A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO … · obtenção do título de Mestre em...

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO Leonardo Muniz Ramos da Rocha Júnior A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DE ATENDIMENTOS REALIZADOS PELO PROGRAMA “SUS MEDIADO” NO ANO DE 2014 Recife 2017

Transcript of A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO … · obtenção do título de Mestre em...

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO EM DIREITO

Leonardo Muniz Ramos da Rocha Júnior

A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO

DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DE ATENDIMENTOS

REALIZADOS PELO PROGRAMA “SUS MEDIADO” NO ANO DE 2014

Recife

2017

Leonardo Muniz Ramos da Rocha Júnior

A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO

DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DE ATENDIMENTOS

REALIZADOS PELO PROGRAMA “SUS MEDIADO” NO ANO DE 2014

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Direito da Universidade

Católica de Pernambuco, como requisito para a

obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de Concentração: Direito Constitucional

Orientadora: Profa. Dra. Virgínia Colares

Co-Orientador: Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos

Recife

2017

Leonardo Muniz Ramos da Rocha Júnior

A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO

DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DE ATENDIMENTOS

REALIZADOS PELO PROGRAMA “SUS MEDIADO” NO ANO DE 2014

Dissertação submetida à comissão examinadora designada pelo colegiado do mestrado em

direito da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, como requisito para obtenção do

grau de mestre em Direito.

Banca examinadora:

___________________________________________________________

PROFA. DRA. VIRGÍNIA COLARES

(Orientadora/UNICAP)

___________________________________________________________

PROF. DR. GLAUCO SALOMÃO LEITE

(Titular interno/UNICAP)

___________________________________________________________

PROF. DR. MARCELO CASSEB CONTINENTINO

(Titular externo/FADIC)

RECIFE

2017

AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida e pela proteção em todos os momentos de minha jornada.

Aos meus pais, cujo sacrificado investimento em minha formação acadêmica tornou-me

apto a sonhar com este momento.

À minha esposa e aos meus filhos, que sempre foram a inspiração e o grande incentivo

para a realização deste mestrado.

À professora Virgínia Colares, pelo empenho e disponibilidade na orientação deste

trabalho de pesquisa, bem como pelo estímulo à realização de um estudo de natureza empírica.

Ao professor Gustavo Ferreira Santos, pela discussão do assunto e indicação das

referências que tornaram possível a crítica à percepção predominante sobre os direitos sociais.

Ao amigo e professor Padre Caetano, pelas lições de vida e pelos impagáveis momentos

de descontração, que ficarão guardados na memória.

À Rosana Bezerra Vale pelas luzes que lançou sobre a forma de tratamento dos dados

coletados e pelo inestimável apoio na utilização do SSPS.

Aos amigos Alisson Wander Paixão, Ivan Peixoto Cunha Melo, Vinícius Diniz

Monteiro de Barros, Giêdra Cristina Pinto Moreira e Ilcelena de Souza Queiroz, cujo apoio

tornou possível a realização deste Mestrado.

À Cláudia Carvalho Queiroz, por abrir as portas do Programa SUS MEDIADO para a

realização desta pesquisa.

Aos diversos professores que me ajudaram a reunir o material bibliográfico necessário

à consecução desta empreitada.

À Escola Superior da Defensoria Pública da União, cujo Programa de Capacitação deu

respaldo financeiro à realização do Mestrado.

RESUMO

A multiplicação de processos relativos à concretização do direito à saúde tem suscitado intensos

debates jurídicos e sociais, que estimulam a busca e o desenvolvimento de meios alternativos

(extrajudiciais) de resolução dos conflitos de interesses relativos a esse direito social. No

entanto, ainda são poucos os estudos empíricos acerca da questão. Por meio de sessões de

mediação, realizadas semanalmente na sede da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do

Norte, o programa SUS MEDIADO propicia um “espaço de diálogo” entre o cidadão e as

instituições jurídicas e políticas diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde. Mas

em que medida o uso da mediação pela Defensoria Pública reduz a necessidade de

judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos? Para responder a essa

pergunta de partida foi realizada uma análise exploratório-descritiva de todos os Relatórios de

Atendimento do programa SUS MEDIADO, referentes ao ano de 2014. A hipótese inicial era

que a mediação somente seria capaz de reduz a necessidade de judicialização das demandas

expressamente contempladas por políticas públicas instituída no âmbito do SUS. No entanto, o

estudo revelou que a mediação possui um potencial maior do que o esperado para servir de

instrumento à efetivação do direito à saúde.

ABSTRACT

The extraordinary increase of lawsuits claiming the implementation of the right to health leads

to intense legal and social debates that stimulate the creation and development of alternative

(extrajudicial) means to resolve the conflicts of interests related to this social right. However,

there are few empirical studies on this subject. Through mediation sessions, which take place

weekly at the Public Defender's Office of Rio Grande do Norte State, the SUS MEDIADO

program provides a "space for dialogue" between the citizen and the institutions directly

involved in the implementation of the right to health. But to what extent does the use of

mediation by the Public Defender's Office reduces the need to judicialize the requests for free

medicine supply? To answer this question, the research was based on an exploratory-

descriptive analysis of all the service reports of the SUS MEDIADO program for the year 2014.

The initial hypothesis was that mediation would only be able to reduce the need to judicialize

the demands expressly contemplated by the SUS’s public policies instituted within the scope of

Health Unic System. However, the study revealed that mediation has a potential greater than

expected to serve as an instrument for the realization of the right to health.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Modelo de Relatório de Atendimento ............................................................ 78

Figura 2 – Cadastramento das Categorias de Análise no SSPS ........................................ 79

Figura 3 – Banco de Dados do SSPS ................................................................................ 80

Gráfico 1 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global ............................................... 81

Gráfico 2 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial por Grupos (“Medicamentos” x

“Procedimentos”) ............................................................................................................. 82

Quadro 1 – Visão Geral do grupo “Medicamentos” ........................................................ 84

Gráfico 3 – Medicamentos Contemplados pelo SUS, mas em falta na rede pública de

saúde .................................................................................................................................. 87

Gráfico 4 – Resultado da Mediação em demandas por medicamentos em sentido estrito 97

Gráfico 5 – Principais motivos de Indeferimento Administrativo dos pedidos de

Suplementos Alimentares e Dietas Especiais ................................................................. 100

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO ............................................................................. 16

1.1 Esclarecimentos de natureza terminológica ................................................................ 17

1.2 Constitucionalismo moderno e consagração dos direitos fundamentais como eixo

axiológico das constituições modernas ............................................................................ 18

1.3 Da incorporação da “questão social” no discurso do constitucionalismo moderno à

consagração dos direitos sociais........................................................................................ 20

1.3.1 Estado social, direitos sociais e a noção de direito subjetivo .............................. 24

2 CRÍTICA À PERCEPÇÃO DOMINANTE SOBRE OS DIREITOS SOCIAIS E

CONTRIBUTO PARA UMA RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E GARANTISTA

.................................................................................................................................................. 29

2.1 Análise estrutural: direitos sociais x direitos civis e políticos .................................... 30

2.1.1 Crítica à distinção baseada na natureza (negativa ou positiva) das obrigações que

integram a estrutura dos direitos civis e políticos e dos direitos sociais ...................... 31

2.1.2 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos vagos e indeterminados .... 35

2.1.3 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos de dimensão estritamente

coletiva .......................................................................................................................... 39

2.2 Os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988 ...................................... 42

2.2.1 A dignidade da pessoa humana como elo entre a Proteção Internacional dos

Direitos Humanos e a Defesa dos Direitos Fundamentais pelo Estado brasileiro ....... 43

2.2.2 A hierarquia privilegiada dos Tratados Internacionais sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais no Ordenamento Jurídico brasileiro ........................ 44

2.2.3 A intangibilidade dos direitos e garantias fundamentais (limites materiais à

reforma constitucional – art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88) ......................................... 46

2.2.4 A juridicidade reforçada das normas definidoras dos direitos e garantias

fundamentais (art. 5º, § 1º, da CF/88) ........................................................................... 48

2.3 O Regime Jurídico específico dos Direitos Sociais ................................................... 51

2.3.1 Observância do núcleo essencial dos direitos sociais .......................................... 52

2.3.1.1 Breves apontamentos sobre o conteúdo mínimo ou essencial do direito à

saúde ................................................................................................................. 55

2.3.2 Obrigação de utilização do máximo de recursos disponíveis ............................. 59

2.3.3 Implementação Progressiva dos Direitos Sociais e Proibição do Retrocesso .... 61

3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O CONTROLE JURISDICIONAL DE

POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL .......................................................... 67

3.1. O reconhecimento da força normativa da Constituição ............................................ 68

3.3 O Controle Judicial das Políticas Públicas de Saúde no Brasil .................................. 69

4 O PROGRAMA SUS MEDIADO ................................................................................... 74

4.1 Delimitação Temporal da Amostra ............................................................................. 75

4.2 Instrumento de Coleta de Dados ................................................................................. 76

4.3 Análise Exploratório-Descritiva das informações extraídas do Relatórios de

Atendimento, referentes ao ano de 2014, do Programa SUS MEDIADO ....................... 79

4.3.1 Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global ...................................................... 79

4.3.2 Taxa de Resolutividade Extrajudicial por tipo de demanda: “Medicamentos

versus “Procedimentos” .............................................................................................. 80

4.3.3 A mediação nos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos,

suplementos alimentares (ou dietas especiais) e outros insumos necessários ao

tratamento de saúde das pessoas .................................................................................. 82

4.3.3.1 Visão geral do grupo “Medicamentos” ............................................................. 83

4.3.4 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados

na categoria “Medicamentos em sentido estrito” ......................................................... 84

4.3.4.1 Medicamento contemplado pelo SUS e disponível na rede pública de saúde .. 84

4.3.4.2 Medicamento contemplado pelo SUS, mas em falta (indisponível) na rede

pública de saúde ........................................................................................................... 86

4.3.4.3 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente é disponibilizado em

posologia diferente da que foi prescrita para a parte interessada (necessidade de ajuste

posológico) ................................................................................................................... 87

4.3.4.4 Medicamento contemplado pelo SUS, mas não é disponibilizado para o CID

constante no receituário médico apresentada pela parte interessada ou para a faixa

etária da parte interessada é incompatível com a política pública instituída no âmbito

do SUS .......................................................................................................................... 88

4.3.4.5 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente para pacientes

hospitalizados ou quando a parte interessada apresentou intolerância à marca que é

disponibilizada pela rede pública de saúde .................................................................. 88

4.3.4.6 Medicamento contemplado pelo SUS, mas o limite mensal disponibilizado pela

rede pública é insuficiente para o tratamento de saúde da parte interessada ............... 89

4.3.4.7 Medicamento recentemente incorporado (contemplado pelo SUS), mas que

ainda não está sendo disponibilizado pela rede pública de saúde ................................ 89

4.3.4.8 Medicamento contemplado pelo SUS, mas que teve seu fornecimento suspenso

pelas Secretaria de Saúde (estadual ou municipal) ....................................................... 89

4.3.4.9 Medicamento não contemplado pelo SUS ....................................................... 90

4.3.5 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados

na categoria “suplementos alimentares ou dietas especiais” ........................................ 90

4.3.5.1 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível

na Rede Pública ........................................................................................................... 91

4.3.5.2 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e em falta

na Rede Pública” ........................................................................................................... 91

4.3.5.3 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível

na Rede Pública, mas não disponibilizado em virtude da idade da parte interessada . 92

4.3.5.4 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível

na Rede Pública, mas apenas para pacientes hospitalizados ....................................... 93

4.3.5.5 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) não contemplados pelo SUS ....... 93

4.3.5.6 Informações indisponíveis ............................................................................... 94

4.3.6 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados

na categoria “outros” .................................................................................................... 94

4.3.6.1 Pedido de fornecimento de fraldas geriátricas ................................................. 94

4.3.6.2 Pedido de fornecimento de tiras para verificação de glicemia capilar ............. 94

4.3.7 Análise dos resultados das práticas de mediação do grupo “Medicamentos” ..... 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 100

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 102

INTRODUÇÃO

Os direitos sociais traduzem para a linguagem jurídica um conjunto de expectativas

ligadas à satisfação das necessidades básicas das pessoas em relação a diversos aspectos da vida

em sociedade, como a alimentação, a moradia, a saúde, a educação etc.

