A Suma de Andre Bazin - Eric Rohmer

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    A “SUMA” DE ANDRÉ BAZIN

    Eric Rohmer

    Este artigo, eu tinha previamente alegria em escrevê-lo, longe de suspeitar queele deveria aparecer em tal circunstância. A publicação do primeiro volume deQu’est-ce que le cinéma?iria não somente me permitir saldar uma imensa dívida dereconhecimento ao meu mestre e amigo, mas assinalar um fato da história do cinemanão menos importante que a estreia de tal filme ou o desenvolvimento de tal procedimento técnico. Eu esperava poder explicar ou desculpar o pouco cuidado quetínhamos nosCahiers , apesar das objurgações de Bazin, em relação à resenha de livros.

    Ao aparecimento de cada nova obra – e elas foram numerosas nesses últimos tempos -,me era possível constatar, com amargura, por mais honesta ou inteligente que fosse, queela trazia ao edifício da teoria do cinema uma nova pedra, mas quase inútil, uma vez quefaltava o vigamento. As naves laterais e as capelas anexas de uma Estética em plenaconstrução dominavam as vitrines das livrarias, enquanto que os planos da nave centralainda não haviam encontrado outro confidente que o papel jornal! Publicavam-se obrasque seriam ilegíveis em dois ou três anos, se elas já não o fossem no momento de suaaparição, e aquele, que nos soube fazer da meditação sobre o cinema algo tão cativantequanto a leitura de um romance, tinha assinado somente dois livros – e, mesmo assim, em colaboração! Um estreante dava a suma de suas reflexões enquanto que o pensamento do maior crítico atual permanecia sendo revirado em um emaranhado desemanários, revistas e folhetos.

    Então, esse livro iria constituir o pórtico introdutório da obra futura de AndréBazin, que não seria mais aquela do jornalista, ainda que exemplar, mas antes a de umescritor. Eis que, a este vestíbulo, nos é agora forçoso considerá-lo como o todo da obra,em contemplá-lo como uma “suma” lá onde ainda queríamos apenas discernir como promessas! Nós nos apressamos a saudar um início, um nascimento, e eis que nos é preciso celebrar uma morte. Mas convém falar de morte, agora não mais do homem,mas da obra. Eu sei que o que temos em nossas mãos é apenas um breve fragmentodaquilo que ousamos esperar. E, no entanto, para além de toda a nossa tristeza, de todosos nossos lamentos, teríamos, pelo menos, a consolação de que os textos deixados porBazin nos parecem ser, graças a esse olhar retrospectivo, mais importantes, mais

    acabados do que julgávamos, quando estava vivo. Enquanto leio o primeiro volume e as

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    totalmente convencido de que seus perigos, sem cessar roçados, foram sempre evitadosnos momentos maiores. É possível que não se esteja de acordo com Bazin, quando ele julga tal ou qual filme. Ninguém pode se lisonjear de fazer abstração de seus gostos pessoais: ele, que era o inverso de um teórico seco, jamais dissimulou os seus próprios,como tampouco deixou nas sombras as suas convicções filosóficas ou políticas. O queexiste de raro em Bazin é que os princípios diretores de seus juízos jamais seconcordaram, custe o que custar, com ideias germinadas em outra região da estética: elesempre as tirava de sua própria reflexão sobre o cinema. E isso dá força às suasconclusões e à sua perenidade. Assim, por exemplo, ele sempre teve o cuidado dedistinguir o realismo de fato e a doutrina. Se ele defende, digamos, Wyler contra Fordnão é para retomar à sua conta o grito de guerra de Roger Leenhardt, mas, para melhoraprofundar seu conhecimento da linguagem cinematográfica. Seu estudo sobre o“jansenista damise en scène” não perdeu nada de seu valor, nem mesmo a suaatualidade: é a obra de um historiador, não um manifesto. Diante da serenidadefundamental de Bazin, todo o resto é apenas polêmica: nossos artigos e todas as nossasobras, certamente, as de seus contemporâneos e dos discípulos, mas também as dosgrandes teóricos de antes da guerra (incluindo aquelas de Balázs), demasiadamenteocupadas em propor uma nova poética de Aristóteles, para saber remontar até as

    evidências primeiras.E, depois, o procedimento indutivo não apresenta riscos ainda maiores? Induzir

