POLÍTICA - BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia - humcertoalguém
A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …
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12º Encontro da ABCP
19 a 23 de outubro de 2020
Área Temática 17:
Teoria Política
A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO
Thais Florencio de Aguiar
DCP/IFCS-UFRJ
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Resumo em português de até 250 palavras:
5 palavras-chave em português
Resumo em inglês de até 250 palavras
5 palavras-chave em inglês
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1. Introdução
A democracia vem sendo descrita como em colapso. Terminologias como
“democracia iliberal” (Zakaria, 1997), “pós-democracia” (Crouch, 2004; Casara, 2017)
ou “desdemocratização” (Tilly, 2007; Brown, 2015) compõem, cada qual com
repertório analítico próprio, uma miríade de concepções que aponta para o ocaso
específico da democracia liberal. A discussão em torno da chamada “crise da
democracia” tem como uma das teses de grande reverberação, tanto nos meios
acadêmicos quanto nos meios de exercício de opinião pública, a ideia de que o
liberalismo – ou melhor, as liberdades civis individuais, tido como seu fundamento -
vem sofrendo ataque por parte de novas forças neoliberais.
De acordo com essa tese, esse movimento de erosão das chamadas
“liberdades liberais clássicas” constituiria fundamento da desfiguração da democracia
contemporânea. Essa tese persistente frequenta em maior ou menor medida, por
exemplo, as últimas publicações best-sellers da ciência política, como “Como as
democracias morrem”, de Levitsky e Ziblat, bem como “O povo contra a democracia”,
de Yascha Mounk e “Undoing the demos”, de Wendy Brown. A tese vem
acompanhada, principalmente, da crítica da emergência de democracias iliberais e do
populismo (terminologia muitas vezes utilizada difusamente para designar regimes não
liberais).
Algumas questões implícitas a essa concepção devem ser explicitadas. A
primeira versa sobre a natureza das ditas liberdades liberais clássicas que
caracterizam a democracia contemporânea. A segunda trata da identificação de uma
espécie de antagonismo existente entre liberalismo e neoliberalismo, a ponto de se
elaborar amplamente que o segundo se constrói com base na destruição das
liberdades civis conquistadas pelo primeiro.
Em outro campo da literatura acadêmica, a crise da democracia liberal é
formulada em outros termos. Para alguns autores, ela é um sintoma histórico de um
esgotamento da compatibilidade entre liberalismo e democracia. Domenico Losurdo
(2006), por exemplo, problematiza, mais especificamente em sua contra-história do
liberalismo, o estatuto teórico das liberdades individuais defendidas pela tradição
liberal, a partir da consideração das práticas liberais aplicadas, sobretudo, à realidade
dos povos coloniais, identificada como uma matriz que se prolonga no tempo.
Em abordagem diferenciada, outros autores como o francês Grégoire
Chamayou (2018) refletem sobre a emergência, desde os anos 70, das bases teóricas
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e práticas do que chama de liberalismo autoritário (outro nome para neoliberalismo),
assentado em uma lógica gerencial, em reação à consolidação do Estado como um
ator importante para manutenção das garantias dos direitos trabalhistas, sociais e
democráticos. O britânico Ian Bruff, usando o termo “neoliberalismo autoritário” desde
2014, elabora, a partir de bases marxistas (Poulantzas e Stuart Hall), a compreensão
de que a era atualmente vivida fundamenta-se em uma configuração do Estado em
uma entidade menos democrática, afastando-o do conflito político por meio de
implementação de mudanças legais e constitucionais1.
