A sacralização da natureza em Patativa do Assaré e Alberto Caeiro
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A SACRALIZAÇÃO DA NATUREZA EM PATATIVA DO ASSARÉ E ALBERTO CAEIRO1
Maria do Socorro Pereira de AlmeidaDoutoranda em Literatura e Cultura (UFPB)
RESUMO
Neste estudo investiga-se a obra poética de Patativa do Assaré, representante da poesia sertaneja brasileira e de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português, Fernando Pessoa, que revelam em sua poética um ambiente campesino. Assim, procura-se observar como a natureza é percebida pelo olhar desses autores, evidenciando as simetrias e assimetrias entre eles e as perspectivas do sagrado reveladas através do contexto natural em suas poéticas. Observam-se também as contradições capitalistas contemporâneas que levam o indivíduo a sacralizar o objeto, externalizar um fetichismo embasado pela alienação e a ignorância em relação à natureza. Ao final do estudo observou-se que, tanto Patativa quanto Caeiro expressa a natureza de forma sacralizada e interativa com o humano.
Palavras-chave: Patativa. Caeiro. Natureza. Sagrado. Contradições contemporâneas.
Resumen
En ese estudio se investiga la obra poética de Patativa do Assaré, representante de la poesía campesina brasileña y de Alberto Caeiro, heterónimo del poeta português, Fernando Pessoa, que revelan en su texto un ambiente interiorano. De ese modo, se busca observar como la naturaleza es percibida a través de los ojos de esos escritores, evidenciando las semejanzas y diferencias entre ellos y la perspectiva de lo sacro difundidas a través del contexto natural en sus poesías. Se nota también las contradicciones capitalistas contemporáneas que llevan a que los individuos vuelvan sagrados los objetos a su alrededor, exteriorizando un fetichismo generado por el enajenamiento y la falta de conocimiento con relación a la naturaleza. Por fin se pudo ver que, tanto Patativa como Caeiro manifiestan la naturaleza como una cosa sacra y en interacción con el sujeto.
Palabras claves: Patativa. Caeiro. Naturaleza. Sacro. Contradicciones contemporáneas.
1 - SAGRADO: TENTANDO COMPREENDER
“Transformamos a realidade de acordo com nossa forma de vê-la e vemos a realidade de acordo com nossa
maneira de transformá-la.”
(Paul Tillich)
1 Artigo apresentado ao PPGL (UFPB) como requisito para aprovação da disciplina Teoria do texto poético., (junho/2010)
O sagrado como compreendemos hoje perde, até certo ponto, a referência do que sempre
nos pareceu como conceito único. Assim, propomos perceber o homem como ser social e suas
particularidades, considerando as múltiplas simbologias que o termo hoje permite. À luz de Silva
(2007), se pode dizer que o sagrado é como uma determinação canônica oficial, mas a
sacralidade no texto não está na afirmação do nome de Deus e sim na forma com que o tecido
textual possibilita ao leitor se reportar ao universo espiritual, dessa forma, o místico está no
como se diz e não propriamente no que é dito.
Para Micea Eliade (2001) todo espaço sagrado é considerado distinto, e destacado na
convivência, é qualitativamente diferente pelo sentimento que lhe é atribuído, ou seja, pela
simbologia que representa. Eliade enfatiza ainda que ao sacralizar o mundo, o sujeito atribui
significação sagrada em oposição a todo resto, sendo esta a forma de sentido. Assim o autor
coloca confluências de sagrados em uma gama diversificada de sacralidades. Nesse contexto
percebe-se que para Patativa do Assaré o sertão, como um lugar de interação ambiental, é
sacralizado, já Caeiro, em poemas de O guardador de rebanho e do Pastor amoroso mostra essa
afetividade com o lugar e a importância do ambiente natural como algo divino, que propõe o
ensinamento da vida.
Nessa perspectiva concordamos com Gil Filho (2008, p. 31) quando diz que “as formas e
os conteúdos relativos ao sagrado podem ser considerados como fonte de conhecimentos do
modo como se apresentam à consciência, restrito aos limites de como se manifestam”. Assim o
sagrado não está só na percepção do material, mas de como se revela através da consciência que
se traduz no pensamento e nas atitudes.
Em relação à natureza, no que concerne a relação entre à sacralidade e à literatura,
percebe-se uma relação intimista de propósitos. Esse contexto se evidencia também nas palavras
de Yi-Fu Tuan, quando ele afirma que “para muitos filósofos e poetas, a natureza chegou a
representar sabedoria, conforto espiritual e santidade; supunha-se que as pessoas podiam derivar
dela, retidão moral e uma compreensão mística do homem e de Deus” (1980, p.123). Essas
relações são encontradas tanto em Patativa quanto em Caeiro.
Embora saibamos que o sagrado está ligado à religiosidade e que teologia e literatura
caminham juntas desde sempre, como se percebe em antigas obras da tradição histórica oral,
(aspectos ratificados por Silva ao afirmar que “a presença dos deuses se patenteia nos textos das
diversas culturas, desde os tempos mais remotos perpassando narrativas míticas, muitas das
quais se constituíram textos fundantes de grandes religiões”. (2007, p. 09),) o que se pretende
discutir não é a constituição desse fenômeno na religião, mas na condição do olhar do homem
para o mundo, a percepção do que lhe toma de forma incondicional e do que, aos seus olhos, seja
a simbologia do sagrado.
