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A medicina a serviço do império: a luta contra a doença do sono nas
colônias portuguesas nas primeiras três décadas do século XX
Ewerton Luiz Figueiredo Moura da Silva
A disputa por espaços coloniais na África conduziu ao agravamento das tensões
entre as potências europeias e, neste contexto, o governo do recém unificado império
alemão convocou uma conferência para o mês de novembro de 1884 com representantes
dos países interessados nos assuntos africanos. De acordo com Leila Hernandez, a
Conferência de Berlim (1884-1885) marcou a intensificação do processo de roedura da
África pelos europeus. Este processo, iniciado pelos portugueses no século XV, foi
mantido nos séculos seguintes com a entrada em cena de ingleses, franceses,
dinamarqueses, suecos e espanhóis que também começaram a contar com feitorias
espalhadas pelos litorais africanos onde mantinham contatos comerciais com as
sociedades africanas. Todavia, o controle político direto de extensos territórios pela mão
europeia foi reduzido, até a década de 18801.
Ao contrário de impor a partilha do continente pura e simplesmente entre os
europeus, a Conferência de Berlim buscou estabelecer as regras gerais para uma ocupação
futura e minimizar os riscos de conflitos bélicos envolvendo as potências imperialistas,
ou seja, procurou regulamentar o scramble for Africa (a corrida para a África). Seus
quatros pontos essenciais foram: a total liberdade de navegação pelos rios Congo e Níger
– importantes vias fluviais para o escoamento de mercadorias do interior para os portos
marítimos – , a total liberdade de ação para as missões religiosas cristãs em seu trabalho
de evangelização dos nativos africanos, o comprometimento no combate à escravidão –
inclusive este ponto foi utilizado como justificativa para manter a “proteção” europeia em
algumas regiões africanas – , e a consagração do princípio de ocupação efetiva para a
reivindicação de territórios coloniais – este último ponto constituiu uma derrota para a
diplomacia portuguesa empenhada na defesa dos chamados “direitos históricos” de
Portugal2.
Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo, doutorando pelo Departamento de Medicina
Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e bolsista Capes. 1 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à história contemporânea. 2.ed. São Paulo:
Selo negro, 2008.p.43-52. 2 PINTO, Alberto Oliveira. História de Angola. Da pré-história ao início do século XXI. 2.ed. Lisboa:
Mercado de letras, 2017.p.578-581.
Embora o foro econômico tenha assumido um papel central para a construção dos
impérios europeus na África, na Ásia e nas ilhas do Pacífico, houve também uma certa
sedução quanto ao status de potência conferido ao país colonizador, que naquela altura
significava ter a sua bandeira tremulando em alguma praia bordada de palmeiras ou ainda
em áreas cobertas de arbustos secos3. Em outras palavras, para pertencer ao seleto grupo
das grandes potências a aquisição de colônias era imprescindível. Assim, os ingleses e os
franceses – com as maiores fatias – e os alemães, os belgas, os italianos, os espanhóis e
os portugueses buscaram fincar suas bandeiras e “civilizar” os “atrasados” povos que
encontravam nas exuberantes paisagens africanas.
Em 1870, o domínio europeu concentrava-se essencialmente em regiões litorâneas
e ainda havia um extenso território ligado ao império otomano, estado majoritariamente
muçulmano. Em 1914, 44 anos depois e às vésperas da Grande Guerra, a África esteve
quase que inteiramente repartida entre sete países ocidentais europeus – à exceção da
Libéria, da Etiópia e da União Sul-Africana, porém esta última manteve-se ligada ao
Reino Unido com elevado grau de autonomia – e suas fronteiras limitavam-se a linhas
retas, sinal claro de partilha, impostas e totalmente artificiais ante às divisões territoriais
das sociedades africanas.
A questão do status representado pela posse colonial foi importante para o caso
português, mas as vantagens econômicas e comerciais de manter um império também
devem ser salientadas. Se por um lado Portugal estava longe de ser uma grande potência
industrial-capitalista, mantendo-se como um país pobre dependente de uma fraca
agricultura e de uma emigração crônica para o Brasil, as tarifas protecionistas, em especial
a partir de 1892, garantiam as exportações de têxteis e de vinhos portugueses para as
colônias, bem como a reexportação de produtos coloniais (borracha, café, cacau e
algodão) que representavam uma vital fonte de divisas para o país4.
