A Tempestade 27 QUINZENA 1 e 2 28 ALEXANDRE...

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ALEXANDRE HERCULANO 27 28 ANO 2 QUINZENA 1 e 2 ABRIL 2008_09 ALEXANDRE HERCULANO de CARVALHO e ARAÚJO 1810- 1877 OBRA BE/CRE Escola Secundária Alexandre Herculano Muitas vezes, pela tarde, quando o sol, transpondo a baía de Cartéia, descia afogueado para a banda de Melária, dourando com os últimos esplendores os cimos da montanha piramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a flutuante estringe o presbítero Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados à beira- mar. Os pastores que o encontravam, voltando ao povoado, diziam que, ao passarem por ele e ao saudarem-no, nem sequer os escutava, que dos seus lábios semi-abertos e trêmulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas, semelhante ao ciciar da aragem pelas ramas da selva. Os que lhe espreitavam os passos, nestes largos passeios da tarde, viam-no chegar às raízes do Calpe, trepar aos precipícios, sumir- se entre os rochedos e aparecer, por fim, lá ao longe, imóvel sobre algum píncaro requeimado pelos sóis do estio e puído pelas tempestades do inverno. Ao lusco- fusco, as amplas pregas da estringe de Eurico, branquejando movediças à mercê do vento, eram o sinal de que ele estava lá; e, quando a lua subia às alturas do céu, esse alvejar de roupas trêmulas durava, quase sempre, até que o planeta da saudade se atufava nas águas do Estreito. Daí a poucas horas, os habitantes de Cartéia que se erguiam para os seus trabalhos rurais antes do alvorecer, olhando para o prebistério, viam, através dos vidros corados da solitária morada de Eurico, a luz da lâmpada noturna que esmorecia, desvanecendo-se na claridade matutina. Cada qual tecia então sua novela ajudado pelas crenças da superstição popular: artes criminosas, trato com o espírito mau, penitência de uma abominável vida passada, e, até, a loucura, tudo serviu sucessivamente para explicar o proceder misterioso do presbítero. O povo rude de Cartéia não podia entender esta vida de exceção, porque não percebia que a inteligência do poeta precisa de viver num mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites. Mas Eurico era como um anjo tutelar dos amargurados. Nunca a sua mão benéfica deixou de estender-se para o lugar onde a aflição se assentava; nunca os seus olhos recusaram lágrimas que se misturassem com lágrimas de alheias desventuras. Servo ou homem livre, liberto ou patrono, para ele todos eram filhos. Todas as condições se livelavam onde ele aparecia; porque, pai comum daqueles que a Providência lhe confiara, todos para ele eram irmãos. Sacerdote do Cristo, ensinado pelas largas horas de íntima agonia, esmagado o seu coração pela soberba dos homens, Eurico percebera, enfim, claramente que o cristianismo se resume em uma palavra - fraternidade. Sabia que o evangelho é um protesto, ditado por Deus para os séculos, contra as vãs distinções que a força e o orgulho radicaram neste mundo de lodo, de opressão e de sangue; sabia que a única nobreza é a dos corações e dos entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela. CAP III - O POETA, Eurico, o presbítero. 7ed. São Paulo: Ática, 1988 (Bom Livro) Qual é o Estado da Nossa Literatura? (Repositório Literário, 1-2) (1834); Poesia. Imitação – Belo – Unidade (Repositório Literário, 9-11) (1835); A Voz do Profeta (1ª série) (1836); A Voz do Profeta (2ª série); Crónica de El-Rei Sebastião (1837); A Harpa do Crente; O Fronteiro de África (1838); Da Escola Politécnica e do Colégio dos Nobres (1840); Cartas sobre a História de Portugal (Revista Universal Lisbonense); Uma Sentença sobre Bens e Reguengos (1842); O Bobo (n’O Panorama) (1843); O Pároco de Aldeia; Eurico, o Presbítero (1844); O Alcaide de Santarém; O Galego (Vida, Ditos e Feitos de Lázaro Tomé) (1845); História de Portugal (1º vol.) (1846); História de Portugal (2º vol.) (1847); O Monge de Cister (1848); História de Portugal (3º vol.) (1849); Eu e o Clero e Solemnia Verba; Poesias (1850); Lendas e Narrativas; A Ciência