Entendemos que ao investigar o caráter de sagrado na literatura não podemos nos deter
apenas aos aspectos religiosos, uma vez que a discussão traz a baila o homem em seu cerne,
procurando revelar suas particularidades, daí a pertinência de um olhar mais abrangente para o
sagrado que se assemelha a metáfora na perspectiva poética. Observa-se em algumas obras
literárias, o sujeito e a relação deste com seus anseios e com aquilo que o preenche de forma
incondicional, pois é na busca do infinito que está, segundo Tillich (1996), a sacralidade. Nesse
contexto Barcelos observa que toda obra tem seu lado teológico porque é uma reflexão sobre a
realidade humana que, transversalmente se põe como fundamental a própria existência humana,
sendo possível “afirmar rigorosamente a possibilidade de leitura teológica de qualquer obra
literária.” (2001, p. 67).
Por outro lado, Berger e Luckmann (2004) inferem que o homem moderno vive uma
“crise de sentido”. É bem verdade que o homem sempre se viu diante dos conflitos sociais e dos
valores éticos, morais e teológicos. Porém essa crise da pós-modernidade é alimentada pelas
contradições capitalistas que interferem nas relações sociais e nos aspectos identitários do
sujeito, daí a conversão de valores como a sacralização do banal e do fútil.
Os aspectos que se evidenciam na mídia quando se expressa o amor por um carro, um
aparelho celular, ou mesmo por um tipo de comida deixam claro o espaço que determinados
objetos ocupam na vida das pessoas. As empresas produtoras e o sistema midiático criam
sentidos para os objetos e as pessoas absorvem esses sentidos. Nesse contexto um dos exemplos
são os shoppings, (verdadeiros templos de consumo), nos quais até o tempo livre das pessoas é
negociado, razão pela qual eles nunca fecham. Neles vê-se que os sonhos são hegemonizados
pelo capitalismo que constrói um simulacro para a vivência do sujeito social. Assim, o sentido,
como diz Berger e Luckmann, que seria individual, perde sua característica e entra em crise. O
sentido passa a ser apenas uma mercadoria a ser consumida sem, muitas vezes, nem sair de casa,
por que os shoppings virtuais têm tudo que o sujeito aspira.
Em consonância ao exposto, percebe-se que essa negação do sujeito já está prenunciada
por Adorno desde o ensaio “A posição do narrador no romance contemporâneo”, no livro Notas
de literatura I, em que o filósofo deixa explícito que a reificação do sujeito moderno acaba por
interferir na condição narrativa, porque não se encontra mais o que narrar, uma vez que não
existe mais a diferença, a unicidade individual de cada um.
Assim, de acordo com os estudos culturais de Adorno, mesmo quando o indivíduo acha
que está escolhendo, suas opções já vêm estrategicamente conduzidas pela força contraditória e
esmagadora do capitalismo que tira do homem sua condição individual, sua identidade e, nessa
inserção à hegemonia imposta pelo sistema, ele entra em conflito, uma vez que a negação de si
pode acarretar-lhe até crises financeiras pela busca de sua parte na simetria do todo para não ser
excluído socialmente, haja vista ser sua condição, por natureza, a de viver em sociedade. Nessa
perspectiva Adorno observa que, “A insuficiência do sujeito que pretende em sua contingência e
limitação, julgar a violência do existente [...] torna-se insuportável quando o próprio sujeito é
mediado até a sua composição mais íntima pelo conceito ao qual se contrapõe como se fosse
independente e soberano”. (ADORNO, 2001, p. 07)
No livro de Valquíria Padilha intitulado “Shopping Center, a catedral das mercadorias”,
a autora mostra o processo de formação do mercado desde o período medieval até os shoppings,
colocando-se criticamente perante a exploração capitalista da vida das pessoas. Espaços como os
shoppings, estrategicamente calculados e programados para o consumo e para a transformação
dos indivíduos, lugares onde se muda a percepção de vida e de valores, atribuindo sentidos e
sentimentos ao produto que passa a representar algo “sagrado” em suas vidas e assim, perdem a
capacidade de escolha. Observa-se a confusão entre o sujeito consumidor e o ser social que se
fundem e assim, a crise de sentido. Dessa forma vê-se o shopping como “uma nova cidade do
capital, uma “catedral” onde uma parcela da população idolatra as mercadorias e vivencia lazeres
reificados” (PADILHA, 2006, p. 38).
Padilha salienta ainda que os mercados foram inicialmente instalados nas Igrejas e
administrados por elas. Os mercados não nasceram das cidades, foram as cidades que nasceram
do mercado, bem como suas vias de acesso. Assim fica evidente a importância que o consumo
sempre teve na vida das pessoas e que hoje se projeta na busca da felicidade, quando há uma
assimilação de valor sagrado ao produto em substituição aos valores religiosos como observa
Freitas apud Padilha: “[...] na pós-modernidade, a adoração da imagem religiosa é substituída
pela contemplação do objeto de consumo”( 2006, p. 83). Nessa perspectiva Patativa do Assaré e
Alberto Caeiro voltam a observação do paraíso perdido e veem na natureza, a força para
constituição da consciência humana. Ambos usam os aspectos naturais para chamar o indivíduo
de volta a si mesmo e ao ambiente que o cerca.