Esse trabalho pretende, em explorações ainda iniciais, abordar esses campos
de reflexão sobre a democracia, problematizando a relação entre liberalismo
(liberdades civis individuais) e democracia, bem como o suposto antagonismo entre
liberalismo e neoliberalismo. Busca-se compreender em que medida liberalismo e
neoliberalismo se antagonizam e em que medida se associam. Antes, todavia, é
pertinente tomar como ponto de partida a compreensão da relação que se faz
intrínseca entre liberalismo e democracia, relação essa que se cristalizou
acentuadamente ao longo do século XX, permitindo compreender ataques às
liberdades civis clássicas como ataques à democracia. Essa perspectiva demanda,
necessariamente, identificar a disputa que se deu em torno do significado da
democracia ao longo do século XIX e XX e no início deste século XXI. Para tanto,
pretende-se revisitar parte da literatura que teoriza a formação da democracia liberal.
2. Breves notas críticas sobre associação entre liberalismo e democracia
Dada a variabilidade dos termos e conceitos mobilizados na teoria política
hoje para explicar a chamada “crise da democracia” (liberalismo autoritário,
neoliberalismo autoritário, democracia iliberal etc), torna-se pertinente restabelecer um
conjunto de premissas como ponto de partida, ou melhor, uma compreensão acerca
do modelo liberal de democracia, para melhor entender o que está sendo
desconfigurado com o avanço atual do neoliberalismo.
As liberdades liberais clássicas ou liberdades civis conquistadas ao longo da
modernidade dizem respeito a um conjunto amplo de princípios que incluem,
sobretudo, a defesa do indivíduo contra o Estado, a liberdade de expressão, a
1 Apenas para salientar a constelação de terminologias e conceitos cunhados nos últimos anos
para explicar a construção da hegemonia liberal em colisão com a democracia, vale registrar as expressões “neoliberalismo progressista” e “neoliberalismo conservador” forjadas por Nancy Fraser (2019), a partir de suas análises do cenário político norte-americano.
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liberdade de opinião, liberdade de associação, direito ao voto ou sufrágio etc. Esses
direitos foram identificados à democracia moderna, concedendo-lhe realidade. As
liberdades liberais clássicas desenvolveram-se do período pré-moderno à
contemporaneidade, de modo que a concepção que identifica liberalismo e
democracia está fortemente consolidada no referencial teórico contemporâneo (Tilly,
2013; Dahl, 2001; Rawls, 2000 etc).
De acordo com o modelo poliárquico de Dahl, por exemplo, as noções de
inclusividade (direitos de participação) e de liberalização
(oposição/contestação/competição política) incluem, principalmente: liberdade de
formar e aderir a organizações, liberdade de expressão, direito ao voto, elegibilidade
para cargos públicos, direito de líderes políticos disputarem apoio (votos), garantia de
acesso a fontes alternativas de informação, eleições livres e idôneas, instituições para
fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras
manifestações de preferência (Dahl, 2001).
Com efeito, o liberalismo empresta seu significado à democracia, dos tempos
modernos aos contemporâneos, de modo que a democracia, tal como existe hoje, não
pode mais ser pensada sem a presença do liberalismo. Essa noção é quase
consensual para os autores das mais diversas perspectivas, tanto críticas quanto
liberais. Por isso, abalos nessa identificação entre liberalismo e democracia trazem,
por vezes, efeitos vertiginosos para os mais diversos campos de análise da teoria
política.
2.1 Deslindando democracia e liberalismo
Na perspectiva da marxista política Ellen Wood (2003), a identificação entre
liberalismo e democracia é desnormatizada. Wood escreve em fins dos anos de 1990,
retomando o materialismo histórico como categoria de análise para desconstruir 1)
movimentos autoproclamados anticapitalistas que, na sua concepção seriam
movimentos antiglobalização ou antineoliberais que transacionam em favor de
democracia combinada com capitalismo reformado; além de pós-modernos e
marxistas economicistas ou tecnológico-deterministas, por motivos distintos.