    uma lei do exemplo é tomar do domínio da arte ou da história uma opção temeráriasobre o futuro. É querer definir o cinema, unicamente, por isso que ele foi. É recusar, por exemplo, a palavra ou a cor sob o pretexto de que o cinema foi, durante certo tempo,mudo ou em preto e branco. Antes de Bazin, a teoria de cinema se propôs para si comomodelo, apenas aquele das ciências experimentais e, pela deficiência de poder atingir o

    rigor, permaneceu empírica. Ela constatava a existência de alguns fatos – sobretudo procedimentos de linguagem, como o primeiro plano e a montagem – sem poderfornecer a eles o por quê. Bazin introduziu uma nova dimensão,metafísica (podemosempregar o termo, uma vez que ele mesmo o faz, se guardando de se pôr como filósofo)ou se preferir fenomenológica. A influência de Sartre2, nos disse ele, foi determinante

    2 A influência de Malraux, também. Nesse aspecto, Bazin emprega menos o método do que algumasideias. Mas é na medida em que justamente o célebre artigo da [revista]Verve faz o ponto de toda areflexão crítica precedente. O estudo sobre a “Ontologia da imagem fotográfica ” é menos o “durante” doque a antítese. Uma nova era dialética da teoria do cinema começa.

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    em sua carreira: admiramos a independência que o discípulo pôde, em seguida, tomarem relação ao mestre.

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    Uma das provas da perfeição desta construção é a felicidade com que Bazinsoube formular os axiomas de base. Tudo está contido, senão dito, em uma frase, umavez que ela irá permitir dizer tudo. Ela encerra a definição do cinema, mas de modo quea linha reta contém, em germe, as de plano e de espaço. Sem dúvida, não se pode irmuito longe em “compreensão”, mas a extensão do conceito vai doravante nos aparentarinfinita:“...o cinema vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica”.Por essa pequena, essa modesta frase, Bazin faz no domínio da teoria do cinema a suarevolução copernicana. Antes dele, era o diametralmente contrário, era sobre asubjetividade da “Sétima Arte” que se tinha desejado pôr o acento. Tinha-se em geral oseguinte raciocínio: “O cinema é uma arte? Quem diz arte, diz interpretação:amontoemos, então, as provas de infidelidade, coloquemos a luz sobre os traços daintervenção do artista”. Etapa útil, necessária da reflexão, mas que nos mascaroudurante muito tempo oser de uma arte, da qual desconhecíamos a originalidade, aoquerer discerni-la com analogias às outras. O que importa para Bazin não é em quê o

    cinema se parece com a pintura, mas em quê ele se difere dela. Como a fotografia, ocinema é filho da mecânica: “Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a suarepresentação nada se interpõe, a não ser outro objeto. Pela primeira vez, uma imagemdo mundo exterior se forma automaticamente, sem a intervenção criadora do homem,segundo um rigoroso determinismo. (...) Todas as artes se fundam sobre a presença dohomem; unicamente na fotografia é que fruímos de sua ausência.”

    Sabe-se como, desde os últimos treze anos, se verificou a extraordinária

    fecundidade desse ponto de partida. Sob esse foco, tudo tomará uma cor nova e camposde investigação ignorados serão trazidos à luz. Os capítulos seguintes não são a paráfrase do primeiro, nem variações sobre um tema comum, nem mesmo as aplicações particulares de uma lei geral. À semelhança de um explorador, Bazin se entrega a umaverdadeira prospecção ao interior doser do cinema. Ele possui o fio que o guiará aolongo de todo o labirinto, mas ele não conhece previamente as riquezas que o esperame, assim, nós as descobriremos com o mesmo deslumbramento que ele próprio. Eu

    tomo, dos capítulos seguintes, algumas frases que fazem sentir, simultaneamente, aunidade e a extrema diversidade de seu propósito:

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    O mito diretor da invenção do cinema é, portanto, a realização daquele que dominaconfusamente todas as técnicas de reprodução mecânica da realidade que apareceramno século XIX, da fotografia ao fonógrafo. É o mito do realismo integral, de umarecriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipotecada liberdade de interpretação do artista, nem a irreversibilidade do tempo. Se em suaorigem, o cinema não teve todos os atributos do cinema total de amanhã, foi, portanto,a contragosto e, unicamente, porque suas fadas madrinhas eram tecnicamenteimpotentes para dotá-lo de tais atributos, embora fosse o que desejassem..............................................................................................................................................O fantástico no cinema é permitido somente pelo realismo da imagem fotográfica. É elaque nos impõe a presença da inverossimilhança, que o introduz no universo das coisasvisíveis..............................................................................................................................................Graças ao cinema, o mundo realiza uma astuciosa economia no orçamento de suasguerras, já que estas têm duas finalidades: a história e o cinema, como esses produtores pouco conscienciosos que filmam um segundo filme nos cenários