Nesse contexto, questiona-se qual o sentido de vida social e individual do sujeito pós-
moderno. Se o sagrado está naquilo que nos toma de forma incondicional e se algo além do
“divino” nos toca dessa forma, a própria noção do que é sagrado se torna conflituosa, porque
essa simbologia assume outras faces. Nesse sentido é interessante observar o que diz Tillich:
Poder-se ia perguntar agora, porque é que aquilo que é capitado pelos símbolos religiosos não pode ser expresso adequadamente em termos diretos. Quando,
por exemplo, dinheiro, sucesso ou nação são a preocupação máxima de uma pessoa porque não se pode dizer isso diretamente sem utilizar linguagem dos símbolos? A isso deve-se dizer: de tudo que o toca incondicionalmente o homem faz um “deus”. Quando a nação é a preocupação incondicional de uma pessoa, então o nome dessa nação se torna para ela um nome santo e à nação são dadas qualidades divinas que em muito excedem a natureza e propósito de uma nação. Essa toma o lugar do verdadeiro incondicional, tornando-se assim um ídolo. O sucesso como preocupação última não é um desejo natural de realização de possibilidades humanas de maior alcance, e sim, muito mais a disposição de sacrificar todos os outros valores da vida ao poder e ao prestígio social. O medo de não obter sucesso satisfatório é uma forma distorcida de medo ante o juízo de Deus: sucesso é graça, fracasso é rejeição por parte de Deus. Dessa maneira conceitos que refletem uma realidade por demais terrena, como sucesso e dinheiro, se transformam em símbolos idólatras daquilo que realmente tem validade última. (1996, p. 32)
Na verdade toda crise de sentido que trai a identidade do sujeito leva-o de volta ao
misticismo, ao esoterismo e outras tentativas de encontro consigo mesmo. Também o leva a
deturpação dos valores morais, éticos e “sagrados”. Em direção oposta os poetas aqui estudados
acham esse valor incondicional no ambiente natural que os rodeia. Assim, retomando a idéia de
Tillich sobre o sagrado, de que “é aquilo que lhe toma incondicionalmente”, vê-se esse sentido
na sociedade atual naquilo que o homem pode possuir enquanto para os poetas se encontra no
mistério, beleza, sapiência e perfeição da natureza.
2 - Cotejando a poética de Patativa e Caeiro
Patativa do Assaré foi um sertanejo de vida simples e muito dura como já é conhecida a
vida no sertão. Trabalhou na enxada desde sempre, cresceu escutando versos de cordel o que
fortificou sua vocação poética. Foi à escola apenas durante seis meses, não aprendeu a escrever,
mas foi autodidata e conheceu vários ícones da literatura brasileira e portuguesa, entre eles,
castro Alves, a quem admirava profundamente, Drummond e Camões. Recebeu o nome de
Pássaro em virtude da qualidade do seu canto poético. Era um homem rude, de personalidade
forte e de idéias político-sociais revolucionárias, a ponto de ser perseguido pelos militares no
sertão.
Alberto Caeiro, poeta português, heterônimo de Fernando Pessoa e considerado por ele
como mestre. Um homem simples, pastor de ovelhas, que viveu toda vida na zona rural. Não
teve cultura acadêmica, mas é um sábio na vida e um tradutor da natureza. Ele desmistifica a
natureza e a coloca mais próxima do leitor, é um poeta com grande capacidade sensitiva de onde
aflora a sinestesia que evidencia seu diálogo com o mundo natural.
Patativa, como representante da tradição oral e da poesia matuta, traz uma estrutura
poética de forma fixa e métrica rigorosa, bem como a rimação externa e interna. A rima externa
mais no verso setessilábico e a interna ou as duas, no verso decassílabo. Embora ele mude as
formas de um poema para outro, em cada um ele procura dar uma uniformidade à forma e à
métrica que utiliza. Porém, mesmo estando a favor de uma estrutura tradicional de métrica e de
rima, ele coloca entre essas estruturas sua liberdade de pensamento que se evidencia na crítica
político-social da sua poesia.
Caeiro, embora na mesma condição de homem do campo e de pouca cultura acadêmica,
ao contrário de Patativa, liberta-se da estrutura métrica e prega no conteúdo poético, a liberdade
de “ser”. Seus versos são livres e brancos. Ele próprio enfatiza que não se prende as convenções
literárias. De certa forma remete-se ao ortônimo, Pessoa que, como representante modernista não
se prendia às regras e convenções, antes lutava contra elas. Enquanto Patativa canta através dos
versos, extravasando liricamente o seu rogo às injustiças sociais e enaltecendo a natureza através
do seu espaço de vivência, Caeiro, poeticamente, conversa, aconselha e ensina através dos
elementos da natureza.
Patativa tem uma linguagem a partir da variedade lingüística própria do sertão nordestino
brasileiro. Caeiro usa de palavras simples e tem traços fortes de oralidade, porém sem a variação
espacial de linguagem. Ambos remetem ao imaginário do velho sábio, com estilos diferentes.
Patativa expressa o espaço-ambiente, mostrando sempre um sentimento topofílico2 e valorizando
a natureza, divinizando-a como o faz em O sabiá e o Gavião:
[...]Já eu sou bem deferente. A coisa mió que eu acho É num dia munto quente Eu i me sentá debaixo De um copado juazêro, Prá escutá prazentêro Os passarinho cantá, Pois aquela poesia Tem a mesma melodia Dos anjo celestiá.[...]
Não há frauta nem piston Das banda rica e granfina Pra sê sonoroso e bom Como o galo de campina, Quando começa a cantá Com sua voz naturá, Onde a inocença se incerra, Cantando na mesma hora Que aparece a linda orora Bejando o rosto da terra.[...]
(Patativa, 1978, 226)
2 Adjetivo a partir do termo topofilia criado por Yi Fu Tuan (1980) para evidenciar a relação de afetividade do homem com o espaço.
Em um poema de métrica setessilábica, em forma de décimas o eu poético torna-se um
tradutor dos sons da natureza e compara esses sons aos sons artificiais criados pelo homem,
como se vê na terceira estrofe. Dessa forma ele mostra como o indivíduo tem, naturalmente,
aquilo que busca construir, usando objetos que traduzam essa natureza. Percebe-se nos últimos
versos da segunda estrofe, a relação natureza e divindade ao mesmo tempo em que a sinestesia
auditiva nos reporta ao espaço e ao imaginário deste como sagrado. Nesse sentido, Eliade (2001)
afirma que o espaço sagrado é ressignificado pelo olhar do homem. O eu poético atenta para o
ambiente em que vive, reafirmando sua relação de cumplicidade e identidade com o lugar.