Sob a rubrica de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, essas expectativas foram

reconhecidas em diversos documentos internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San

José da Costa Rica) e pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos

em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador).

Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 positivou os direitos sociais como

autênticos direitos fundamentais, assegurando-lhes, por conseguinte, a intangibilidade frente ao

poder constituinte reformador.

Dentre o vasto catálogo de direito sociais elencados na Constituição Federal de

1988, encontra-se o direito à saúde, que foi consagrado como um direito fundamental do

cidadão e dever do Estado, a quem compete prestar um atendimento integral, por meio do

acesso universal e igualitário às ações e serviços do Sistema Único de Saúde (artigos 6º, 196 a

200 da CF/88).

Isso decorre do reconhecimento de que a saúde integra o mínimo existencial do

indivíduo, haja vista que a preservação da higidez física e mental é indissociável do próprio

direito à vida em condições de dignidade.

Ocorre que a constitucionalização do direito à saúde teria um sentido meramente

simbólico se não produzisse efeitos concretos na vida das pessoas mais necessitadas.

Por esse motivo, o constituinte teve a preocupação de consignar que os direitos e

garantias fundamentais, classificação na qual estão inseridos o direito à saúde e os demais

direitos sociais, têm aplicação imediata (artigo 5º, parágrafo 1º, da CF/88), evidenciando que o

Poder Público deve estar comprometido com a busca incessante pela efetivação dos mesmos.

Apesar disso, o direito à saúde experimenta uma verdadeira crise de efetividade na

sociedade brasileira contemporânea, haja vista a grande distorção ainda existente entre a

dimensão normativa do Direito e aquilo que é concretamente disponibilizado às pessoas: faltam

leitos nos hospitais, médicos para atender a população, exames para diagnosticar as

enfermidades, materiais e insumos hospitalares etc.

A implementação do direito à saúde nos moldes delineados pela Constituição

Federal depende da elaboração de políticas públicas, da realização dos atos administrativos

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necessários à concretização das mesmas e, sobretudo, da disponibilização de elevados recursos

financeiros pelos entes federados. Com efeito, a cláusula da “reserva do possível” acaba sendo

frequentemente invocada pela Administração Pública, muitas vezes de modo genérico e

desacompanhado de provas, com o propósito de justificar a inércia estatal na consecução de

medidas concretas relacionadas à efetivação do direito à saúde.

Esse fato é preocupante, pois a necessidade de suprir as omissões estatais

relacionadas com a efetivação do direito à saúde tem levado um número crescente de pessoas a

buscarem o Poder Judiciário, com vistas a obter um provimento jurisdicional que lhes garanta

um tratamento de saúde digno e compatível com a Constituição, que se revela, muitas vezes,

indispensável à própria manutenção da vida.

A multiplicação de processos relativos à concretização do direito à saúde, fenômeno

que vem sendo denominado “judicialização da saúde”, tem suscitado intensos debates jurídico-

sociais, que estimulam a busca e o desenvolvimento de técnicas processuais e extrajudiciais

destinadas a tentar concretizar o direito à saúde de maneira célere e efetiva.

Dentro desse contexto, surgem “espaços de diálogo” entre as instituições jurídicas

e políticas diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde, com o propósito de tentar

reduzir a litigiosidade, criando um ambiente colaborativo na busca por soluções para as

demandas apresentadas pelos usuários do Sistema Único de Saúde.

Um deles é o programa SUS MEDIADO, constituído por meio de um Termo de

Cooperação Técnica entre a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte - DPE/RN,

a Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Norte – PGE/RN, a Secretaria de Estado da

Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Norte – SESAP/RN, a Defensoria Pública da União

– DPU/RN, a Procuradoria Geral do Município do Natal - PGMN/RN, a Secretaria de Estado

da Saúde Pública - SESAP/RN e a Secretaria Municipal de Saúde do Natal - SMS/Natal,

celebrado em 14 de fevereiro de 2012, na cidade de Natal/RN.

O programa SUS MEDIADO procura viabilizar uma solução extrajudicial para os

conflitos de interesse envolvendo a efetivação do direito à saúde de cidadãos hipossuficientes

no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e contam com a participação direta do cidadão

hipossuficiente, de um farmacêutico, dos Técnicos das Secretarias de Saúde Estadual e

Municipal, de um Defensor Público Estadual, de um representante da Procuradoria Geral do

Estado e de um representante da Procuradoria Geral do Município.

Por meio de uma cultura de pacificação dos conflitos, em substituição à tradicional

cultura do litígio, o SUS MEDIADO estabelece uma cooperação entre os participantes, com o

propósito de promover uma maior celeridade na troca de informações, no intuito de tentar

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viabilizar a resolução extrajudicial das demandas de cidadãos hipossuficientes relativas ao

Sistema Única de Saúde.

De acordo com os dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio

Grande do Norte, o programa SUS MEDIADO propiciou uma solução administrativa para 274

dos 1123 casos que lhe foram submetidos no ano de 2013, alcançando uma taxa de

resolutividade extrajudicial global de 24,4% no mencionado período. No ano de 2014, essa taxa

de resolutividade extrajudicial global foi ainda maior (subiu para 33,58%), pois o SUS

MEDIADO criou condições para a solução administrativa de 416 dos 1239 casos que lhe foram

submetidos no aludido período.

Esses resultados são animadores e apontam para a possível existência de um

caminho alternativo e mais participativo (a parte interessada protagoniza todas as etapas do

procedimento de mediação e recebe informações qualificadas que, associadas ao serviço de

orientação jurídica prestado pela Defensoria Pública no plano extrajudicial, contribuem para

formação de um cidadão mais consciente das dificuldades relacionadas à efetiva prestação dos

serviços públicos de saúde nos moldes traçados pela Constituição) e democrático (as demandas

apresentadas pelos cidadãos contribuem para a formação de um banco de dados capaz de

subsidiar as tomadas de decisões futuras no que tange aos critérios a serem utilizados para a

alocação dos recursos públicos destinados ao Sistema Único de Saúde).

Curiosamente, porém, se for levado em consideração apenas o universo dos pedidos

de fornecimentos gratuito de medicamentos, as estatísticas caem drasticamente. No ano de

2014, o SUS MEDIADO intermediou uma solução administrativa para 62 dos 514 pedidos de

fornecimento gratuito de medicamentos no ano de 2014, perfazendo uma taxa de resolutividade

extrajudicial de 12% (doze por cento), em matéria de medicamentos, no ano de 2014.

Apesar da simpatia doutrinária em relação à necessidade de se buscar meios

alternativos (extrajudiciais) de resolução dos conflitos de interesse relativos à efetivação do

direito à saúde, ainda são poucos os estudos empíricos acerca da questão.

Com efeito, a presente pesquisa busca respostas para a seguinte pergunta de partida:

em que medida o uso da mediação pela Defensoria Pública reduz a necessidade de

judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos?

Parte-se da hipótese de que a mediação somente reduz a necessidade de

judicialização das demandas expressamente contempladas na política de assistência

farmacêutica instituída no âmbito do SUS.

Como objetivo geral, a pesquisa pretende realizar um diagnóstico do programa SUS

MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, por meio de uma análise

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exploratório-descritiva da integralidade dos dados empíricos encontrados nos Relatórios de

Atendimento de 2014.

Para a consecução dessa tarefa, a pesquisa teve os seguintes objetivos específicos:

• Coletar a totalidade dos Relatórios de Atendimento do Programa SUS MEDIADO,

desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014;

• Identificar e codificar as variáveis existentes nos Relatórios de Atendimento do

Programa SUS MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, com

destaques para o motivo pelo qual cada pedido de fornecimento gratuito de

medicamentos fora indeferido pelo SUS e para o resultado da mediação;

• Explorar e descrever os dados encontrados.

Os três primeiros capítulos compõem a primeira parte do trabalho de pesquisa,

consistente numa revisão de literatura destinada a fundamentar teoricamente a análise dos dados

coletados.

No primeiro capítulo, foi analisado o desenvolvimento histórico da matéria,

partindo da consagração dos direitos fundamentais como eixo axiológico das constituições

modernas até a incorporação da “questão social” no discurso do constitucionalismo moderno,

fenômeno que levou ao surgimento dos direitos sociais.

O segundo capítulo realiza uma crítica à percepção (ainda) dominante acerca dos

direitos sociais, que procura naturalizar a reduzida carga eficacial desses direitos no cenário

contemporâneo, sob o argumento de que os mesmos seriam estruturalmente diferentes dos

denominados direitos civis e políticos. Além disso, apresenta uma análise do estatuto jurídico

dos direitos fundamentais à luz Constituição Federal de 1988 e avança para estudo do pode ser

denominado regime jurídico específico dos direitos sociais.

Por sua vez, o terceiro capítulo apresenta algumas considerações acerca do

reconhecimento da força normativa da Constituição e do controle jurisdicional de políticas

públicas no Brasil, que servem para contextualizar o surgimento do programa SUS MEDIADO.

A segunda parte da pesquisa é dedicada à apresentação e análise dos resultados do

processamento eletrônico, realizado por meio do software IBM SSPS, dos dados colhidos dos

Relatórios de Atendimento do programa SUS MEDIADO, relativos ao ano 2014.

Nesse sentido, o quarto capítulo é dedicado à apresentação das categorias de análise

utilizadas na pesquisa (extraídas dos Relatórios de Atendimento do programa SUS

MEDIADO), bem como do resultado do cruzamento das mesmas, mediante processamento

eletrônico, que permitiu identificar quais situações contribuem para o sucesso ou fracasso da

15

tentativa de mediação dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos apresentados à

Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN, por cidadãos hipossuficientes.

O estudo forneceu informações que podem subsidiar a implantação de programas

semelhantes em outras unidades da federação.

Embora não tenha a pretensão de esgotar a matéria, a pesquisa fornece uma análise,

baseada em dados empíricos, acerca das consequências de uma articulação entre os atores

sociais, e suas respectivas representações jurídicas, para a construção de mecanismos de

efetivação do direito à saúde que não dependam da intervenção do Poder Judiciário.

16

1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

Para uma adequada compreensão dos capítulos seguintes, é preciso não perder de

vista que o sentido da expressão “direitos sociais” (que hoje corresponde ao gênero, do qual o

direito à saúde é uma das espécies) costuma oscilar entre uma concepção que nega a

exigibilidade de seu conteúdo (na medida em que encara os direitos sociais como normas

desprovidas de exigibilidade, ou seja, como meras declarações de boas intenções ou, no

máximo, como normas de caráter estritamente programático, que estabelecem apenas um

objetivo a ser perseguido pelo Legislador e pelos poderes públicos) e outra concepção que

reconhece os direitos sociais como autênticos direitos subjetivos, dotados, portanto, do atributo

da exigibilidade (RIVADENEIRA, 2015, p. 1677).

