A representação da mulher na música popular brasileira

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1 On Women in Brazilian Popular Music: Permanencies? Discontinuances? A-cerca da Mulher na Música Popular Brasileira: Permanências e Descontinuidades Anderson de Souza Sant’Anna Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança Programa de Mestrado Profissional em Administração Fundação Dom Cabral Laura Ferolla Siqueira Campos Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança Fundação Dom Cabral Marcella de Assis Ribeiro Batista Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança Fundação Dom Cabral Resumo: Sob uma perspectiva relacional, segundo a qual a arte não somente reproduz o status quo, mas também antecipa e corrobora transformações por meio de sua capacidade de propagar novos discursos e práticas discursivas, articulando múltiplos agentes sociais, o presente artigo utiliza de achados de estudo de casos sobre a representação da mulher na música popular brasileira, ao longo do período 1880-1970, para explorar o papel relacional engendrado a partir das composições musicais investigadas. Para tal foi pesquisado de que forma tais composições, seus compositores e interpretes se engajam em ações relacionais vis-à-vis às transformações vivenciadas junto aos contextos societais em que se inserem, bem como tais ações resultaram em ‘descontinuidades’ - assim como em ‘permanências’ - nas formas de representação da mulher nas letras analisadas. Os achados foram agrupados em três fatores - Imprevisibilidade’, Objetificidade’ e ‘Idealidade- sustentados pela oscilação das representações face aos diferentes momentos históricos em que emergem - República Nova’, ‘Estado-Novo’, ‘Pós- guerra’, ‘Regime Militar- e agentes protagônicos. Isto, tendo como pano de fundo a transição da primeira para a segunda onda do movimento feminista. Como resultado foi possível apreender o protagonismo individual e coletivo - e a construção de ‘espaços de fala’ como cruciais às estratégias de ‘descontinuidades’ e ao estabelecimento de ‘agendas discursivas’. Palavras-chave: Mulher; Música Popular Brasileira; Representação Social; Mudanças Disruptivas; Descontinuidades. Introdução As transformações que a segunda metade do século XX aportam para o papel social da mulher e suas condições de gênero são evidentes. No entanto, se a mulher que deflagra a primeira onda do movimento feminista tem sua atuação restrita ao espaço do lar, onde na condição de ‘rainha’, encarna como principais atribuições o cuidar do marido e dos filhos, não raro na condição de intelectualmente menos dotada, aquela que inaugura a segunda onda do movimento se depara com novas questões e, consequentemente, novos desafios (Alonso, Breyton, Albuquerque, 2008).

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On Women in Brazilian Popular Music: Permanencies? Discontinuances?

A-cerca da Mulher na Música Popular Brasileira: Permanências e Descontinuidades

Anderson de Souza Sant’Anna

Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança

Programa de Mestrado Profissional em Administração

Fundação Dom Cabral

Laura Ferolla Siqueira Campos

Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança

Fundação Dom Cabral

Marcella de Assis Ribeiro Batista

Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança

Fundação Dom Cabral

Resumo: Sob uma perspectiva relacional, segundo a qual a arte não somente reproduz o status

quo, mas também antecipa e corrobora transformações por meio de sua capacidade de propagar

novos discursos e práticas discursivas, articulando múltiplos agentes sociais, o presente artigo

utiliza de achados de estudo de casos sobre a representação da mulher na música popular

brasileira, ao longo do período 1880-1970, para explorar o papel relacional engendrado a partir

das composições musicais investigadas. Para tal foi pesquisado de que forma tais composições,

seus compositores e interpretes se engajam em ações relacionais vis-à-vis às transformações

vivenciadas junto aos contextos societais em que se inserem, bem como tais ações resultaram

em ‘descontinuidades’ - assim como em ‘permanências’ - nas formas de representação da

mulher nas letras analisadas. Os achados foram agrupados em três fatores - ‘Imprevisibilidade’,

‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’ - sustentados pela oscilação das representações face aos

diferentes momentos históricos em que emergem - ‘República Nova’, ‘Estado-Novo’, ‘Pós-

guerra’, ‘Regime Militar’ - e agentes protagônicos. Isto, tendo como pano de fundo a transição

da primeira para a segunda onda do movimento feminista. Como resultado foi possível

apreender o protagonismo – individual e coletivo - e a construção de ‘espaços de fala’ como

cruciais às estratégias de ‘descontinuidades’ e ao estabelecimento de ‘agendas discursivas’.

Palavras-chave: Mulher; Música Popular Brasileira; Representação Social; Mudanças

Disruptivas; Descontinuidades.

Introdução

As transformações que a segunda metade do século XX aportam para o papel social da mulher

e suas condições de gênero são evidentes. No entanto, se a mulher que deflagra a primeira onda

do movimento feminista tem sua atuação restrita ao espaço do lar, onde na condição de ‘rainha’,

encarna como principais atribuições o cuidar do marido e dos filhos, não raro na condição de

intelectualmente menos dotada, aquela que inaugura a segunda onda do movimento se depara

com novas questões e, consequentemente, novos desafios (Alonso, Breyton, Albuquerque,

2008).

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Nesse cenário, a abertura de espaços no mercado de trabalho e na polis implicam na demanda

por ‘espaços de fala’, discursos e dispositivos de poder outros, capazes de viabilizar e sustentar

novas conquistas. Em torno de tal problemática configura-se significativo investigar de que

forma as transformações que marcam o deslocamento da primeira para a segunda onda do

feminismo evidenciam rupturas também nas formas de representação social da mulher.

Aderente a esse propósito e tendo por base a premissa de que a arte não somente reproduz, mas

em grande parte antecipa e corrobora transformações, quer no nível discursivo, quer nos níveis

político, social e comportamental, o objetivo deste artigo consiste em apresentar resultados de

pesquisa destinada a investigar o papel da música popular brasileira na disseminação de formas

distintas de representação social da mulher e suas implicações na dinâmica de transição da

primeira para a segunda onda do movimento feminista, no país.

Em sua essência poder-se-ia definir a primeira onda - ou primeira geração - do feminismo como

o período que compreende o surgimento do movimento feminista, que nasce como campanha

liberal de luta das mulheres pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, direitos

reservados exclusivamente aos homens. O movimento sufragista, que se estrutura na Inglaterra,

na França, nos Estados Unidos e na Espanha, tendo papel fundamental nessa fase, cuja tônica

centra-se na luta contra a discriminação das mulheres e na garantia de direitos, inclusive do

direito ao voto. Tem-se nessa primeira fase a denúncia da opressão à mulher imposta pelo

patriarcado (Narvaz & Koller, 2006; Meyer, 2004).

Já em sua segunda onda - ou segunda geração - emergente nas décadas de 1960 e 1970, tem-se,

nos Estados Unidos, ênfase na denúncia da opressão masculina e na busca da igualdade;

enquanto, na França, postula-se a necessidade de valorização das diferenças entre homens e

mulheres, repercutindo, em particular, a especificidade da experiência feminina, geralmente

relegada a segundo plano, senão meramente ignorada. As propostas irão caracterizar-se por

posições que enfatizam a igualdade e a singularidade da subjetividade feminina (Narvaz &

Koller, 2006; Meyer, 2004).

Paralelamente, o estudo visa evidenciar dubiedades e contradições nos modos de representação

da mulher nas manifestações musicais investigadas, superando lacunas de pesquisas abertas

pela pouca ênfase na compreensão mais aprofundada de processos por meio dos quais a música

pode ser aplicada na explicitação de ‘descontinuidades’ - assim como de ‘permanências’ - na

representação da mulher. Assim sendo, por meio de seus achados visa-se contribuir com a

literatura existente de três maneiras principais. Em primeiro lugar, oferecendo uma perspectiva

mais dinâmica da representação da mulher, tendo em vista a análise do imaginário construído

em relação à mesma em diferentes momentos históricos da sociedade brasileira - em particular

no processo de transição da primeira e segunda ondas do feminismo no país - e suas implicações

sobre a construção do imaginário em torno da mulher. Em segundo lugar, ao procurar superar

análises puramente historiográficas, incorporando a busca por uma investigação mais

sistemática de tais ‘continuidades’ e, em particular, de ‘descontinuidades’ ou tentativas mais

disruptivas na representação social da mulher, a partir de abordagem inspirada na

‘arqueogenealogia’ foucaultiana (Foucault, 1999, 1997). Em terceiro lugar, ao indicar como

discursos - e práticas discursivas - inseridas no cotidiano da sociedade, em seus níveis mais

microfísicos e capilares - como é o caso da música popular - podem operar na manutenção e ou

na catalisação de transformações sociais.

Fundamentação Teórica

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Não são poucos os trabalhos que demonstram como o modelo tradicional a que se recorre para

pensar a diferença entre os sexos compreende um modelo historicamente construído nos séculos

XVIII e XIX, fundado na primazia da heterossexualidade e da dominação masculina (Prata,

2010; Arán, 2006). Em decorrência, conforme observa Arán (2006), levar em conta a

historicidade do sexual é uma questão não apenas ética e política, mas sobretudo teórica, da

maior importância. Se há um território sexual ‘fora’ ou ‘excluído’ do simbólico, em relação ao

qual o próprio simbólico se constitui, é fundamental reconhecer de que modo contingências

históricas e políticas podem promover deslocamentos subjetivos nesse mesmo território,

ampliando as possibilidades de vida (Prata, 2010; Arán, 2006).

Igualmente, com base na ideia da arte como processo coletivo (Becker, 1982), número cada vez

maior de acadêmicos tem direcionado seus interesses do estudo de características individuais

de seus sujeitos de investigação para suas ligações interpessoais e coletivas (Montanari,

Scapolan, Gianecchini, 2016). Tais estudos compartilham o princípio chave de que a produção

de subjetividades e modos distintos de vida se processam nas tessituras e interstícios dos

discursos que fluem pelas redes de relações interpessoais e sociais (Ilari, 2006).