A partir da década de 1870, a questão colonial tornou-se cada vez mais importante
para os círculos políticos e intelectuais portugueses, desenvolveu-se um nacionalismo
imperial que buscou reafirmar o projeto do Portugal ultramarino como reação à crise de
3 HOBSBAWN, Eric J. A Era dos impérios, 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda
Steidel de Toledo. 8.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p.102. 4 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil novas Áfricas. Portugal e o império (1808-1975). Porto:
Afrontamentos, 2000.p.141-444.
identidade sofrida pelo país em fins do Oitocentos, quando a perspectiva de união ibérica
parecia surgir no horizonte lusitano, em um contexto de transformação do concerto
europeu com as unificações italiana e alemã5. Para muitos, a existência de um Portugal
soberano apartado de suas colônias era inviável e, neste caso, o país seria facilmente
absorvido pela Espanha.
Em 1875 foi fundada, com atraso em comparação às grandes potências europeias,
a Sociedade de Geografia de Lisboa – que buscou promover expedições científicas à
África e mobilizar a opinião pública em defesa do império6. A pressão internacional para
a ocupação efetiva dos territórios esteve na origem das campanhas militares alcunhadas
de “pacificação”, que consistiam em um conjunto de combates para submeter os sobas
africanos ao controle de Lisboa. Foram guerras travadas nas últimas décadas do século
XIX e nos primeiros anos do século XX, localizadas regionalmente, devido à pluralidade
política das sociedades africanas e aos diferentes níveis de pressão exercidos pelas áreas
já controladas pelos portugueses.
Neste contexto histórico, o governo em Lisboa buscou concretizar um projeto de
um novo império africano, talvez bastante pretencioso para as reais condições do país, o
de criar uma colônia de costa a costa, do Atlântico ao Índico, ao unir os territórios de
Angola à contra costa, ou seja, a Moçambique. Para atingir tal intento, a diplomacia
portuguesa buscou se distanciar das amarras que a ligavam à Grã-Bretanha – esta
interessada em construir um império de norte a sul na África, do Cairo à Cidade do Cabo,
e, portanto, conflitivo à proposta portuguesa – e iniciar uma aproximação com os
governos francês e alemão. A proposta apresentada pelo governo português vinha
acompanhada por um mapa onde as pretensões imperiais lusitanas estavam destacadas
em um tom róseo. Tratou-se do célebre Mapa Cor-de-Rosa de 1886, apresentado pela
Sociedade de Geografia de Lisboa.
Os esforços lusitanos para a ocupação militar dos territórios compreendidos entre
Angola e Moçambique foram frustrados em janeiro de 1890 pelo ultimato britânico que
exigiu a pronta retirada das forças portugueses dos territórios em disputa com a Grã-
5 ALEXANDRE, Valentim. O império africano (séculos XIX-XX) as linhas gerais. In: ALEXANDRE,
Valentim (Org.). O império africano, séculos XIX e XX. Lisboa: edições Colibri, 2013.p.17. 6 GARCIA, José Luis Lima. A sociedade de geografia de Lisboa e a propaganda colonial em Portugal
no final do século XIX. Guarda: ESEG Publicações, 2004.
Bretanha e ainda em 1898 e 1913 as colônias portuguesas estiveram na mesa de
negociação das diplomacias britânica e alemã e um plano conjunto de partilha do ultramar
português foi negociado.
A ameaça da partilha que pairava sobre as colônias portuguesas era consequência
do flagrante contraste entre o tamanho e a importância do ultramar lusitano e as limitadas
capacidades demográficas, militares e financeiras de Portugal. A situação sanitária das
colônias era ainda bastante precária e doenças como a malária, a ancilostomíase, a
esquistossomose, a oncocercose e a doença do sono ameaçavam não apenas a viabilidade
do império português, mas também dos outros impérios europeus na África. No final do
século XIX e nos primeiros anos do século XX, a medicina tropical, em consonância com
os interesses da agenda imperialista europeia, desenvolveu-se com os trabalhos de Patrick
Manson a propósito da filariose (1877), de Charles Laveran (1884), Ronald Ross (1898)
e Giovanni Grassi (1899) em torno do paludismo e de Carlos Juan Finlay (1881) e Walter
Reed (1900) com a febre amarela. Tais pesquisas científicas destacaram a ação de
artrópodes sugadores de sangue como vetores para a disseminação destas enfermidades.