Como bem ponderado por Luciano Oliveira (2010), quem hoje observa os direitos

sociais sendo tão corriqueiramente proclamados em textos normativos e reivindicados em

demandas judiciais, acaba sem perceber o turbulento processo histórico do qual emergiram

esses direitos:

(...) O processo não foi tão sereno quanto podem dar a entender as sumárias descrições

didáticas do seu percurso. Hoje, quando tais direitos viraram enunciados corriqueiros

– mas não a sua realização, óbvio! –, corremos o risco de esquecer que eles emergiram,

como diria o Bardo inglês, em meio ao “som e a fúria” que são o fardo da história. Foi

no México, em 1917, e em seguida na Alemanha, em 1919, que surgiram as primeiras

constituições anunciando-os. Foram enunciados em contextos extremamente

conflituosos: o México, esse, havia feito uma revolução, e a Alemanha, arruinada pela

derrota na primeira guerra mundial, vivia um período de permanente insurreição de

que resultou a efêmera República de Weimar, recepcionando os direitos sociais até

como forma de exorcizar a ameaça da temida revolução comunista – uma

possibilidade virtual desde que, dois anos antes, e não muito longe dali, os russos

haviam feito sua revolução e instituído o primeiro regime comunista no mundo. No

mesmo ano da Constituição de Weimar, aliás – vale dizer, em 1919 –, os

revolucionários russos enunciaram a sua Declaração dos Direitos do Povo

Trabalhador e Explorado, na qual, obviamente, os direitos sociais eram a tônica.

De fato, as Constituições democráticas têm procurado estabelecer os instrumentos

institucionais necessários à proteção dos direitos fundamentais, com especial atenção ao

princípio da igualdade, que, para além da mera proibição de discriminações arbitrárias, impõe,

nos tempos modernos, a necessidade de viabilizar o efetivo acesso das pessoas aos bens

fundamentais para a convivência civil, colocando em evidência a importância de efetivação dos

direitos sociais (FIORAVANTI, 2001, p. 150).

Ocorre que a positivação dos direitos sociais ainda não conseguiu convertê-los em

direitos plenamente exigíveis ou em instrumentos aptos a satisfazer as necessidades de seus

destinatários e acentua que tal fato se deve mais a prejuízos de natureza ideológica do que a

17

uma real diferença estrutural entre a mencionada categoria de direitos fundamentais e os

denominados direitos civis e políticos (PISARELLO, 2007).

Dentro dessa perspectiva, reservamos o presente capítulo para breves apontamentos

acerca do processo histórico em que ocorreu a eclosão dos direitos sociais, a fim de obter os

primeiros elementos para uma crítica à percepção (ainda) dominante, que procura justificar a

reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada a dos direitos civis e políticos),

que será desenvolvida no capítulo seguinte.

1.1 Esclarecimentos de natureza terminológica

Antes de avançar, é necessário esclarecer algumas opções terminológicas adotadas

no presente de trabalho.

Primeiramente, convém registrar que as expressões direitos humanos e direitos

fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Todavia, por questões

metodológicas, o presente trabalho emprega a expressão “direitos humanos” no sentido que lhe

fora atribuído por Yara Maria Pereira Gurgel (2010), para quem os direitos humanos constituem

um padrão mínimo que a Ordem Internacional reconhece a todos os seres vivos, cabendo aos

diversos Estados, consoante destacado por Víctor Abramovich (2005) a tarefa de respeitá-los

(evitando a prática de atos lesivos aos direitos humanos em seus respectivos territórios),

protegê-los (evitando que os particulares tenham seus direitos humanos violados por atos de

terceiros), promovê-los (criando as condições necessárias ao exercício dos direitos humanos

pelos particulares) e garanti-los (assegurando aos particulares o efetivo acesso aos bens

juridicamente protegidos pelos direitos humanos, quando não puderem fazê-lo por seus

próprios meios).

Em contrapartida, acompanhando as lições de Antonio-Enrique Pérez Luño (2006),

optou-se por empregar a expressão “direitos fundamentais” com contornos mais restritos

(espacial e temporalmente delimitados) decorrentes de sua positivação pelo ordenamento

jurídico de determinado Estado. No Brasil, eles foram consagrados no Título II da Constituição

Federal de 1988, que abrange os direitos e deveres individuais (art. 5º da CF/88), os direitos

sociais (arts. 6º ao 11 da CF/88), a nacionalidade (art. 12 e 13 da CF/88), os direitos políticos

(art. 14 ao 16 da CF/88), as normas relativas à criação, incorporação e extinção de partidos

políticos (art. 17 da CF/88) e diversos outros dispositivos espalhados ao longo do texto

constitucional, que melhor detalham o conteúdo dos mencionados direitos.

18

Dentro dessa perspectiva, convém esclarecer, ainda, que, no presente trabalho, a

expressão “direitos econômicos, sociais e culturais” se identifica com os “direitos humanos”,

porquanto se refere às normas de direito internacional (ex. direito ao mais elevado nível de

saúde física e mental, previsto no art. 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais), ao passo que a expressão “direitos sociais” está relacionada aos “direitos

fundamentais”, referindo-se às normas consagradoras dos mencionados direitos no âmbito

ordenamento jurídico brasileiro (ex.: direito à saúde, consagrado nos arts. 6º e 196 da CF/88).

1.2 Constitucionalismo moderno e consagração dos direitos fundamentais como eixo

axiológico das constituições modernas

As transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas ao longo dos séculos

XVII e XVIII alimentaram o fenômeno atualmente denominado constitucionalismo moderno

(de matriz europeia e americana), cujos contornos podem ser percebidos na Declaração da

Virgínia (1776) e adquiriram maior visibilidade a partir da Declaração Francesa de Direitos do

Homem e do Cidadão (1789).

Com muita propriedade, Horst Dippel (2005) observa que a Declaração da Virgínia

(junho/1776) não foi o primeiro documento constitucional da Revolução Americana, pois foi

precedida pela Constituição de New Hampshire (janeiro/1776) e pela Constituição da Carolina

do Sul (março/1776), bem como destaca que seus principais elementos não eram totalmente

ignorados pelo cenário político-revolucionário americano daquela época, pois já vinham sendo

largamente discutidos no âmbito colônias inglesas da americana ao longo da década precedente.

No entanto, o mencionado autor salienta que o grande mérito da Declaração da Virgínia reside

na expressa formalização dos requisitos essenciais do constitucionalismo moderno, que até

então não haviam aparecido em nenhum documento público destinado a servir de base para

uma nova ordem jurídica (DIPPEL, 2005, p. 187):

(...) a importância singular da Declaração de Direitos da Virgínia em 1776 reside no

estabelecimento de um catálogo completo daquilo que é essencial para o

constitucionalismo moderno, cujo caráter fundamental não é menos válido nos dias

atuais do que o foi há mais de duzentos anos: soberania popular, princípios universais,

direitos humanos, governo representativo, supremacia da constituição, separação dos

poderes, governo limitado, responsabilidade governamental e obrigação de prestar

contas, independência judicial e imparcialidade e, por fim, o direito do povo de mudar

o seu próprio governo por meio do poder constituinte. Estes dez elementos essenciais

do constitucionalismo moderno são expressos na Declaração de Direitos da Virgínia

e, por mais de duzentos anos, nenhuma constituição que reclame sua adesão aos

princípios do constitucionalismo moderno se atreveu abertamente a desafiar nenhum

desses princípios, no momento de idealizar uma sociedade baseada na razão, que

19

disponha de uma base juridicamente sólida para atender aos interesses existentes e

muitas vezes conflitantes.

Todavia, é importante frisar, como o fez Lynn Hunt (2009, p. 20), que foi a

Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), fruto da revolução que

derrubou o Antigo Regime e possibilitou a instauração da ordem burguesa na França, quem

teve o mérito de encarnar a promessa de direitos humanos universais:

(...) a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamava que “Os homens

nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Não os homens franceses, não os

homens brancos, não os católicos, mas “os homens”, o que tanto naquela época como

agora não significa apenas machos, mas pessoas, isto é, membros da raça humana. Em

outras palavras, em algum momento entre 1689 e 1776 direitos que tinham sido

considerados muito frequentemente como sendo de determinado povo – os ingleses

nascidos livres, por exemplo – foram transformados em direitos humanos, direitos

naturais universais, o que os franceses chamavam les droits de l´homme, ou “os

direitos do homem”.

Tamanha a importância da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do

Cidadão (1789), que, posteriormente, sua essência acabou sendo reproduzida pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948), a qual integra, juntamente com o Pacto Internacional

sobre Direitos Civis e Políticos (1966), seus dois Protocolos Facultativos (o primeiro,

disciplinando o procedimento para a apresentação de queixas relacionadas à violação de direitos

humanos; o segundo, visando à abolição da pena de morte), o Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais (1976) e seu Protocolo Facultativo, a Carta Internacional dos

Direitos Humanos, por meio da qual a Organização das Nações Unidas traça parâmetros globais

para a atuação das nações no que diz respeito à proteção dos direitos humanos nos dias de hoje.

Pois bem, em minuciosa análise, Lynn Hunt (2009, p. 19), observa que os direitos

humanos se caracterizam por serem naturais (inerentes aos seres humanos e anteriores à própria

constituição da associação política), iguais (todos os serem humanos são titulares dos mesmos

direitos humanos) e universais (os direitos humanos devem ser aplicáveis por toda parte e a

quem quer que seja), mas destaca que eles somente se tornam significativos quando assumem

um conteúdo político, fato que, como dito alhures, ocorreu pelas primeiras vezes na Declaração

da Independência americana (1776) e na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do

Cidadão (1789).

Com efeito, o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789),

ao estabelecer que “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem

estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”, acabou convertendo a proteção

dos direitos fundamentais num autêntico axioma da teoria constitucional e transformando

20

aquilo que poderia uma ideia tipicamente americana em um fenômeno transnacional cujas

repercussões estão presentes até os dias de hoje (DIPPEL, 2005, p. 187).

É importante notar, porém, que a consagração dessa “primeira geração” de direitos

fundamentais nas primeiras Constituições escritas é fruto do pensamento liberal-burguês do

século XVIII, marcadamente individualista e preocupado apenas em estabelecer uma zona de

não intervenção do Estado sobre uma esfera da autonomia individual.

Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 47):

Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória

inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade

perante a lei. São, posteriormente, complementados por um leque de liberdades,

incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de

expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos de

participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva,

revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a

democracia.

Foi sobre essas bases (direitos civis e políticos e separação dos poderes) que se

estruturou o conceito de Estado de Direito (Estado Liberal Clássico). Todavia, seu conteúdo

individualista (preocupado apenas com a proteção formal da liberdade individual, tipicamente

associada aos anseios da burguesia, sem atentar para a necessidade de criação de meios que

viabilizassem o efetivo gozo dessa liberdade aos indivíduos economicamente hipossuficientes),

serviu de semente para o reconhecimento da fragilidade de seu potencial emancipatório.

1.3 Da incorporação da “questão social” no discurso do constitucionalismo moderno à

consagração dos direitos sociais

Paulo Bonavides (2014, p. 14) observa que o Estado liberal, após cumprir sua

missão revolucionária e exaurir sua essência racionalizadora, teve o mérito de incorporar,

definitivamente, o princípio da separação dos poderes na organização das instituições estatais.

No entanto, o mencionado autor pondera que o Estado liberal, ao assumir o patronato

meramente formal da liberdade humana (cujos conteúdos somente preencheu em favor do

capitalismo burguês), acabou expondo o seu próprio “calcanhar de Aquiles”.

Por sua vez, Alessandra Gotti (2012, p. 48) aponta que o agravamento dos conflitos

entre as classes burguesa e proletária, que vivia em situação de miséria e exclusão social, pôs

em evidência a fragilidade da liberdade meramente formal, conquistada pelas revoluções

burguesas, que não passava de uma verdadeira abstração para as classes menos favorecidas da

sociedade.