No entanto, debate-se de que modo as manifestações artísticas podem deliberada e efetivamente

ser mobilizadas no suporte a processos e movimentos destinados a rupturas e descontinuidades,

que resultem em formas diferenciadas de subjetivação. A utilização da arte como dispositivo

de poder, mas também de dominação ideológica e política, assim como instrumento de

manutenção do status-quo já constituem temáticas amplamente estudadas. Novos estudos,

porém, parecem requeridos no sentido de uma compreensão mais sistemática - que, inclusive,

supere descrições de cunho tipicamente historiológico - possibilitando uma apreensão mais

ampla da gênese das dinâmicas e práticas subjacentes à produção de novos discursos e, em

particular dos processos associados à sua difusão e legitimação (Montanari, Scapolan,

Gianecchini, 2016; Foucault, 1999, 1997).

Especificamente em relação ao movimento feminista - e mais diretamente à construção do

significante ‘mulher’ que o fundamenta - cabe, conforme questiona Butler (2014), melhor

delimitar a configuração de poder que constrói o ‘sujeito’ e o ‘Outro’, essa relação binária que

envolve ‘homens’ e ‘mulheres’, bem como a estabilidade interna desses termos. Em outros

termos, ‘a melhor maneira de problematizar as categorias de gênero que sustentam a hierarquia

dos gêneros e a heterossexualidade compulsória’ (Butler, 2014, p. 8).

Ainda de acordo com Butler (2014, p. 9), ‘explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero

e desejo como efeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de investigação

crítica, a qual Foucault (1997), reformulando Nietzsche, chamou de genealogia’, a qual se

direciona à investigação das apostas políticas, indicando ‘como origem e causa categorias de

identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de

origem são múltiplos e difusos’. Ao tomar como foco o gênero e a análise relacional - conforme

sugerida por Foucault (1997) - Butler (2014) acentua as possibilidades de compreensão da

‘mulher’ - e, por extensão, do ‘feminino’ - não como categoria estável, mas, ao contrário,

reconhecendo seu caráter problemático e errático. Isto, na medida em que adquire tais

significados apenas em termos relacionais.

Sob tal perspectiva, a heterossexualidade compulsória e o falocentrismo constituem regimes de

discurso-poder com formas comumente divergentes de responder a questões centrais do

discurso de gênero, tais como: ‘De que forma a linguagem constrói as categorias de sexo? [...]

Onde e como convergem heterossexualidade compulsória e falocentrismo? Onde estão os

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pontos de ruptura entre eles? Como a linguagem produz a construção fictícia de sexo que

sustenta esses vários regimes de poder?’ (Butler, 2014, p. 10).

Embora estudos anteriores tenham aberto caminho para um melhor entendimento de como a

arte - e, no caso particular deste estudo, a música - pode afetar os regimes de discurso-poder,

nossa compreensão do fenômeno permanece incompleta em dois aspectos muito importantes.

Em primeiro lugar, os estudos exploram insuficientemente o ‘processo’ por meio do qual

emergem ‘descontinuidades’ ou ‘mudanças disruptivas’, ao longo do tempo - criando novos

regimes de poder, fortalecendo relações de poder já existentes etc. Mesmo estudos que adotam

uma perspectiva mais longitudinal acabam por explorar principalmente o ‘o quê’, em uma série

de momentos, com ênfase em diferentes características estruturais ou contextuais que levam a

diferentes resultados, sem, todavia, levar em consideração sua ‘gênese’ (Montanari, Scapolan,

Gianecchini, 2016).

Em seu cerne, a teoria feminista tem presumido a existência de uma identidade definida,

compreendida pela categoria de mulheres (Butler, 2004). Compreende, também, que o sujeito

próprio das mulheres não é mais abarcado em termos estáveis ou estáticos. Porém, ainda não

há concordância quanto ao que constitui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres (Butler,

2004). Além disso, como observa Foucault (1997), os sistemas instituídos de poder produzem

os sujeitos que eles próprios passam a representar. Dessa ausência de consenso, apresenta-se

relevante novos estudos que visem investigar a maneira como relações discursivas operando

em contextos históricos específicos afetam a criação e reprodução de novos discursos,

superando ou reforçando categorias hegemônicas. Até onde conseguimos revisar, nenhum

estudo aprofundou como esse tipo de relacionamento se processa por meio da música popular

brasileira.

O presente artigo oferece, portanto, três principais contribuições à literatura sobre o tema. A

primeira consiste evidenciar as contribuições da produção artística e cultural - no caso a música

popular brasileira – nas dinâmicas orientadas à superação de formas tradicionais de poder e

dominação. A segunda, relaciona-se à evidenciação da relevância da construção e ou acesso a

‘espaços de fala’ como cruciais às estratégias desenvolvidas pelos movimentos sociais e defesa

de minorias quanto à disseminação de novas ‘agendas discursivas’. Finalmente, suas

contribuições aos estudos que se destinam à análise de descontinuidades, sob um enfoque

relacional. Acredita-se que abordagens de caráter mais relacional possam oferecer novos pontos

de vista. Isto, na medida em que no mundo das artes o ‘sucesso’ repousa sobre fontes de apoio

que um artista é capaz de mobilizar, mais que sobre o valor intrínseco de suas obras (Becker,

1982). Desse modo, o respaldo público associado ao protagonismo em suas iniciativas artísticas

e o alcance de suas metas profissionais (Jones, 1996; Svejenova, 2005), moldam, ao longo do

tempo, relacionamentos com diferentes agentes sociais, contribuindo para a emergência e ou

ampliação da capacidade de influência quer própria, quer das produções protagonizadas

(Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016).

Métodos da Pesquisa

Seguindo trilhamentos abertos por Montanari, Scapolan, Gianecchini (2016), para fins desta

pesquisa optou-se pela adoção de método baseado em casos (Yin, 2009). Os estudos de caso

são relatados como ‘particularmente bem adaptados a novas áreas de pesquisa’ (Eisenhardt,

1989, p. 548), assim como à geração de novas teorias, ao propiciarem pontos de vista úteis a

respostas a questões do tipo ‘como’ e ‘por quê’ (Yin, 2009, p. 9). Mais especificamente, a

perspectiva aqui adotada se baseia em estudo de casos múltiplos (Yin, 2009), conduzidos em

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torno de composições musicais emblemáticas da música popular brasileira que trazem

referência à categoria ‘Mulher’, visando identificar ‘permanências’ e ‘descontinuidades’ em

suas formas de representação na transição que marca o deslocamento da primeira para a

segunda onda do movimento feminista, no Brasil (Prata, 2010; Arán, 2006).

Tendo por base tal interesse da pesquisa buscou-se, como anteriormente salientado, investigar

de que forma a mulher se vê abordada na música popular brasileira durante o período que se

estende de fins do século XIX a meados do século XX. A opção pela análise da categoria

‘mulher’, a partir de composições musicais associa-se diretamente à relevância das mesmas

como forma de manifestação cultural de ampla capilaridade e capacidade de produzir - bem

como reproduzir - discursos, comportamentos e práticas sociais. Como as demais artes, a

música não deixa de se constituir como antecipadora de movimentos e tendências, simbolizando

por meio da poesia inerente a diversas de suas letras, o imaginário de diferentes grupamentos

sociais, senão da sociedade como um todo. Além desse caráter, a música se apresenta como

dispositivo par excellence de expressão e manifestação de anseios, problemas e questões que

marcam a humanidade e as relações entre seus diferentes agentes. Seja como expressão do belo,

como forma de entretenimento ou relaxamento, seja como arte engajada, de protesto ou de

mobilização social, o certo é que a música constituiu singular gramática estética e de

conversação com outras formas de arte - teatro, dança, cinema - permitindo-lhe amplo

potencial, senão de apropriação com vistas à perpetuação do status quo, mas também de

influência e transformação (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016).

Interagindo com demais artistas - escritores, poetas, dançarinos, coreógrafos, cineastas, atores

etc. - no desenvolvimento, refinamento, amplificação e implementação de suas ideias (Harrison

& Rouse, 2014), a música ‘rizomaticamente’ se difunde no contexto social (Deleuze & Guattari,

1995). Além disso, compositores mais vanguardistas, em busca de fontes de inovação e

superação dos estilos reificados pelo mainstream, deslocam-se para as periferias e áreas

‘marginais’, com vistas a evidenciar outros modos de vida e de viver. Assim, a música propicia

um ambiente significativo para a observação do fenômeno em relação ao qual estamos

interessados (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016).

No caso da música popular brasileira, ela historicamente assume papel de relevo nos principais

movimentos sociais, políticos, culturais e comportamentais, tanto na denúncia a processos de

injustiça e exploração social e no trabalho, quanto na defesa de princípios orientadores de

políticas e práticas mais humanas e igualitárias.

Nesse papel, a música popular brasileira se faz notar, desde seus primórdios, na denúncia e

sátira a mandos e desmandos políticos, na crítica ácida e irônica a governantes, ditadores,

‘coronéis’ e ‘empresários’, bem como aos modos de vida e de comportamento das ‘elites’,

incluindo seus descasos quanto às condições de vida da grande massa de cidadãos e

trabalhadores. Nas décadas de 1960-1970, por exemplo, desnecessário se faz tecer maiores

detalhamentos quanto ao seu papel na denúncia e luta em torno das grandes questões e

transformações sociais em curso. Seguindo trilhas abertas pelos movimentos em torno dos

direitos civis, os movimentos pela democracia e direito à afirmação dos povos, as lutas em torno

da qualidade de vida no trabalho colocarão em evidência, também no Brasil, roqueiros

eternizados por Woodstock; punks e seus comportamentos ‘desviantes’ e ‘transviados’,

imortalizados por músicas e letras de grupos de jovens contestadores, como o inglês Sex Pistols;

a contestação dos preconceitos raciais, encarnada pela Black Music, sendo um ícone o Black

Panthers ; além de movimentos em defesa dos direitos dos homossexuais, marcados por

músicas e hinos universais.