Arábico-académica (1851); História de Portugal (4º vol.) (1853); História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1º vol.) (1854); História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (2º vol.) (1855); Do Estado dos Arquivos Eclesiásticos do Reino; A Reacção Ultramontana em Portugal (1857); Do Estado das Classes Servas da Península; Ao Partido Liberal Português, a Associação Promotora da Educação do Sexo Feminino (1858); Análise da Sentença Nada no Juízo da 1ª Instância da Vila de Santarém; As Heranças e os Institutos Pios (1860); Estudos sobre o Casamento Civil (1866); Opúsculos (tomos I e II) (1873); Da Existência ou Não do Feudalismo em Portugal (1875); Opúsculos (tomo III) (1876); O Bobo (edição póstuma em volume) (1878). Sibila o vento: os torreões de nuvens Pesam nos densos ares: Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas Pela extensão dos mares: A imensa vaga ao longe vem correndo Em seu terror envolta; E, dentre as sombras, rápidas centelhas A tempestade solta. Do sol no ocaso um raio derradeiro, Que, apenas fulge, morre, Escapa à nuvem, que, apressada e espessa, Para apagá-lo corre. Tal nos afaga em sonhos a esperança, Ao despontar do dia, Mas, no acordar, lá vem a consciência Dizer que ela mentia! As ondas negro-azuis se conglobaram; Serras tornadas são, Contra as quais outras serras, que se arqueiam, Bater, partir-se vão. Ó tempestade! Eu te saúdo, ó nume Da natureza açoite! Tu guias os bulcões, do mar princesa, E é teu vestido a noite! Quando pelos pinhais, entre o granizo, Ao sussurrar das ramas, Vibrando sustos, pavorosa ruges E assolação derramas, Quem porfiar contigo, então, ousara De glória e poderio; Tu que fazes gemer pendido o cedro, Turbar-se o claro rio? Quem me dera ser tu, por balouçar-me Das nuvens nos castelos, E ver dos ferros meus, enfim, quebrados Os rebatidos elos. ................................................... .................................................. Ó morte, amiga morte! é sobre as vagas, Entre escarcéus erguidos, Que eu te invoco, pedindo-te feneçam Meus dias aborridos: Quebra duras prisões, que a natureza Lançou a esta alma ardente; Que ela possa voar, por entre os orbes, Aos pés do Omnipotente. Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem Desça, e estourando a esmague, E a grossa proa, dos tufões ludíbrio, Solta, sem rumo vague! Porém, não!... Dormir deixa os que me cercam O sono do existir; Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças Nas trevas do porvir. ................................................. ................................................... Um dia acordarão desses delírios, Que tão gratos lhes eram. E eu que velo na vida, e já não sonho Nem glória nem ventura; Eu, que esgotei tão cedo, até às fezes, O cálix da amargura: Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado De quanto há vil no mundo, Santas inspirações morrer sentindo Do coração no fundo, Sem achar no desterro uma harmonia De alma, que a minha entenda, Porque seguir, curvado ante a desgraça, Esta espinhosa senda? Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa Fragor da tempestade, Salmo de mortos, que retumba ao longe, Grito da eternidade!... Pensamento infernal! Fugir covarde Ante o destino iroso? Lançar-me, envolto em maldições celestes, No abismo tormentoso? Nunca! Deus pôs-se aqui para apurar-me Nas lágrimas da terra; Guardarei minha estância atribulada, Com meu desejo em guerra. O fiel guardador terá seu prémio, O seu repouso, enfim, E atalaiar o sol de um dia extremo Virá outro após mim. Herdarei o morrer! Como é suave Bênção de pai querido. Será o despertar, ver meu cadáver, Ver o grilhão partido. Um consolo, entretanto, resta ainda Ao pobre velador: Deus lhe deixou, nas trevas da existência, Doce amizade e amor. Tudo o mais é sepulcro branqueado Por embusteira mão; Tudo o mais vãos prazeres que só trazem Remorso ao coração. Passarei minha noite a luz tão meiga, Até o amanhecer; Até que suba à pátria do repouso, Onde não há morrer. A Harpa do Crente,LivroI A Tempestade

