A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …
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A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE
REPRESENTAÇÃO E DE CONTRIBUIÇÃO AOS DEBATES
CONTEMPORÂNEOS
Gueise de Novaes Bergamaschine
UFOP
A obra The Executioner’s song, do americano Norman Mailer, é baseada na vida
e nos crimes de Gary Mark Gilmore. Em 1977 ele foi o primeiro homem executado com
a pena de morte nos Estados Unidos, após um intervalo de dez anos em que esse tipo de
pena havia sido abolido em solo americano. Ela é citada por Hayden White para
exemplificar o que ele trata como “docudrama”, “faction” ou “metaficção histórica”.
Em nossa pesquisa buscamos, através da análise da obra de Mailer, discutir a
categoria da metaficção histórica como um modo de representação de eventos próprios
ao nosso tempo e como forma de contribuição da historiografia para os debates sociais
contemporâneos. Nesse artigo, dividido em duas partes, analisaremos a metaficção
historiográfica como integrante de uma poética pós-moderna e depois buscaremos refletir
sobre suas possibilidades de contribuição.
1. A metaficção historiográfica
Na mesma linha de Linda Hutcheon, não vamos discutir aqui a questão da pós-
modernidade. Em vez de “enaltecer ou ridicularizar” essa condição, vamos, como a
autora, tomar a existência de uma poética pós-moderna como um “fenômeno cultural
atual que existe, tem provocado muitos debates públicos e por isso merece uma atenção
crítica” (HUTCHEON, 1991, p. 11).
Não discutir a questão da pós-modernidade não significa, no trabalho da autora,
um esvaziamento teórico da análise de uma poética pós-moderna. De forma contrária, há
um esforço enorme para se estabelecer as características dessa poética e se evitar alguns
problemas. O primeiro deles, a utilização do termo, pura e simplesmente, para se referir
ao que é contemporâneo. Ela também aponta problemas nos trabalhos de alguns detratores
do pós-modernismo que, fazendo “generalizações polêmicas” (HUTCHEON, 1991, p.
19) e agrupando obras muitos diferentes sobre o mesmo rótulo, “nos fazem perguntar o
que se está exatamente chamando de pós-modernista, embora não deixem dúvidas quanto
ao fato de que ele é indesejável” (HUTCHEON, 1991, p. 20).
Hutcheon chama a atenção para o simples fato verbal do termo pós-modernismo
conter o moderno, ou seja, o fato de ele incorporar justamente aquilo que pretende negar.
Para ela “o pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e
depois subverte, os próprios conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1991, p. 19). Atuando
dentro dos próprios sistemas que deseja subverter, ele provavelmente não constituiria um
novo paradigma, embora “possa servir como marco da luta para o surgimento de algo
novo” (HUTCHEON, 1991, p. 21).
É bastante significativo que Hutcheon trate as contradições da poética pós-
moderna como as contradições da própria sociedade capitalista, mas acrescidas de um
fator, a “presença do passado”:
(...) aquilo que quero chamar de pós-modernismo é fundamentalmente
contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político. Suas
contradições podem muito bem ser as mesmas da sociedade governada pelo
capitalismo recente, mas, seja qual for o motivo, sem dúvida essas contradições
se manifestam no importante conceito pós-moderno da ‘presença do passado’
(1991, p.20).
E esse passado estaria presente na poética pós-modernista de uma forma sempre crítica e
nunca nostálgica. Ao contrário do que dizem os detratores do pós-moderno, ele não seria
anistórico ou desistorizado. Sem ser nostálgico ou saudosista em sua reavaliação crítica
da história, ele agiria como uma força problematizadora sobre aquilo que constitui o
conhecimento histórico, desafiando o senso comum e o que está naturalizado por ele.