No segundo verso da terceira estrofe “Das banda rica e granfina”, uma crítica ao uso do
instrumento musical apenas como status. Essa perspectiva também é observada em Caeiro
quando diz: “Aquela senhora tem um piano/Que é agradável, mas não é o correr dos rios/Nem o
murmúrio que as árvores fazem.../Para que é preciso ter um piano?/O melhor é ter ouvidos/E
amar a natureza.” Vê-se que para os dois autores o sujeito social se apega ao material concreto
que reproduz o abstrato e ignoram a natureza. Outro aspecto interessante é a relação
homem/espaço natureza que se evidencia na leitura que o eu poético faz, unindo homem, animal,
tempo e espaço numa condição de simetria ao tempo em que o homem, único ser “racional”,
reconhece o valor de tudo isso. Patativa traz um prazer sinestésico proporcionado pela natureza e
mostra a percepção através dos sentidos.
Na mesma condição está o poema Gozo os campos, de Alberto Caeiro
(1) Gozo os campos sem reparar para eles. (2) Perguntas-me por que os gozo. (3) Porque os gozo, respondo. (4) Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente (5) E ter uma noção do seu perfume nas nossas idéias mais apagadas. (6) Quando reparo, não gozo: vejo. (7) Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva, (8) Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos (9) À dureza fresca da terra cheirosa e irregular; (10) E alguma cousa dos ruídos indistintos das cousas a existir, (11) E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas, (12) E só um resto de vida ouve.
(Caeiro, 2006, p. 145)
Trata-se de um poema de versos livres e brancos e de atenuada objetividade que
transcende através dos elementos da natureza, na medida em que o eu poético demonstra o
prazer de senti-la. Nos versos 1,2,e 3 evidencia-se a intenção do sujeito de sentir e não de
questionar, como se chamasse o leitor a compartilhar com ele o momento “sagrado”. Esse prazer
da sensação é algo que o toma incondicionalmente, é uma entrega total do sujeito ao sentido de
estar ali como se observa do verso 5 ao 15. O sentido de prazer fica claro ao utilizar o termo
Gozo. No verso quatro a inconsciência enfatiza a entrega, o êxtase, através do sentido olfativo
que o leva a inebriar-se com o perfume da rosa. No verso seis volta evidenciar-se que a natureza
deve ser vista a partir dos sentidos, numa comunhão entre seres (homem/natura), em que o
homem para ser natureza não precisa da racionalidade, haja vista que essa o distancia dela, pois o
faz ver-se fora do contexto natural.
Reportando-nos à realidade atual observa-se a apropriação da natureza pelo capitalismo.
Um determinado espaço é apropriado e o indivíduo passa a pagar para poder usufruir daquilo que
seria, naturalmente, direito seu. O turismo como fenômeno social, bem ilustra essa questão.
Espaços públicos são transformados em mercadorias, reservando-se as suas benesses turísticas
somente àqueles que podem pagar. Assim, a natureza é privatizada e vendida a custo muito alto.
Nessa perspectiva enquanto muitos pagam para ver o que lhe é de direito, reduzindo os sentidos
da natureza a um mero passatempo. Os autores em questão contrariam essa lógica capitalista se
inserindo na natureza como parte dela. Bachelard em A poética do espaço(2005) enfatiza a
condição do espaço ninho, que seria representado pelo grau de afetividade do homem com ele.
Nessa perspectiva observa-se que Patativa se identifica com o lugar e o diviniza através da
natureza:
ESPINHO E FULÔ
Eu nasci ouvindo os cantosDas aves de minha serraE vendo os belos encantosQue a mata bonita encerraFoi ali que eu fui crescendoFui vendo e fui aprendendoNo livro da naturezaOnde Deus é mais visívelO coração mais sensível E a vida tem mais pureza [...]
(Patativa, 2002, p. 18)
Na mesma perspectiva Caeiro mostra a unicidade do espaço o fazendo distinto, esse
aspecto remete a Eliade na sua concepção de espaço sagrado. Caeiro o faz sagrado, especial pelo
que representa para si:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. [...]Pelo Tejo vai-se para o Mundo.Para além do Tejo há a AméricaE a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para alémDo rio da minha aldeia. [...] (Caeiro, 2006, p. 59)
Enquanto muitos sacralizam o dinheiro pelo poder que ele enseja com a apropriação da
natureza, Patativa e Caeiro chamam atenção para o fato de que o sujeito, ao encontrar a natureza
encontra a si mesmo. Se observarmos algumas culturas, sobretudo as orientais, percebemos que
isso é um processo que faz parte da condição existencial do homem. Jesus ao se deparar com
seus conflitos foi ao deserto, foi ao encontro da terra e dos elementos que compõe a natureza
para se encontrar. Uma espiada nas culturas orientais nos conduz a aproximação do homem com
a natureza em busca de equilíbrio e de uma melhor qualidade de vida, bem como de reflexão
sobre se mesmo.
Nesse contexto observa-se que os poetas aqui apreciados buscam e levam o leitor a
buscar na natureza a animação da vida, o equilíbrio do corpo e a purificação da alma. Por outro
lado cotejam os espaços de acordo com sua vivência e experiência. Enquanto Patativa valoriza o
espaço sertanejo e diviniza a natureza ao mesmo tempo em que critica o poder corrompido pelo
dinheiro e roga por mais justiça social, Caeiro traz os espaços de prazer e sentidos através dos
campos e do ambiente que o rodeia, mas sempre tentando fazer o homem olhar além daquilo que
seus olhos vêem.