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Nessa direção, não se pode, igualmente, ignorar, o papel histórico desempenhado por diversos

segmentos da música popular brasileira, eternizados por meio de letras de compositores como

Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outros tantos interpretes e grupos musicais

- Novos Baianos, Doces Bárbaros -, mobilizados, em particular em festivais universitários e nas

músicas de protesto, contra o regime totalitário e de exceção instaurado no país, em 1964

(Cabral, 2016; Severiano & Homem de Mello, 2015; Homem de Mello, 2003; Napolitano,

2007; Tinhorão, 1998). Nos grandes festivais, inclusive, tem-se a emergência de novas

compositoras como Tuca, Rosinha de Valença e Joyce (Brazil, 2015).

Nesse particular, e quanto às relações entre a música popular brasileira e os movimentos

feministas? Em outros termos, retomando nossa questão central: Como a categoria ‘Mulher’ se

vê representada pela MPB, notadamente no período que marca a transição da primeira onda do

movimento feminista (que se desenrola de meados do século XIX a meados do século XX) e a

segunda onda do movimento, segundo diversos autores, iniciada na década de 1960?

Tendo como orientação tal questão, a pesquisa que subsidiou os resultados deste artigo tem

como foco o estudo de casos múltiplos (Yin, 2009), compreendendo a análise de 132

composições selecionadas dentre 304 letras de músicas constantes da primeira edição da

‘Coleção História da Música Popular Brasileira’, produzida e distribuída pela Editora Abril

Cultural, por meio de fascículos quinzenais, contendo parte editorial, textos críticos, biografias,

e fonografias com os registros das canções com intérpretes brasileiros representativos da música

popular brasileira das décadas de 1880 a 1970.

Para composição da coletânea, segundo Milani (2014), a Abril Cultural contou com o

assessoramento de críticos musicais, músicos, jornalistas e pesquisadores da música popular

brasileira como Tárik de Souza (crítico musical), Sérgio Cabral (jornalista e crítico literário),

Zuza Homem de Mello (produtor, crítico musical e pesquisador), José Ramos Tinhorão

(jornalista e pesquisador); Maurício Kubrusly (jornalista e crítico musical), Paulinho da Viola

(cantor e compositor), Aracy de Almeida (cantora) e Almirante (cantor e compositor).

Coleta de Dados

Os trabalhos de seleção, tratamento e análise das composições se desenvolveram no período

entre fevereiro de 2014 e setembro de 2016, utilizando-se além de técnicas manuais a aplicação

do software de tratamento qualitativo de dados Nvivo 9.0.

A partir da análise das letras das músicas da coletânea foram selecionadas aquelas com

significantes diretamente associados ao significante ‘mulher’. Cabe salientar como ponto de

partida para o tratamento e análise dos dados, a inserção das composições musicais e

informações a elas associadas em planilha Excel, especificando-se, desse modo, o número do

disco e da faixa musical; o nome da composição, do compositor e do interprete; seu ano de

criação; a letra da música; os trechos com referências à mulher, incluindo expressões e

significantes correlatos; e o histórico da música. Cabe salientar que tal procedimento, aplicado

às 304 composições presentes na coletânea, resultou na identificação dos 132 casos (43%),

contemplando 977 significantes com referência à noção de ‘mulher’. O Quadro 1 traz o exemplo

dos dados registrados para cada um dos 132 casos estudados.

Análise dos Dados

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A análise dos dados seguiu a sequência proposta por Langley (1999) e Montanari, Scapolan,

Gianecchini (2016). Assim, o estágio inicial da análise envolveu a construção de ‘narrativas’

associadas às composições selecionadas, com o fim de identificar o que cada significante

referente à noção de mulher visava explicitar, em que contexto se inseria e por quais possíveis

interesses teriam sido aplicados (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Garud & Rappa,

1994). Para tal, procedeu-se a análise indutiva de cada um dos 132 casos. Seguindo o processo

interativo recomendado por Strauss e Corbin (1990), as informações associadas a cada uma das

composições e seus criadores - inseridas no conteúdo da coletânea - serviram de base para o

delineamento final das ‘narrativas’ subjacentes aos significantes elencados.

Nesse sentido e a fim de se desenvolver uma compreensão mais fidedigna dos casos, cada um

dos três autores procedeu a leituras independentes das letras. Em vários momentos, à medida

em que compartilhavam as análises individualmente realizadas, discutia-se as interpretações e

representações emergentes. Nessas discussões não se objetivou medir as convergências. Ao

invés disso, as impressões e interpretações individuais foram livremente compartidas e

debatidas até se alcançar um entendimento entre os autores. Por esse procedimento logo foram

emergindo temas mais gerais. De fato, o aprofundamento na aplicação da ‘microanálise’

indicada por Strauss e Corbin (1990), paulatinamente, propiciou uma maior imersão nos dados,

a emergência de categorias para agrupamento dos significantes obtidos, bem como maior

precisão quanto às características distintivas entre elas (Montanari, Scapolan, Gianecchini,

2016).

Categorias como ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’, ‘Idealidade’, ‘Domesticidade’,

‘Corporeidade’, ‘Afetividade’, ‘Temporalidade’ e ‘Espacialidade’ foram intuitivamente

emergindo e refinadas em sucessivas alternâncias entre a discussão de dados emergentes das

letras e a teoria.

Visando delinear os sentidos atribuídos aos termos aplicados à nomeação das categorias

emergentes, vale precisar que o termo ‘Imprevisibilidade’ foi adotado para se referir à extensão

em que a mulher se apresenta associada a dúvida, dissimulação, mistério, desordem,

irracionalidade e loucura. Já ‘Objetificidade’ foi aplicado para fazer menção elementos de

dominação e submissão ao poder viril masculino.

‘Domesticidade’, por seu turno, agrupa o conjunto de termos que atribui à mulher o espaço

restrito da casa, em contraposição ao espaço da rua, tipicamente masculino (Ericeira, 2012;

DaMatta, 1994). Importante salientar que quando cabe à mulher espaços outros que não o de

‘dona de casa’ ou ‘rainha do lar’, os mesmos são pejorativamente retratados como o espaço da

orgia, da prostituição, do ‘bar mal afamado’.

Já sob o rótulo de ‘Espacialidade’ agrupam-se também referências a espaços ambíguos e

indeterminados, como ‘mulher do mundo’, ‘mulher da vida’ ou da ‘malandragem’, os quais

extrapolam seu ‘lugar’ para arriscar no espaço dos homens.

Afetos como ‘crueldade’, ‘insensibilidade’, ‘interesse’, ‘maldade’, também se apresentaram

bastante recorrentes nas composições estudadas, sendo a ‘afetuosidade’ da mulher comumente

associada à sua ausência de coração e de afeto sincero em relação a um homem que ama sem

ser correspondido. Fazendo par a essa categoria, tem-se reiteradamente a manifestação de uma

“Idealidade” inalcançável. A mulher, neste sentido, sendo por diversas vezes associada à figura

materna, a santidade, pureza e musa platônica inacessível.

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Paradoxalmente, tais traços angelicais se contrapõem a uma mulher dos espaços outros, uma

mulher cuja ‘corporeidade’ encarna a provocação, a sedução e luxúria, retirando o homem de

seu caminho racional e profissional, remetendo aos espaços de ‘esbornia’ e de ‘perdição”, a

‘descaminhos’. O Quadro 2 sintetiza significantes associados a cada uma das categorias

emergentes na primeira etapa da análise, manualmente conduzida.

Visando verificar a consistência dos fatores acima, manualmente obtidos, procedeu-se a nova

análise, desta vez tendo-se os casos submetidos a tratamento com o auxílio do N-vivo 9.0. Como

resultado da análise das frequências absolutas e de fatorações abrangendo os 132 casos

pesquisados foi possível reagrupá-los em quatro fatores: ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’,

‘Idealidade’ e ‘Domesticidade’ (Quadro 3).

Quadro 2. Análise semântico-comparativa: exemplificação de significantes por categoria

Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis

Mulher

Imprevisibilidade

Feitiço, conquista, mistério, dubiedade, traição, ilusão,

desconfiança, indecisão, inconstância, loucura, idealismo,

desordem, engano, infidelidade, superficialidade, dissimulação,

falsidade, subjetividade, fragilidade, instabilidade

Objetificidade Dominação, submissão, servidão, posse

Idealidade Santa, luz, angélica, mãe, perfeita, amor, ideal, carinho, divino,

amor, musa

Domesticidade Doméstica, casa, lar, casamento, filhos

Corporeidade

Sensualidade, luxuria, vaidade, beleza, sedução, provocação,

sorriso, olhos, cabelo, braços, beijo, tango, samba, música,

morena, mulata

Afetuosidade

Saudade, morte, carinho, sofrimento, choro, maldade, felicidade,

tristeza, dor, alegria, solidão, crueldade, sentimentalismo,

ingratidão, insensibilidade, ciúme, compreensiva

Espacialidade Orgia, mundo, Brasil, praia, bar

Fonte: Dados da pesquisa.

Quadro 3. Categorização qualitativa de significantes por categoria

Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis

Mulher

Imprevisibilidade

Abandono, acaso, paixão, risco, ruína, ausência, brincadeira,

capricho, incerteza, coração, desconfiança, desespero,

desordem, destino, dissimulada, dubiedade, emoção, engano,

esquecimento, falta, feitiço, feitiço, fingimento, fragilidade,

ilusão, inconstância, indecisão, infidelidade, ingratidão,

insensibilidade, loucura, luxúria, mágoas, menina, mistério,

morte, mundo, noite, olhar, outro, passado, perda, prantos,

promessa, provocação, desrazão, remorso, saudade, sedução,

sensualidade, sentimentalidade, separação, sofrimento, solidão,

superficialidade, tormento, traição, tristeza, vaidade, vingança

alucinação

Objetificidade

Amante, boneca, cabocla, cabrocha, cigana, colombina, corpo,

dança, desejo, dinheiro, dominação, favor, materialismo,

morena, mulata, orgia, pernas, posse, prazer, sabor, servir,

sombra, sorriso, submissão, substituição, torturante, trabalho,

vantagem

Idealidade

Adoração, sonho, calma, afeto, amor, anjo, paixão, beleza,

bênção, carinho, casamento, cinderela, ciúmes, compreensão,

criança, divino, dolente, donzela, encanto, enfeite, estrela,

fraqueza, fragilidade, ideal, inocência, luz, madame, mãe,

mãezinha, musa, musical, namorada, oração, pequena, perfeita,

perfume, prece, querida, santa, sonho, sorriso, versos

Domesticidade Casa, Cozinha, Doméstica, Favela, Favor, Filhos, Marido,

Trabalho, Criança, Babá, Vizinhança

Fonte: Dados da pesquisa.