Colocadas as linhas gerais do que seria uma poética pós-moderna, chegamos à
metaficção historiográfica. Para a autora, a metaficção historiográfica é a forma
predominante de escrita ficcional da pós-modernidade. Nela estaria colocado o paradoxo
que se estabelece quando “a autonomia estética e a auto-reflexividade modernistas
enfrentam uma força contrária na forma de uma fundamentação no mundo histórico,
social e político” (HUTCHEON, 1991, p. 11). A necessidade de incluir as considerações
históricas e ideológicas contidas na metaficção (e que acabam por constituir o paradoxo
pós-moderno) atuam “no sentido de desafiar todo o nosso conceito de conhecimento
histórico e literário, bem como a consciência que temos sobre nossa implicação ideológica
na cultura que predomina à nossa volta” (HUTCHEON, 1991, p. 12).
A metaficção historiográfica levantaria as mesmas questões levantadas pelos
trabalhos de Hayden White, Paul Veyne, Michel de Certeau, Dominick LaCapra, Edward
Said, entre outros, sobre a relação entre o discurso histórico e o literário. Quais sejam:
questões como as da forma narrativa, da intertextualidade, das estratégias de
representação, da função da linguagem, da relação entre o fato histórico e o
acontecimento empírico, e, em geral, das consequências epistemológicas e
ontológicas do ato de tornar problemático aquilo que antes era aceito pela
historiografia - e pela literatura – como uma certeza (HUTCHEON, 1991, p.
14).
Importante ressaltar que na poética pós-moderna não existiria dialética entre a
auto-reflexão e o contexto histórico-político no qual se encaixa. Os paradoxos e a
“frustrande ausência de resolução” podem causar prazer ou problemas ao leitor,
dependendo de seu temperamento (HUTCHEON, 1991, p. 12). Para Hutcheon
o resultado dessa deliberada recusa em resolver as contradições é uma
contestação daquilo que Lyotard chama de narrativas mestras-totalizantes de
nossa cultura, aqueles sistemas por cujo intermédio costumamos unificar e
organizar (e atenuar) quaisquer contradições a fim de coaduná-las (1991, p.12)
Nas metaficções prevalece a noção de movimento e as respostas, quando existem, tem
sempre um caráter provisório e contextualmente determinado.
Por fim, cabe ainda ressaltar uma consideração de Huntcheon. As contradições
entre auto-reflexivo e o histórico não são uma novidade pós-modernista. Elas estão
presentes em obras tão antigas quanto as de Shakespeare ou de Miguel de Cervantes. A
novidade pós-modernista seria sua presença “obsessivamente repetida” e a ironia no seu
tratamento. Para a autora isso talvez explique o fato de que grandes críticos culturais
tenham sentido necessidade de abordar o tema do pós-modernismo (HUTCHEON, 1991,
p. 13).
2. Possibilidades de Contribuição
Nesse artigo, escrito em fase inicial de nossa pesquisa, queremos tratar não das
contribuições efetivas da metaficção historiográfica nos debates sociais que lhes são
contemporâneos e/ou correlatos. Esperamos poder apontá-las ao final de nossa pesquisa.
Nos interessa, por enquanto, apontar os fundamentos dessas possíveis contribuições, ou
as condições de possibilidades para que essas contribuições ocorram.
Mesmo em fase inicial de pesquisa, uma reflexão se impõe a quem estuda a
metaficção historiográfica: sua relação com o conhecimento histórico e as questões que
ela coloca, talvez de forma incisiva, à própria escrita da história.
Vale observar o diagnóstico feito por Frank Lentricchia e com o qual Huntcheon
diz concordar:
Foi aí que meus interesses pessoais coincidiram com aquilo que Frank
Lentricchia considerou como uma crise nos estudos literários atuais, que estão
presos entre a urgente necessidade de essencializar a literatura e a linguagem
em um repositório textual exclusivo, vasto e fechado, e a contrastante
necessidade de proporcionar ‘relevância’ à literatura, localizando-a em
contextos discursivos mais amplos. Tanto a arte como a teoria pós-modernas
são a encarnação dessa própria crise, não ao tomarem um dos partidos, mas ao
sobreviverem à contradição de ceder a essas duas necessidades (1991, p. 12).