No poema a seguir, Patativa evidencia sua identificação com o espaço na medida em que
tenta esclarecer para o “doutor” as diferenças entre os sujeitos em relação ao seu ambiente
cultural, aspectos que comungam com a idéia de Laraia (2001) de que o homem ver o mundo
conforme sua lente cultural. Esses aspectos de pertencimento ao lugar e de identidade cultural se
observa no seguinte poema:
ILUSTRÍSSSIMO SENHÔ DOTÔ
[...]Mas eu quero lhe contáAs coisa aqui como éEu pertenço ao CearáNasci aqui no AssaréMas porém Deus que é bondosoE misericordiosoE é protetô munto exatoGraças a bondade suaNão nasci dentro da ruaFoi aqui mermo nos mato.
Em um poema de forma fixa, composto de 17 estrofes de 10 versos, o eu poético chama
atenção do poder na figura do doutor, para um olhar diferente sobre o Nordeste, ou pelo menos
que se olhe para o Nordeste. Percebe-se o apego ao lugar e a relação de pertencimento e
identidade do sujeito textual “ Eu pertenço ao Ceará/ Nasci aqui no assaré.
Nesse poema o espaço sertanejo aparece como um lugar de prazer, onde se encontra a
beleza, a sinceridade e o contato do homem com a natureza. Assim o eu poético vai sinalisando
algumas diferenças entre cidade e sertão, sempre enaltecendo o segundo: “Aqui da serra ao
sertão/ Grande pobreza se encerra/ mas reina paz e união/ Ninguém conversa de guerra.
Para Eliade (2001) o espaço sacralizado é o espaço distinto pela atribuição de valores que
lhe é dado. Nessa perspectiva, Patativa sacraliza o espaço, dando-lhe valor distinto entre outros
lugares, o diferencia da cidade grande, mostrando com positividade essa diferença,
especialmente na época chuvosa, quando há fartura no sertão.
[...]Não sendo tempo de fomeSenhô dotô pode crê:Nesta terra o cabra comeInté a barriga inchêNem carne, nem macarrãoMas, porém mio e feijãoE farinha é à vontadeNinguém come de raçãoComo se faz nas pensãoLá das ruas da cidade.
De certa forma Patativa desconstrói a visibilidade do sertão nordestino pela maioria dos
estados do Sul e Sudeste. Visibilidade esta já discutida por Albuquerque Jr. em A Invenção do
Nordeste (2006), que vê o sertanejo como coitadinho e miserável. Patativa mostra a dignidade do
sertanejo quando lhe é dado direito de exercer sua cidadania como um sujeito que pode se
manter se tiver a oportunidade de trabalho, porque para o autor, a seca não é um problema só da
natureza, mas do pouco caso daqueles que podem, mas nada fazem para melhorar a vida do
sertanejo. Aspectos que estão evidentes também em Cabôbo roceiro, poema que fez com que o
poeta fosse perseguido pelo regime militar.
Caboclo Roceiro, das plaga do NorteQue vive sem sorte, sem terra e sem lar,A tua desdita é tristonho que canto,Se escuto o meu pranto me ponho a chorar[...]
Tu és nesta vida o fiel penitenteUm pobre inocente no banco do réu.Caboclo não guarda contigo esta crençaA tua sentença não parte do céu.
O mestre divino que é sábio profundoNão faz neste mundo teu fardo infeliz
As tuas desgraças com tua desordemNão nascem das ordens do eterno juiz
A lua se apaga sem ter empecilho,O sol do seu brilho jamais te negouPorém os ingratos, com ódio e com guerra,Tomaram-te a terra que Deus te entregou[...]
(Patativa, 1978, p. 79)
Assim, o poeta incita também a capacidade de solidariedade e companheirismo do sertanejo em
relação aos que vivem na cidade, na continuação de Ilustríssimo senhor doutô:
[...]Eu não tô fazendo pôcoLá da sua capitáMas quando um pobre cabôbo Tem precisão de andar láSe não levá sua redeDorme no pé da parede Outras vez o pobre intéCom tanta dô de cabêçaE não acha quem lhe ofereçaUma chicra de café.
Apois aqui seu dotôChegando um home de láTem comida a seu favôSem precisá de compráO matuto, com prazê,Ante mermo de sabêCumo o tá homem se chamaTira um capão do chiqueiroNem que seja o derradêroDa muié comê na cama.
(Patativa, 2003, p. 71)
A terra encantada, o paraíso perdido são aspectos que pululam os versos patativianos ao
mostrar o sertão. Uma visão talvez distanciada das de outros, uma vez que: “ são mais variadas a
maneira como as pessoas avaliam essa superfície. Duas pessoas não veem a mesma realidade.
Nem dois grupos sociais fazem exatamente a mesma avaliação do meio ambiente” (TUAN,
1980, p. 06). Assim, vê-se que a percepção espaço-lugar é única para cada um e, como cada um
ler com os olhos que tem, ver também o mundo de formas diferentes. Nesse contexto Patativa
dar ao espaço-lugar sertanejo um valor divinizado: “ A gente goza um prazê/ Que sou capaz de
dizê/ Que o paraíso não ganha.
Nesse interim o poeta sempre chama atenção do doutor para conhecer a terra, ou seja, é
preciso conhecer para saber. Ideias que pululam também os versos de um outro poema do autor:
Cante lá que eu canto cá. Não se pode ter uma visão de algo ou de um lugar apenas pelo que
apresenta o imaginário.
Caeiro infere que “Ninguém nunca pensou no que há para além/Do rio da minha aldeia.