No entanto, a etiologia da doença do sono ainda permanecia uma incógnita e seus estragos
em regiões consideradas estratégicas, como a bacia do Congo e Uganda, preocupavam os
poderes europeus.
Diante deste quadro, o país que conseguisse determinar sua origem e seus
mecanismos de transmissão se destacaria entre seus pares colonizadores. Assim, o
governo português decidiu enviar para a África uma missão constituída por alguns de
seus cientistas com o intuito de estudar in loco a etiologia da doença do sono em 1901. A
missão era composta por, entre outros: Annibal Bettencourt, diretor do Instituto
Bacteriológico e chefe da missão; Annibal Celestino Corrêa Mendes, médico do quadro
de saúde de Angola e Ayres Kopke, diretor do laboratório microbiológico do Hospital da
Marinha. Depois de aproximadamente três meses de pesquisas em Angola e na ilha do
Príncipe a missão apresentou sua conclusão: a doença do sono era uma meningoencefalite
de natureza bacteriana7.
Embora os membros da missão fossem recebidos como heróis no regresso para
Lisboa, os resultados da missão foram questionados por pesquisadores da Universidade
7 A DOENÇA do somno. A Medicina Contemporânea. Lisboa, ano 19, n.40, 6 out. 1901.
de Coimbra que argumentaram ter identificado o mesmo microrganismo em experimentos
anteriores e por cientistas britânicos que foram enviados à Uganda pela Royal Society of
London em 1902. Uma controvérsia científica internacional envolvendo pesquisadores a
serviço de Portugal e da Grã-Bretanha transcorreu entre 1902 e 1903 e os resultados foram
desfavoráveis para os portugueses com o descrédito da explicação bacteriana para a
doença do sono após os pesquisadores britânicos demonstrarem a ação de um protozoário,
denominado de Trypanosoma gambiense, para os sintomas da doença8.
A partir de 1903 a doença do sono tornou-se uma tripanossomíase humana e seus
sintomas eram associados à ação do tripanosoma sobre o corpo humano. A primeira fase
da doença era caracterizada por febres e o aumento dos gânglios linfáticos na região do
pescoço, isto enquanto o parasito estivesse presente na corrente sanguínea, em uma
segunda fase, o tripanosoma invadia o líquido cefalorraquidiano provocando uma grande,
e invencível, sonolência durante o dia. A doença terminava com a morte do indivíduo e
não tinha cura9.
O vetor da temida doença eram as moscas tsé-tsé, cuja espécie principal era a
Glossina palpalis, tais dípteros, hematófagos de hábitos diurnos, habitavam as florestas
úmidas e de vegetação perene da África subsaariana.
Os europeus recorreram ao trabalho forçado de homens e mulheres nativos para a
extração de riquezas como a borracha, o ouro, o marfim e o café na África, desviando a
população nativa de suas atividades agrícolas tradicionais. A exaustão provocada pelo
árduo trabalho e pela baixa nutrição contribuíram para a diminuição da resistência dos
corpos dos habitantes locais e estes tornaram-se mais suscetíveis às doenças. E para
completar, muitos homens foram obrigados a percorrer longas distâncias no seio das
florestas tropicais, em contato direto com as moscas tsé-tsé10. Os desequilíbrios
ecológicos provocados pela ação do colonialismo europeu potencializaram os efeitos de
doenças endêmicas, como a doença do sono.
8 AMARAL, Isabel. Bactéria ou parasita? A controvérsia sobre a etiologia da doença do sono e a
participação portuguesa, 1898-1904. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol.19,
nº4, 2012-b,p.1275-1300. 9 VELHO, Luís Baptista da Assunção. A doença do sono como entidade mórbida. Revista Médica de
Angola, Luanda, n.2, 1921. p.31-33. 10 LYONS, Maryinez. The colonial disease: a social history of sleeping sickness in northen Zaire, 1900-
1940. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.p.32-51.