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BE/CREEscola Secundária Alexandre Herculano

Muitas vezes, pela tarde, quando o sol, transpondo a baía de Cartéia, desciaafogueado para a banda de Melária, dourando com os últimos esplendores os cimosda montanha piramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a flutuanteestringe o presbítero Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados à beira-mar. Os pastores que o encontravam, voltando ao povoado, diziam que, ao passarempor ele e ao saudarem-no, nem sequer os escutava, que dos seus lábios semi-abertose trêmulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas, semelhante ao ciciar daaragem pelas ramas da selva. Os que lhe espreitavam os passos, nestes largospasseios da tarde, viam-no chegar às raízes do Calpe, trepar aos precipícios, sumir-se entre os rochedos e aparecer, por fim, lá ao longe, imóvel sobre algum píncarorequeimado pelos sóis do estio e puído pelas tempestades do inverno. Ao lusco-fusco, as amplas pregas da estringe de Eurico, branquejando movediças à mercêdo vento, eram o sinal de que ele estava lá; e, quando a lua subia às alturas do céu,esse alvejar de roupas trêmulas durava, quase sempre, até que o planeta da saudadese atufava nas águas do Estreito. Daí a poucas horas, os habitantes de Cartéia quese erguiam para os seus trabalhos rurais antes do alvorecer, olhando para o prebistério,viam, através dos vidros corados da solitária morada de Eurico, a luz da lâmpadanoturna que esmorecia, desvanecendo-se na claridade matutina. Cada qual teciaentão sua novela ajudado pelas crenças da superstição popular: artes criminosas,trato com o espírito mau, penitência de uma abominável vida passada, e, até, aloucura, tudo serviu sucessivamente para explicar o proceder misterioso do presbítero.O povo rude de Cartéia não podia entender esta vida de exceção, porque nãopercebia que a inteligência do poeta precisa de viver num mundo mais amplo doque esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites. Mas Eurico era como um anjo tutelar dos amargurados. Nunca a sua mão benéficadeixou de estender-se para o lugar onde a aflição se assentava; nunca os seus olhosrecusaram lágrimas que se misturassem com lágrimas de alheias desventuras. Servoou homem livre, liberto ou patrono, para ele todos eram filhos. Todas as condiçõesse livelavam onde ele aparecia; porque, pai comum daqueles que a Providência lheconfiara, todos para ele eram irmãos. Sacerdote do Cristo, ensinado pelas largashoras de íntima agonia, esmagado o seu coração pela soberba dos homens, Euricopercebera, enfim, claramente que o cristianismo se resume em uma palavra -fraternidade. Sabia que o evangelho é um protesto, ditado por Deus para os séculos,contra as vãs distinções que a força e o orgulho radicaram neste mundo de lodo,de opressão e de sangue; sabia que a única nobreza é a dos corações e dosentendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essasuperioridade real é exteriormente humilde e singela.

CAP III - O POETA, Eurico, o presbítero.7ed. São Paulo: Ática, 1988 (Bom Livro)

Qual é o Estado da Nossa Literatura? (Repositório Literário, 1-2) (1834); Poesia. Imitação – Belo– Unidade (Repositório Literário, 9-11) (1835); A Voz do Profeta (1ª série) (1836); A Voz do Profeta(2ª série); Crónica de El-Rei Sebastião (1837); A Harpa do Crente; O Fronteiro de África (1838);Da Escola Politécnica e do Colégio dos Nobres (1840); Cartas sobre a História de Portugal (RevistaUniversal Lisbonense); Uma Sentença sobre Bens e Reguengos (1842); O Bobo (n’O Panorama)(1843); O Pároco de Aldeia; Eurico, o Presbítero (1844); O Alcaide de Santarém; O Galego (Vida,Ditos e Feitos de Lázaro Tomé) (1845); História de Portugal (1º vol.) (1846); História de Portugal(2º vol.) (1847); O Monge de Cister (1848); História de Portugal (3º vol.) (1849); Eu e o Clero eSolemnia Verba; Poesias (1850); Lendas e Narrativas; A Ciência Arábico-académica (1851); Históriade Portugal (4º vol.) (1853); História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal(1º vol.) (1854); História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (2º vol.) (1855);Do Estado dos Arquivos Eclesiásticos do Reino; A Reacção Ultramontana em Portugal (1857); DoEstado das Classes Servas da Península; Ao Partido Liberal Português, a Associação Promotorada Educação do Sexo Feminino (1858); Análise da Sentença Nada no Juízo da 1ª Instância da Vilade Santarém; As Heranças e os Institutos Pios (1860); Estudos sobre o Casamento Civil (1866);Opúsculos (tomos I e II) (1873); Da Existência ou Não do Feudalismo em Portugal (1875); Opúsculos(tomo III) (1876); O Bobo (edição póstuma em volume) (1878).