A arte, a teoria pós-moderna e, portanto, a metaficção historiográfica (como
integrante da poética pós-moderna), seriam a própria encarnação de um dilema bastante
semelhante ao que acomete os estudos historiográficos e é apontado por Hayden White
em “O fardo da história”. Talvez seja possível identificar nas metaficções
historiográficas, aspectos ligados às necessidades e às possibilidades colocadas à escrita
da história pelo linguistic turn.
Em The Practical Past, Hayden White destaca as questões levantadas pela obra
Austerlitz, de W. G. Sebald’s, sobre o fazer historiográfico:
As thus envisaged, Sebald’s ‘novel’ can be viewed as a contribution in a
peculiarly postmodernist mode to that discussion over the relation between
history and literature, or factual and fictional writing, or realistc and
imaginative, or rational and mythical writing opened up by the so-called ‘crisis
of historism’ in the early twentieth century (2014, p.6).
Austerlitz desperta questões ligadas à crise do historicismo no início de século XX
ou ligadas ao próprio linguistic turn, se considerado segundo a forma mais abrangente
proposta por Araújo e Rangel em “Teoria e História da Historiografia: do giro linguístico
ao giro ético-político”. Segundo esses autores, após as questões colocadas pelo giro
linguístico, o seguinte horizonte se configuraria no interior da teoria da história e da
historiografia contemporâneas: “(1) o sujeito do conhecimento não pode produzir
enunciados privilegiados em relação à realidade a despeito das teorias e métodos em
questão e (2) a historiografia possui uma determinação específica, a de pensar e/ou
intervir no mundo que é o seu” (ARAÚJO; RANGEL, 2015, p. 328). Ou seja, o cenário
traçado por eles como uma resposta às reflexões feitas sobre o giro-linguístico aponta
para a constatação de uma impossibilidade e a reafirmação de uma necessidade.
Fica colocada a falta de transparência da linguagem, a não correspondência entre
a linguagem e seu referente e, portanto, a impossibilidade dos enunciados privilegiados
ou objetivos, no sentido de corresponderem exatamente ao passado que descrevem. No
entanto, resta reafirmada a necessidade de lidar com esse mesmo passado.
A questão da necessidade ou “acertando contas com o passado”
A necessidade de lidar com passados problemáticos é apontada por Rogério
Forastieri da Silva, e mais uma vez, para tratar do giro linguístico. Para ele, questões
complexas dentro de determinados contextos políticos, como o massacre dos armênios
ou os crimes japoneses contra chineses e coreanos em um passado recente, constituiriam
“fantasmas” que se configuram todas as vezes em que não “acertamos contas com o
passado”. E a história, com todas as limitações apontadas pelo giro linguístico, seria uma
“opção para o enfrentamento dessas questões”. Nas palavras dele:
“‘Acertar contas com o passado’ significa, entre outros aspectos, aprender a
lidar e conviver com estes fantasmas que nos rodeiam. Certamente não será
pela negação de sua existência – colocando-os sob o tapete ou punindo a quem
ousar transgredir o silêncio – que os fantasmas desaparecerão. Para nós, a
história é uma opção para o enfrentamento destas questões” (SILVA, 2015, p.
387).
Pois são justamente essas questões complexas que Hayden White parece apontar
como determinantes para o ressurgimento do romance histórico no contexto da pós-
modernidade. Para ele, a nova forma de narrativa deve ser vista dentro do contexto do
pós-guerra, e considerando a necessidade de discussão de temas ásperos, como os crimes
nazistas contra a humanidade, o massacre dos judeus e homossexuais, enfim,
considerando todo o contexto de significação do holocausto (WHITE, 2018, p. 13).