Durante os anos da controvérsia científica com os ingleses sobre a etiologia da
doença do sono, a medicina tropical foi institucionalizada em Portugal com a criação da
Escola da Medicina Tropical de Lisboa em abril de 1902, que começou a funcionar no
antigo edifício da Cordoaria Nacional em conjunto com o Hospital Colonial para onde
foram enviados os enfermos portugueses recém-regressados do ultramar. O objetivo da
Escola era promover o ensino da medicina tropical aos facultativos lusitanos que se
destinassem ao ultramar do país e seus custos seriam patrocinados pelas câmaras
municipais das colônias11.
A Escola de Medicina Tropical de Lisboa existiu até 1935 – ano em que deu
origem ao Instituto de Medicina Tropical – entre 1902 e 1935 instruiu pouco mais de 700
médicos12. A instituição manteve um periódico– os Arquivos de Higiene e Patologia
Exóticas – publicado de maneira irregular entre 1905 e 1926, sendo que seus exemplares
foram impressos nos anos de: 1905, 1906, 1907, 1909, 1910, 1912 e 1913, e depois em
intervalos maiores, 1915, 1918 e 1926. Esta revista científica publicava não apenas as
pesquisas desenvolvidas na Escola, mas também relatórios de médicos do ultramar e
extratos de artigos estrangeiros. Havia ainda a intenção de utilizar o periódico para a
divulgação de medidas profiláticas para o combate das principais doenças que acometiam
as colônias portuguesas: doença do sono, ancilostomíase, filariose, impaludismo e
esquistossomose.
Como os portugueses fracassaram na controvérsia etiológica em torno da doença
do sono, a escola buscou se destacar em pesquisas voltadas para a terapêutica da doença
e, neste quesito, Ayres Kopke, participante da missão de 1901 e professor da Escola de
Medicina Tropical, tornou-se a maior referência da medicina tropical portuguesa no início
do século XX. Em abril de 1906, durante o XV Congresso Internacional de Medicina,
ocorrido em Lisboa, Kopke apresentou os resultados do uso do Atoxyl (anilida meta-
arsênica) no tratamento da doença do sono. Este composto orgânico arsenical, fruto da
11 PINA, Luís. Investigadores portugueses sobre medicina tropical. Anais do Instituto de Medicina
Tropical, Lisboa, v.15, 1958. p.470-474. 12 FRAGA AZEVEDO, João. Cinquenta anos de atividade de instituto de medicina tropical. Lisboa,
1952.p.97-110.
indústria química alemã, foi empregado pelo cientista português em doentes do sono
através de injeções hipodérmicas em doses máximas de 15 centímetros cúbicos desta
substância diluída em solução aquosa de 10% de oito em oito dias, durante 1 a 2 meses.
Segundo o pesquisador as doses precisavam ser elevadas para evitar a resistência dos
tripanosomas ao uso do Atoxyl, o método de Kopke proporcionava vantagens apenas nos
estágios iniciais da doença:
Em seguida ao tratamento os doentes melhoram, alguns consideravelmente,
desaparecendo os tripanossomas do sangue e do suco linfático facto este
comprovado pela inoculação em animais.
Persistem, porém, os tripanosomas no líquido cefalo-raquidiano, facto que
demonstra serem o tratamento hipodérmico e intravenoso insuficientes para
obter a cura nos doentes em que já se tenha dado a invasão sub-meningea pelos
flagelos13.
O Atoxyl poderia ser eficiente para matar os tripanosomas que se encontrassem
na corrente sanguínea, mas, a partir do momento em que o Trypanosoma gambiense
atingisse o líquido cefalorraquidiano, os efeitos da droga tornavam-se inócuos para
impedir o avanço mortal da doença.
A lógica empregada nestes tratamentos consistia em utilizar compostos químicos
de ação tripanocida, porém estes mesmos compostos também eram potencialmente
danosos ao corpo humano: as doses de Atoxyl provocavam sintomas de intoxicação com
dores no Epigastro, vômitos e, o pior, o aparecimento de graves lesões oculares que
poderiam levar à cegueira14. O medicamento era aplicado também como medida
profilática: ao injetar a droga no organismo de um indivíduo, os tripanosomas
desapareciam da corrente sanguínea o que impossibilitava o contato dos parasitos com a
mosca tsé-tsé no momento da picada.