Para Wood, as forças liberais conformadas desde o seio do baronato feudal
em luta contra o poder centralizador do monarca (da Carta Magna de 1215, passando
pelo século XVII, com epicentro na Inglaterra, e séculos XVIII e XIX, com epicentro na
França), confluem para o estabelecimento de liberdades ou direitos individuais civis
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frente ao Estado. Essas liberdades se ampliaram de um grupo de senhores,
aristocratas e burgueses, para o maior número da população, constituindo a cidadania
moderna. Do ponto de vista dos marxistas políticos, esse advento marca a
democratização do liberalismo – dito de outro modo, o liberalismo se democratiza.
Como isso ocorre? Na visão de Wood, a confluência entre capitalismo e
liberalismo teria lançado as bases institucionais para a cisão entre esfera econômica e
política - tese maior da obra de Wood –, promovendo uma esfera econômica (a
economia de mercado) apartada do alcance dos poderes políticos democráticos. Essa
cisão é realizada com a ascensão das relações capitalistas que historicamente separa
produtores diretos em relação aos meios de produção (cercamentos, êxodo rural dos
camponeses, fim do direito de usufruto, criminalização de vadiagem, criação de
contingente do proletariado etc).
O ponto essencial para compreensão da democratização do liberalismo é o
seguinte: a separação dos meios de produção torna desnecessária a coerção
extraeconômica e concentrada nas mãos dos proprietários dos meios de produção.
Isso porque a apropriação do trabalho excedente ocorre primordialmente por
mecanismos econômicos; ao contrário das formas pré-capitalistas, em que
prevaleciam os modos extra-economicos (políticos, jurídicos e militares)2. A cisão
garante que funções de produção e distribuição, bem como de alocação do trabalho
não sejam objeto de direção política ou deliberação comum. Essas decisões são de
natureza privada (não pública) e tudo que está submetido a ela é regido pelas leis do
mercado e das relações contratuais - o trabalho, portanto, sendo uma mais uma
mercadoria. O liberalismo, como ideologia correlata ao capitalismo, torna possível a
expansão paulatina das liberdades liberais ou direitos civis da comunidade dos
senhores para ampla população. Para Wood, ao mesmo tempo em que se
democratiza, essa cidadania se torna passiva, uma vez que assuntos de distribuição
de riqueza e propriedade se apartam do poder político popular.
A democracia liberal se caracterizaria, justamente, por resguardar a esfera de
poder econômico, isto é, por liberá-la e não mais submetê-la ao poder político. Wood
assinala que a esfera de prevalência das leis de mercado não é percebida como fonte
de coerção e sim, como fonte da própria prática da liberdade. Nessa perspectiva, a
correspondência estreita entre democracia liberal e capitalismo não seria meramente
fruto de uma coincidência temporal, mas uma construção histórica. Assim se
2 É preciso esclarecer, no entanto, que não se trata de Estado x Mercado, o que reduz ou simplifica o
papel do Estado no liberalismo e, inclusive, no neoliberalismo.
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fundamental a liberalização da democracia – dito de outro modo, a democracia se
torna liberal.
Se o capitalismo reconfigurou historicamente a relação entre poder político e
econômico, tornando possível a experiência da democracia moderna, o liberalismo em
associação com ele tornam-se produtores da teoria da democracia.
O fenômeno da liberalização da democracia é uma tese de Wood que se
destaca pelo esforço analítico ou desnormatizador. Como outros autores da escola
marxista, Wood reconhece que o liberalismo deixa legados políticos importantes, como
proteção dos indivíduos e da sociedade em relação ao Estado, a proteção da esfera
privada em relação à interferência público/estatal, as liberdades civis e a contribuição
para direitos humanos. Contudo, aquilo que hoje qualifica a democracia (liberdades
civis, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, de reunião, proteção do
indivíduo contra o Estado) não contempla o sentido literal da democracia pelo demos,
isto é, dotado de um conteúdo social originário contido na fórmula “governo do povo
pelo povo” em desafio às forças oligárquicas. Nesse sentido, seria adequado deslindar
a confluência entre democracia e liberalismo, distinguindo um do outro.