    dispendiosos demais do primeiro. No caso, o mundo tem razão. A guerra, com seusamontoados de cadáveres, suas imensas destruições, suas inumeráveis migrações, seuscampos de concentração, suas bombas atômicas, deixa para trás a arte da imaginaçãoque pretendia reconstruí-la..............................................................................................................................................É esse o milagre do filme científico, seu inesgotável paradoxo. É no limite extremo dainvestigação interessada, utilitária, na proscrição absoluta das intenções estéticas

    como tais, que a beleza cinematográfica se desenvolve como que sobre acréscimo,como uma graça natural... A câmera, sozinha, possuiria um sésamo desse universo,onde a suprema beleza se identifica inteira e simultaneamente com a natureza e oacaso: ou seja, tudo aquilo que uma certa estética tradicional considera como ocontrário da arte.............................................................................................................................................. De tal modo que o cinema, em si mesmo, o transforma, endurecido e como já

    fossilizado pela brancura ossificada da película ortocromática, um mundo passadoretorna até nós, mais real do que nós próprios e, por isso mesmo, fantástico. Proust

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    reencontrava a recompensa do Tempo retomado na alegria inefável de ser tragado emsua lembrança. Aqui, pelo contrário, a alegria estética nasce de um dilaceramento, poisessas “lembranças” não nos pertencem. Elas realizam o paradoxo de um passadoexterior à nossa consciência.............................................................................................................................................. A representação da morte real também é uma obscenidade, não mais moral, como noamor, mas metafísico. Não se morre duas vezes. A fotografia não tem nesse ponto o poder do filme, não pode representar mais que um moribundo ou um cadáver, jamais a passagem inapreensível de um a outro.

    Pode-se ver nessas citações como Bazin é conduzido a descobrir para nós ummundo inteiro de relações novas entre a obra de arte e a natureza. O cinema abole adistância tradicional entre a realidade e sua representação. O modelo está integrado àobra, de tal maneira, que é a obra. É ela que nós julgamos ao mesmo tempo que omodelo e vice-versa. Se o filmeO mundo silencioso nos permite admirar as profundezassubmarinas, são elas mesmas que emprestam, não somente sua própria beleza, mas seuvalor de obra de arte.

    Isso acontece ainda que o modelo possa ser afetado por um coeficiente de

    realidade menor que o filme que o reproduz. Esses casos limites, abordados nos textosO mito de Stálin no cinema soviético e Pastiche e postiço ou o nada por um bigode(Hitler e Carlitos), foram o objeto de um cuidado muito particular. E sobre esse ponto,Bazin é inimitável. Esse crítico, sério entre os sérios, soube, na ocasião, manifestar umaverve e uma fantasia que não alteravam em nada a profundidade de seus discernimentos.Aliás, não é apenas nesses momentos que se pode admirar o humor de Bazin. Para dizera verdade, ele está em toda parte, não tanto em certas mudanças bruscas de assunto ou

    gracejos (“Kon-Tiki é o mais belo dos filmes, mas ele não existe!”) quanto na própriaapreensão dos problemas. É menos uma atitude de estilo que de pensamento. Averdadeira natureza do cinema é contraditória. Não se pode penetrar em seu templo senão pela porta do paradoxo, ou seja, do humor. Esse humor é como uma marcasuplementar de respeito.

    Lemos na conclusão do primeiro capítulo: “Por outro lado, o cinema é umalinguagem”. Se Bazin fez surgir do nada a reflexão ontológica sobre o cinema, ele não é

    o primeiro gramático desta arte. O próprio termo linguagem aparece desde 1918 sob a pluma de Victor Perrot ou de Canudo. Foi, antes de mais nada, sobre os problemas da

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    expressão que se penderam Delluc, Eisenstein, Pudovkin, Arnheim, Malraux e poderia parecer que sobre este capítulo não restaria mais grande coisa a dizer. Porém, o estudoda sintaxe tinha sido efetuado apenas em detrimento aos estudos das contribuições que aarte do cinema nutre com a realidade. Rico em descobertas que ele fez sobre essedomínio, Bazin saberá dar às investigações sobre a linguagem uma orientaçãointeiramente nova. Assim, em Montagem proibida, estudo sobreO balão vermelho e osfilmes de animais, Bazin não examinará o procedimento sob o ângulo somente darelação das imagens entre si, mas da relação delas com o real: isso, que é permitido parao filme de ficção, não o é no documentário. As regras sintáticas variam segundo aaplicação que é feita delas. Elas perdem seu caráter absoluto.