Sibila o vento: os torreões de nuvens Pesam nos densos ares:Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas Pela extensão dos mares:A imensa vaga ao longe vem correndo Em seu terror envolta;E, dentre as sombras, rápidas centelhas A tempestade solta.Do sol no ocaso um raio derradeiro, Que, apenas fulge, morre,Escapa à nuvem, que, apressada e espessa, Para apagá-lo corre.Tal nos afaga em sonhos a esperança, Ao despontar do dia,Mas, no acordar, lá vem a consciência Dizer que ela mentia!

As ondas negro-azuis se conglobaram; Serras tornadas são,Contra as quais outras serras, que se arqueiam, Bater, partir-se vão.Ó tempestade! Eu te saúdo, ó nume Da natureza açoite!Tu guias os bulcões, do mar princesa, E é teu vestido a noite!Quando pelos pinhais, entre o granizo, Ao sussurrar das ramas,Vibrando sustos, pavorosa ruges E assolação derramas,Quem porfiar contigo, então, ousara De glória e poderio;Tu que fazes gemer pendido o cedro, Turbar-se o claro rio?

Quem me dera ser tu, por balouçar-me Das nuvens nos castelos,E ver dos ferros meus, enfim, quebrados Os rebatidos elos......................................................................................................Ó morte, amiga morte! é sobre as vagas, Entre escarcéus erguidos,Que eu te invoco, pedindo-te feneçam Meus dias aborridos:Quebra duras prisões, que a natureza Lançou a esta alma ardente;Que ela possa voar, por entre os orbes, Aos pés do Omnipotente.Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem Desça, e estourando a esmague,E a grossa proa, dos tufões ludíbrio, Solta, sem rumo vague!

Porém, não!... Dormir deixa os que me cercam O sono do existir;Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças Nas trevas do porvir.....................................................................................................Um dia acordarão desses delírios, Que tão gratos lhes eram.E eu que velo na vida, e já não sonho Nem glória nem ventura;Eu, que esgotei tão cedo, até às fezes, O cálix da amargura:Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado De quanto há vil no mundo,Santas inspirações morrer sentindo Do coração no fundo,Sem achar no desterro uma harmonia De alma, que a minha entenda,Porque seguir, curvado ante a desgraça, Esta espinhosa senda?Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa Fragor da tempestade,Salmo de mortos, que retumba ao longe, Grito da eternidade!...

Pensamento infernal! Fugir covarde Ante o destino iroso?Lançar-me, envolto em maldições celestes, No abismo tormentoso?Nunca! Deus pôs-se aqui para apurar-me Nas lágrimas da terra;Guardarei minha estância atr ibulada, Com meu desejo em guerra.O fiel guardador terá seu prémio, O seu repouso, enfim,E atalaiar o sol de um dia extremo Virá outro após mim.Herdarei o morrer! Como é suave Bênção de pai querido.Será o despertar, ver meu cadáver, Ver o grilhão partido.

Um consolo, entretanto, resta ainda Ao pobre velador:Deus lhe deixou, nas trevas da existência, Doce amizade e amor.Tudo o mais é sepulcro branqueado Por embusteira mão;Tudo o mais vãos prazeres que só trazem Remorso ao coração.Passarei minha noite a luz tão meiga, Até o amanhecer;Até que suba à pátria do repouso, Onde não há morrer. A Harpa do Crente,LivroI

A Tempestade

BIOGRAFIANascido em 28 de Março de 1810, Alexandre Herculano estudaHumanidades no colégio dos Oratorianos com vista à matrícula naUniversidade, mas a cegueira do pai força-o a abdicar desse projectoe a limitar-se a um curso prático de Comércio, estudos de Diplomática(Paleografia) e de Línguas. Desde muito jovem que a sua vocação paraas letras se manifesta: lê e traduz escritores românticos estrangeiros,como Schiller, Klopstock, ou Chateaubriand, escreve poesia, conheceCastilho e frequenta os salões da Marquesa de Alorna.Em 1831, depois do envolvimento na conspiração de 21 de Agosto contrao regime absolutista de D. Miguel, exila-se primeiro em Inglaterra edepois em França. Aqui, e mais concretamente na biblioteca de Rennes,Herculano dedica-se ao estudo e inicia-se em Thierry, Guizot, Victor