21

Foi dentro desse contexto que o ideal socialista de construção de uma comunidade,

termo empregado por Ferdinand Tönnies (em sua obra Comunidad y Sociedad, 1947) para

expressar um modelo de associação política no qual as interações humanas são

preponderantemente norteadas pela consciência da dependência mútua e pela busca da melhoria

das condições de vida da coletividade, ganhou fôlego ao longo do século XIX e abriu caminho

para uma mudança de foco em relação aos direitos que haviam sido consagrados pelas antigas

declarações.

Como bem observado por Roberto Gargarella (2004, p. 62-63), os direitos possuem

uma peculiaridade própria de outras criações humanas: eles nascem em momento históricos

muito especiais (v.g. as revoluções burguesas do século XVIII), a partir das mais variadas

razões, mas, após o seu nascimento, eles adquirem vida própria e podem se distanciar das

limitadas aspirações de seus criadores.

No mesmo sentido, Fernando Atria (2004, p. 21) destaca que os direitos civis e

políticos surgiram na histórica como justificativa para a revolução, propondo as bases para uma

nova forma de associação política, baseada no respeito dos diretos naturais dos seres humanos.

Dessa forma, não é que outras necessidades (como as que, posteriormente, passaram a ser

cobertas pelos denominados direitos sociais) fossem menos importantes: elas apenas não

estavam cobertas por direitos que pudessem ser concebidos como naturais (no sentido de

anteriores à constituição da associação política).

No entanto, à medida que a revolução começa a desaparecer do horizonte, o novo

contexto histórico, marcado pelas tensões sociais decorrentes da consolidação do capitalismo,

abre caminho para a percepção de que a proteção meramente formal do direito à liberdade tem

apenas um frágil conteúdo emancipador e, para as camadas menos favorecidas da população,

acaba sendo verdadeiramente opressiva, pois somente aparece em seu aspecto negativo

(impondo o dever de respeito à liberdade dos outros).

O constitucionalismo moderno é um fenômeno anterior à consolidação do

capitalismo, ao passo que os direitos sociais são fruto das contradições geradas pela evolução

do referido sistema. Com efeito, a chamada “questão social” somente se destacou no debate

jurídico a partir da segunda metade do século XIX, fruto do mencionado agravamento dos

conflitos entre as classes possuidoras e aqueles setores sociais empobrecidos e excluídos do

capitalismo liberal (PISARELLO, 2001, p. 82).

Essa incorporação da preocupação com a questão social no debate do

constitucionalismo moderno, em virtude da deterioração das condições de sobrevivência das

22

classes populares, abriu caminho para a reinvindicação dos direitos sociais, que costumam ser

apontados pela doutrina como a “segunda geração” dos direitos fundamentais.

Com muita propriedade, José Reinaldo de Lima Lopes (2006, p. 38) observa que, o

aparecimento da questão social no debate do constitucionalismo moderno fez com que a luta

não mais se restringisse à proteção da liberdade e da propriedade burguesas e passasse a enfocar,

dentre outras matérias, as condições de habitabilidade, salubridade e educação na periferia.

Dessa forma, a nova reivindicação transcendeu a garantia da liberdade perante o Estado e

passou mirar a liberdade por intermédio do Estado (SARLET, 2015, p. 47).

Como se pode ver, emergiu do novo contexto histórico a compreensão de que a

Constituição, na qualidade de ato jurídico constitutivo de uma nova ordem social, deve se

preocupar não apenas com a proteção dos indivíduos contra a agressão de terceiros (ou do

próprio Estado), mas também (e especialmente) com a criação de possibilidades para uma vida

mais propriamente humana para aquela vasta camada da população desprovida de recursos

(ATRIA, 2004, p. 17).

O Estado liberal-burguês havia demonstrado, na lição de Alessandra Gotti (2012,

p. 48), que a liberdade não passa de uma ficção, se não houver uma preocupação em

efetivamente oferecer a todos as condições materiais para o exercício da mesma. Afinal, sem o

efetivo acesso aos bens básicos (condições equitativas de trabalho, seguridade social, saúde,

educação), o indivíduo não tem condições de se desenvolver plenamente, e muito menos de

participar da vida política, cultural e social de seu país.

Foi dentro desse contexto que surgiu o clamor pelo reconhecimento de direitos

sociais, definidos por José Afonso da Silva (2002, p. 199) como “prestações positivas estatais,

enunciados em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais

fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações desiguais”.

A Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Weimar de 1919 (Alemanha)

foram as primeiras a consagrar direitos sociais como autênticos direitos fundamentais,

assumindo uma forte preocupação com a questão social. A partir de então, a ideia de igualdade

material passou a ser um dos elementos centrais do novo modelo de Estado (social) cujos

contornos estavam se desenhando.

Nos anos seguintes, como bem observado por Luciano Oliveira (2010), a

Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948) foi enunciada, na cidade de Paris

(que havia sido palco da Declaração de 1789), num contexto de polarização entre capitalismo

e comunismo, traduzindo o compromisso de conciliar os princípios do liberalismo clássico

23

(materializados pelos direitos civis e políticos) e os princípios de justiça social (materializados

pelos direitos sociais).

Ao analisar o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948),

Luciano Oliveira (2010) destaca que os princípios que haviam irrigado as lutas sociais no século

XIX e a revolução socialista 1917, no século XX, foram incorporados com riqueza de detalhes

no novo documento, que dedicou 5 artigos (do art. 22 ao 27) aos direitos sociais:

(...) O prestígio desses novos direitos, concomitante à relevância que adquiriu a

chamada “questão social”, talvez explique um curioso deslocamento que se operou na

menção ao direito de propriedade – pedra de toque da sociedade burguesa – entre a

declaração liberal de 1789 e a declaração social-democrata de 1948. Na primeira, a

propriedade figura com um destaque inusitado e, sem exageros, único, pois além de

aparecer logo no artigo segundo – ao lado da liberdade, da segurança e da resistência

à opressão – como um dos direitos “naturais e imprescritíveis do homem”, volta a ser

referido no último artigo da Declaração, o de número 17, como sendo um “direito

inviolável e sagrado” – o único a merecer esses qualificativos. Já em 1948, num

contexto inteiramente outro, a propriedade não aparece com destaque logo nos

primeiros artigos. Quando vai aparecer, é num distante artigo 17 – curiosamente, o

mesmo número do artigo que em 1789 a definira como inviolável e sagrada –, mas

sem essa aura de inviolabilidade e sacralidade. O dispositivo apenas diz sucintamente

que “todo homem tem direito à propriedade”, menção imediatamente mitigada pela

observação de que ele tem esse direito “só ou em sociedade com outros”,

complemento sem dúvida destinado a tornar a Declaração mais palatável para os

países comunistas, notadamente a União Soviética, à época a segunda maior potência

militar do planeta e uma das grandes vencedoras da guerra mundial recém-terminada.

Nesse ponto, perceba-se que as constatações de Luciano Oliveira (2010) acerca do

direito à propriedade, que na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948)

perdeu o ar de sacralidade que lhe havia sido outorgado pela Declaração Francesa de Direitos

do Homem e do Cidadão (1789), dão suporte às ponderações de Roberto Gargarella (2004), no

sentido de que os direitos nascem em momento históricos muito especiais, mas, pelas mais

diversas razões, após o seu nascimento, adquirem vida própria e podem se distanciar das

limitadas aspirações de seus criadores.

Dentro dessa perspectiva, Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 48) pondera que os

direitos sociais, além de corresponderem às reivindicações das classes menos favorecidas (de

modo especial a operária) a título de compensação, em virtude da extrema desigualdade que

caracterizava (e, de certa forma, ainda caracteriza) as relações com a classe empregadora

(detentora do poder econômico), podem ser considerados como uma densificação do princípio

da justiça social.

Em sentido semelhante, Paulo Bonavides (2014, p. 38) descreve o Estado social

como um “Estado de direito reconstruído sobre os valores da dignidade da pessoa humana” e

24

afirma que o referido modelo de Estado “despontou para conciliar de forma duradoura e estável

a Sociedade com o Estado”, qualificando-o como “a chave das democracias do futuro”.

1.3.1 Estado Social, direitos sociais e a noção de direito subjetivo

Nos tópicos destinados à análise dos fatores históricos que acompanharam o

nascimento do constitucionalismo moderno e da posterior incorporação dos direitos sociais no

discurso dos direitos fundamentais, vimos que a doutrina liberal clássica, de origem burguesa,

serviu de base para a formulação do Estado liberal, mas, embora dominante no cenário global,

convivia com outras visões de mundo, que alimentadas pelo agravamento das tensões sociais

decorrentes da precariedade das condições de vida da vasta camada desafortunada da

população, acabaram contribuindo para o surgimento do Estado social por meio da consagração

dos direitos sociais.

Autores como Norberto Bobbio (1995), Fernando Atria (2004) e Roberto

Gargarella (2004), embora com percepções distintas a respeito do mesmo fenômeno, como será

visto mais adiante, encaram o surgimento dos direitos sociais como fruto da doutrina socialista

e de seu ideal de construção de uma verdadeira comunidade, no sentido que foi atribuído ao

termo do Ferdinand Tönnies (1947), cujo verdadeiro valor não reside na mera proteção dos

indivíduos contra a agressão de terceiros, mas sim na criação das condições necessárias para

que uma forma de vida propriamente humana esteja efetivamente ao alcance de todos.

Por oportuno, frise-se que, ao analisar as diversas formas de sociabilidade,

Ferdinand Tönnies, em sua obra Comunidad y Sociedad (1947), estabelece a oposição binária

comunidade-sociedade para diferenciar o modelo de associação política em que as interações

humanas são predominantemente individualistas (sociedade) do modelo associativo no qual as

relações humanas são preponderantemente norteadas pela consciência da dependência mútua e

pela busca da melhoria das condições de vida coletiva (comunidade).

Pois bem, para Norberto Bobbio (1995, p. 109), a incorporação dos direitos de

segunda geração em pé de igualdade com os da primeira pode ser considerada uma das mais

clamorosas conquistas desses movimentos socialistas.

No entanto, Roberto Gargarella (2004, p. 67) discorda desse posicionamento e

defende que os déficits próprios dessa incorporação do discurso socialista nas constituições

modernas, que serão analisados no capítulo seguinte, representam uma lamentável derrota dos

aludidos movimentos sociais. O mencionado autor ilustra seu pensamento ao comparar os

direitos sociais a um “enxerto” aplicado no corpo de um animal cujo sistema imunológico (as

25

estruturas institucionais remanescentes do modelo de Estado liberal) estava preparado para

repeli-lo. Com isso, ele acentua que costumamos superestimar as capacidades do Direito para

atuar como instrumento de transformação social e que, em nossa miopia, acabamos perdendo a

noção das dificuldades que aparecerão no caminho da efetivação dos direitos consagrados no

plano abstrato.

A tradição jurídica liberal clássica não se interessou em elaborar para os direitos

sociais um aparato teórico minimamente equiparável àquele cuidadosamente construído para a

tutela dos direitos de propriedade e liberdade. Por sua vez, a tradição jurídica de ascendência

marxista e socialista não se dedicou, por um longo período de tempo, à referida tarefa, por

desacreditar no potencial do Direito enquanto instrumento de transformação social

(FERRAJOLI, 2002, p. 14).

As consequências inevitáveis dessa “falta de interesse” na estruturação de um

aparato teórico capaz de resguardar os direitos sociais, especialmente em momentos de crise,

foram a fragilidade da tutela jurídica desses direitos e seu reduzido poder de resistência frente

às reiteradas investidas de políticas neoliberais.