“Há uma grande confusão sobre a democracia”3. Formulador de teses
analíticas de relevo sobre o consórcio entre liberalismo e democracia, Crawford
Brough Macpherson sintetiza, nessa declaração dada a Canadian Broadcasting
Corporation em 22 de janeiro de 1965, o propósito de parte significativa de sua obra,
qual seja, deslindar democracia diferenciada de liberalismo. Escreve dos anos 60 aos
804, no contexto da Guerra Fria, em que democracias liberais avançadas consistiam
na alternativa mais fortalecida frente a “tiranias totalitárias” socialistas e do bloco do
Terceiro Mundo (dicotomia considerada demasiado simplista pelo autor, afirma McKay,
2019). Na contracorrente, a produção teórica do autor canadense enfatizava a
importância de realizar uma revisão da teoria da liberal-democracia.
Na sua concepção, os valores liberais (todas as liberdades clássicas, os
direitos humanos, a ordem mundial pacífica, regra da lei, civilidade ordenada)
entraram em contradição com a democracia – entendida aristotelicamente como a
regra de muitos, não de poucos –, quando se associaram ao capitalismo e suas
relações de mercado, no bojo do qual persistem inerentemente individualismo
possessivo e desigualdades. O princípio das liberdades não tinha como efeito alterar
3 “There is a good deal of muddle about democracy”.
4 Conhecido pela obra The political theory of Possessive individualismo: from Hobbes to Locke (1962),
Macpherson publicou The Real Word of Democracy (1965), Democratic Theory: Essays in Retrieval (1973) e The Life and Times of Liberal Democracy (1977).
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essencialmente esses malefícios da sociedade de mercado. Ao fim e ao cabo, se
encaixava nessa sociedade na construção do arcabouço da sociedade de mercado
individualista e competitiva. “A democracia foi aplicada, „como um top
dressing‟[cobertura, capa, forro], ao solo „já preparado pelo funcionamento da
sociedade de mercado competitiva e individualista", ressalta McKay, citando
passagens de The Real World of Democracy de Macpherson (McKay, tradução
minha). Como Wood, ele está em busca de distinguir liberalismo e democracia
conceitual e historicamente. E, particularmente, questiona: é possível conceber um
liberalismo anti-capitalista? A tradição liberal pode recuperar a democracia ou tornar-
se mais democrática, tomando emprestados elementos da tradição marxista?
Outro crítico contundente do liberalismo é o filósofo marxista italiano
Domenico Losurdo, cujos trabalhos mais relevantes acerca do tema datam de fins da
década de 90 (Democrazia o Bonapartismo, 1997) e meados da primeira década dos
anos 2000 (Contrastoria del liberalismo, 2005). Já em Democracia e Bonapartismo,
Losurdo tematizava os recuos e avanços do sufrágio eleitoral, abordando criticamente
os teóricos do liberalismo tidos como pensadores da democracia. Em Contra-história
do Liberalismo, Losurdo problematiza o próprio estatuto das liberdades individuais
concebido pelo liberalismo: o fato de as ideias clássicas liberais serem gestadas no
seio da comunidade de senhores, ou seja, dos homens livres e proprietários, o que
para ele constitui uma código genético compatível teórica e historicamente com
colonização, escravidão e racismo modernos. O argumento de Losurdo avança até em
demonstrar, por exemplo, que liberalismo e escravidão racial não coincidem
simplesmente no tempo, mas podem ser concebidos como “singular parto gêmeo”
(2006a, 47).