Page 9: A representação da mulher na música popular brasileira

9

Quadro 1. Itens contemplados na análise de cada uma das composições musicais trabalhadas: caso ilustrativo

Disco Faixa Título Compositor(a) Intérprete Ano Letra Representação

da ‘Mulher’

Significantes-

Chave

Histórico

da Composição

7

7

‘Você vai

se quiser’

Noel Rosa

Noel Rosa e

Marília Batista

1937

Você vai se quiser

Pois a mulher

Não se deve obrigar a

trabalhar

Mas não vá dizer depois

Que você não tem vestido

Que o jantar não dá pra dois!

Todo cargo masculino

Seja grande ou pequenino

Hoje em dia é pra mulher...

E por causa dos palhaços

Ela esquece que tem braços:

Nem cozinhar ela quer!

Os direitos são iguais...

Mas até nos tribunais

A mulher faz o que quer...

Cada qual que cave o seu

Pois o homem já nasceu

Dando a costela à mulher!

Sim

Mulher,

trabalho,

vestido,

cozinha

‘Você vai se quiser’ foi o

único samba de Noel para

sua esposa, Lindaura.

Preocupada com as

dificuldades pelas quais

passavam, ela se propôs a

ir trabalhar fora. Do nada

feminista Noel, recebeu

essa irônica resposta: ‘Ela

esquece que tem braços, /

Nem cozinhar ela quer’.

...

Fonte: Dados da pesquisa

Page 10: A representação da mulher na música popular brasileira

10

Em nova rodada de análises, desta vez visando articular os achados obtidos manualmente e por

meio do N-Vivo 9.0, os dados obtidos foram confrontados com a teoria. Como produto foi

possível uma composição final dos significantes em três fatores principais: ‘Imprevisibilidade’,

contemplando 111 significantes (46%); ‘Objetificidade’, abrangendo 64 significantes (27%) e

‘Idealidade’, igualmente, abrangendo 66 significantes (27%), conforme ilustrado no Quadro 4.

Quadro 4. Categorização qualitativa de palavras por categoria

Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis

Mulher

Imprevisibilidade

Acaso, anormalidade, paixão, risco, ruína, brincadeira,

capricho, incerteza, ciúme, conquista, consolo,

coração, crueldade, desconfiança, desespero,

desordem, desprezo, destino, dissabor, dissimulação,

dubiedade, emoção, engano, esquecimento, falta,

feitiço, fingimento, flerte, fragilidade, fuga, ilusão,

inconstância, indecisão, infidelidade, ingratidão,

insensibilidade, lágrima, loucura, luxúria, madrugada,

mágoa, maldade, malícia, menina, mistério, perigo,

morte, mundo, noite, olhar, outro, passado, perda,

pranto, promessa, provocação, desrazão, remorso,

saudade, sedução, sensualidade, sentimentalidade,

subjetividade, sofrimento, solidão, superficialidade,

tormento, traição, tristeza, vaidade, vingança

Objetificidade

Amante, baiana, boneca, bonitinha, braços, cabocla,

cabrocha, casa, cigana, colombina, corpo, cozinha,

dança, desejo, dinheiro, doméstica, dominação, favor,

filhos, ginga, lábios, loira, loirinha, machismo, macia,

marido, materialista, minha, morena, moreninha,

mulata, orgia, pernas, posse, prazer, servir, sombra,

submissão, substituível, trabalho, vantagem, vestido,

vizinha

Idealidade

Calma, crença, adoração, afeto, amada, amor,

angelical, beleza, bênção, carinho, casamento,

cinderela, compreensão, criança, divino, dolente,

donzela, encanto, enfeite, estrela, fragilidade, ideal,

luz, madame, mãe, musa, música, namoro, olhos,

oração, pequena, perfeição, prece, querida, santa,

sereia, sonho, sorriso, verso

Fonte: Dados da pesquisa.

Cabe registrar que tal reagrupamento envolveu a exclusão de 5 significantes e a agregação,

junto ao fator ‘Objetificidade’ de 16 dos 21 originalmente constantes do fator ‘Domesticidade’.

Como critérios para os agrupamentos adotou-se os princípios da parcimônia, semelhança e

analogia (Flick, 2009).

Além de identificar tais fatores, agregando os principais significantes associados à categoria

‘Mulher’, foi possível verificar diversas contradições inerentes às variáveis observáveis neles

inseridos, incluindo alternâncias entre características, reconhecidas nos contextos sociais

vigentes como ‘positivas’, simultaneamente a referências ‘pejorativas’.

O fator ‘Imprevisibilidade’, por exemplo, ao mesmo tempo que poderia denotar maior

habilidade das mulheres em lidar com a dimensão da subjetividade - e, enfim, com aspectos

que extrapolam a instância da racionalidade puramente instrumental, masculina - inserem-se

em narrativas que acabam por desqualificar tais habilidades, transformando-as em tributárias

de ‘irracionalidade’, ‘desrazão’, ‘dubiedade’ e ‘indecisão’. Em outros termos os vinculam a

Page 11: A representação da mulher na música popular brasileira

11

incapacidades de ‘tomada de decisões racionais’, marcando o distanciamento da mulher do

universo e intuições ‘masculinas’, do ‘poder’.

Igualmente, contradições se fazem evidenciar em relação à dimensão ‘Objetificidade’,

notadamente ao retratar mulher de forma ambígua. Ora no sentido de ‘objeto sexual’ (‘mulata’,

‘morena’, ‘prazer’, ‘orgia’), ora como ‘objeto de trabalho’, a serviço e ou como fonte de

sustentação financeira do ‘patrão’, do ‘esposo’, do ‘amante’, do ‘malandro’ ou do ‘cafetão’

(‘serva’, ‘doméstica’), ora como objeto de ‘ostentação masculina’ (‘joia’, ‘vestido’, ‘beleza’).

Para capturar mudanças decorrentes de transformações econômicas e sociais vivenciadas pela

sociedade brasileira ao longo do período em análise (1880-1970), objetivando o ‘lançamento

de algo novo no campo’ (Castañer e Campos, 2002, p. 31), parte da construção da teoria

focalizou a análise dos dados por estágios. A ‘hipótese’ adotada é que diferentes momentos

históricos exibem variações nas narrativas e características atribuídas à mulher. Mais

precisamente interessou-nos, a partir da noção de ‘descontinuidade’ (Foucault, 1997),

investigar a extensão em os significantes aportados à ‘mulher’ se desviaram de convenções

dominantes na transição entre a primeira e segunda ondas do movimento feminista, no Brasil.

Além do ‘o quê’ abarcado pelos fatores propostos - características associadas aos fatores de

‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’) - objetivou-se, portanto, considerar

questões de ‘como’, ‘quando’, ‘onde’, e ‘por quê’ (Whetten, 1989).

Finalmente, vale salientar a utilização de ‘códigos seletivos’ para integrar e refinar a teoria

emergente, tendo o processo analítico se concluído quando da percepção de que ocorrera

‘saturação teórica’ (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Strauss & Corbin, 1990).

Estudo dos Casos e Achados

Nesta seção apresentamos os principais significantes utilizados para caracterização da mulher

junto às composições musicais constantes da ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’,

abrangendo o período compreendido entre os anos de 1880 a 1970. Nesse intervalo temporal se

modela, precisamente no plano internacional, mas também no Brasil, significativas

transformações culturais, sociais e comportamentais, com reflexos marcantes na luta pelos

direitos civis das ‘minorias’ e, em particular nas batalhas travadas pelo movimento feminista.

Conforme indicam diversos autores, o movimento feminista vivenciará neste período a

intensificação e expansão de suas iniciativas, instaurando um novo estágio de seu

desenvolvimento. Para eles, esse estágio se estenderá de meados do século XIX a meados do

século XX. Nesse longo período, um intenso trabalho de conscientização e envolvimento das

mulheres propiciou conquistas importantes na luta por direitos - ‘voto’, ‘divórcio’, ‘regulação

trabalhista’. No entanto, será a partir dos anos 1960 que o movimento feminista ganhará novos

contornos e maior amplitude, aportando novas agendas e pautas de luta. Nesse segundo estágio,

marcado pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, a busca por relações mais

horizontalizadas, esperam-se significantes associados a novas formas de luta (Arán, 2006).

Por meio dos casos analisados na pesquisa que subsidiou a produção deste artigo buscou-se

evidências dessas transformações. Isto envolveu a analise, década a década, de ‘permanências’

e ‘descontinuidades’ (Foucault, 1997) - nas representações da mulher subjacentes às

composições musicais objeto do estudo.

Page 12: A representação da mulher na música popular brasileira

12

Para tal, novos procedimentos de análise foram incorporados ao estudo. Em linhas gerais, os

significantes obtidos dos 132 casos investigados foram novamente transpostos e

horizontalmente alinhados em uma planilha Excel com o objetivo de proporcionar melhor

visualização de sua presença, em cada década, conforme exemplificado no Quadro 5.