Hugo e Lamennais, autores que influenciarão profundamente a sua obra.Em 1832, chega à ilha Terceira, nos Açores, integrado na expedição liberal liderada porD. Pedro e responsável pelo cerco do Porto. Nesta cidade, e depois da vitória liberal, énomeado, em 1833, segundo bibliotecário da Biblioteca Pública e procede à sua organização.Colabora no Repositório Literário (1834-1835) com vários artigos, dos quais se destacamdois que podem ser vistos como uma primeira teorização portuguesa do Romantismo. Oprimeiro, “Qual é o estado da nossa literatura? Qual o trilho que ela hoje deve seguir?”,apresenta um diagnóstico da literatura portuguesa e avança uma solução para o seu estadode decadência: o conhecimento das literaturas estrangeiras, principalmente da alemã,uma das primeiras em que o Romantismo se implantou. No outro texto, “Poesia – Imitação– Belo - Unidade”, Herculano sublinha a necessidade de a literatura portuguesa se voltarpara as suas origens e traduz uma consciência nacional e moral que limita a visão daestética romântica europeia, condenando a “imoralidade” e a “irreligião” que, em suaopinião, Byron representava. Esta consciência nacional e moral está presente desde o inícioda sua poesia, através de um paralelismo estabelecido entre religião e pátria, espécie deprofissão de fé do poeta romântico, que Herculano integrou numa visão liberal da sociedade,visível, por exemplo, em “A Semana Santa” (1829).Em 1836, vem a público a primeira série de A Voz do Profeta (2ª série, 1837), folheto decarácter panfletário contra a Revolução de Setembro, escrito no estilo grandiloquente deParoles d’un Croyant de Lamennais. No ano seguinte, funda e dirige O Panorama, revistaliterária responsável pela divulgação da estética romântica, na qual Herculano publicaestudos eruditos e as suas primeiras narrativas históricas.Em 1838, publica A Harpa do Crente, colecção das poesias mais importantes, reeditada em1850 com traduções/versões de Béranger (“O Canto do Cossaco”), Bürger (“O CaçadorFeroz”, “Leonor”), Delavigne (“O Cão do Louvre”),Ê Lamartine (“A Costureira e o PintassilgoMorto”) e uma balada fantasmagórica ao gosto inglês (“A Noiva do Sepulcro”). As poesiasdesta colectânea apresentam reflexões sobre a morte, Deus, a liberdade, o contraste entreo inexorável fluir da vida humana e a permanência do infinito. Normalmente, estasmeditações têm por testemunha uma paisagem, que impõe o sentimento da solidão e dainfinitude, e traduz uma marcada oposição entre a cidade e o campo (por exemplo, “AArrábida”). Está também presente um conjunto de poemas que se referem à guerra civile ao exílio, testemunhos poéticos da instauração do liberalismo e da saudade do desterrado.Herculano tenta também dar voz à contemporaneidade através da poesia, à semelhançade Victor Hugo, atribuindo-lhe uma função pública, doutrinária e intervencionista e tratandotemas de interesse político, social e religioso (“A Semana Santa”, “A Cruz Mutilada”; “OMosteiro Deserto”; “A Vitória e a Piedade”, por exemplo). A nível formal, a poesia deHerculano apresenta uma retórica solene, com insistência num vocabulário evocativo do“belo horrível”, apocalíptico e sepulcral, longos eufemismos e alguns recursos clássicoscomo o hipérbato. A sua imaginação manifesta-se em paisagens marcadas por tempestadesou ruínas e na sugestão dos mistérios da religião e da morte. Estes traços predominantes,com especial relevo para as imagens funéreas de efeito fácil e sem grande conteúdoconceptual, estarão na base do Ultra-Romantismo, e serão também postos em prática nasnarrativas históricas, especialmente em Eurico, o Presbítero.