O uso frequente do Atoxyl começou a deixar claro suas contraindicações e no
início da década de 1910 sua utilização, embora continuasse vigente, passou a ser
seriamente questionada: “toda a gente está actualmente d’accordo em que a cegueira
apparecida no decorrer da doença do somno deve ser atribuída, quasi exclusivamente, à
13 KOPKE, Ayres. Estudo da doença do sôno. Memória premiada no concurso da Sociedade de Geografia
de Lisboa. Lisboa: Tipografia da Cooperativa Militar, 1915. p.113. 14 REBÊLO, Frederico Leopoldino. O Atoxyl no tratamento da doença do sono. 56f. Tese de
Doutoramento, Faculdade de Medicina do Porto, 1921.p.43.
medicação atoxylica empregada para a combater15”. Ao longo das décadas de 1910 e
1920, outras drogas foram usadas para o tratamento da doença do sono como o Bayer-
205 e o Triparsamida, tidas como menos perigosas ao homem que o Atoxyl16.
A doença do sono ocupou um lugar de destaque na agenda científica da Escola de
Medicina Tropical de Lisboa, sendo que a maioria das missões apoiadas pela escola na
África destinou-se a estudar ou combater a tripanossomíase humana africana (Príncipe
1904, 1907 e 1911; Moçambique 1910 e 1928 e Guiné 193217). A primeira delas foi
enviada para a ilha do Príncipe na sequência de uma epidemia de beribéri e comandada
por Ayres Kopke que aproveitou a viagem para estudar os doentes do sono e colher
espécimes de glossinas em Angola e no Príncipe – visto que a escola encontrava grandes
dificuldades em conseguir o envio de doentes para Lisboa, bem como a remessa de
exemplares de moscas para compor seu acervo entomológico.
A presença de Kopke em África contribuiu para estreitar as relações com médicos
pertencentes ao quadro de saúde das colônias: Annibal Corrêa Mendes, membro da
missão de Bettencourt de 1901 e diretor do laboratório bacteriológico do Hospital Maria
Pia em Luanda, e Bernardo Bruto da Costa, diplomado pela Escola de Medicina Tropical
em 1905 e diretor do laboratório bacteriológico de São Tomé. Estes homens, em 1907,
protagonizaram a segunda missão enviada à ilha do Príncipe para combater a doença do
sono que causava grandes prejuízos materiais e humanos18.
A terceira missão de estudos foi comandada por José Firmino Sant’Ana,
diplomado no curso de medicina tropical pela escola em 1907, em Moçambique no ano
de 1910. A doença do sono na África oriental portuguesa possuía algumas
particularidades em relação às colônias voltadas para o Atlântico: seu agente etiológico
era o Trypanosoma rhodesiense e o vetor predominante era a Glossina morsitans.
15 PINTO, J. da Gama. As perturbações visuais na tripanossomíase. A Medicina Contemporânea, Lisboa,
ano 29, jan.1911. p.31. Procedeu-se na manutenção da grafia original. 16 PINTO, B.R Gomes. Resultados do tratamento de tripanossomados avançados com vírus gambiense por
triparsamida por via intra-carotideana. . A Medicina Contemporânea, Lisboa, ano 52, mar.1934. p.93-99. 17 AMARAL, Isabel. Emergence of tropical medicine in Portugal: the school of tropical medicine and the
colonial hospital of Lisbon. In: Dynamis, v.28, 2008. p.312-318. 18 CASTRO, Ricardo Motta Veiga Themudo. A escola de medicina tropical de Lisboa e a afirmação
do estado português nas colónias africanas (1902-1935).165f. Tese (Doutoramento) – História, Filosofia
e Património da Ciência e da Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, 2013.p.45-47.