Com efeito, sentencia Roberto Gargarella (2004, p. 67), os direitos sociais

descumpriram suas “desmedidas promessas” (de moradia digna e salário mínimo capaz de

atender a diversas necessidades consideradas básicas do trabalhador e de sua família etc.) para

acabar realmente expressados em “parcas, mas ainda assim valiosas, melhorias nas condições

de vida dos grupos mais desafortunados da sociedade”.

Frise-se, porém, que o direito constitucional vem passando por um processo de

reelaboração teórica nas últimas décadas, que tem produzido efeitos sobre a tradicional

percepção dos direitos sociais, que de normas meramente programáticas vêm, cada vez mais,

assumindo uma feição de direitos subjetivos e, portanto, dotados de justiciabilidade, atributo

que pode ser definido como a “possibilidade de reclamar em juízo o cumprimento de ao menos

alguns dos deveres que se derivam do direito” (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 37).

Mas essas transformações não ocorrem, como já era esperado, sem qualquer tipo de

resistência. Fernando Atria (2004, p. 54) sustenta que a noção de direitos subjetivos é

incompatível com a concepção política dos direitos sociais, que têm fundamento no ideal

socialista de criação de uma forma superior de comunidade, na qual os indivíduos estariam

comprometidos com o bem-estar coletivo.

De acordo com o mencionado autor, a constitucionalização dos denominados

direitos sociais se justificou pelo fato de que as demandas socialistas, para reverberarem no

discurso liberal, precisaram ser manifestadas na linguagem dos direitos, a fim de que um

26

conflito envolvendo as demandas dessas duas tradições (liberal e socialista) pudesse ser

encarado como um conflito de “direito contra direito” e não como um conflito entre um direito

e uma utilidade geral ou aspiração comunitária, no qual estas, fatalmente, restariam vencidas

(ATRIA, 2004, p. 27):

No entanto, Fernando Atria (2004, p. 23-26) defende que o discurso socialista não

pode ser traduzido para linguagem dos direitos subjetivos sem ser desvirtuado, na medida em

que a noção de direito subjetivo evoca a preocupação com o “proveito próprio” e permite fazer

um “recorte” da demanda, afastando-a de uma vasta gama de considerações morais relevantes

aplicáveis (ATRIA, 2004, p. 39-40):

Em abstrato, o argumento é relativamente simples: temos visto que o conceito de

direito subjetivo faz referência à ideia de que o que é justo dar, fazer ou não fazer ao

titular do direito pode determinar-se com independência de considerações

substantivas de índole geral. Por isso os direitos triunfam (ao menos em princípio)

sobre considerações de utilidade geral ou aspirações comunitárias. O maior bem-estar

social ou a aspiração comunitária não podem constituir uma razão que triunfe sobre

um direito. Isto é o que “ter direito a” significa no jogo de linguagem do direito. O

comprador demandante não necessita provar, para obter em juízo, que a sociedade

como um todo será melhor se sua demanda for acolhida, e o vendedor demandado não

pode opor uma “exceção de bem-estar geral” para escusar-se do cumprimento.

Os fins coletivos (ou comunitários) que justificam os direitos sociais, em

consequência, não poderão vencer aos direitos individuais si não estão expressos na

linguagem dos direitos. Enquanto eles forem “meros” fins comunitários, os direitos

serão sempre triunfantes. Como visto, essa é uma das razões pelas quais os direitos

sociais foram justamente apresentados como “direitos”. Todavia, no momento em que

essas ideias comunitárias são expressas como “direitos”, a ideia comunitária em que

elas descansam é negada e a demanda passa a ser entendida como uma de indivíduos

contra a comunidade.

O argumento a seguir tem como consequência que há um sentido importante no qual

a expressão “direitos sociais” é uma contradição, tanto quanto “solteiro-casado”.

Apesar disso, muito esforço e inteligência têm sido gastos para oferecer uma noção

de direitos sociais que seja razoável. Porém, persiste sempre uma tensão entre o que

depende do conteúdo do material jurídico positivo (v.g. positivado, posto) e o que

depende do modo de operação das práticas institucionalizadas que denominamos

“jurídicas”; uma tensão, em outras palavras, entre objetivar a substância contingente

o direito posto ou a sua forma necessária de operação para explicar a (desvalorada)

posição que ocupam os direitos sociais frente aos direitos de primeira geração nos

sistemas jurídicos ocidentais.

Com base nesse raciocínio, Fernando Atria (2004) defende o resgate da concepção

política dos direitos sociais como norte para a tomada de decisões (judiciais e administrativas)

em relação à matéria, rechaçando que os mesmos sejam dotados de justiciabilidade.

O problema é que, na prática, isso representaria uma espécie de resgate do caráter

estritamente programático das normas consagradoras dos direitos sociais e teria como

consequência deixar o indivíduo à mercê da “boa vontade” do Poder Público em cumprir as

promessas insculpidas na Constituição.

27

O que não podemos perder de vista é que os direitos fundamentais (dentre os quais se

encontram os direitos sociais) estabelecem verdadeiras regras de cooperação social cujo

conteúdo não é imutável, pois, nas palavras de Carlos Bernal Pulido (2004, p. 109), se modifica

ao longo do tempo, de acordo com os interesses predominantes em cada época e em

conformidade com as reivindicações que se impõem como resultado das lutas sociais.

Essa mutabilidade do conteúdo dos direitos fundamentais ao longo do tempo é o

elemento que permite conciliar a concepção política dos direitos sociais, a que se refere

Fernando Atria (2004), com a noção de direitos subjetivos, dotados de “justiciabilidade”.

Como bem observado por Víctor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 37), a

“justiciabilidade” é um requisito indispensável na luta pela progressiva concretização dos

direitos sociais, pois embora um Estado satisfaça habitualmente determinadas necessidades ou

interesses tutelados por um determinado direito social (ex.: desenvolvendo um programa de

distribuição de alimentos para a parcela da população ameaçada pela forme), somente se pode

afirmar que os beneficiados por essa conduta estatal gozam desse direito, se existirem efetivas

condições de demandarem judicialmente essa prestação em juízo, na hipótese de um eventual

inadimplemento. Com isso, os mencionados autores arrematam que o elemento chave para

qualificar a existência de um direito social como direito pleno não é a conduta cumprida pelo

Estado, mas a possibilidade conferida ao titular do direito de agir contra o descumprimento da

obrigação estatal.

Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2009, p. 9) destacam que, nos

dias atuais, existe, no Brasil, uma crescente tendência doutrinária e jurisprudencial no sentido

da afirmação da exigibilidade (inclusive judicial) de direitos subjetivos a prestações

relacionadas à tutela do mínimo existencial, assim compreendidas não apenas as ligadas à

sobrevivência física, mas também aquelas relativas à garantia de condições materiais mínimas

para uma vida saudável (ou o mais próximo disso, de acordo com as condições pessoais do

indivíduo) e, portanto, com certa qualidade.

No entanto, Antônio José Avelãs Nunes (2013, p. 59) registra sua preocupação

com a possível desmobilização da cidadania e das lutas cidadãs pela transformação do mundo

a partir da ilusão de que tudo está bem, porque se algo correr mal, o Poder Judiciário estará ao

alcance para resolver todos os problemas.

Dentro dessa perspectiva, Roberto Gargarella (2004, p. 66-67) adverte que é preciso

cuidado para não superestimarmos as capacidades do direito, pois a verdadeira transformação

social somente será possível a partir de uma tomada de consciência, por parte das pessoas que

integram a sociedade, acerca da necessidade de encurtar a distância entre os cidadãos e seus

28

representantes, rompendo com as regras da neutralidade liberal e com o modelo de cidadão

passivo que prevalece na sociedade nos dias de hoje.

Note-se que os autores anteriormente citados reconhecem a justiciabilidade dos

direitos sociais, mas chamam a necessidade de uma tomada de consciência e do engajamento

dos membros da sociedade na construção das estratégias para efetivação desses direitos.

Gerardo Pisarello (2007, p. 112) acentua que devemos “resistir à tentação de reduzir

a questão da exigibilidade dos direitos sociais à justiciabilidade dos mesmos” e que “é preciso

despertar para a existência de múltiplos órgãos e instituições que podem e devem intervir na

proteção desses direitos, inclusive com prioridade em relação às instâncias judiciais”.

Não podemos perder de vista, porém, que, se por um lado, devemos estimular o

emprego de estratégias alternativas (extrajudiciais) de resolução dos conflitos de interesse

relativos à efetivação dos direitos sociais (e, por conseguinte, do direito à saúde), por outro, o

sucesso dessa empreitada pressupõe uma reconstrução da concepção (ainda) dominante, que

procura naturalizar a reduzida carga eficacial desses direitos, consoante será melhor analisado

no próximo capítulo.

29

2 CRÍTICA À PERCEPÇÃO DOMINANTE SOBRE OS DIREITOS SOCIAIS E

CONTRIBUTO PARA UMA RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E

GARANTISTA

Um dos grandes desafios em matéria de efetivação dos direitos sociais consiste em

romper com a tradicional percepção de que os mencionados direitos estão insculpidos em

normas meramente programáticas e, portanto, não passam de uma espécie de catálogo de boas

intenções, carentes, portanto, de justiciabilidade (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 19).

Isso porque, apesar de sua hierarquia privilegiada dentro do ordenamento jurídico

brasileiro (tema que será melhor esmiuçado no item 2.2.2), as normas consagradoras dos

direitos sociais, contidas na Constituição e em Tratados Internacionais sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, costumam ser encaradas como documentos de caráter

estritamente político, diferentemente do que ocorre com as normas consagradoras dos direitos

civis e políticos, contra cuja juridicidade não se levanta qualquer questionamento.

Parte da doutrina constitucionalista já se insurge contra essa perspectiva que

naturaliza a reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada a dos direitos civis

e políticos), sustentando que os mencionados direitos assumem a feição de autênticos direitos

subjetivos, cujo cumprimento pode ser reivindicado em juízo.

Rodrigo García Schwarz (2011, p. 11) pondera que se decidimos tomar como norte

o princípio da dignidade da pessoa humana, não podemos descuidar da elaboração de um

estatuto jurídico privilegiado para os direitos sociais, na medida em que os mesmos tratam de

questões extremamente essenciais para a vida com dignidade (alimentação, saúde, moradia etc).

Essa lição é complementada por Gerardo Pisarello (2007, p. 11), quando destaca que a proteção

dos direitos sociais está intimamente relacionada à própria garantia das condições materiais que

possibilitam o pleno exercício da liberdade e da autonomia.

Revela-se, portanto, imprescindível a adoção de uma nova perspectiva acerca dos

direitos sociais, pois a efetividade de quaisquer direitos (inclusive dos tradicionais direitos

individuais, civis e políticos) afiançados na dignidade da pessoa humana somente é possível

mediante a garantia das condições materiais necessárias ao pleno exercício da liberdade

individual e da autonomia das pessoas.

Frise-se que a efetivação dos direitos sociais tem importante repercussão para a

consolidação do modelo de Estado Democrático de Direito traçado pela Constituição Federal

de 1988, pois nenhum modelo de democracia pode ser substancialmente democrático sem uma

cidadania participativa e comprometida com uma práxis autenticamente transformadora da

30

sociedade (SCHWARZ, 2011, p. 12) e não há espaço para esse tipo de cidadania quando o

sujeito está premido pela necessidade de manutenção da vida (ATRIA, 2004, p. 21).

Reconhecer os direitos sociais como autênticos direitos fundamentais (e não como

meros catálogos de boas intenções) é o primeiro passo para torná-los acessíveis aos grupos

humanos que habitualmente não teriam acesso a eles, pondo em marcha atos concretos e

orientados à plena efetividade dos direitos sociais, mediante o emprego do máximo de recursos

disponíveis (SCHWARZ, 2011, p. 11-12).