Estas constituem o ponto de partida para a História de Portugal, cujo primeiro volume saiem 1846 (os três seguintes em 1847, 1849 e 1853) e origina uma acesa polémica com o cleroporque nele é posto em causa o “milagre de Ourique”; os textos desta polémica estãoreunidos nos opúsculos Eu e o Clero e Solemnia Verba, publicados em 1850. É encarregadopela Academia Real das Ciências de recolher documentos antigos para a colectânea PortugaliaeMonumenta Historica e, por isso, percorre várias regiões do país. Dessas viagens nasce Cenasde um Ano da Minha Vida e Apontamentos de Viagem (1853-1854). O contacto directo coma realidade nacional reforça a sua convicção de que o país necessitava de reformas a váriosníveis: educativo, administrativo e económico.Em termos políticos, Herculano identifica-se com a ala esquerda do Partido Cartista. É eleitodeputado pelo Porto em 1840, mas, após ter apresentado um plano de ensino popular quenão chega a ser posto em prática, desilude-se com a actividade parlamentar e abandonao cargo em 1841. Adere, então, à moderada Constituição de 1838, desaprova a restauraçãoda Carta por Costa Cabral e dedica-se à literatura e à pesquisa. Mais tarde, depois do golpeda Regeneração, o escritor abandona a neutralidade política e colabora na formação donovo governo. No entanto, acaba por se opor ao ministério de Rodrigo da Fonseca Magalhãese Fontes Pereira de Melo. Funda os jornais O País (1851) e O Português (1853), onde põeem prática uma intensa actividade polémica contra o progresso meramente materialpreconizado pelo referido ministério. Entre 1854 e 1859, publica os três volumes de Históriada Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal. É um dos fundadores do PartidoProgressista Histórico, em 1856. No ano seguinte, ataca vigorosamente a Concordata coma Santa Sé. Participa na redacção do primeiro Código Civil Português (1860-1865), tendoproposto a introdução do casamento civil a par do religioso, o que originou uma novapolémica com o clero, que se pode ler no volume Estudos sobre o Casamento Civil (1866),logo colocado no Index romano. Desiludido com a vida política, retira-se para uma quintaem Vale de Lobos, arredores de Santarém, em 1867, comprada com o dinheiro ganho coma publicação dos seus livros. Aí dedica-se à vida agrícola e à produção de azeite, juntamentecom D. Mariana Hermínia Meira, namorada da juventude, com quem casara em 1866, e queesperara pela realização da sua carreira literária. Neste seu exílio voluntário, Herculanocontinua a trabalhar nos Portugaliae Monumenta Historica, publica o primeiro volume dosOpúsculos (1872), intervém em polémicas, como a nascida da proibição das Conferênciasdo Casino (1871) e a respeitante à emigração (1874), reúne os materiais para o quintovolume da História de Portugal e mantém uma abundante correspondência com personalidadesliterárias e políticas. Morre de pneumonia, depois de uma viagem a Lisboa, em 13 deSetembro de 1877.Poeta, jornalista, político, polemista e historiador, é todavia como romancista que Herculanoserá mais lembrado pelas gerações vindouras. As suas narrativas históricas assinalam onascimento de um novo género na literatura portuguesa - o romance histórico -, no qualo autor pode pôr em prática as qualidades de investigador do passado, principalmente daIdade Média, e os seus propósitos pedagógicos.Em 24 de Março de 1838, publica n’ O Panorama a primeira narrativa histórica, O Castelode Faria, e em Novembro Mestre Gil. Estas e outras composições, publicadas também n’A Ilustração, foram reunidas em dois volumes em 1851, sob o título de Lendas e Narrativas.Os romances O Bobo (vindo a público n’ O Panorama em 1843 e editado em volume em1878), Eurico, o Presbítero (1844) e O Monge de Cister (1848), escritos à semelhança dasobras do escocês Walter Scott, considerado por Herculano como “modelo e desesperaçãode todos os romancistas”, alcançaram um sucesso imediato e desencadearam uma ondade imitações que transformou o romance histórico em moda literária nacional em meadosde oitocentos.Com O Pároco de Aldeia, publicado n’ O Panorama em 1844 e em volume em 1851, Herculanocria o romance campesino, que servirá de modelo a Júlio Dinis, e apresenta como protagonistaa figura do padre bondoso, protector dos fracos e amado pelas crianças. Nesta obra,apresenta-se um retrato da vida rural marcado pela serenidade, e cujo ritmo é estabelecidopelo toque do sino e pelos rituais da igreja. Faz-se, assim, a apologia da superioridade doCatolicismo face ao Protestantismo, graças aos rituais e símbolos visíveis que guiam a crençapopular e contribuem para a manutenção da moralidade pública.Herculano herói do Liberalismo, guardião da moral e promotor da ideologia românticanacional, é indubitavelmente, ao lado de Almeida Garrett, a figura fundadora do Romantismoportuguês e a personalidade que de forma mais completa o representa.

Em 1839, é nomeado por D. Fernando bibliotecário-mor das Reais Bibliotecas das Necessidadese da Ajuda. Nesta altura, entrega-se a um sistemático trabalho de pesquisa, influenciadopelos historiadores franceses Thierry e Guizot, de que resulta a publicação, em 1842, naRevista Universal Lisbonense, das “Cartas sobre a História de Portugal”.