Quadro 5. Alinhamento de significantes por década (Exemplificação)

1880 -1909 1910 -1919 1920 -1929 1930 -1939 1940 -1949 1950 -1959 1960 -1969 1970

Amor Amor Amor

Briga

Dinheiro Dinheiro Dinheiro Dinheiro

Mulata Mulata Mulata

Mundo Mundo Mundo Mundo Mundo

Coração Coração Coração Coração Coração Coração Coração

Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria

Fonte: Dados da pesquisa

Igualmente, com o objetivo de verificar, para cada década estudada, a representatividade dos

fatores produzidos das rodadas de análises anteriores - ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e

‘Idealidade’ - considerou-se, a partir do N-vivo 9.0, o número de repetições de cada significante

referente à noção de mulher. A Tabela 1 ilustra os resultados.

Tabela 1. Análise quantitativa dos significantes por década

Nota: A tabela considera o número de vezes que aparecem palavras mesmo que repetidas relacionadas aos fatores

obtidos, por década.

Visando articular os significantes às narrativas típicas dos momentos históricos típicos de cada

período recorremos, uma vez mais, à teoria. Como resultante foi possível, a partir da

categorização proposta por Tinhorão (1998), reagrupá-los em quatro estágios narrativos:

‘Brasil República’ (BR), ‘Estado Novo’ (EM), ‘Pós-guerra’ (PG) e ‘Regime Militar’ (RM),

conforme explicitado na Tabela 2.

Tabela 2. Análise quantitativa dos significantes por década

Nota: A tabela considera o número de vezes que aparecem palavras mesmo que repetidas relacionadas aos fatores

obtidos, por estágio.

Décadas Imprevisibilidade % Objetificidade % Idealidade % TOTAL

1880-1909 2 22,0 7 77,8 - - 9

1910-1919 22 48,9 13 28,9 10 22,2 45

1920-1929 17 53,1 7 21,9 8 25 32

1930-1939 193 52,4 112 30,4 63 17,2 368

1940-1949 76 49,0 54 34,8 25 16,2 155

1950-1959 77 46,1 35 21,0 55 32,9 167

1960-1970 82 40,7 61 30,3 58 28,9 201

Estágios Imprevisibilidade % Objetificidade % Idealidade % TOTAL

BR 24 44,4 20 37,0 10 18,6 54

EN 210 52,5 119 29,8 71 17,7 400

PG 153 47,5 89 27,6 80 24,9 322

RM 82 40,8 61 30,3 58 28,9 201

TOTAL 469 48,0 289 30,0 219 22,0 977

Page 13: A representação da mulher na música popular brasileira

13

Finalmente, além dos recortes temporais procurou-se também articular os fatores emergentes

da pesquisa às ondas do Movimento Feminista que perpassaram o período em análise (1880-

1970). As caracterizações de cada estágio vis-à-vis aos dados obtidos desta pesquisa são

discutidas a seguir.

Estágio 1 (1880-1919): Brasil República

A ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’ contempla para o período que se estende de

1880 a 1919, 54 composições com referência à categoria ‘Mulher’, correspondendo a 5,5% do

total de casos analisados. Poder-se-ia aventar que o reduzido número de letras inseridas junto à

coletânea no período em questão reproduzisse um baixo interesse quanto à temática da mulher

nos hits e gostos da audiência vigente. Essa hipótese, todavia, não se sustenta quando se leva

em conta análise mais ampla dos ‘clássicos’ musicais do período. Ao contrário, a teoria sugere

ampla gama de composições, neste período, alusiva à mulher (Ericeira, 2012; Tinhorão, 1998;

Souza, 2001; Diniz, 1999; Moraes, 1958).

Para a compreensão de seu teor vale, de início, ter em mente que a música popular brasileira

dessa época se direcionava sobretudo à classe média, cujo desejo de modernidade e superação

da realidade ‘agrária’ e do ‘ancien regime’, aproxima-a de sua equivalente nos países

desenvolvidos. Entendida, portanto, como artigo de consumo de uma sociedade urbana em

expansão, a música popular brasileira e seus novos gêneros não chegarão a atingir as camadas

populares. Isto, considerando, dentre outros fatores, os elevados preços das novas técnicas de

divulgação musical - equipamentos de rádio, discos e gramofones (Souza, 2001).

Nesse contexto, as comunidades baianas migradas para o Rio de Janeiro - alheias às novidades

importadas - serão responsáveis, neste período pós proclamação da República (1889), pelas

‘duas maiores criações coletivas do povo miúdo no Brasil: o carnaval de rua dos ranchos e suas

marchas e o ritmo do samba’ (Tinhorão, 1998, p. 263).

Sob uma perspectiva sociológica, para DaMatta (1994), as marchinhas e, posteriormente, as

músicas de Carnaval, apresentam-se exemplares para se pensar o Brasil. Isto, na medida em

que, primeiramente marginais, ganham paulatinamente espaço difundindo-se em todas as

camadas sociais, superando barreiras econômicas, etárias e sexuais, constituindo-se em

‘instrumentos simbólicos pelas quais a sociedade brasileira encontra meios para dramatizar seus

valores sociais, para pensar suas relações de poder, bem como para aludir a questões referentes

ao relacionamento entre homens e mulheres no país’ (Ericeira, 2012, p. 85).

Em levantamentos sobre a música popular brasileira desse período Ericeira (2012) faz menção

a três aspectos relevantes: em primeiro lugar, ao fato de a quase totalidade das canções serem

de autoria masculina; segundo, à predominância de compositores ligados às camadas médias

cariocas; e, terceiro, corroborando nossa hipótese, a presença de grande número de músicas

contemplando temas relacionados à mulher, com destaque para sua aparência física, sua honra

e comportamento.

Segundo historiadores da música popular brasileira até o final do século XIX não se tem registro

de músicas específicas para o Carnaval. Os grupos carnavalescos saiam pelas ruas ao som de

maxixes, habaneras, modinhas, valsas e polcas. Será somente em 1899, curiosamente pelas

mãos de uma mulher, a maestrina Chiquinha Gonzaga, que se compõe a marcha-rancho ‘Ó

Abre-Alas’, sob encomenda do cordão carnavalesco Rosa de Ouro (Diniz, 1999). Será, no

Page 14: A representação da mulher na música popular brasileira

14

entanto, somente a partir da segunda década do século XX que as músicas de Carnaval se verão

difundidas em larga escala (Moraes, 1958).

Quanto aos campos semânticos identificados para este período em relação à mulher, os dados

desta pesquisa corroboram achados anteriores que apontam para a busca de ‘[...] definição da

mulher por meio de algum aspecto físico ou natural, assim como às percepções das diferentes

formas de relacionamento entre homens e mulheres’ (Ericeira, 2012, p. 91), com destaque para

características associadas ao fator ‘Idealidade’ e, em particular, às ênfases em relação a dotes

estéticos e à beleza feminina.

Nessa direção, os casos estudados são ilustrativos da atenção dispensada ao tom da pele ou

etnia da mulher. Nesse sentido, é interessante como o ‘cabelo’ coloca-se como ‘uma espécie de

metonímia das mulheres’, elegendo-se a morena como a cor da mulher brasileira e a loira como

representante de territórios alhures (Ericeira, 2012, p. 93).

Em relação ao fator ‘Objetificação’, a mulher é comumente retratada de modo a reiterar seu

‘ser biológico’ e, portanto, objeto de prazer e ou de reprodução da espécie; e ‘[...] não como ser

social dotado de capacidade intelectual ou de aptidão para o trabalho’ e para a política (Ericeira,

2012, p. 93).

Curiosamente, as narrativas musicais analisadas neste contexto histórico fazem emergir a noção

de ‘mulher-dominante”, a qual ‘contrariamente à dominação masculina que faz uso da

agressividade e da gerência dos bens materiais para subjugar a mulher, recorre aos seus

atributos físicos e à economia afetiva para exercer o controle sobre os sentimentos e

comportamentos masculinos’, dando a entender uma inversão do sentido da dominação, ‘posto

ser a mulher que exerce o controle da relação, fazendo com que o homem solicite seu amor e

sua atenção’ (Ericeira, 2012, p. 94).

Assim sendo, ‘Objetificação’ e ‘Imprevisibilidade’ - este último menos pronunciado nas

composições analisadas neste período - parece se enodar. Isto, na medida em que ‘embora

encontrando mecanismos para se proteger contra os seus feitiços, o homem sucumbe, pedindo

anistia, perante o que denomina de ‘olhar fuzilante’ da mulher-dominante (Ericeira, 2012, p.

94). ‘Nessa relação desigual entre senhora e escravo, é este que deve implorar a Deus que sua

senhora se apiede, concedendo-lhe um beijo’. Cabe, todavia, observar que essa visão da mulher

como ocupante do papel dominante se vê reduzida ao domínio dos afetos, passando ao largo do

mundo da razão e do trabalho, propriedades inerentes e restritas ao universo masculino

(Ericeira, 2012; Bourdieu, 1999).

Além disso, tem-se uma atitude dúbia também diante da mulher-parceira - objeto idealizado-

odiado - que se desvela, por exemplo, no trato com a relação financeira: ‘ao mesmo tempo em

que a dependência econômica da mulher é um elemento a mais na posse, ela é apontada como

um risco de falsidade’. Retratando o cenário da precariedade das condições econômicas das

classes populares, o conflito doméstico, em que a mulher - ‘esposa’, ‘nêga’, ‘teúda’ e

‘manteúda’ -, objeto possuído, adquire, não raro, o estereótipo da ‘falsa interesseira’ (Costa,

2006). O Quadro 6 ilustra os principais significantes associados à mulher nas canções estudadas

referentes ao período 1880-1919.

Page 15: A representação da mulher na música popular brasileira

15

Quadro 6. Principais Significantes por Fatores (1880-1919)

Período Imprevisibilidade Objetificidade Idealidade

1880-1919 Paixão, noite, mundo, briga

Mulata, dinheiro, ardor,

calor, desejo, sabor,

donzela, fragilidade

Santidade, amor,

divindade, beleza,

alegria, prece, sonho

Fonte: Dados da pesquisa

A emergência do Estado Novo - com a tomada do poder por Getúlio Vargas -, a maior presença

da mulher no mercado de trabalho e a emergência do movimento modernista nas artes e na

cultura brasileira irá, todavia, sugerir um novo estágio.