Nesse sentido, embora a simples existência de um estatuto jurídico diferenciado não

assegure, por si só, a satisfação dos direitos sociais, ela permitirá a articulação de um discurso

crítico (jurídico e não apenas político) capaz de deslegitimar as múltiplas formas de poder

arbitrário que, em diferentes medidas, criam obstáculos para o atendimento das necessidades

básicas e, consequentemente, para o efetivo gozo da liberdade e da autonomia individual, das

gerações presentes e futuras (PISARELLO, 2007, p. 17).

2.1 Análise estrutural: direitos sociais x direitos civis e políticos

Antes de avançar para a apresentação dos elementos essenciais de um estatuto

jurídico destinado a maximizar o potencial de efetivação dos direitos sociais, em conformidade

com o projeto de transformação social introduzido pela Constituição Federal de 1988, convém

responder à seguinte indagação: existe alguma diferença substancial entre a estrutura dos

direitos sociais e a dos direitos civis e políticos capaz de justificar a crise de efetividade

experimentada pelos direitos sociais na sociedade brasileira contemporânea?

Para a consecução dessa tarefa, é necessário analisar a estrutura dos direitos

fundamentais de primeira e segunda geração sob uma dupla perspectiva: em primeiro lugar, a

partir da natureza (negativa ou positiva) das obrigações que integram cada um desses direitos;

em segundo lugar, a partir da forma de proclamação desses direitos nos diplomas normativos

que os consagram.

A análise acerca de como as diferentes espécies de obrigações (negativas ou

positivas) se distribuem entre os dois grupos de direitos em questão, fornecerá elementos que

possibilitarão um posicionamento crítico em relação à definição sustentada pela doutrina

tradicional, no sentido de que os direitos civis e políticos corresponderiam a obrigações

estritamente negativas (obrigações de não fazer), diferenciando-se dos direitos sociais na

medida em que estes dariam origem às obrigações positivas (obrigações de fazer) do Estado.

31

Por sua vez, a análise comparativa da forma de proclamação dos direitos sociais e

dos direitos civis e políticos permitirá descobrir até que ponto a abertura semântica,

característica dos dispositivos consagradores dos direitos sociais, pode vir a ser considerada um

real obstáculo para a efetivação dos mesmos.

2.1.1 Crítica à distinção baseada na natureza (negativa ou positiva) das obrigações que

integram a estrutura dos direitos civis e políticos e dos direitos sociais

A doutrina tradicional, de inspiração liberal clássica, aponta para a existência de

uma diferença estrutural entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais com a finalidade

de justificar uma graduação da carga eficacial (SARLET, 2015, p. 282) dessas diferentes

espécies de direitos fundamentais a partir da natureza das obrigações impostas por cada uma

delas ao Estado.

Nesse sentido, os direitos civis e políticos são identificados como geradores de

obrigações negativas, não onerosas e, portanto, de fácil proteção (PISARELLO, 2007, p. 59),

fato que explicaria sua elevada carga eficacial, na medida em a satisfação desses direitos se

esgotaria em um não fazer (uma abstenção) por parte do Estado, de modo a evitar ingerências

abusivas na esfera de liberdade individual. Com efeito, não seria preciso destinar elevadas

montas de recursos públicos para a satisfação dos direitos civis e políticos, de acordo com a

doutrina tradicional, pois bastaria o Estado não deter arbitrariamente as pessoas, não aplicar

penas sem o devido processo legal, não interferir na propriedade privada etc (ABRAMOVICH

e COURTIS, 2002, p. 21).

Em contrapartida, essa mesma doutrina tradicional chama a atenção para o fato de

que os direitos sociais dão origem a obrigações positivas (prestações), cuja satisfação demanda

complexas e onerosas obrigações de fazer por parte do Estado (PISARELLO, 2007, p. 60), a

exemplo da criação e manutenção de serviços públicos de saúde e o fornecimento gratuito de

medicamentos, a construção de hospitais ou de moradias populares (ou a disponibilização de

financiamentos para a compra da casa própria em condições subsidiadas) etc.

Nesse diapasão, a reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada

a dos direitos civis e políticos) se justificaria pelo fato de que a satisfação dessas obrigações

positivas exige do Estado um significativo aporte de (escassos) recursos públicos, de modo que

a efetivação dos direitos sociais acaba condicionada à reserva do economicamente possível.

Em outras palavras, como a efetivação das obrigações positivas inerentes aos

direitos sociais (elemento central da tese de que haveria uma diferença estrutural entre os

32

direitos civis e políticos e os direitos sociais) está sempre condicionada à ocorrência de um

evento futuro e incerto (disponibilidade de recursos públicos), haveria uma espécie de “defeito

congênito”, que explicaria e, mais do que isso, naturalizaria a redução (e até mesmo o

esvaziamento) da carga eficacial dos direitos sociais consagrados pela Constituição, fazendo

com que expressões como “direito à saúde”, “direito à moradia” e “direito à educação”, apesar

de insculpidas na própria Constituição, acabem sendo assimiladas em sentido metafórico

(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 23).

Ocorre que, ao contrário do que pode parecer, os direitos civis e políticos também

requerem atuações positivas do Estado, as quais, muitas vezes, envolvem elevados aportes

financeiros. Para ilustrar, basta fazer referência à complexidade da infraestrutura material e de

pessoal que o Estado precisa dispor para fazer valer o direito ao voto (art. 14 da CF/88) e ao

fato de que o direito de não ser torturado (art. 5º, inciso III, da CF/88) exige a manutenção de

centros de detenção adequados e de corporações policiais formadas em princípios garantistas

(PISARELLO, 2003, p. 29-30).

E a lista não para por aí: o direito de liberdade de expressão (art. 5º, inciso VI, da

CF/88) não pode ser concebido como a mera ausência de censura, albergando também a

construção de centros culturais e praças públicas, a subvenção de publicações e concessão de

espaços gratuitos em rádio e televisões ou uma regulação geral que assegure o pluralismo

informativo (PISARELLO, 2003, p. 29-30).

Da mesma forma, em que pese a visão liberal clássica sustentar que as obrigações

estatais relacionadas ao direito à propriedade (art. 5º da CF/88) se esgotariam na ausência de

interferências arbitrárias (obrigação negativa) no patrimônio individual, é preciso abrir os olhos

para a vasta gama de prestações (obrigações positivas) implementadas pelo Estado (mediante a

necessária aplicação de recursos públicos) para a salvaguarda desse direito. Afinal, não se pode

conceber a proteção do direito à propriedade (imobiliária, automotiva etc.) sem a devida a

criação e manutenção de Registros Públicos (Cartórios, Detran etc.), das forças de segurança

pública destinadas a evitar as turbações de terceiros (ou para investigar as violações

indevidamente perpetradas) contra a propriedade individual, e até mesmo do aparato judicial

necessário para sanar os inevitáveis conflitos de interesses envolvendo a matéria (PISARELLO,

2007, p. 60).

Em última análise, todos os direitos possuem uma feição positiva e, portanto,

envolvem a necessidade de alocação de recursos públicos, na medida em que o Estado precisa,

no mínimo, estar aparelhado para fazer valer esses direitos contra eventuais turbações de

terceiros (HOLMES e SUNSTEIN, 2000, p. 43-44).

33

Percebe-se, portanto, que a efetivação dos direitos civis e políticos, ao contrário

daquilo que é preconizado pela concepção liberal, geralmente vem acompanhada (ainda que de

forma invisível aos olhares menos atentos) da necessidade de significativos aportes dos recursos

públicos necessários a criar e manter as condições institucionais necessárias ao gozo desses

direitos pelos particulares.

Como se não bastasse, os direitos sociais também não se limitam a originar

obrigações positivas, haja vista que tutela desses direitos impõe inúmeros deveres de abstenção

(obrigações negativas) para o Estado.

À guisa de exemplo, perceba-se que o direito à saúde (art. 6º da CF/88) não envolve

apenas a necessidade de criação de manutenção de serviços públicos e o fornecimento gratuito

de medicamentos, mas também impõe ao Estado a obrigação de não praticar atos capazes de

causar danos à saúde das pessoas, como a contaminação das águas de um rio que abastece a

população (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 25).

Por sua vez, o direito à moradia (art. 6º da CF/88) não pode ser reduzido à

construção de habitações populares (ou o financiamento de casas em condições subsidiadas),

pois também impõe ao Estado obrigações não necessariamente onerosas, como, por exemplo,

a derrogação de preceitos discriminatórios nas leis urbanísticas e a proibição de despejos

arbitrários (PISARELLO, 2003, p. 29-30).

Note-se que as chamadas as prestações normativas (v. g., criação de um marco

regulatório que forneça segurança jurídica à fruição de determinado direito) e algumas

prestações fáticas (v.g., criação e manutenção de um banco de dados sobre os programas

públicos ou a criação de mecanismos de consulta e participação popular), relacionadas à

efetivação dos direitos sociais, não demandam elevados aportes financeiros, razão pela qual o

inadimplemento das mesmas não pode ser mascarado pela cláusula da reserva do possível

(PISARELLO, 2007, p. 61).

Em síntese, a doutrina clássica traça uma distinção estrutural entre os direitos civis

e políticos e os direitos sociais, que serve para justificar a gradação da carga eficacial desses

grupos de direitos. Todavia, a referida distinção é equivocada, na medida em que ambas as

espécies de direitos comportam obrigações negativas e positivas. Os direitos civis e políticos

devem ser compreendidos como um complexo de obrigações (negativas e positivas) estatais,

compreendendo tanto a obrigação de abstenção em relação a determinados comportamentos

como a obrigação de criar e manter as condições institucionais necessárias para que a autonomia

do indivíduo não seja turbada por terceiros, da mesma forma que a estrutura dos direitos sociais

34

também abarca um complexo de obrigações positivas e negativas por parte do Estado

(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 24).

Na realidade, o que existe é uma diferença de grau (e não de substância) entre os

direitos civis e políticos e os direitos sociais, que se relaciona com a relevância que as prestações

têm para um ou outro grupo de direitos (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 25).

Dessa forma, é possível afirmar que não existem “direitos gratuitos” e “direitos

caros” (CARBONELL e MAC-GREGOR, 2014, p. 29), pois todos os direitos têm um custo e

necessitam de uma estrutura estatal que, ao menos, os proteja das possíveis violações

perpetradas por outras pessoas (HOLMES e SUNSTEIN, 2000, p. 43-48).

Mas se é assim, por que parte significativa da doutrina esquece (ou faz vista grossa)

para o conteúdo positivo (prestacional) dos direitos civis e políticos? A resposta a esta

indagação nos é dada por Víctor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 24), quando pontuam

que a coincidência histórica entre a racionalização dos direitos civis e políticos e a formulação

da definição do Estado Liberal Moderno tende a ‘naturalizar’ uma vasta gama de obrigações

positivas estatais e a pôr ênfase apenas nos limites de sua atuação.

A distinção estrutural entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais, com o

propósito de promover o esvaziamento normativo destes, somente se justifica a partir da adoção

do paradigma do Estado Mínimo, responsável unicamente pela manutenção ordem pública

interna e pela defesa exterior (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 23), o qual não se

compatibiliza com as balizas institucionais traçadas pela Constituição Federal de 1988, que

edificou um Estado Democrático de Direito em cujos fundamentos se encontra a dignidade da

pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CF/88) e que tem como objetivos fundamentais

construir uma sociedade livre, justa e solidária, por meio da erradicação da pobreza e da

marginalização e da redução das desigualdades sociais (artigo 3º, incisos I e III da CF/88).