Patativa mostra que o São João sertanejo não é o famoso carnaval do Rio, mas é o melhor São
João, porque é do seu lugar, embora niguem saiba o que se passa realmente dentro do sertão:
[...]Tô lhe contando a certezaDas coisa do meu sertãoAqui ninguém tem riquezaMas, porém tem muita açãoE ninguém usa pagodeTudo fala como podeNinguém sabe, ninguém erraAh, seu dotô eu só queriaQue o senhô vinhesse um diaVê o São João nesta terra.[...]Vossimicê arrepareO que lhe digo e é exatoNão tem com que se compare Um \são \joão aqui no matoO sertão é todo festaCoisa boa como estaNinguém pode avaliáNão há neste mundo intêroNem no Rio de JanêroNa festa do carnavá.
(Patativa, 2003, p. 71)
Pelo mesmo prisma, Caeiro vem mostrar também em outro poema, o seu espaço-lugar como algo
especial:
DA MINHA ALDEIA (texto integral)
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquerPorque eu sou do tamanho do que vejoE não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequenaQue aqui na minha casa no cimo deste outeiro.Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longede todo o céu,Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhosnos podem dar,E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver
(Caeiro, 2006, p. 42)
O eu poético demonstra a afetividade identitária como se o espaço fosse o centro do
mundo. Segundo Yi Fu Tuan (1980), esse apego é próprio da relação do homem com espaço de
vivencia. Por outro lado o eu poético chama atenção do olhar do homem para o mundo, o que se
pode e o que se quer ver, não só pela conscientização de mundo, “ porque sou do tamanho do
que vejo/E não do tamanho da minha altura”, como também pela liberdade que o campo oferece
em relação a cidade: “Nas cidades a vida é mais pequena”. Numa linguagem coloquial que
ignora a rigidez gramatical o texto se aproxima do leitor e mostra a vida ilusória das grandes
metrópoles onde o homem se trancafia e se distancia da natureza, tirando de si mesmo o prazer
do dom de ver o mundo.
De certa forma o texto aponta a cegueira do homem urbano: “na cidade grande fecham a
vista a chave”. Percebe-se que essa vista vai além do que os olhos alcançam. Apesar da
objetividade aristotélica do poeta e da concretude do seu estilo, que não se apega ao abstrato, ao
subjeto, as ideias do verso acima encadeiam-se com as dos versos três e quatro e ao mesmo
tempo levam a observar o distanciamento do homem em relação a natureza e a Deus como
mostra o verso cinco. A simetria e o encadeamento dos versos no poema levam a composição de
um pensamento sobre a condição de ser e estar do homem no mundo, mesmo que esse
pensamento seja negado pelo poeta. O olhar do homem para o mundo é o reflexo de sua alma e
suas ações representam esse olhar que pode ser míope ou mais abrangente.
Como já foi dito anteriormente, para Eliade a sacralidade do espaço está na atribuição do
valor que lhe é dado como espaço diferente do resto do mundo, como lugar de “abismação”, de
embevecimento, de adoração. Nesse contexto observa-se que ao purificar o espaço, ao tirar dele
os vícios e defeitos mundanos e atribuir-lhes as virtudes ambientais e humanas, tanto Patativa
quanto Caeiro, cada um ao seu modo, sacralizam seus espaços através dos elementos ambientais
e naturais que os compõem.
A FESTA DA NATUREZA (Patativa do Assaré)
Chegando o tempo do invernoTudo é amoroso e ternoSentindo do Pai EternoSua bondade sem fimO nosso sertão amadoEsturricado e peladoFica logo transformadoNo mais bonito jardim.
Neste quadro de belezaA gente ver com certezaQue a musga da naturezaTem riqueza de incantáDo campo até a florestaAs ave se manifesta
Compondo a sagrada orquestraDesta festa natura.
[...]A Divina MajestadeCom essa realidadeNos mostra a prova e a verdadeDo soberano podêNesta Bliba naturáQue faz tudo admiráQuarqué um pode estudáSem conhecê o ABC.
(Patativa, 1978, p. 79)
POEMAS INCONJUNTOS (Alberto Caeiro)
[...]Um dia deu-me um sono como a qualquer criançaFechei os olhos e dormi.Além disso fui o único poeta da natureza.
Um dia de chuva é tão belo quanto um dia de solAmbos existem; cada um como é
Quando a erva crescer em cima da minha sepultura.Seja este o sinal para me esquecerem de todoA natureza nunca se recorda, e por isso ela é bela.E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a erva verde sobre minha sepultura,Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.
(Caeiro, 2006, p. 117-121)
Nos poemas ficam claras algumas diferenças entre os poetas. Enquanto no primeiro
poema observa-se a divindade religiosa, expressa várias vezes como “Pai Eterno”, para explicar
a natureza e essa como a guia e sustentação da vida na terra, nos fragmentos caeirianos observa-
se certo paganismo. A natureza não precisa de explicação para existir, ela apenas existe. Um
olhar mais atento ver que a poesia de Caeiro é essencialmente universal. Assim como fica a
sacralização dessa poética? Ora, em se tratando de sagrado como algo que lhe toma
incondicionalmente e aquilo que é sacralizado como fundamentalmente especial e diferente das
outras coisas, percebe-se que a natureza na poesia Caeiriana é sacralizada tanto quanto na de
Patativa, porque ambos vêem na natureza o motivo e a essência da vida.
Patativa adota a forma fixa e a rima, Caeiro foge dessa convenção, mas coloca uma
unicidade de ideias em torno de sua obra, e de certa forma, embora ele diga não acreditar numa
continuação e sim num novo nascimento, ele se contradiz quando se observa no último poema
que o verdecer das ervas no seu túmulo seria uma forma de continuar a existir, porque amou a
natureza de forma que se reconheceria através dela.