Para White esse esforço para se “chegar a um acordo com o passado” envolve uma
revisão do passado que implica em revisitar e questionar o que possa ter sido suprimido
ou escondido sobre o passado de povos, gêneros e raças. No limite, tal revisão é um
questionamento sobre o próprio conhecimento histórico tal como era produzido no final
do século XIX. É uma revisão do trabalho daqueles que “haviam sido autorizados a
determinar os tipos de perguntas que poderiam ser feitas pelo presente ao passado”, que
tipos de evidências poderiam ser apresentadas como resposta, e principalmente (para os
interesses desse artigo) uma revisão dos trabalhos dos responsáveis pela:
distinção entre um uso adequado e um uso indevido do ‘conhecimento’
histórico nas tentativas de se esclarecer ou iluminar os esforços
contemporâneos em responder à questão central de interesse social e moral: o
que Kant chamou de questão prática (...): o que eu (nós) devo (devemos) fazer?
(WHITE, 2018, p. 14)
Ou seja, o romance histórico do século XIX, após perder prestígio e autoridade e passar
por uma “desconcertante transformação nas mãos dos grandes modernistas literários”,
ressurge, pelas mãos de “cada escritor que poderíamos desejar louvar ou condenar com o
rótulo de ‘pós-moderno’”, em um contexto em que se questiona a própria validade e
utilidade do conhecimento histórico (WHITE, 2018, p.13).
Em The Practical Past, Hayden White só chega ao tema central de seu artigo após
abordar, longamente, a obra Austerlitz. Ele afirma ter sido necessário “toda a discussão
do romance histórico, da escrita literária pós-moderna” e da obra de Sebald para embasar
o que ele pretendia dizer sobre a frase de Michel de Certeau: “a ficção é o outro reprimido
da história”. Sutilmente, fica estabelecida a conexão entre a metaficção historiográfica e
o passado prático, tema que ele passará, então, a tratar (WHITE, 2018, p.14).
White então apresentará a distinção e os conceitos de Michael Oakeshott para o
“passado histórico” e o “passado prático”. Para ele a distinção é válida para tratar das
diferentes formas de abordar o passado que teriam, de um lado, os historiadores
profissionais modernos, e de outro, os leigos e praticantes de outras disciplinas.
Toda a funcionalidade ou toda aplicabilidade que se atribui ao passado prático fica
bem clara através do grande número de verbos usados para defini-lo. O passado prático
estaria ligado a tudo aquilo que utilizamos quando precisamos “justificar, dignificar,
escusar, fazer um álibi ou defender ações a serem tomadas na busca de um certo projeto
de vida”. Ou ainda, ele seria uma versão do pretérito que a maioria de nós utiliza na
realização de tarefas diárias como: “julgar situações, resolver problemas, tomar decisões
e (...) responder às consequências das decisões feitas tanto por nós e para nós por essas
instituições das quais somos, mais ou menos, membros conscientes” (WHITE, 2018,
p.16).
Por outro lado, resta também clara a pouca ou nenhuma aplicabilidade do passado
histórico, definido, logo de início, através da negativa: “o passado histórico não ensinava
quaisquer lições de interesse para o presente; era um objeto de interesse estritamente
pessoal, neutro ou, no melhor dos casos, objetivo”. Ele era “construído por historiadores”
e “existia somente em livros e ensaios acadêmicos” (WHITE, 2018, p.17).
A história havia eliminado qualquer interesse no passado prático, contido em
“memórias, ilusões, porções de informações errantes, atitudes e valores” (WHITE, 2018,
p.16), enquanto postulava seu estatuto de “ciência para o estudo do pretérito” (WHITE,
2018, p.15). Para White, quando Lyotard publica The Postmodern condition: a report on
knowledge, em 1984, “poucas pessoas pensaram ser importante notar que o gênero e o
modo dominante da escrita pós-moderna é o (neo) romance histórico”. Mas alguns
lamentaram a “infeliz” ou “desastrosa” mistura “da distinção entre fato e ficção ou entre
realidade e fantasia” nele contida (WHITE, 2018, p.18).
A metaficção historiográfica seria, para White, uma forma de “passado prático”?
A resposta para essa questão, ao que parece, fica apenas implícita em seu texto. Mais
claro é seu posicionamento quando se opõe à disjunção radical entre arte e ciência ou
quando se opõe à “hipótese do historiador convencional de que arte e ciência são meios
essencialmente distintos de compreender o mundo” (WHITE, 1994, p.41). Tal
posicionamento é afirmado com clareza em “O fardo da história”.