Aderimos, portanto, à conclusão de Gerardo Pisarello (2007, p. 61), para quem “o

que está em jogo, portanto, não é como assegurar os direitos mais caros, mas decidir como e

com que prioridades se distribuem os recursos que a satisfação de todos os direitos exige”.

Essa percepção é importante para afastar (ou ao menos relativizar) a consagrada

tese das diferenças estruturais entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais e abre

caminho para o desenvolvimento dos princípios da indivisibilidade e interdependência dos

direitos (CARBONELL e MAC-GREGOR, 2014, p. 65), insculpidos na Declaração e Programa

de Ação adotado pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada na cidade de

Viena em Junho de 1993, cujo item 5 preconiza os Estados Humanos são universais,

indivisíveis, interdependentes e interrelacionados, cabendo aos Estados, independentemente de

35

seus sistemas políticos, econômicos e culturais (respeitadas as peculiaridades nacionais e

regionais) promover todos os direitos humanos “no mesmo pé e com igual ênfase”.

2.1.2 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos vagos e indeterminados

A tese que procura explicar as dificuldades de proteção dos direitos sociais a partir

de uma visão monocular hiperbólica (que enxerga a dimensão prestacional desses direitos como

uma suposta diferença estrutural entre o mencionado grupo de direitos e os direitos civis e

políticos sem atentar para o fato de que a estrutura destes direitos também abarca uma

significativa dimensão prestacional e onerosa, camuflada pela coincidência histórica entre a

racionalização dos direitos civis e políticos e o surgimento do Estado Liberal Moderno),

costuma ser reforçada pela invocação da baixa densidade normativa dos direitos sociais,

relacionada à forma de sua proclamação no texto constitucional.

A doutrina tradicional enfatiza que os direitos sociais, embora estabeleçam

obrigações de resultado, não especificam os meios pelos quais as mesmas devem ser satisfeitas

(nem as circunstâncias em que as referidas obrigações estariam sendo descumpridas), ao

contrário do que ocorre com os direitos civis e políticos, que além de estipularem os objetivos

a serem perseguidos, também proscreveriam os comportamentos que ensejam a sua violação

(PISARELLO, 2007, p. 67).

No entanto, é preciso ter em mente que um certo grau de vagueza e indeterminação

é inerente à linguagem (tanto a jurídica quanto a cotidiana) e que, no caso específico de direitos

consagrados em tratados internacionais e Constituições, essa forma de proclamação tem o

objetivo de respeitar o pluralismo político, evitando que uma descrição excessivamente

detalhada viesse impedir a criação e/ou desenvolvimento de espaço de discussão democrática

acerca do sentido e alcance da matéria (PISARELLO, 2007, p. 67).

A bem da verdade, o argumento da indeterminação do conteúdo específico dos

direitos sociais é bastante atrativo, todavia inúmeros direitos civis e políticos são marcados por

uma significativa abertura semântica e isso não costuma ser manejado como uma espécie de

limite insuperável para a aplicabilidade dos mesmos.

Tome-se, por exemplo, a inviolabilidade da “honra” (art. 5º, inciso X, da CF/88). A

compreensão do conteúdo desse direito fundamental (e, por conseguinte, das diversas formas

de violação do mesmo) depende da análise do contexto social e cultural em que o seu titular

está inserido. O mesmo se pode dizer a respeito da inviolabilidade do “domicílio” (art. 5º, inciso

XI, da CF/88) que demandou uma exaustiva reflexão doutrinária e jurisprudencial acerca de

36

seu sentido e alcance do termo “casa” (até que fosse alcançada, por exemplo, a definição de que

um quarto de hotel habitado está amparado pelo direito fundamental em questão).

Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 288) defende uma atuação proativa do Poder

Judiciário em relação à interpretação dos conceitos vagos e indeterminados dos direitos civis e

políticos, argumentando que, por se tratarem de direitos de defesa1, devem prevalecer a

presunção de aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88) e o postulado otimizador da

máxima eficácia possível (conforme será analisado no item 2.2.4). Dessa forma, os juízes e

tribunais devem (e não apenas podem) aplicar as respectivas normas ao caso concreto, mediante

a realização da operação hermenêutica necessária a viabilizar o pleno exercício desses direitos.

O mencionado autor frisa que o raciocínio descrito no parágrafo anterior é aplicável

à parcela dos direitos sociais em que prevalece a função essencialmente defensiva

(denominados direitos sociais de defesa ou liberdades sociais), em que preponderam deveres

de abstenção (obrigações negativas) para os destinatários e não dependem, em regra, da

alocação de recursos para a sua concretização, a exemplo do que ocorre com o direito de greve,

embora saliente que sua posição ainda é plenamente aceita no âmbito do Supremo Tribunal

Federal (SARLET, 2015, p. 284).

No entanto, o próprio Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 282) salienta que a parcela

dos direitos sociais com função de natureza preponderantemente prestacional constitui um

problema específico, que enfrenta maiores dificuldades.

É nesse particular que a crítica desenvolvida por Gerardo Pisarello (2007, p. 68)

assume maior relevo, ao destacar que o fato da maior parte da atividade legislativa, jurisdicional

e doutrinária se dedicar à elucidação do alcance dos direitos civis e políticos, sem que o

correspondente empenho seja destinado à explicitação do alcance dos direitos sociais, não se

deve a alguma espécie de obscuridade insuperável na estrutura dos direitos sociais, mas sim a

uma opção deliberada, muitas vezes decorrente de prejuízos ideológicos, alimentados pela

1 Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 288) utiliza o critério da preponderância da função dos direitos fundamentais

para qualificar um conjunto de direitos (dentre os quais estão os direitos civis e políticos) como direitos de defesa

e outro conjunto de direitos (dentre os quais se encontram os direitos sociais) como direitos a prestações. Esse

critério está em harmonia com a noção que sustentamos nos parágrafos anteriores, segundo a qual não existe uma

diferença substancial entre a estrutura dos direitos civis e políticos e a estrutura dos direitos sociais. Afinal, chamar

atenção para a preponderância de determinada função (ou dimensão) é reconhecer que tanto os direitos de defesa

quanto os direitos a prestações são compostos por uma gama de obrigações (positivas e negativas) e que existe

apenas uma diferença de grau (relativa a preponderância de cada tipo de obrigação) entre os referidos grupos de

direitos.

37

doutrina tradicional que defende a existência de uma suposta diferença estrutural entre os

direitos civis e políticos e os direitos sociais.

Comungamos deste posicionamento e reduzida densidade normativa dos direitos

sociais, relacionada à forma de sua proclamação no texto constitucional, não é capaz de

justificar (do ponto de vista teórico) a reduzida carga eficacial dos direitos sociais no cenário

contemporâneo.

Na realidade, o cerne do problema extrapola o campo estritamente jurídico e reside

na esfera política, palco da eleição de prioridades na distribuição dos recursos disponíveis para

a efetivação dos direitos consagrados pela Constituição Federal. Afinal, diferentes concepções

sobre os direitos sociais podem arrimar diferentes prioridades na tomada de decisões políticas

sobre o emprego dos limitados recursos públicos (MICHELON JR., 2004, p. 7).

No entanto, se pretendemos trilhar um caminho rumo à progressiva satisfação dos

direitos sociais, não podemos perder de vista que a adoção de normas constitucionais

consagradoras de direitos sociais e a adesão a tratados internacionais sobre direitos econômicos,

sociais e culturais geram obrigações concretas para o Estado (ABRAMOVICH e COURTIS,

2002, p. 19). As obrigações inerentes à consagração dos direitos sociais pelo sistema jurídico

brasileiro precisam ser encaradas como matéria de Estado e não como questões de governo.

Atento a essa realidade (que não é exclusivamente brasileira), o Comitê de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas vem, há mais de uma década, emitindo

diversas Observações Gerais com o intuito de fornecer vetores interpretativos capazes afastar

eventuais dúvidas acerca do conteúdo dos direitos formulados no Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e das obrigações que o seu reconhecimento

impõe aos poderes públicos e aos particulares (PISARELLO, 2007, p. 69).

À guisa de exemplo, a Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais das Nações Unidas esmiúça o “direito ao gozo do mais elevado nível

possível de saúde (insculpido no art. 12 do PIDESC) e adota um modelo interpretativo baseado

em níveis de obrigações estatais.

Víctor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 31) esclarecem que o referido

esquema interpretativo (adotado em diversas Observações Gerais) é inspirado em autores como

Fried van Hoof, que discerne 4 (quatro) níveis de obrigações estatais: obrigações de respeitar,

obrigações de proteger, obrigações de garantir e obrigações de promover determinado direito,

com ressalva de que o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais convencionou

sintetizar esse complexo de obrigações estatais em apenas 3 (três) níveis: respeitar, proteger e

38

satisfazer (cumprir), englobando nesta última categoria as previamente citadas obrigações de

garantir e de promover.

Vejamos em que consiste cada uma dessas obrigações, a partir das lições de Víctor

Abramovich (2005, p. 194-195) e dos exemplos trazidos pela mencionada Observação Geral nº

14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas:

1. Respeitar: dever do estado de não interferir nem obstaculizar ou impedir o acesso ao

gozo dos bens que constituem objeto de determinado direito. Trata-se, portanto, de um

dever de abstenção (obrigação negativa). Ex.: o Estado viola sua obrigação de respeitar

o direito ao mais elevado nível de saúde possível (art. 12 do PIDESC) quando nega

acesso de pessoas a estabelecimentos, bens e serviços de saúde, bem como quando

oculta ou deliberadamente mascara informações importantes para a proteção (ou

tratamento) da saúde das pessoas etc.

2. Proteger: evitar que terceiros interfiram, obstaculizem ou impeçam o acesso aos bens

que constituem determinado direito (note-se que as obrigações de proteger são

correlatas às de respeitar, diferenciando-se apenas pelo fato de que o Estado não deve

simplesmente abster-se de praticar determinada conduta violadora do direito em

questão, pois necessita tomar as medidas necessárias para que terceiros não a

pratiquem). Ex.: o Estado viola sua obrigação de proteger o direito ao mais elevado

nível de saúde possível (art. 12 do PIDESC) quando deixa de promulgar (ou fazer

cumprir) as leis destinadas a impedir a contaminação da água, do ar e do solo pelas

indústrias extrativistas e manufatureiras ou quando deixa de proteger os consumidores

ou trabalhadores contra práticas prejudiciais à saúde empregadas por alguns produtores

de alimentos ou, ainda, quando deixa de regular a atividade de particulares, grupos ou

empresas com o objetivo de impedir que os mesmos violem o direito a saúde dos demais

membros da coletividade etc.

3. Garantir: assegurar que o titular do direito tenha efetivo acesso ao bem quando não

puder fazê-lo por si mesmo. Ex.: o Estado viola sua obrigação de garantir o direito ao

mais elevado nível de saúde possível (art. 12 do PIDESC) por meio de uma previsão

orçamentária inadequada, que impeça a prestação de serviços públicos de saúde ou o

fornecimento gratuito (ou a preços subsidiados) de medicamentos aos particulares,

mormente quando se tratarem de pessoas hipossuficientes.

4. Promover: dever de criar condições para que os titulares do direito tenham acesso ao

bem (note-se que aqui não existe a necessidade de assegurar o efetivo acesso ao bem,

39

mas apenas a de viabilizar as condições de acesso ao bem pelo titular). Ex.: o Estado

viola sua obrigação de garantir o direito ao mais elevado nível de saúde possível (art.

12 do PIDESC) quando deixa de enfocar a saúde a partir de uma perspectiva de gênero,

bem como ao deixar de envidar esforços com vistas à redução das taxas de mortalidade

infantil e materna etc.