    E depois, a linguagem evolui. Inútil insistir sobre esse ponto. O próprio Bazindeve o seu grande renome ao fato de ter sido o campeão de uma nova estética, aquela da“profundidade de campo”. Eis aqui, eu já o disse, deformar a verdade. André Bazin não pode ser baixado ao nível de advogado da causa, mesmo a mais justa. A evolução dalinguagem é para ele um fato ao mesmo título que, por exemplo, a grandeza do gênerodocumentário. Em toda imparcialidade, ele entende dar conta tanto da profundidade decampo quanto da grandeza do documentário. É por isso, afirmamos novamente, que permanece ainda válido o seu estudo sobre Wyler, que não empreenderia relê-lo sem

    nenhum temor. É certo que não se saberia explicar a evolução do estilo cinematográficodesde 1949 somente pela profundidade de campo e pelo amor ao plano fixo. Masvoltemos às fontes, ou seja, ao texto. Não façamos Bazin dizer o que ele próprio jamaisdisse. Constatamos que todas as emendas que os outros acreditaram contribuir à suateoria, já tinham sido formuladas por ele, que a famosa profundidade de campo jamaisfoi considerada se não como um signo de uma certa marcha em direção à objetividade,que nunca foi renegada por obras posteriores nem por técnicas novas, começando pelo

    “cinemascope”. O penúltimo capítulo, A evolução da linguagem cinematográfica, produto de três artigos, é digno de satisfazer aos mais exigentes, de tanto que estaexposição de quatorze páginas é simultaneamente densa e nuançada. Gosta-se de louvaro talento analista de Bazin. Eu creio que demorará muito tempo para que outro possanos oferecer uma visão sintética tão clara, tão sedutora, tão dificilmente atacável.Testemunhemos algumas linhas que tomo emprestado da conclusão: “Sem dúvida, foisobretudo com a tendência Stroheim-Murnau, quase totalmente eclipsada de 1930 a

    1940, que o cinema reatou mais ou menos conscientemente, durante os últimos dezanos. Mas ele não limita a prolongá-la, busca também ali o segredo de uma regeneração

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    realista da narrativa; que se torna novamente capaz de integrar o tempo real das coisas, aduração do evento ao qual a decupagem clássica substituía insidiosamente um tempointelectual e abstrato. Longe, porém, de eliminar em definitivo as conquistas damontagem, ele lhes dá, ao contrário, uma relatividade e um sentido. É apenas emrelação a um maior realismo da imagem que um suplemento de abstração torna-se possível. O repertório estilístico de um diretor como Hitchcock, por exemplo, estende-sedos poderes do documento bruto às superposições e aos grandes closes. Mas os closesde Hitchcock não são os de Cecil B. DeMille emEnganar e perdoar . São, apenas, umafigura de estilo entre outras.”

    ***

    Essas reflexões me são inspiradas apenas por uma pequena parte da obra deBazin. É graças a ela, sem dúvida alguma, e já que ele assim o quis, que convémabordá-la, assim como eu pude me convencer disso pela leitura das provas do segundovolume – atualmente no prelo – consagrado às relações do cinema com as outras artes,que não deve em nada ao primeiro, tanto pelo valor de cada capítulo quanto pela coesãodo conjunto. Meu projeto inicial era fazer uma apresentação de toda a obra de Bazinmas, por mais familiar que ela me seja, eu rapidamente renunciei conduzir a bom termo,

    por um tempo, esse empreendimento.3 Não é que a referida obra seja tão diversa e que, por isso se tivesse dificuldade de aí encontrar um fio condutor, mas antes porque oslaços entre as diferentes partes são tão fortes, tão necessários, que se pode temer em propô-los mais relaxados e contingentes, para assim fazer apreender as grandes linhas.Que me desculpem se a minha resenha está tingida de subjetividade, se eu proponhouma certa interpretação em detrimento de outras inteiramente legítimas. O que eugostaria de mostrar é, sobretudo, que esse espírito, ao qual ninguém nega espantosas

    faculdades de análise, possui, como eu o indicava antes, não menos admiráveis dons desíntese. Meu colega polonês Jerzy Plazewsky lamenta que Bazin não tenha podido nosdar a sua “Suma”. Nós também o lamentamos e esse lamento pode, no mesmomomento, tornar ainda mais cruel o nosso luto. Porém, eis que, com a nossa pena, pelomenos uma consolação: esta Suma, nós a temos graças à simples adição das diferentes partes da obra, todas também homogêneas e tão irrefutáveis como os seres matemáticos.