No contexto contemporâneo, percebe-se que a racionalidade e a busca pelo poder
distanciam o homem da natureza, esse contexto é orientado pelo desenvolvimento técnico-
científico e midiático. Os aspectos de distanciamento ficam claros no Renascimento quando o
homem passa a ver o mundo e o outro como algo de que possa se apropriar. Nesse contexto
Sábato (1993, p. 20) diz que: “Este é o destino contraditório daquele semi-deus renascentista que
reivindicou sua individualidade, que orgulhosamente se levantou contra Deus. Proclamando sua
vontade de poder e transformação das coisas. Ignorava que ele também chegaria a transformar-se
em coisa”.
Essa concepção reflete os interesses capitalistas contemporâneos, embora, historicamente,
se tenha iniciado a partir de Platão e Aristóteles, como afirma Porto Gonçalves: “É com Platão e
Aristóteles que se começa a assistir a um certo desprezo “pelas pedras e pelas plantas” e há um
privilegiamento do homem e da idéia” (2006, p.31). Com o exposto vê-se que os poetas em
questão quebram com essa tendência contemporânea e buscam na natureza o ponto de equilíbrio
e purificação ao tempo em que se colocam como integrantes dela em conjunção aos animais e
aos vegetais. Eles atribuem à natureza a inspiração e o dom de cantar.
MINHA SERRA (Patativa)
Quando o sol ao nascente se levantaEspalhando os seus raios sobre a terra,Entre a mata gentil da minha serra,Em cada galho um passarinho canta.
Que bela festa! Que alegria tanta!E que poesia o verde campo encerra!O novilho gaiteia, a cabra berra,Tudo saudando a natureza santa.
Ante o concerto desta orquestra infindaQue o Deus dos pobres ao serrano brinda,Acompanhada da suave aragem,
Beijando a choça do feliz caipira,Sinto brotar da minha rude liraO tosco verso cantor selvagem.
(Patativa, 1978, p. 248)
Em um soneto decassílabo que quebra, até certo ponto, os preceitos de oralidade inerente
ao estilo do poeta e a forma tradicional da poesia popular, o poeta nos brinda com a tradução da
dinâmica da natureza. O leitor se transporta e os sentidos se encontram com o texto. Os
elementos saem do papel e dialogam com o leitor, a visão abre-se para ver o sol nascer, se
levantar e os sons apresentados no texto perpassam os ouvidos através da leitura. Percebe-se que
há uma interação entre homem e natureza e a natureza que saúda a natureza. Na primeira estrofe
o passarinho canta saudando o ocorrido. Um olhar mais atento mostra o encontro desse verso
com a última estrofe, porque assim como o passarinho se sente motivado a cantar o poeta
também se deixa levar pela disposição anímica naquele momento. O poeta é, assim como o
passarinho, um cantor que pode traduzir aos homens, numa linguagem mais próxima da natureza
humana, a fenomenologia daquilo que lhe é inerente e que nem sempre é percebida por ele.
O texto mostra ainda que os sons da natureza são comparados à harmonia sonora de uma
orquestra como se ver no terceiro verso da segunda estrofe “o novilho gaiteia”, a gaita é um
instrumento de sopro bastante usado no Nordeste. Por outro lado observa-se que esse contexto
natural é sacralizado “Tudo saudando a natureza santa”, assim o eu poético atribui a Deus tudo
que está vivendo “Deus dos pobres ao serrano brinda”. Mais uma vez percebe-se a divinização
da natureza e a sacralização de um espaço, uma vez que o sujeito textual faz questão de dizer que
tudo aquilo ocorre na serra, não em um lugar qualquer, mas na sua serra como mostra o terceiro
verso da primeira estrofe.
Por outro lado, embora num contexto mais universalizado, sem se ater a um determinado
espaço, Caeiro coloca-se como observador do mundo. Ele se compara ao girassol para mostrar
sua visão mais abrangente daquilo que o cerca, assim como Patativa.
MEU OLHAR É NÍTIDO COMO UM GIRRASSOL (Caeiro)
Meu olhar é nítido como um girassolTenho o costume de andar pelas estradasOlhando pra direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trás...E o que vejo a cada momentoÉ aquilo que nunca antes eu tinha visto,E eu sei dar por isso muito bem...Sei ter o pasmo essencialQue tem uma criança, se ao nascer,Reparasse que nascera deveras...Sinto-me nascido a cada momentoPara a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos)Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,E a única inocência não pensar...
(Caeiro, 2006, p. 34)
Vê-se nos dois poemas presença forte da sinestesia. Embora Patativa não se porte a isso
de forma direta como o faz Caeiro, ele coloca-se como aquele que ver, ouve e sente a natureza.
Observa-se no poema caeiriano, um encontro com a natureza, encontro que, assim como no
poema patativiano, provoca uma epfania, é como se a natureza a cada momento surpreendesse o
homem com seu dom encantatório. Há aspectos epifânicos em alguns versos “Sei ter o pasmo
essencial/Que tem uma criança, se ao nascer,/Reparasse que nascera deveras.../Sinto-me nascido
a cada momento/Para a eterna novidade do Mundo... Assim o poeta sacraliza essa natureza, a faz
especial dar-lhe o advento de ensinamento da vida e atribui-lhe a capacidade de se deslumbrar e
renascer a cada deslumbramento.
Adentrando o texto nos deparamos também com a interação homem/natureza “meu olhar
é nítido como um girassol”. O eu poético se compra ao girassol para mostrar sua visão risomática
do mundo. Numa linguagem próxima da oralidade e através de uma simplicidade no falar, o
sujeito chama atenção para o olhar para mundo. Subliminarmente o eu poético mostra que a
racionalidade humana faz ver a natureza como objeto, porque pensar é raciocínio e a razão
isenta-se do sentimento e, portanto do encantamento ou reconhecimento do que é realmente o
ambiente natural, por isso a provocação na ultima parte do poema. Caeiro mostra que o homem
perde a capacidade de ver e de sentir e por isso o eu poético chama atenção para que se veja o
mundo através de seus olhos.
