7-9); mas ela é ó último bastião da velha ordem e, para
defender o passado (Antígona, vv. 937ss), mantendo a tradição gentílica, opta por
desobedecer a lei tirania, levando-a à condenação, o que já indica sinal da dissolução
dos laços de parentesco. São dramáticas as palavras de Antígona em defesa do irmão
Polinices, ou sobre o seu derradeiro destino:
Foi como irmão que morreu, não como escravo (Antígona, vv. 591). Túmulo, alcova nupcial, prisão eterna, cova profunda para a qual estou seguindo, em direção aos meus que a morte muitas vezes já acolheu entre os finados! Eu, a última e sem comparação a mais desventurada, vou para lá, antes de haver chegado ao termo de minha vida! (vv. 992-998).
A partir disso, fica evidente que na peça a questão das cidades que se distanciam
da fé nos oráculos e de suas práticas, e passam a serem representadas em suas formas
políticas (por governantes) aos poucos, com cultura de sua coletividade parecem caros
para Sófocles.
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Na política ateniense de arkhé acha-se presente uma nova cultura, negação de toda a tradição arcaica da Grécia que, confiando nos deuses, em suas intervenções e nos oráculos, sempre regulara a vida pública segundo normas consideradas de origem transcendental. Essa tradição, obviamente, não desapareceu, e nem todo o mundo ateniense está disposto a renegá-la, mas o governo de Péricles segue outros princípios, originários predominantemente do pensamento e dos ensinamentos de Anaxágoras: conta-se com a força da natureza, com os juízos a que a mente humana é capaz de chegar, valoriza-se a relação entre força e poder, e, com base nestes conceitos, a pólis vai se delineando ideologicamente como uma tentativa de nova forma de convivência humana, na qual a força, não mais dos deuses, dita normas e cria legitimidade que devem ser obedecidas pelos homens (LEVI, 1991, p. 246).
Por exemplo: Ismene, seguindo caminho contrário da irmã Antígona, opta por
não se opor às regras da coletividade (Antígona, vv. 87-88) e não participa das honras
fúnebres de Polinices [Este foi definido como aquele que é contra as leis da cidade
(Antígona, vv. 333-335), isto é, inimigo do povo: “[...] de ardor insano se precipitar/
impetuosamente contra nós,/ movido por seu ódio tormentoso” (vv. 149-151). E sua
irmã, Antígona segue o mesmo caminho: “Ela já se atrevera, antes, a insolências/ ao
transgredir as leis apregoadas” (vv. 549-550)]. O Corifeu até denota a piedade de se
honrar os mortos, no entanto, respeitar a lei da cidade é dever do governante,
salvaguardando a pátria, que, em linhas gerais passa a ser mais “sagrada” que os
antepassados.
Das duas atitudes que a Antígona põe em conflito, nenhuma, em si mesma, poderia ser a boa, sem admitir a outra, sem reconhecer justamente aquilo que a limita e a contesta. A esse respeito é bem significativo que as únicas divindades a quem o coro se refere sejam Dioniso e Eros. Enquanto deuses noturnos, misteriosos, inacessíveis ao espírito humano, próximos das mulheres e dos que são alheios ao político, condenam precipuamente a pseudo-religião do chefe de Estado, Creonte, que mede o divino com o padrão de seu pobre bom senso para fazê-lo endossar seus ódios e ambições pessoais. Mas as duas divindades se voltam também contra Antígona, encerrada na philía familiar, votada voluntariamente ao Hades, pois justamente no seu liame com a morte, Dioniso e Eros exprimem as potências de vida e de renovação. Antígona não soube ouvir o apelo para desligar-se dos “seus” e do philía familiar abrindo-se ao outro, para acolher Eros e, na união com um estranho, por sua vez, transmitir a vida (VERNANT, 2005, p. 19).
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Mas quando Creonte toma a palavra em defesa da nova forma política, é um
novo tipo de sociedade que “aparece”, caracterizada na lei e no Estado, a Polis:
“[...] hoje detenho o trono e suas regalias. Não é possível conhecer perfeitamente um homem e o que vai no fundo de sua alma, seus sentimentos e seus pensamentos mesmos, antes de o vermos no exercício do poder, senhor das leis. Se alguém, sendo o supremo guia do Estado, não se inclina pelas decisões melhores e, ao contrário, por algum receio mantém cerrados os seus lábios, considero-o e sempre o considerarei a mais ignóbil das criaturas; e se qualquer um tiver mais consideração por um de seus amigos que pela pátria, esse homem eu desprezarei” (Antígona, vv. 196-210).
A manutenção do decreto, mesmo que isto envolvesse uma tragédia em família,
demonstra o compromisso do governante com a cidade; é isso o que Creonte representa
(cf. Antígona, vv. 738-744). Para além dos deveres familiares agora se coloca para o
grego o dever para com a pátria (vv. 749-758), que, como cidade-Estado coloca os
homens fora de desordem social (vv. 763-768). Os diálogos da peça apontam para o fim
da individualidade do oikos em face do coletividade da Polis (vv. 837-839).
Segundo Gustave Glotz (1980) quando a lei passa a ser nomos, isto é, escrita,
esta passa ser entendida sob um aspecto paradoxal: como coisa divina/imutável e como
obra humana/mutável. Mas, como realidade história, consolida-se para atender o
propósito importante para o demos: a ordem social, o regime de uma cidade que fazia
sob o signo da comunidade cívica. A questão aqui não é definir a lei como boa ou má,
mas entender como o homem (o legislador) procura fazer o seu melhor para
salvaguardar a sociedade em que vive.