Em Moçambique a tripanossomíase humana africana não assumiu a mesma
dimensão epidemiológica de Angola ou da ilha do Príncipe, mas o relatório de Firmino
Sant’Ana chamou a atenção para a ameaça de invasão da África oriental portuguesa pela
doença através dos distritos de Tete e Quelimane – localizados na fronteira com as
colônias inglesas da Rodésia do Norte e da Niassalândia, ambas contaminadas pelo
Trypanosoma rhodesiense. Além disso, os temores eram justificados pela constatação da
existência de exemplares da Glossina morsitans pelo território moçambicano e pelo
constante tráfego de indígenas e mercadorias entre as colônias inglesas e a portuguesa.
Como medida preventiva, Sant’Ana prescrevia a derrubada de florestas, a eliminação da
caça, a atenção aos indígenas que retornassem da ilha do Príncipe e o controle dos
movimentos populacionais entre as áreas infectadas e as áreas indenes.
A acção dos médicos diz respeito não só à difusão da assistência médica, como
tambêm à pesquisa dos casos de infecção, ao estudo da distribuição das
glossinas e à execução imediata de todas as medidas de defesa que as
oportunidades reclamem, competindo a cada um, na respectiva área, a
inspecção dos emigrantes que devem passar a fronteira vindos das regiões
infectadas19.
Entre os anos de constituição de tais missões de estudo à África, Portugal sofreu
uma importante ruptura institucional: em 5 de outubro de 1910 o rei D. Manuel II foi
deposto e a República implantada no país. O historiador Ricardo Themudo de Castro
analisou como a mudança do regime político possibilitou a alteração do papel
institucional da Escola de Medicina Tropical de Lisboa.
Desde sua fundação até o fim da monarquia portuguesa (1902- 1910), a Escola de
Medicina Tropical constituiu-se como uma importante peça da administração colonial,
sujeita ao Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, a instituição conseguiu
legitimidade científica em Portugal e no exterior ao atuar como uma reguladora das
práticas médicas exercidas nas colônias e articuladora entre a política sanitária portuguesa
no império e os debates científicos internacionais. No entanto, o trabalho da Escola,
apoiado pelas autoridades políticas monárquicas, aproximou-se dos médicos coloniais
conferindo, desta forma, legitimidade aos mesmos – como Corrêa Mendes e Bruto da
19 SANT’ANA, Firmino. A Tripanosomíase humana da Rhodésia. Arquivos de Higiene e Patologia
Exóticas, Lisboa, v.4, 1913. p.42. Procedeu-se na manutenção da grafia original.
Costa que chefiaram missões de estudo nas colônias – o que se traduziu em uma partilha
de autoridade entre a Escola e os quadros técnicos dos serviços de saúde nas colônias.
Este processo acabou por ser intensificado durante os primeiros anos da República
Portuguesa, já que a Constituição de 1911 sinalizou para uma maior descentralização na
administração colonial. As diretrizes republicanas para a Escola reforçaram seu caráter
como instituição de ensino em detrimento de seu papel como produtora de conhecimentos
médicos e afastaram aquela instituição da administração colonial, a Escola de Medicina
Tropical passou para a alçada do Ministério da Instrução Pública entre 1913-1918. A
queda do ritmo científico da Escola pôde ser avaliada pelas edições de seu periódico, os
Arquivos de Higiene e Patologia Exóticas: entre 1905 e 1913 foram publicados em
praticamente todos os anos; já no intervalo entre 1913 e 1926 foram impressos apenas em
quatro anos (1913, 1915, 1918 e 1926). A eclosão da Primeira Guerra Mundial também
contribuiu para o arrefecimento da produção científica dos docentes da Escola ao
dificultar o intercâmbio internacional.
Por outro lado, os médicos dos quadros de saúde das colônias, em contato direto
com as populações indígenas e as doenças, beneficiaram-se com a maior descentralização
administrativa em relação à Lisboa e, particularmente, em relação à Escola de Medicina
Tropical. Neste contexto, de valorização dos profissionais dos quadros de saúde coloniais,
deve-se compreender a publicação de uma norma em 1920 que garantia aos médicos
coloniais, diplomados com o curso de medicina tropical, o acesso aos concursos para os
cargos de docência na Escola em Lisboa20.
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20 CASTRO, Ricardo Motta Veiga Themudo. A escola de medicina tropical de Lisboa e a afirmação do
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