A forma do poema não é à toa, quando falamos não nos prendemos a forma, o autor passa
exatamente essa concepção ao fazer um poema sem esquemas de elaboração, pois a construção
do conteúdo diz isso “pensar é estar doente dos olhos”. Assim o poeta fala ao leitor sem elaborar,
apenas conversa, diz o que acha e o que sente e, indiretamente, como um velho sábio, aconselha
o homem a olhar para o mundo como se em cada canto fosse encontrar a si mesmo, como parte
desse mundo e não como o dono dele.
Percebe-se que o poeta cantor e o poeta conversador, ambos conselheiros, se encontram
no sentido de que cada um, a sua maneira, busca trazer o homem para o contexto de onde se
retirou, mas do qual é parte, embora a cegueira do poder o tenha exilado. Observa-se que os
autores crêem na natureza e esta fé é que os levam a sacralizá-la. Paul Thillich (1996, p. 05)
afirma que á fé “é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente”. Assim vê-se que
os poetas questionados vivem, partilham, se relacionam e sentem a natureza, estão misturados a
ela como parte de um todo e a sensibilidade poética de ambos vem imbuída de sinestesia que faz
com que o leitor penetre também nesse universo e sinta-se parte do todo natural.
Considerações Finais
Durante todo percurso do estudo foi possível perceber que, apesar de suas aparentes
assimetrias, os poetas se encontram em muitos pontos. Patativa do Assaré é um poeta matuto que
se faz voz do sertanejo e luta pelas injustiças sociais, ao tempo em que clama essa justiça o poeta
une homem e natureza, divinizando a segunda e abre a possibilidade de torná-la visível ao
homem, em especial aos que se deixaram alienar pelo poder e pelo dinheiro.
Caeiro, um também arquétipo do velho sábio, aconselha o homem e tenta desconstruir a
visão unilateral que o leva a ver o mundo dividido, em que homem e natureza participam de
relações coesas, mas estruturadas separadamente. Sendo a Literatura fonte intermediária entre o
homem e o mundo e, tendo como “missão” ser instrumento de observação, se fazendo
transfiguração do real, vê-se que os poetas usam seus dons especiais de observação do mundo e
lentificam os olhos do homem com relação ao ambiente natural, ambiente esse que é sacralizado
em suas obras. Tanto o eu poético proposto por Caeiro quanto o de Patativa vem de uma vida
simples e campal, são pessoas que aprenderam a ler o mundo através da linguagem da natureza,
aprendizes das próprias experiências e conselheiros. Ambos possuem uma linguagem simples,
usam da oralidade e vêem a natureza como algo divino que intermedia as ações de Deus na
Terra.
Para Patativa a punição do sujeito por alguma coisa errada deveria ser feita através da
conscientização, pois uma pessoa consciente não faria o mal, assim o poeta usa a poesia para
tentar trazer o indivíduo à consciência. Esta atitude de sabedoria popular constitui um
ensinamento moral prático que toma suas referências no quotidiano. Quando se observa a
percepção de Fernando Pessoa sobre a literatura popular “A quadra é o vaso de flores que o povo
põe a janela de sua alma. Da órbita triste do vaso escuro a graça exilada das flores atreve-se o
seu olhar de alegria. Quem faz quadras portuguesas, comunga a alma do povo, humildemente de
todos nós e errante dentro de si próprio” (PESSOA, 1914), vê-se que, embora por um outro
prisma e estilo, Caeiro busca essa referência no popular para fazer o mesmo que Patativa quanto
a conscientização do homem.
Assim observa-se dois poetas representantes do ruralismo que viveram e aprenderam a
vida no campo e se fizeram parte desse ambiente. Por várias vezes percebemos a evidência de
pertencimento ao lugar, o que mostra a identidade campesina de ambos e a referência divinal à
natureza. São poetas que traduzem o que vêem e dizem o que sentem perante o que é visto com
objetividade e simplicidade, embora com estilos diferentes. Patativa transmite através da forma
dos versos e das rimas sua visão de homem tradicionalista do sertão, a seriedade e respeito com
as convenções sociais e religiosas. Caeiro como poeta modernista que viveu o momento de
transição mostra na forma dos poemas sua sede de liberdade de expressão e ao mesmo tempo
transgride as convenções literárias através de versos livres.
Caeiro mostra-se um homem do campo, mas não um sofredor das injustiças sociais, ele
não mostra a natureza como vítima do poder, também não se ver um rogo lamurioso em sua
poética. Já patativa traz em sua poesia um grito de socorro por um povo esquecido, não por
Deus, mas pelos homens de poder. Percebe-se um canto de lamento e de revolta, numa poesia de
beleza indescritível. Para Caeiro a natureza é real e se renova, justamente por isso, para ele não
há volta, há o nascimento de um novo dia, de uma flor. Ele não pensa no que poderia ser essa
renovação ele apenas a admira como ela é.
Sem dúvida trata-se de dois poetas da natureza, que cantam seu espaço, aquilo que seus
olhos vêem e suas mentes alcançam. São representantes da poesia ambiental porque tratam a
natureza como ente a ser preservado, cuidado, ao mesmo tempo em que mostram também que a
natureza é factual e faz-se, no cotidiano de nossa existência, a infalível professora da vida. Assim
os poetas estão além do contexto contemporâneo de sociedade alienada pelo consumo, que se
deixa tomar incondicionalmente por supérfluos sem que para isso venha a se preocupar com o
meio ambiente em que vive.
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