Dessa forma, o que pretendia era defender a pátria; tal como podemos perceber
na fala Creonte:
Com semelhantes normas manterei intacta a glória da cidade, e pauta-se por elas o edito que mandei comunicar ao povo (Antígona, vv.219-221).
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Seguindo a tese de Louis Gernet, para quem a matéria da tragédia era o
pensamento próprio da cidade, sobretudo o pensamento jurídico em processo de
construção, Jean-Pierre Vernant (2005, p. 3) afirma que:
... na Antígona, a palavra nómos pode ser invocada pelos diferentes protagonistas com valores exatamente inversos. O que a tragédia mostra é uma díke em luta contra uma outra díke, um direito que não está fixado,que se desloca e se transforma em seu contrário. A tragédia, bem entendido, é algo muito diferente de um debate jurídico. Toma como objeto o homem que em si próprio, vive esse debate, que é coagida a fazer uma escolha definitiva, a orientar sua ação num universo de valores ambíguos onde jamais algo é estável e unívoco.
Esse é o homem trágico de Sofócles, aquele que, diante de um drama/conflito, se
posicionava, com ou sem a medida perfeita.
A própria consciência trágica nasce e desenvolve-se com a tragédia. É exprimindo-se na forma de um gênero literário original que se constituem o pensamento, o mundo, o homem trágicos (VERNANT, 2005, p. 9).
O coro em Sófocles canta que a fonte do mal é a falta de medida. Não que isso
fosse uma novidade para o grego, mas, ali, o diferencial foi a força e profundidade dada
por Sófocles, sobretudo por ter argumentado que para a medida deveria ser reservada o
mais alto valor, o que, em síntese, significava dizer que para Sófocles a poesia e a
educação caminhavam para um mesmo fim.
Os homens de Sófocles nascem de um sentimento da beleza que tem a fonte numa animação dos personagens até então desconhecida. Nele se manifesta o novo ideal da arete, que pela primeira vez e de modo consciente faz da psyche o ponto de partida de toda a educação humana. Esta palavra ganha no séc. V uma nova ressonância, um mais alto significado, que só com Sócrates alcança o seu sentido pleno. A “alma” é objetivamente reconhecida como o centro do Homem. [...] A partir do cosmos chega agora o mundo grego à descoberta do espiritual. [...] Converteu-se de imagem poética em princípio educacional. Protágoras fala da educação da alma por meio da verdadeira eurhythmia e euharmostia. A justa harmonia e o justo ritmo devem nascer do contato com as obras da poesia, da qual receberam as normas (JAEGER, 2003, p.327).
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Nesta peça, Sófocles, apesar de não abandonar ainda uma concepção religiosa de
mundo, já havia mudado o foco das discussões, e, no enfrentamento entre a personagem
principal e Creonte, o infortúnio dramático foi entendido como transgressão da medida.
Hêmon, por exemplo, passa pelo drama respeitar o decreto de seu pai, Creonte,
ou apoiar sua noiva Antígona, transgressora do decreto (Antígona, vv. 719-721). No
entanto, Creonte sabe que o filho deverá agir diante do drama, seja para o seu bem ou
seu mal (vv. 868-870).
Antígona sofre as conseqüências de sua ação: desrespeitando as novas leis da
cidade é condenada, e, com isso, fica impossibilidade dos ritos tradicionais, pois não
será esposa e mãe, assim como também não terá os ritos fúnebres (Antígona, vv. 903-
919; vv. 1005ss). Apesar de tantos outros exemplos deixados, o autor ressalta a
importância da medida, pela voz do coro, no final da peça (vv. 1485-1492).
E foi pelo mesmo coro que Sófocles dedicou um hino sobre a grandeza do
Homem, como que uma reflexão sobre a origem da cultura e da sociedade, isto é, o
Homem como criador das artes e dominador das forças da natureza e como elaborador
do direito como fundamento da estrutura do Estado (o maior bem):
Há muitas maravilhas, mas nenhuma é tão maravilhosa quanto o homem Ele atravessa, ousado, o mar grisalho [...] e exaure a terra eterna, infatigável, deusa suprema, abrindo-a com o arado em sua ida e volta, ano após ano, auxiliado pela espécie eqüina. Ele captura a grei das aves lépidas e as gerações dos animais selvagens: e prende a fauna dos profundos mares nas redes envolvente que produz, homem de engenho e arte inesgotáveis. [...] Soube aprender sozinho a usar a fala e o pensamento mais veloz que o vento e as leis que disciplinam as cidades, [...] e na argúcia, que o desvia às vezes para a maldade, às vezes para o bem, se é reverente às leis de sua terra e segue sempre os rumos da justiça jurada pelos deuses ele eleva à máxima grandeza sua pátria (Antígona, vv. 385-387; 391-399; 405-407; 418-423).
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Mas sem deixar sua ironia trágica, Sófocles ao mesmo tempo em que põe na voz
do coro as honras do direito e do Estado agrilhoa Antígona por descumprir a lei, para
salvar a honra de irmão, de estirpe nobre mas que se havia feito inimigo da pátria. Essa
tensão, tal como havia proposto Hegel, marca o trágico conflito entre a lei do Estado e o
direito familiar. O drama de Sófocles é drama dos movimentos da alma em meio a ações
humanas que, tragicamente, ao cumprir seu destino se realiza, não sem o conhecimento
consciente.
REFERÊNCIAS
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