Estágio 2 (1920-39): Estado Novo

O avanço da música popular brasileira dos morros cariocas para os recintos das médias e altas

do país será lenta e não sem perseguições, preconceitos e sobressaltos, tendo somente em 1920

se registrado o primeiro sucesso nacional de uma marchinha carnavalesca: ‘Pé de Anjo’,

composta por Sinhô. Tal abertura terá como pano de fundo uma cidade do Rio do Janeiro -

então capital federal - na efervescência do cinema, da ‘era do rádio’ e do ‘teatro de revista’. Isto

não obstante a ditadura do presidente Getúlio Vargas (1937-1945) que restringe a liberdade de

expressão, ao mesmo tempo que fomenta manifestações culturais de cunho patriótico e ufanista.

Igualmente, assiste-se à busca por apropriação da cultura popular e pela valorização de

produções ‘mestiças’, tendo-se as discussões em torno das relações de gênero maior presença

no cotidiano da cidade.

Não obstante as conquistas sociais obtidas pelas mulheres durante este período - como o direito

ao voto e à inserção em algumas atividades profissionais - prevalecem discursos conservadores,

cerceadores do direito de expressão e de circulação da mulher nos espaços públicos, ainda

reservados ao universo masculino. Conforme observa (Paranhos, 2013, p. 135): ‘Que não se

pense que o presente sepultara de vez o passado. Este se atualizava sob diversos aspectos e se

insinuava em muitos discursos, práticas e normas legais’. Sob as normas de uma estrutura ainda

fortemente patriarcal, as mulheres permanecem condenadas ao trabalho doméstico e

reprodutivo, não obstante o crescimento de sua participação na força de trabalho remunerada.

Análise dos significantes utilizados com referência à mulher nas composições musicais

produzidas nessa época reiteram-na, uma vez mais, como ideal de bela e juventude, capaz de

despertar e dominar o interesse sexual masculino; mas, ao mesmo tempo, a ele submissa e fiel.

A dimensão da dominação masculina - permeada pela noção de objetificação - impõe, por

exemplo, às mulheres que ousassem sair desacompanhadas à noite ou que cometessem algum

ato de desagrado ao pai ou ao marido duas opções: a ‘difamação’ ou ‘agressão física’.

Relevante considerar que submetidas à censura prévia do Departamento de Imprensa e

Propaganda – DIP, as composições musicais dessa época se veem sob intenso patrulhamento

visando sua conformidade aos códigos de comportamento destinados a assegurar uma ‘boa

sociedade’. Particularmente a partir de 1940, a vigilância do DIP se intensificará em torno das

figuras do ‘malandro’ e da ‘malandragem’. Como resposta, as letras comumente produzidas por

homens - e interpretadas por mulheres - terão uma torrente de canções destinadas a expressar,

em particular, a insatisfação das mulheres com companheiros ‘malandros’ e ‘sanguessugas’,

que dão as costas ao trabalho.

Page 16: A representação da mulher na música popular brasileira

16

Igualmente, serão comuns letras destinadas a expressar as ‘dores de amor’ sentidas pelos

homens; bem como de mudanças no comportamento feminino, que passam a trocar a reclusão

nos ambientes domésticos pela ‘gandaia’ (‘orgia’), regada a samba e batucada. Em certa

medida, decisão responsável pela alegria ou pelo sofrimento psicológico masculino.

A repressão do DIP fomenta também o emprego pelos compositores de então de figuras

retóricas para o enaltecimento de aspectos da ‘natureza brasileira’ e, nesse contexto, da beleza

física das mulheres. Nesse âmbito, os casos analisados nesta pesquisa, assim como a literatura

sobre o período, apontam, uma vez mais, para número significativo de letras com referência ao

tom da pele. No entanto, até então utilizadas como razão do atraso intelectual e econômico do

país, na década de 1930, o pensamento sociológico nacional busca reformulá-la como elemento

de alteridade da identidade brasileira (Ericeira, 2012; Freyre, 1981).

Esse mercado da música fomentado por gêneros locais e populares alcançará seu limite, no pós-

guerra, em particular com a mudança de postura política dos Estados Unidos em relação à

América Latina. Como efeito, após a segunda grande guerra mundial, os investimentos na

difusão do ‘American Way of Life’ colocarão termo ao estágio do Estado Novo (Souza, 2001).

Estágio 3 (1940-1959): Pós-Guerra

Em relação a este estágio identifica-se o segundo maior número de composições com a alusão

à categoria ‘Mulher’: 523 casos; sendo 153 classificados junto ao fator ‘Imprevisibilidade’, 89

no fator ‘Objetificidade’ e 80 em ‘Idealidade’ (Quadro 7).

Quadro 7. Principais Significantes por Fatores – 1940-1959

Período Imprevisibilidade Objetificidade Idealidade

1940-1959

Mundo, coração, noite,

morte, anormal, aflição

ausência, feitiço, flerte,

solidão, esquecimento, falta,

lágrima, olhar, passado,

perda, desrazão, outro,

saudade, emoção, paixão,

ruína, fingimento, remorso,

vingança, loucura,

madrugada, tormento, ilusão,

desespero, malícia

Posse, beijo, beijinhos,

lábios, ardor, desejo,

capacho, filhos, favor,

necessidade, trabalho,

vestido, morena, braços,

corpo, cozinha, criança,

agradar, boêmia, favor

Beleza, sonho, carinho,

madame, vaidade,

maternidade, prece,

sonho, alegria, carinho,

alegria, musical,

namoro, oração, versos,

pequena

Fonte: Dados da pesquisa

Em termos das narrativas presentes nas composições analisadas é significativo no cenário da

música nacional deste período, em especial com a retomada do país ao regime democrático, a

crescente influência do modelo norte-americano, com respectiva perda de espaço dos estilos

até então dominantes na música popular brasileira. Igualmente, assiste-se a um grupo de jovens

da classe média carioca, saturados pela avalanche de músicas estrangerias, a movimentos de

‘atualização’ da música brasileira. Inicialmente, com referências na música clássica e no jazz,

bem como posteriormente retomando-se o interesse pelos compositores populares forjam-se as

bases para a Bossa Nova.

O movimento bossanovista terá como pano de fundo o clima de otimismo e de modernização

vivenciado pelo país durante o governo de Juscelino Kubitschek (1954-1960). A inauguração

Page 17: A representação da mulher na música popular brasileira

17

de Brasília, a expansão dos processos de industrialização e de urbanização do país irão compor

o cenário para novos comportamentos e modos de vida.

Na música, tal clima se fará refletir na exaltação das paisagens da cidade do Rio de Janeiro, na

intimidade com o mar e com a praia. Nesse cenário, a mulher é retratada como parte do

cotidiano de uma classe média-alta, tendo como cenário favorito o bairro carioca de

Copacabana. Vale observar, no primeiro momento, uma participação da mulher eminentemente

como intérprete – com exceção de Dalva de Oliveira, em parceria com Tom Jobim, um dos

grandes nomes do movimento.

Tendo como pano de fundo as referências às paisagens fluminenses os relacionamentos serão

indiscutivelmente os temas centrais do gênero musical em questão. Nessa direção, as

composições evidenciam, uma vez mais, resquícios da mulher como ser idealizado, como

‘musa’ a que todo amor será dado, expressando a ideia de amor perfeito, ideal. Apesar de maior

horizontalidade das relações e de tímido posicionamento rumo a igualdade, a relação de

dominação masculina não sofrerá grandes mudanças, tendo a mulher se perpetuado como

‘auxiliadora’ e ‘apêndice’ do homem. Ao contrário das músicas de décadas anteriores, a

linguagem adotada para expressar os sentimentos apresenta-se, no entanto, mais leve e menos

dramática - comparativamente ao samba canção, por exemplo.

As músicas ainda se verão geralmente escritas no masculino, constatando-se não-raro o

pronome “ela” nos repertórios, aludindo à mulher uma posição secundária, comumente

associada a letras que retratam as instâncias do sentimento e/ou da relação amorosa homem-

mulher. No entanto, se por um lado algumas músicas mantêm postura de profunda

contemplação em relação à mulher em outras a vemos como agente ativo, porém em contextos

em que os discursos associados à ação feminina são frequentemente positivos. Mesmo quando

os relacionamentos acabam e emerge a saudade a mulher não é vista como ingrata, malévola,

mas ainda como ‘objeto desejado’.

Ao compararmos os achados deste período com o de períodos anteriores constata-se que apesar

de nuances à ‘igualdade’, o discurso permanece restrito ao masculino, perpetuando a condição

secundarizada do feminino, bem como a direção do ‘olhar’ ainda significativamente orientado

para o outro, no caso o homem. A condição da mulher nesse contexto, uma vez mais, marcada

pelo paradoxo: se por um lado ela é protagonista no sentido de participar da ação, consentindo

ou não o relacionamento, permanece como coadjuvante, isto, na medida em que o sentimento

se apresenta como pivô central das composições.

Enfim, apesar da emancipação de algumas mulheres, até fins da década de 1950 não se

registram mobilizações consideráveis dos movimentos feministas junto à música popular

brasileira, nem tampouco reivindicações mais sistemáticas em prol de uma causa. Apesar de

grande número de temas e questões retratados pela música popular brasileira do período terem

como substrato o cotidiano feminino, não se verifica um esforço organizado em prol de

mudanças na condição em que se vê retrata. Lamentavelmente até este período pode-se dizer

que a mulher não se reconhece como grupo e não tem história própria nos grandes hits da

música popular brasileira. Coincidentemente, o movimento feminista apesar de existir desde o

século XIX, no período abordado não será tema de grandes discussões no país. Será preciso

aguardar as grandes transformações no feminismo mundial, com a transição para sua segunda

geração, para novos movimentos.