Utilizando-se de um método de pesquisa que analisa o pensamento liberal
(análise teórica) e o movimento das sociedades liberais (análise histórica), o autor
concebe que o empreendimento liberal democrático de autogoverno dos senhores
livres se viabiliza por meio de formas imprescindíveis de segregação e expropriação
coloniais. A comunidade dos livres forjada pela tradição liberal seria marcada por
cláusulas de exclusão daqueles não dignos ou despreparados para a liberdade, como
trabalhadores pobres, negros, índios, mulheres etc, constituindo uma “democracia
para o povo dos senhores”5. O autor aprofunda, assim, as tensões entre liberalismo e
5 A expressão “democracia para os povos dos senhores” é usada, em princípio para designar
os regimes de segregação racial que vigoravam na África do Sul e no sul dos Estados Unidos. A expressão se torna uma categoria, sendo posteriormente empregada com mais amplamente, abrangendo a democracia liberal restrita socialmente, imprimindo cláusulas de exclusão a pobres, negros, índios, amarelos e mulheres.
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democracia, ressaltando uma matriz liberal de código genético aristocrático-burguês,
elitista, etnocêntrico e racista (universalismo limitado). A análise crítica acerca do
liberalismo constitui a linguagem e a formulação que vieram a nutrir o campo do
recente decolonialismo.
O autor sugere que essa compatibilidade não se restringe aos primórdios da
constituição moderna das ideias do liberalismo e da democracia. Guardadas as
resistências e lutas históricas, ela se persistiria operando no interior das sociedades,
seja por meio do neocolonialismo, seja pela persistência dos racismos e de outras
formas segregacionistas. Na coletânea brasileira de artigos que compõe o livro
Liberalismo: Entre Civilização e Barbárie (2006b), Losurdo projeta uma ponte entre o
liberalismo de ontem e de hoje, desde Tocqueville a Hayek. Evidencia a posição de
Tocqueville em 1848, contrária a direitos políticos e sociais como a redução da jornada
de trabalho para 12 horas, por considerar a medida socializante e, portanto, antiliberal.
Em Hayek, emblematiza sua visão sobre a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, quando afirma que ela assegura “ao camponês, ao esquimó e talvez também
ao abominável homem das neves „férias periódicas remuneradas‟”. Para o ideólogo do
neoliberalismo, ela constituia “uma tentativa de fundir os direitos da tradição liberal
ocidental com a concepção completamente diferente da revolução marxista russa”
(Hayek, 1976, p. 104, apud Losurdo, 2005). Explicita-se a tese da tensão entre
liberdade e igualdade no liberalismo clássico, aqui reapresentada como se medidas de
igualdade fossem concessões ao bolchevismo.
Os autores mobilizados aqui contribuem para o esboço de “breves” notas
críticas à associação entre liberalismo e democracia. Essa vertente do pensamento
crítico não se exaure nessa lista, tampouco aos teóricos marxistas. Outro movimento
válido para ampliação deste trabalho é a revisitação de autores liberais críticos do
liberalismo.
2.2 Resgatar o liberalismo para salvar a democracia?
Uma questão a ser analisada é posta desde os anos 60 e 70 por Macpherson,
quando ressaltava a necessidade de operar uma revisão da teoria da liberal-
democracia, de modo a depurá-la da ideologia da sociedade de mercado (capitalismo),
mesclando o liberalismo com a tradição marxista para forjar nova teoria da
democracia. A noção de que o liberalismo trouxe avanços consideráveis para a
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construção do projeto democrático não se reduz ao campo liberal. Os avanços das
ideias liberais são reconhecidos e defendidos também no campo marxista.
Essa argumentação remete à corrente revisionista marxista do início do
século XX, que reconhece o liberalismo como legado político importante. Ao contrário
de seus correligionários adeptos de projetos enfaticamente revolucionários, Bernstein
(1987) não só valoriza o sistema parlamentar como peça fundamental do sistema
democrático, bem como defende a aliança para ação no parlamento entre social-
democratas e liberais. Para ele, o socialismo é herdeiro do liberalismo, tanto do ponto
de vista cronológico quanto do ponto de vista de seu conteúdo social. De todo modo,
Bernstein concebe o socialismo como fase evolutiva do liberalismo e como tal
desempenha papel superior a este ao se colocar como verdadeiro defensor das
liberdades civis. Isso quer dizer que se o liberalismo foi capaz de romper com as
cadeias feudais impostas aos indivíduos, caberia então ao socialismo formular
maneiras de libertar os indivíduos das cadeias burguesas/capitalistas, aos quais o
liberalismo havia se associado. Nesse sentido, a liberdade do demos em relação aos
senhores e a liberdade do trabalho em relação ao capital precisam caminhar juntas.