    3 Eu tive que deixar inteiramente na sombra toda uma seção, no entanto grande: a “sociologia do cinema”.

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    Eu não acredito que as célebres obras de Eisenstein, Balázs, Arnheim possam disputarcom ela em rigor e em coerência.

    Como todos os problemas de linguagem, falava-se frequentemente, antes deBazin, das relações do cinema com as outras artes, mas a sua verdadeira natureza tinhasido desconhecida pelo fato de que, como dito anteriormente, colocava-se o problemaao contrário. Partia-se de uma determinada concepção da arte, pela qual se desejavafazer entrar o cinema, mesmo quando se dedicava a extrair algumas de suascaracterísticas certamente específicas, mas secundárias. Bazin, ao contrário, faz tábularasa de todas as ideias recebidas; ele propõe uma mudança radical de perspectiva. A prova da fecundidade desse novo ponto de vista é que ele ilumina não somente a arte docinema, mas também, por consequência, as outras. Bazin, com sua modéstia costumeira,não pretende invadir um domínio que não é o seu, mas as viradas de sua pesquisadescobrem, como que à revelia do autor, subitamente, preciosas visões sobre a naturezaou a evolução do romance, do teatro, da pintura. Não, para ele, não se trata de fazer aexposição de sua cultura, de utilizar a ajuda capciosa do raciocínio por analogia: porqueé indubitável que, se o conhecimento das outras artes pôde e pode lançar clarões úteissobre a natureza do cinema, a recíproca é não menos verdadeira, e que uma exploraçãotão aprofundada quanto a de Bazin, mesmo que confinada em uma estreita

    especialidade, não poderia ser feita sem acarretar descobertas sobre a natureza e o devirda arte como um todo. Algumas citações escolhidas ao acaso me dispensam umcomentário mais amplo:

    (...) o sucesso e a eficácia de um Mounet-Sully se devia, sem dúvida, a seu talento, masauxiliado pelo assentimento cúmplice do público. Era o fenômeno do “monstrosagrado”, que hoje foi quase totalmente desviado para o cinema. Dizer que os

    concursos do Conservatório não produzem mais atores trágicos não significa de modoalgum que não nasça mais nenhuma Sarah Bernhardt, e sim, que o acordo entre aépoca e seus dons já não existe. Assim, Voltaire se esfalfava para plagiar a tragédia doséculo XVII, pois acreditava que era apenas Racine quem estava morto, quando naverdade era a tragédia..............................................................................................................................................(...) a moldura constitui uma zona de desorientação do espaço: ao da natureza e de

    nossa experiência ativa que marca seus limites externos, ela opõe o espaço orientadodo lado de dentro, o espaço contemplativo e aberto apenas para o interior do quadro.

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    .............................................................................................................................................O queO mistério de Picasso revela não é o que já se sabe, a duração da criação, masque essa duração pode ser parte integrante da própria obra, uma dimensãosuplementar, tolamente ignorada na fase de acabamento. (...)(...) Aliás, essa temporalidade da pintura manifestou-se desde sempre de modo larvado,notadamente nos carnês de esboços, nos “estudos” e nos “estados” dos gravadores, por exemplo. Ela se revelou, porém, ser uma virtualidade mais exigente na pinturamoderna. Será que Matisse, quando pinta várias vezesFemme à la blouse roumaine , fazalgo que não seja manifestar no espaço, isto é, num tempo sugerido, como se faria comum jogo de cartas, sua invenção criadora?

    Uma das contribuições não menos originais de Bazin é a denúncia que ele faz,ao longo de todo o seu livro, das características “específicas” pelas quais se pretendia,antes dele, definir o cinema. Ele defende pela arte que ama, mas sem lhe forjar falsasvirtudes, recusando se deixar seduzir por uma certa originalidade de superfície a fim demelhor discernir a verdadeira. Ele não tenta elidir os problemas mais perigosos dosquais nós, os demais críticos, fornecemos em geral apenas uma solução fragmentária e

    válida somente pela circunstância, por falta de ter encontrado a resposta-chave. Essaque, da minha parte, eu me desesperava em descobrir, e a encontro no desvio do primeiro capítulo consagrado à “defesa do cinema impuro”. Sabe-se que André Bazinsempre concedeu uma importância extrema ao problema da adaptação. Isso é primordial: para ele, trata-se de defender o inocente, mesmo quando o cinema amontoacontra ele todos os indícios de culpabilidade. Importa que o cinema continue sendocinema, mesmo quando ele toma seu bem alhures; que esse empréstimo não seja para

    ele uma prova irrefutável de esterilidade, de dependência. Pode-se considerar que aresposta que ele dá aqui constitui a “ideia-mãe” desse segundo volume, do mesmo modoque a objetividade fotográfica é a do primeiro. E é verdade dizer que essas ideias sãoirmãs, ambas fundadas sobre o reconhecimento da relação estreita que esta arte nutrecom a realidade. Em suma, no cinema, a contingência é também uma característicanecessária.