Page 18: A representação da mulher na música popular brasileira

18

Estágio 4 (1960-1970): Regime militar

Com a promulgação, em 1969, do Ato Institucional n. 5, pelo governo militar alçado ao poder

pelo golpe de 1964, ampliam-se radicalmente os poderes do regime e sua força repressiva.

Como efeitos tem-se uma interrupção abrupta das experiências musicais registradas nas duas

décadas anteriores. A partir de então, as músicas de protesto ao regime e o movimento

tropicalista - movimento cultural que emerge sob a influência de correntes artísticas de

vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, mesclando manifestações tradicionais da

cultura brasileira a inovações estéticas e comportamentais - irão se dedicar a formas de

resistência ao endurecimento da censura e ao avanço da ideologia do projeto econômico

proposto pelo regime militar: ‘a conquista da modernidade pelo [...] alinhamento às

características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no

país’ (Tinhorão, 1998, p. 325).

Nesse estágio, como contraposição a estilos musicais ‘alienados’ - como a Jovem Guarda, por

exemplo - a ‘Música Popular Brasileira – MPB’ se afirma como sigla síntese da busca por novas

formas musicais capazes de expressar os ideais de um país que se almeja democrático e

influenciado por uma ideologia popular nacionalista. Nesse sentido temas como ‘modernidade’,

‘liberdade’, ‘justiça social’ se evidenciam como marcas registradas da MPB, em particular nos

momentos mais autoritários do regime militar, entre os anos 1969-76.

Nesse período os ouvintes mais assíduos da MPB serão os jovens, de classe média, de nível

escolar médio e universitário, os quais lhe conferem a reputação de ‘bom gosto’ e ‘qualidade

musical’. Não se pode, igualmente, ignorar os reflexos, também no Brasil, dos movimentos

estudantis, pelos direitos civis e feministas, protagonizados no continente europeu e nos Estados

Unidos. Os festivais universitários, organizados pelas principais emissoras de televisão da

época, também desempenharão papel importante no reforço aos traços e à consolidação da

hegemonia da MPB junto ao público jovem mais intelectualizado e politicamente mais

engajado.

Aproveitando a crise mundial do petróleo e o enfraquecimento do governo, com a derrocada do

‘milagre econômico brasileiro’, os jovens ganham as ruas, exilados começam a retornar ao país

e o governo a ceder a uma redemocratização ‘lenta e gradual’, impulsionando cada vez mais os

jovens e as classes populares a lutarem por seus direitos. Como resultado, o processo de

distensão do regime militar, pós 1977, irá abrir espaço para um novo boom criativo e comercial

da música popular brasileira. Já por volta de 1978, a MPB já compreendia em todas as suas

esferas estilísticas e de influência social, o segmento mais dinâmico da indústria fonográfica

brasileira. Ao mesmo tempo constata-se sua penetração junto a novos públicos, fora dos

extratos mais intelectualizados e universitários da classe média. Esse auge se estenderá até o

início dos anos 1980, quando o cenário musical nacional irá se voltar para o rock nacional.

Nesse contexto de enfrentamento ao regime militar irá ressurgir, principalmente por meio de

exilados que tiveram contato com as ideias feministas na Europa e nos Estados Unidos, bem

como da participação ativa de mulheres nas organizações eclesiais de base e de combate à

ditadura, registram-se as primeiras manifestações contrárias a violência contra a mulher.

Ampliando seus espaços de fala e de expressão, um aliado importante será a decretação do ano

de 1975 como “Ano Internacional da Mulher”.

Tal cenário estimula a militância feminista que se alastra para outros espaços - sindicatos,

partidos políticos, universidades - na defesa de temas como o direito de ter ou não filhos, a

Page 19: A representação da mulher na música popular brasileira

19

punição aos assassinos de mulheres, o aborto, a sexualidade, a violência doméstica, os quais

foram posteriormente incorporados a diversos programas de partidos políticos de esquerda

(Henkin & Rodrigues, 2014; Soares, 1998).

Enquanto o feminismo da ‘primeira onda’, no final do século XIX, centra-se em reivindicações

dos direitos políticos (direito ao voto), trabalhistas e econômicos das mulheres, o da ‘segunda

onda’, ampliado no Brasil deste período, abraça temas de caráter mais subjetivos, priorizando

as lutas pelo corpo, o direito ao prazer e ao livre exercício da sexualidade (Gomes da Silva,

2014). Conforme observa Faour (2011, p. 16), ‘só a partir dos anos 70 a mulher e o gay

passaram a ser tratados com maior dignidade por nossos letristas’. O Quadro 8 apresenta os

principais significantes associados à representação da mulher nos fatores obtidos, no período

1960-1970.

Quadro 8. Principais Significantes por Fatores – 1960-1970

Década Imprevisibilidade Objetificação Idealização

1960- 1970

Coração, flerte, fingimento,

esquecimento, capricho, emoção,

esperança, alucinação, crença,

paixão, mundo, noite, desprezo,

dissabor, razão, mágoa, saudade,

pranto, perfume

Posse, dinheiro, beijo,

calor, amante,

necessidade, braços,

corpo, casamento,

maciez, joia

Amor, carinho, beleza,

estrela, bênção,

cinderela, alegria,

adoração, calma, amor

Fonte: Dados da pesquisa

Não obstante, a prevalência do modelo masculino registra-se uma crescente expansão da

participação da mulher na composição musical. É, de fato, inegável as conquistas,

questionamentos e denúncias às formas tradicionais de dominação masculina e aos

micropoderes que as capilarisa e as naturaliza, abrindo novos ‘espaços de fala’ e, por

conseguinte, novas possibilidades de reinvenção do feminino.

Esses quatro estágios - inovação proximal, inovação difusa, inovação estabelecida e inovação

mantida – descrevem a evolução da MPB e a representação da mulher conforme os ícones

musicais constantes da ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’. Conforme procurou-

se evidenciar acima, para cada estágio constatam-se permanências e descontinuidades em torno

do imaginário da mulher. Muito embora de forma dúbia e permeada pelo ‘eterno feminino’ e

pela marca de objeto sexual, a mulher vai conquistando novas representações MPB, refletindo

o próprio movimento em prol de melhoria de suas condições no seio da sociedade brasileira.

Síntese das Discussões e Conclusões

Este estudo ao investigar como a mulher é retratada na música popular brasileira no período

compreendido entre os anos de 1880-1970, aponta para ‘permanências’, bem como sinaliza

para ‘descontinuidades’ em relação à forma de sua representação social. Mais especificamente,

os achados sugerem a possibilidade de agrupamento do universo dos significantes em três

fatores principais - ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’- recorrentes ao longo

do conjunto dos estágios que caracterizam a produção da música popular brasileira, conforme

propostos por Tinhorão (1998): ‘República Nova’, ‘Estado Novo’, ‘Pós-guerra’ e ‘Regime

Militar’.

Page 20: A representação da mulher na música popular brasileira

20

Concomitantemente, as mudanças na representação da mulher em cada um desses estágios

apontam para a influência direta de mudanças contextuais - socioeconômicas, culturais,

políticas e comportamentais - bem como suas relações e repercussões nas agendas de lutas e

conquistas dos movimentos feministas (Arán, 2006). Não obstante, convém ressaltar a

prevalência de composições musicais que retêm, ao longo do tempo, formas tradicionais de

dominação masculina (Bourdieu, 1999). De fato, os achados deste estudo apontam para o

caráter hegemônico e recorrente de representações da mulher que reiteradamente a vincula a

pares binários, tais como ‘natureza-cultura’ (biológico-corporal versus cultural-discursivo),

‘objetividade-subjetividade’ (imprevisibilidade-irracionalidade versus objetividade-

racionalidade), ‘sujeito-objeto’ (satisfação-prazer versus produção-realização). Pares esses,

reforçados por significantes que a restringem aos espaços privados e domésticos, não raro sob

justificativas que enfatizam seu frágil e instável caráter, bem como a naturalidade de seus

instintos maternos.

Recorrendo, uma vez mais à teoria, ampliamos nossa análise sobre a representação da mulher

a outros campos das artes - literatura, artes plásticas, teatro, dança -, o que permitiu constatar a

prevalência das representações obtidas por meio do estudo no contexto da música popular

brasileira. As influências patriarcais, patrimonialistas e falocêntricas se fazem igualmente

constatar também nessas outras manifestações culturais desde, inclusive, temporalidades ainda

mais remotas (Colling, 2014; Gardiner, 2005; Heilborn, 2002; Lipovetsky 2000; Perrot, 1995;

Laqueur, 1994; Stoller, 1968; Mead, 1949), conforme ilustrado no Quadro 9.

Igualmente, os achados contribuem com estudos anteriores que chamam a atenção para a

relevância da implicação pessoal do artista, como parte interessada na causa por ele defendida.

No entanto, o que reforçamos nessa discussão é a importância desses agentes na abertura e

construção de ‘espaços de fala’. Nesse sentido, acrescentamos à ênfase no papel da ação

individual (Boari & Riboldazzi, 2014), a importância de papeis sociais e relacionais, por meio

dos quais discursos alternativos possam se lançar, manipulando algum aspecto do contexto

social (Phillips & Lawrence, 2010). Desse modo, defende-se que os artistas desempenham

papel significativo ao se engajarem em trabalho relacional com o objetivo de produzir espaços

e ou abrir fissuras em que novas agendas discursivas possam penetrar e se fixar (Montanari,

Scapolan, Gianecchini, 2016). De fato, nossos achados apontam, a partir do conjunto dos

estágios estudados, possibilidades concretas de ‘descontinuidades’, somente a partir do

momento (e.g. do estágio descrito como ‘Regime Militar’), em que maior número de mulheres

assumem a tarefa de produção das próprias composições musicais.

Com base em Montanari, Scapolan, Gianecchini (2016) compreende-se o trabalho relacional

como o processo que ‘inclui o estabelecimento de ligações sociais, sua manutenção, sua

reformulação, sua distinção das outras relações e, às vezes, seu término’ (Bandelj, 2012, pág.