Ellen Wood se aproxima dessa visão quando confere importância aos
avanços concernentes ao legado do liberalismo (constitucionalismo, governo limitado,
direitos individuais e liberdades civis), que liberta os indivíduos de grilhões feudais
tradicionalistas e hierarquizantes. Todavia, Wood não concede que o conceito de
democracia tenha sido identificado com liberalismo. “O liberalismo entrou no discurso
político moderno não apenas como um conjunto de ideias e instituições criadas para
limitar o poder do Estado, mas também como um substituto da democracia”, escreve
Wood (2003, p. X).
Dessa forma, essa substituição, desprovendo o conteúdo social da
democracia, teria permitido que o termo “democrático” fosse aplicado amplamente,
como os Federalistas. Essa substituição mostrou-se, para a autora, como forma de
conter impulsos revolucionários, aplicando-lhe contrapesos contrarrevolucionários. Na
sua visão, a democracia teria sido superada pelo liberalismo.
“O efeito foi a mudança do foco da „democracia‟, que passou do exercício
ativo do poder popular para o gozo passivo das salvaguardas e dos direitos
constitucionais e processuais, e do poder coletivo das classes subordinadas para a
privacidade e o isolamento do cidadão individual. Mais e mais, o conceito de
„democracia‟ passou a ser identificado com o liberalismo” (2003, p. 196, grifo da
autora).
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Para Wood, o capitalismo permite que as
esferas político, jurídico e militar (o extra-econômico), tal como configuradas pelas
relações feudais, não tenham mais implicação direta e determinante no poder
econômico (apropriação, exploração, distribuição de riquezas). A esfera econômica
não depende mais de privilégio político nem jurídico. Privilégio político é substituído
por coação econômica. “O capitalismo tornou possível a redefinição da democracia e
sua redução ao liberalismo”, escreve (2003, p. 2010). Wood considera que a
democracia pode aprender muitas lições com temas tratados pela tradição liberal
(proteção da liberdade de associação, de comunicação, diversidade de opiniões,
esfera privada inviolável), tanto na teoria quanto na prática. Todavia, o liberalismo não
estaria “equipado para enfrentar as realidades do poder numa sociedade capitalista,
muito menos para abranger um tipo mais inclusivo de democracia do que o que existe
hoje” (2003, p. 204).
Projetada aos dias de hoje, a questão apresentada por Wood converge com
trabalhos recentes de Wolfgang Streeck a propósito do capitalismo. Streeck enfatiza a
tensão entre democracia e capitalismo, que dá título ao livro de Wood, conduzindo o
leitor a novas interrogações. A persistência do capitalismo, agora em sua fase
fortemente financeirizada, depende da pressão sobre a democracia? Streeck afirma
que a nova fase do capitalismo, de uma economia de baixo crescimento e
endividamento crescente, faz este entrar em rota de colisão com os direitos
democráticos. Retomando os termos de análise de Wood, a questão pode ser
resposta assim: é o liberalismo capaz de enfrentar as condições de pressão postas
pelo capitalismo atual sobre a democracia? E ainda: o liberalismo, em nome da
democracia, se tornará incompatível com capitalismo ou ele exauriu sua capacidade
de monopolizar o imaginário sobre a democracia? São muitas questões.