As metaficções historiográficas talvez se encaixem no conceito de Michael
Oakeshott de “passado prático”. Não nos parece simples afirmar que elas teriam toda a
aplicabilidade sugerida por ele. Mas, atuando em uma esfera em que arte e a ciência não
se dissociam, elas parecem vir ao encontro da necessidade de “acertar contas com o
passado” que sempre impera, mesmo após todas as impossibilidades apontadas pelo giro
linguístico. Surgidas no contexto do pós-guerra, diante da necessidade de enfrentamento
de passados problemáticos, elas parecem uma possibilidade de representação para
passados que teriam como alternativa serem silenciados, ou colocados “sob o tapete”.
Dave Eggers encerra de forma bastante significativa a apresentação escrita por ele
para a edição de 2012 de The Executioner’s song. Referindo-se à obra de Norman Mailer,
ele afirma:
Maybe it’s not what we learn that’s crucial, but the questions we’re left with.
Will we always be a manic-depressive nation of the greatest and most vile
achievements? Will we always be a nation of both astronauts and mass-
murders? The Executioner’s song doesn’t answer these questions, but it come
as close to solve the enigma of America as any other work of art we have (1980,
p. XIII).
A obra de Mailer é resultado de enorme trabalho jornalístico e foi vencedora do
Prêmio Pulitzer na categoria de Não-Ficção em 1980. Sua contribuição para solucionar o
“enigma da América” é comparada por Eggers como a contribuição de qualquer trabalho
artístico, mas ainda assim, é afirmada.
A questão da impossibilidade dos relatos privilegiados e talvez a possibilidade
da metaficção historiográfica
Todos os questionamentos sobre a relação entre pensamento, realidade e
linguagem, todas as considerações feitas pelo linguistic turn a respeito da falta de
transparência da linguagem, apontam para a impossibilidade dos enunciados
privilegiados ou objetivos, no sentido de corresponderem exatamente ao passado que
descrevem.
Outros fatores para essa impossibilidade ou para essa falta de correspondência,
ainda seriam apontados por Hayden White para um novo tipo de evento, que ele chamaria
de “evento modernista”. Tais eventos teriam uma “natureza anômala”, uma “resistência
a se enquadrar em categorias e convenções herdadas” e minariam “não apenas o status
dos fatos em relação aos eventos, mas também o status do ‘evento’ em geral” (WHITE,
1999, p. 197). Essa dissolução do evento teria consequências importantes para a forma
com que relacionamos literatura e ficção, já que minariam o que White chama de
“pressuposto básico do realismo ocidental”: a oposição entre fato e ficção (1999, p. 192).
White trata de especificar e exemplificar os eventos aos quais se refere. Eles
seriam “acontecimentos que não só não poderiam ter ocorrido antes do século XX, mas
que, por sua natureza, alcance e implicações, nenhuma idade prévia poderia sequer tê-los
imaginado”. Seriam eventos como as duas Guerras Mundiais, pobreza e fome em escalas
jamais vistas, programas de genocídio levados a efeito por sociedades, ou seja, eventos
que agiriam no interior de certos grupos sociais da mesma forma como agem os “traumas
infantis”: “não podem ser simplesmente esquecidos ou tirados da cabeça nem, por outro
lado, adequadamente lembrados” (WHITE, 1999, p. 196). São eventos sobre os quais
paira uma dificuldade de se chegar a um acordo sobre o seu significado e, portanto,
dificuldades óbvias de representação.
Para White o Holocausto seria o “evento paradigmático ‘modernista’ da história
da Europa Ocidental. Ele chegaria “a escapar à compreensão por parte de qualquer língua
até para descrevê-lo e de qualquer meio – verbal, visual, oral ou gestual – para representá-
lo”. Nos interessa especialmente a forma semelhante como George Steiner e Emile
Fackenheim se manifestaram sobre ele. Para Steiner: “O mundo de Auschwitz fica para
além das palavras como fica para além da razão”. Para Fackenheim: “O Holocausto
resiste à explicação – do tipo histórico que procura causas, e do tipo teológico que procura
significado e propósito” (WHITE, 1999, p. 210).