176). Não se trata, portanto, da proposição de formas simplistas de ação e engajamento, mas,

ao contrário, de ações ‘conceituantes’, inseridas nas estruturas sociais que se busca modelar.

Nessa direção, nossos achados contribuem para uma melhor compreensão do lado

‘microscópico’ da capacidade de disruptiva aportada pela artística e, assim, complementa e

amplia resultados de pesquisas centradas na estrutura (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016;

Cattani, Ferriani, Allison, 2014; Zaheer & Soda, 2009).

Assim sendo, ao salientar o papel desempenhado pelo trabalho relacional de um artista,

ampliamos a necessidade de olhares mais atentos à microteoria da ação criativa, que sustenta

que a inovação artística é o resultado da ação individual por meio da qual os indivíduos agem

como ‘empreendedores institucionais’ (DiMaggio, 1998), por exemplo, ao desenvolverem

Page 21: A representação da mulher na música popular brasileira

21

parcerias e grupos que apoiam suas empreitadas artísticas (Montanari, Scapolan, Gianecchini,

2016). O estudo, desse modo, amplia a compreensão do processo por meio do qual um artista

se engaja em diferentes interações com sociais, por exemplo, por intermédio de sua ligação com

outros compositores, parceiros, interpretes, festivais e ou a movimentos, os quais possam

propiciar acesso a espaços e a recursos necessários à difusão de suas ideias e causas. Inspirados,

uma vez mais, em contribuições aportadas por Montanari, Scapolan e Gianecchini (2016),

ilustramos, na Figura 1, o modelo analítico-teórico aplicado para fins deste estudo.

Figura 1. Modelo Analítico-teórico de ‘Descontínuidades’ por ação/protagonismo relacional.

Nota 1. Considerada a análise das narrativas das composições musicais, do contexto social e dos significantes

constantes dos fatores identificados na pesquisa: ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’.

Fonte: Dados da pesquisa.

Embora este estudo se debruce sobre a análise de período de tempo (1880-1970),

provavelmente sua maior contribuição esteja assentada no estágio mais recente das

composições musicais estudadas. Análise futura sobre o período pós-1970 poderá expandir os

atuais achados. Certamente, uma extensão do estudo para a transição entre a segunda e terceira

ondas do feminismo - ou ainda da terceira para a quarta onda, sugerida por alguns autores -

permitirão corroborar nossos achados acerca da importância de papeis mais protagônicos da

mulher - em particular como compositoras - na construção de ‘espaços de fala’ e de posturas

diferenciadas nas relações com os demais agentes sociais e instituições envolvidos no ‘campo’

Tempo

Pro

tago

nis

mo

da

Mu

lher n

as

Rela

ções

Trabalho

Relacional

Estágio

Representação

Social da

Mulher (1)

República Nova

(1880-1920)

Estado Novo (1930-1940)

Pós-guerra

(1940-1950) Regime Militar

(1960-1970)

Domínio masculino

das composições.

Poucas mulheres no meio. Quando

presentes, atuantes

como interpretes. No máximo, como

compositoras de

músicas instrumentais.

Radicalmente

Conservadora Fortemente

Conservadora

Domínio masculino

das composições.

Ampliação da participação das

mulheres como

interpretes de projeção nacional, via

penetração do Rádio e

Teatro de Revista

Conservadora

Domínio masculino das composições.

Mulheres como

interpretes ou em dupla com homens.

Espaços sendo

abertos no Rádio, sob

interveniência

masculina

Predomínio masculino das composições. Mulheres

começam a ocupar

espaços, por meio da televisão, movimentos

coletivos e ou festivais

Abertura de espaços de fala e de poder. Mudanças, porém,

incrementais. Construção de relações

com potenciais ‘disruptivos’ (futuro)

Mulher

Homem

Mulher

Rádio

Homem Rádio

Homem

Mulher

Rádio Homem

TV

Festivais

Movimentos

Movimento Feminista: Primeira Onda

Movimento Feminista: Segunda Onda

(Transição)

Mulher

Baixo

Alto

Page 22: A representação da mulher na música popular brasileira

22

(Bourdieu, 2009) musical - e.g. outras compositoras, parceiras, interpretes, bandas, grupos,

festivais e movimentos musicais. Acreditamos que tais ações relacionais, levadas a cabo nos

anos 1970, por um maior número não apenas de interpretes, mas também de compositoras

mulheres - e.g. Sueli Costa, Marlui Miranda, Luli e Lucina, Kátia de França, Angela Roro, Zelia

Duncan, Vange Leonel, Paula Toller, Marina Lima (Brazil, 2015) -, mas também bandas e

grupos musicais capiteados por mulheres abriram novos ‘espaços de fala’ e ‘novos dialógos’

ampliando as potencialidades de criação de novos significantes e rupturas com o mainstream.

Estudo conduzido por Henkin e Rodrigues (2014), envolvendo análise do discurso feminista

(Pêcheux, 1997) em três letras de músicas de três diferentes ‘estilos’ (Possenti, 2001) musicais:

Rock, MPB e Funk, produzidas a partir dos anos 1980, ‘período em que o movimento feminista

conquista vários direitos para as mulheres’ (Henkin e Rodrigues, 2004, p. 8), as autores

identificam que ‘o discurso feminista aparece como afirmação da igualdade entre homens e

mulheres, como crítica ao pensamento machista e como confirmação de um novo

posicionamento das mulheres em suas relações com os homens, com os espaços de produção

e reprodução do sistema, com os espaços de poder’. Ainda segundo elas ‘os discursos musicais

analisados aparecem as mulheres que exercem seus direitos e que rejeitam a dominação sexista,

mostrando a sua força e o seu protagonismo’. Muito embora o reduzido número de casos

investigados, Henkin e Rodrigues (2004, p. 17) concluem salientando que o ‘feminismo, como

acontecimento, destaca mulheres que conquistaram seu lugar no mercado de trabalho, em que

pese a dominação/exploração capitalista, que disputam, mesmo que não em condição de

igualdade, os espaços de poder, destacando fatos discursivos que revelam uma nova chave

histórica, rompendo com a concepção de naturalidade da desigualdade entre homens e

mulheres’.

Nesse sentido, possíveis retardos na incorporação da agenda de discussões da segunda onda do

feminismo, no Brasil, podem limitar a generalização dos resultados, bem como a própria opção

pelo estudo do conjunto das músicas inseridas na ‘Coleção História da Música Popular

Brasileira’ (1880-1970). Ademais, como produto comercial, os artistas, intérpretes e canções

não foram selecionadas ao acaso, mas, ao contrário, tendo por base interesses mercadológicos

e financeiros. Não obstante, conforme observa Milani (2014), evidenciarem-se, pelos

descritores das músicas e mesmo nas escolhas dos compositores, ideais de defesa da música

ligada a raízes e tradições, e não somente ao mercado.

Não obstante as limitações, importante contribuição deste estudo é sinalizar para o papel das

perspectivas relacionais, corroborando abordagens, que muito embora sob distintas matrizes

epistemologias e diferentes correntes teóricas, sugerem a relevância do estabelecimento de

redes de relacionamento, simultaneamente ao papel de agentes individuais, na construção de

posições de protagonismo nas ações e causas mobilizadas (Montanari, Scapolan, Gianecchini,

2016; Cattani , Ferriani, Allison, 2014; Bandelj, 2012; Zaheer & Soda, 2009). Assim, conforme

bem sintetiza Miranda (2014), quer por meio de um poder disciplinar que atribui poder

simbólico sobre os corpos, diferenciando e distinguindo-os em termos de valor e prestígio

(Bourdieu, 1999); quer no destaque aos agentes que fazem parte de relações de dominação e se

agregam por ter as mesmas orientações culturais e lutarem por elas (Touraine, 1985, 1984),

quer na ênfase aos modos de ação que envolvem, de um lado, as formas como os indivíduos

agem para constituir uma coletividade e, de outro, o método pelo qual eles confrontam isso com

o mundo externo e seus oponentes (Claus Offe, 1985); quer na análise de como se articulam

em uma ‘sociedade civil global’ (Alvarez, 2000) ou em um ‘enredo de redes’ (León, 1994); o

que se evidência, por meio de nossos achados, é que ‘permanências’ ou ‘descontinuidades’

derivam de um entrelaçamento de indivíduos, organizações e movimentos atuando em rede

Page 23: A representação da mulher na música popular brasileira

23

(Castells, 1999), sendo o protagonismo dos agentes na construção de ‘espaços de fala’ fator

chave às ‘dinâmicas disruptivas’.

Page 24: A representação da mulher na música popular brasileira

24

Quadro 9. A “mulher’ na antiguidade, na modernidade e no contemporâneo: significantes recorrentes

Temporalidades/

Fatores Antiguidade Modernidade Contemporaneidade

Imprevisibilidade

Sedução, emoção, astúcia, perigo, inferioridade,

desrazarão, natureza, pandora, sofrimento, pecado,

proibido, bruxa, feminilidade, dissimulação,

luxúria, ambição, infidelidade

Vaidade, histeria, loucura, nervosismo,

incapacidade, inferioridade, desgoverno,

inveja, risco

Sensibilidade, incompetência, sentimentalismo,

ingenuidade, intuição, inveja, criatividade, risco

Objetificidade Doméstica, invisibilidade, fertilidade, punição,

sexualidade, lar

Docilidade, submissão, obediência,

paciência, passividade, fraqueza, fragilidade,

subalternidade, conselheira, biológico

Fragilidade, fraqueza, dependência, submissão

Idealidade Anjo, rainha, mãe, deusa, sensibilidade

Amor, castidade, pureza, comedimento,

delicadeza, beleza, sensualidade,

maternidade

Cuidado, gentileza, polidez, compreensão,

empatia

Fonte: Dados de pesquisa

Page 25: A representação da mulher na música popular brasileira

25

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