    Mais uma vez, não nos deixemos enganar aqui pela analogia com as outras artes, principalmente, aquelas cuja evolução em direção de um emprego individualista tornou

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    Nesse tema, ainda, eu preciso escolher. Entre todos os adereços, caso hajaadereços, de seu estilo, são ascomparações que suscitaram em mim a mais vivaadmiração, não isenta de uma real inveja. São verdadeiramente efeitos de estilo? Não, seé correto que não se pode considerá-las como puros ornamentos, pois certamentemetáforas nunca foram tão pouco gratuitas. Elas aí estão para apoiar a demonstração, jamais se envergonham de sua origem didática. No início, elas não sobrevêm sem precauções. No capítulo sobre Wyler, Bazin demanda que o desculpem de buscar seusargumentos na mineralogia, mesmo se o seu conteúdo é quase sempre emprestado daciência preferida do autor, a história natural: zoologia, botânica ou geologia. Mas osantigos poetas didáticos não faziam o mesmo, a começar pelo autor do “ De naturarerum”? Com esse exemplo e o da “Comédia humana”, também podemos, sem temor,responder “sim” à nossa questão. Essas comparações reforçam ao mesmo tempo a nossaconvicção e o charme da nossa leitura. Eu as acho muito mais poéticas e mais persuasivas que aquelas tão vangloriadas de Albert Thibaudet. Sua beleza vemsubitamente (coisa rara na literatura moderna, zelosa por temperamento e necessidade, pois toda boa metáfora repousa sobre uma ideia da finalidade na qual o nosso séculoquase não crê) das correspondências que elas deixam adivinhar entre o mundo natural eo da arte cinematográfica; elas traduzem indiretamente a espécie de primado que Bazin

    concedia ao universo dos fins sobre o das causas. Testemunho disso é o espantosocabeçalho que ele escreve para a entrevista com Orson Welles e que conduzia ao plenofantástico balzaquiano. O que citar entre mil joias? Somente esta, pois o lugar me falta, por sua rara densidade e a perfeita adequação da metáfora e do objeto de estudo:

    (Trata-se dos ruídos “estilizados” de Bresson):estão aí por sua indiferença e sua perfeita situação de “estranhos” como o grão de areia na máquina que faz travar o

    mecanismo. Se o arbitrário de sua escolha se assemelha a uma abstração é, então, a doconcreto integral: ela risca a imagem para assim denunciar a transparência, como um pó de diamante.

    Eu volto a reler Bazin e minha leitura, ao mesmo tempo que é uma exaltação daqual soube entregar uma pálida imagem, me comunicou um não menos vivodesencorajamento. Tudo foi dito por ele e vem tarde demais. Nós, dosCahiers , que

    tivemos com ele conversas, quase que cotidianas, nos acreditamos dispensados deretornar aos seus escritos e senão, talvez, ousaríamos dizer novamente o que ele teria

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    dito de modo definitivo ou contradizê-lo por vezes, esquecendo que ele tinha previamente fornecido suas respostas às nossas objeções. E, aliás, se todos nósestivemos engajados nas vias menores da polêmica e das futilidades, é porque neledepositamos o cuidado de levantar a grande questão: “O que é o cinema?” e respondê-la. Agora nos incumbimos o duro dever de prosseguir a sua tarefa: nós não afalharemos, ainda que persuadidos por ela ter sido conduzida por Bazin, de um modomuito mais abrangente do que nós saberíamos atingir, por nós mesmos. Se o cinema nãoevoluísse, talvez estaríamos melhor inspirados em renunciá-lo. Somente as surpresas dofuturo autorizam a esperança que temos, se não como sucessores de André Bazin, pelomenos, como seus discípulos demasiado indignos.

    FonteCahiers du cinéma, Paris, n. 91, jan. 1959. pp. 36-45.

    TraduçãoFabián Núñez