3. Do liberalismo ao neoliberalismo: e a democracia?
Essas questões fazem emergir uma perspectiva funcional à reflexão sobre a
relação hoje existente entre democracia e neoliberalismo. Como compreender, por
exemplo, que em nome da democracia seja reinvindicada, atualmente, a redução de
direitos democráticos, como direitos trabalhistas, enquanto a concentração de renda
atinge patamares históricos, como mostra Piketty (2014)? A crítica do liberalismo traz
algumas possibilidades de enquadramento teórico, quando ressaltam um DNA
oligárquico e plutocrático na tradição liberal, combinado a expansão de direitos de
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cidadania passivos. Essas e outras leituras ganham relevo nesse momento de refluxo
da democracia liberal. Elaboradas, algumas delas, pouco antes da grande crise do
capitalismo financeiro de 2008, essas teorias apontam, não necessariamente para
crise da democracia, mas para crise do liberalismo.
Importante notar que o momento que, 30 anos após a queda do muro de
Berlim, e o avanço da tese do fim da historia que anunciava a expansão e
consolidação da democracia liberal, vive-se justamente o debate sobre a crise dessa
democracia e alguns autores anunciam a chegada de uma democracia pós-liberal. O
diagnóstico sobre a situação é naturalmente variado. Seguindo a perspectivas dos
autores acima, a ideia de que o liberalismo nunca foi tão necessário num momento
identificado como de contrarrevolução iliberal tenha que ser matizada. A tese de que a
combinação entre neoliberalismo econômico e autoritarismo político resume essa
contrarrevolução iliberal não parece ser suficiente como explicação. A ascensão de
partidos nacionalistas, xenófobos, o colapso do modelo de representação, a crítica da
desigualdade, o descontentamento com os serviços públicos básicos, o descrédito da
legitimidade institucional, a desconfiança do establishment político etc – que teriam
conduzido parte do eleitorado a aderir a fórmulas da nova direita – ainda carecem de
interpretações.
Autores como Wendy Brown e Dardot e Laval, seguindo as pistas de Foucault,
apontam para a disseminação do modelo empresarial pelas esferas da sociedade, de
indivíduos a Estados. O neoliberalismo seria sobretudo compreendido como um
avanço de forças desdemocratizadoras, que começa a ganhar força nos anos 70, com
a queda do modelo de Bem-Estar Social (o neoliberalismo como resistência e ele).
Outros autores como Ian Bruff (2014) e Chamayou (2020), confluindo com esses
argumentos, classificam esse advento como neoliberalismo autoritário e liberalismo
autoritário, respectivamente. Para esses autores, portanto, haveria uma mudança
qualitativa no tipo de liberalismo exercido até então. Aqui há uma distinção: não é uma
onda iliberal que faz o liberalismo de outrora entrar em refluxo, mas um novo tipo de
liberalismo. E, retomando autores abordados na primeira parte, esse novo tipo de
liberalismo (neoliberalismo) não teria uma relação tão exógena ou antagônica com o
antigo liberalismo.
Importante retornar, hoje, às raízes históricas que pavimentaram o caminho
para o neoliberalismo. Mesmo da perspectiva de seus ideólogos centrais, a relação
entre liberalismo e o novo(neo) liberalismo pode se mostrar menos antagônica do que
aparece hoje. Hayek escreve com todas as letras em “O caminho da servidão” que seu
propósito é reerguer o liberalismo difamado com a Crise de 1929, crise essa que deu
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força ao ditado “em trincheira não tem ateu, em crise não tem liberal” (ditado que, a
propósito, caiu por terra em 2008, atestando que as escolas da Áustria de Hayek, da
Chicago de Friedman e de Freiburg dos ordoliberais se mantiveram firmes). Hayek
afirma que pretende refundar o liberalismo no século XX, contra os adversários do
momento – a social-democracia, que teria não só ganhado protagonismo,
desbancando o liberalismo de tipo mais clássico, bem como influenciado os rumos do
liberalismo que teria adotado, por exemplo, planejamentos econômicos e fórmulas de
Estado de Bem-Estar.