O que parece estar colocado nas citações acima, é que esse tipo de evento desafia
nossa lógica humanista:
Acima de tudo, esses eventos não se oferecem a qualquer explicação em termos
das categorias aprovadas pela historiografia humanista, que conceitua a
atividade do agente humano como plenamente consciente e moralmente
responsável por suas ações e capaz de discriminar, claramente, entre as causas
dos eventos históricos e seus efeitos a longo e a curto prazo de maneira
razoavelmente sensata – em outras palavras, agente que, presumivelmente,
compreende a história de maneira semelhante à dos historiadores profissionais
(WHITE, 1999, p. 198).
Justamente essa falta de relação entre causas e consequências, essa
impossibilidade de organizar ou enredar acontecimentos e ações, justamente isso marca
o que se chamou de “o fim da narrativa” que ocorre com a escrita modernista. Para White,
o fim da narrativa ocorre no sentido daquilo que Walter Benjamim chamou de “’relato
através do qual o conhecimento tradicional, a sabedoria e os lugares-comuns de uma
cultura são transmitidas de uma geração para a outra, sob a forma de uma história
sequencial” (1999, p. 203).
O historiador Christopher R. Browning parece corroborar o pensamento de White
segundo o qual o Holocausto configuraria uma nova classe de evento. Uma história
experimental do Holocausto seria algo “virtualmente impossível de conceber”. Segundo
ele, a “falha experiencial” do historiador que não viveu o Holocausto “é bem diferente do
não terem tido a experiência da Convenção Constitucional da Filadélfia ou da conquista
da Gália, por César” (WHITE, 1999, p.212). Para Browning esta falha está ligada à
natureza do evento e não às questões metodológicas. Dando um passo adiante, White
conclui que o problema não é mesmo de método, mas de representação. Os novos tipos
de evento, os “eventos modernistas” requereriam uma “completa exploração das técnicas
artísticas modernistas e pré-modernistas para sua resolução” (WHITE, 1999, p. 213).
Como White irá colocar claramente, o evento modernista não informaria sua
impossibilidade de representação, mas a necessidade de novas técnicas de representação.
Os novos gêneros de representação pós-modernista, entre eles a metaficção,
informam justamente o que Jameson chamou de “des-realização do evento” (WHITE,
1999, p. 203), e fazem isso através da “colocação em suspenso da distinção entre o real e
o imaginário” (WHITE, 1999, p. 193) ou da dissolução entre fato e ficção. Para seus
detratores, as metaficções fariam isso “em detrimento tanto da verdade quanto da
responsabilidade moral” (WHITE, 1999, p. 193). Para White elas seriam uma
possibilidade de representação de eventos traumáticos sem o risco da fetichização dos
mesmos. White chega a dizer que elas seriam a “única perspectiva de representações
adequadas para esses eventos ‘desnaturais’” (WHITE, 1999, p. 213).
Observamos que as discussões sobre as metaficções giram em torno do cenário
traçado pelo linguistic turn e sobre as questões colocadas por ele em termos de
necessidades e possibilidades da escrita da história. Surgidas em um contexto de
necessidade de se lidar com passados problemáticos, elas também parecem se adequar ao
novo tipo de evento que esses mesmos passados representam. Em fase inicial de nossa
pesquisa não é possível afirmar colaborações efetivas da metaficção para os debates que
lhes são contemporâneos e/ou correlatos. Mas é possível perceber sua forte vinculação
com o passado e com a escrita da história, e é possível situá-las no horizonte da
historiografia. Trazendo o conhecimento histórico para o centro dos debates o colocando-
o sempre sob questionamento, é possível que as metaficções tragam questões e
possibilidades de contribuição para a própria escrita da história.
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