Sendo possível apontar semelhanças estruturais entre liberalismo clássico e o
liberalismo refundado (o novo liberalismo ou neoliberalismo), cabe lembrar que ambas
são concepções que situam o mercado como centro da vida – o que rege a vida. Mais
ainda: como espaço de exercício da liberdade, que deve ser emulada em outras
dimensões da vida. A égide da liberdade como emulação da atividade econômica,
fonte de invenções/inovações, entendida como liberação das energias individuais
espontâneas, encontra seu ponto de forte contato com a “mão invisível” do liberalismo
clássico. O novo liberalismo apresenta, por suposto, características próprias, operando
a passagem do indivíduo e do Estado da sociedade de livre mercado para a sociedade
da livre empresa, em conjunto com concorrência exacerbada.
Se hoje o novo liberalismo ou neoliberalismo se caracteriza por se voltar contra
as liberdades liberais, é necessário se perguntar onde está o ponto de inflexão que
desvia do movimento de refundação para o de ruptura. O novo liberalismo se
constituiu como fase subsequente de um liberalismo e um capitalismo exauridos?
Seria possível afirmar que o neoliberalismo está para o capitalismo financeiro, assim
como o liberalismo estava para o capitalismo industrial e comercial?
Essas questões iniciais, que ainda demandam maiores investigações, parecem
habitar o coração da relação estabelecida entre liberalismo, novo
liberalismo/neoliberalismo e democracia. Uma hipótese extraída da leitura de
ideólogos como Hayek é que o neoliberalismo não deixa de disputar o significado da
democracia – o que traz mais matizes às teses de que o neoliberalismo reivindica a
desdemocratização (Wendy Brown, Dardot e Laval etc). Essa hipótese lança luz, ao
mesmo tempo, para compreensão da retórica de redução da direitos em nome da
democracia. Se a divisa liberal era a liberdade e a igualdade, mantendo a tensão
permanente entre elas, a divisa do novo liberalismo se torna a liberdade e a
desigualdade. Isso diz muito acerca da disputa de significados da democracia hoje.]
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Hayek afirma que o socialismo democrático é a grande utopia porque
compreende o planejamento na economia como pretensão irreal da consciência da
sociedade sobre ela mesma, fixando o sentido de que direção política da economia é
instrumento supressor da liberdade. Para Hayek, é fundamental que a democracia,
elaborada como soberania popular e bem comum, seja concebida como obstáculo à
supressão da liberdade individual. Toda democracia que concebe a vontade do demos
como fonte suprema, sustentando a ideia do bem comum (uma ideia ilusória, na sua
concepção), tenderia a ser arbitrária. Contra a democracia da vontade da maioria,
caberia sempre afirmar a essência da liberdade. Uma vez que essa democracia não
se torna a égide da liberdade individual tal qual concebida pelos novos liberais, surge
o ponto de inflexão: essa liberdade pode ser mais bem garantida sob regimes
autocráticos. Mais vale uma ditadura com liberalismo econômico. A democracia não
precisa se converter em "fetiche". Assim, a redução de direitos outrora democráticos
se apresenta como bandeira em defesa da democracia.
É possível neoliberalismo se dizer democrático? Possivelmente, essa é a
batalha que estamos assistindo, a batalha perene em torno dos significados da
democracia. Como destaca Verónica Gago (2018), o neoliberalismo não vem apenas
“de cima para baixo”, tendo uma grande capacidade de se recompor, dada ao
enraizamento de sua racionalidade, na infraestrutura popular, como ficou demonstrado
após as revoltas antiglobalização e antineoliberais da virada do século. O
“neoliberalismo desde baixo”, na expressão de Gago, traz grandes desafios para se
pensar o futuro do imaginário sobre a democracia.
Referências bibliográficas:
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129, 2014.
BUONICORE, Augusto C. Liberalismo. Entre civilização e barbárie. Crítica Marxista.
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indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
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