Embora as diretrizes interpretativas contidas nas Observações Gerais do Comitê de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sejam desprovidas de um caráter obrigatório

(PISARELLO, 2007, p. 69), sua invocação pelos titulares dos direitos sociais pode contribuir

para a demonstração de que nem a relativa abertura semântica da formulação desses direitos

equivale à ininteligibilidade, nem a indeterminação de seu conteúdo constitui um limite

insuperável à efetivação desses direitos (PISARELLO, 2007, p. 67).

2.1.3 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos de dimensão estritamente coletiva

Outro argumento que costuma ser levantado pela doutrina tradicional para

naturalizar a reduzida carga eficacial dos direitos sociais consiste numa oposição entre a

dimensão coletiva dos direitos sociais (supostamente peculiar aos mesmos) e a dimensão

individual dos direitos civis e políticos.

Fernando Atria (2004, p. 18) apresenta essa noção, por meio da oposição entre a

visão liberal e de sociedade e o modelo socialista de comunidade. O mencionado autor

argumenta que os direitos constituem o núcleo do qual irradia a legitimidade da visão liberal (o

Estado é utilizado como instrumento para a satisfação dos direitos que existiam desde o “estado

de natureza”) e pondera que essa perspectiva não é compatível com o modelo socialista de

comunidade, que se baseia na ideia de solidariedade, que consiste em “estender a mão a outra

pessoa”, porquanto esta não é compatível com a ideia de um conflito regido pelo princípio do

“ganhar ou perder” característico da visão individualista de matriz liberal.

Note-se que as objeções apresentadas por Fernando Atria (2004) contra a

possibilidade de tradução dos direitos sociais (dotados, segundo ele, de uma visão estritamente

coletiva) para a linguagem dos direitos subjetivos correspondem ao elemento central da crítica

comunitarista à visão liberal, segundo a qual a invocação de direitos subjetivos, como

verdadeiras “armas de defesa” apresentadas no cenário de um conflito regido pelo princípio do

“ganhar ou perder” nos remete a uma concepção hobbesiana da pessoa, associada à ideia de

indivíduos essencialmente competitivos, que não têm vínculos sociais específicos entre si, cuja

40

identidade é independente da dos demais e que não tem deveres positivos de ajudar aos demais,

incompatível com um modelo de comunidade lastreado pelo princípio da solidariedade

(PARCERO, 2004, p. 95).

Fernando Atria (2004, p. 24) critica a noção de direito subjetivo ao afirmar que ela

permite recortar a situação de duas pessoas (“credor e devedor”) e separá-las do resto das

considerações morais válidas:

(...) Quero defender a tese de que ter direito (moral) a “x” significa que, em princípio,

é possível pronunciar-se sobre a justiça de dar, fazer ou não fazer “x” a “w”, sem a

necessidade de avaliar o impacto que dar, fazer ou não fazer “x” a “w” terá em relação

ao cumprimento de outras questões moralmente valiosas. Se isso é correto, a noção

de “direitos”, em algum sentido, significa recortar a situação de duas pessoas, o credor

e o devedor, e separá-la do resto das considerações morais válidas, de modo que seja

possível determinar a justiça da ação do credor sem ter que levar em consideração

mais do que a relação existente entre devedor e credor, porque o que importante é a

maneira como (dentro de certos limites) o interesse do credor será satisfeito pelo

devedor. Por isso, é perfeitamente concebível que um tenha direito moral a fazer algo

moralmente lamentável.

Com esse raciocínio, o mencionado autor introduz a noção de que os direitos sociais

se caracterizam por uma dimensão coletiva, que os diferencia dos direitos civis e políticos.

Valendo-se do exemplo das demandas intentadas por particulares visando a

efetivação do seu direito à saúde, Fernando Atria (2004, p. 45-46) procura demonstrar que os

direitos sociais não podem ser traduzidos para a linguagem dos direitos subjetivos sem se

descaracterizarem:

(...) o direito social à proteção da saúde, que originalmente consistia na garantia de

um nível de atenção à saúde de todos (porque uma comunidade na qual nos

preocupamos com os outros é uma comunidade mais decente que outra na qual cada

um persegue seu bem-estar individual), se converte em um direito individual alegado

pelo demandante para que se obrigue o Estado a determinada prestação de saúde, sem

que as necessidades dos outros possam ser relevantes (as necessidades dos outros

aparecem para os juízes como não distribuídas, ou seja, como objetos de políticas ou

aspirações comunitárias e, por isso, os direitos triunfam sobre as mesmas). O que

chega ao tribunal não é um direito social, não pode ser um direito social, senão uma

demanda privada, que expressa não mais a ideia de uma forma superior de

comunidade, mas a negação desta: a pretensão do demandante de que seu interesse

seja atendido, mesmo que às custas do interesse dos demais.

No entanto, Gerardo Pisarello (2007, p. 72) rechaça esse posicionamento ao afirmar

que tanto os direitos sociais quanto os direitos civis e políticos protegem bens jurídicos que

possuem dimensões individualizadas e coletivas:

(...) A saúde, a educação, o entorno habitacional ou ambiental, por exemplo, são bens

cuja afetação pode produzir danos individuais ou coletivos, cuja reparação, por

conseguinte, pode exigir intervenções pontuais, dirigidas a dar resposta às vulnerações

41

do direito de uma pessoa, como intervenções mais complexas dirigidas a resolver a

situação de grupos de afetados mais amplos.

Algo similar ocorre, sem embargo, com a liberdade de expressão, com a liberdade

ideológica, ou com o direito de associação. Contra o que sugere certa mitologia liberal,

nenhum desses direitos pode conceber-se em termos exclusivamente individuais,

como se fossem exercidos fora da sociedade ou com independência da existência de

outros sujeitos. Todos eles, como quase todos os direitos, encerram na realidade

liberdades de expressar-se e de associar-se eventualmente contra outros mas também

com outros. Assim, quando são vulnerados, o que está em jogo não é apenas a

liberdade de expressão, ideológica ou de associação de uma pessoa concreta, senão

também a qualidade e o caráter plural e informado da esfera pública em seu conjunto.

De fato, a tutela da dimensão individualizada de um direito social não implica, via

de regra, a anulação da dimensão coletiva do direito em questão. Nesse sentido, eventual

alegação de sacrifício da dimensão coletiva deve ser especificamente demonstrada em termos

concretos e analisada à luz do princípio da proporcionalidade.

Para além das dificuldades teóricas de se objetar a satisfação da dimensão individual

de um direito social por meio da alegação genérica de que se trata de um direito de dimensão

coletiva, Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2009, p. 22) salientam que

existe uma tendência crescente da doutrina e da jurisprudência brasileiras no sentido da

afirmação da exigibilidade judicial de posições subjetivas ligadas à tutela de condições

materiais mínimas para uma vida com certa qualidade.

Reinaldo de Lima Lopes (1994, p. 136), valendo-se da experiência brasileira no

âmbito da seguridade social, chega a afirmar, inclusive, que a atuação do Poder Judiciário, no

âmbito de sucessivas demandas individuais, tem significativo impacto na ampliação da

abrangência da dimensão coletiva dos direitos sociais, por meio do afastamento de critérios

discriminatórios ou da fixação de parâmetros a serem considerados para a análise do

preenchimento dos requisitos necessários à obtenção de determinada prestação estatal.

No mesmo sentido, Victor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 43-44)

destacam que “as numerosas decisões judiciais individuais podem constituir um sinal de alerta

para os poderes públicos acerca de uma situação de descumprimento generalizado de

obrigações relevantes no âmbito de políticas públicas”.

Nesse sentido, percebe-se que as dimensões individual e coletiva dos direitos

sociais são complementares (e não excludentes), ao contrário dos argumentos alinhavados pela

doutrina tradicional, de modo que a tese genérica da prevalência da dimensão coletiva sobre a

individual não pode prosperar (quando desprovida de elementos concretos), cabendo aos

poderes públicos demonstrar em que medida determinada pretensão individual coloca em

perigo a satisfação da dimensão coletiva do direito social em questão, para que a questão seja

analisada à luz do princípio da proporcionalidade.

42

2.2 Os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a República Federativa do Brasil

constitui um Estado Democrático de Direito, que tem entre seus fundamentos a cidadania e a

dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III, da CF/88) e entre cujos objetivos

fundamentais está a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, mediante a erradicação

da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incisos I e III, da CF/88).

Para a consecução dessa importante missão, o Constituinte consagrou os direitos

sociais, que traduzem para a linguagem jurídica um conjunto de expectativas ligadas à

satisfação das necessidades básicas das pessoas em relação a diversos aspectos da vida em

sociedade (alimentação, moradia, saúde, educação etc.), como autênticos direitos fundamentais.

Como se não bastasse, a Emenda Constitucional nº 45/2004 assegurou aos tratados

internacionais sobre direitos humanos (dentre os quais se encontram os diplomas normativos

que tratam dos denominados Direitos Sociais, Econômicos e Culturais) uma posição

hierárquica privilegiada dentro da pirâmide normativa sobre a qual se estrutura o Ordenamento

Jurídico brasileiro. Com efeito, a vasta gama de direitos socais consagrados pela Constituição

Federal de 1988 é reforçada pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e

pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), dentre outros diplomas

internacionais ratificados pelo Brasil em matéria de direitos sociais, econômicos e culturais.

Outro aspecto digno de nota é o fato de que a Constituição Federal de 1988 atribuiu

uma juridicidade reforçada (GOTTI, 2012, p. 54) às normas definidoras dos direitos e garantias

fundamentais, ao estabelecer que as mesmas têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88).

A essas características, soma-se a condição de “cláusula pétrea” (núcleo inviolável

da Constituição, que não pode ter seu alcance suprimido, nem mesmo reduzido, por meio de

Emenda Constitucional) atribuída aos direitos e garantias fundamentais por meio do art. 60, §

4º, inciso IV, da CF/88, como forma de preservar o conjunto de decisões fundamentais tomadas

pelo Constituinte para a edificação do modelo Estado Democrático (e Social) de Direito

introduzido pela Constituição Federal de 1988.

Essa é a base do regime jurídico constitucional peculiar dos direitos fundamentais

(gênero), que será objeto de uma análise mais detalhada nos tópicos seguintes e servirá de

parâmetro para uma crítica acerca da percepção (ainda) dominante dos direitos sociais

43

(espécie), utilizada para justificar a reduzida efetividade desses direitos (comparada aos

denominados direitos civis e políticos).

2.2.1 A dignidade da pessoa humana como elo entre a Proteção Internacional dos Direitos

Humanos e a Defesa dos Direitos Fundamentais pelo Estado brasileiro

O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) proclama

que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidades e direitos”, consagrando a dignidade

da pessoa humana como valor fundamental na proteção internacional dos direitos humanos,

numa evidente reação ao holocausto e demais atrocidades perpetradas durante a 2ª Guerra

Mundial.

Em virtude das noções de universalidade e inerência dos direitos humanos,

introduzida pelo valor da dignidade da pessoa humana, os indivíduos deixaram de ser meros

objetos da compaixão internacional e passaram a constituírem-se como verdadeiros sujeitos do

direito internacional.

Essa mudança de paradigmas coincide com a crise do positivismo jurídico,

alimentada pela derrota do fascismo (Itália) e do nazismo (Alemanha), que haviam perpetrado

verdadeiras barbáries sob o falso manto de uma estrita legalidade (PIOVESAN, 2015, p. 94).

Esse contexto de reconstrução dos direitos humanos no Pós-Guerra abriu caminho

para uma nova feição do Direito Constitucional ocidental, na qual as Constituições europeias

do Pós-Guerra, em aversão às atrocidades constatadas durante a 2ª Guerra Mundial, abriram-se

aos princípios e assumiram, por conseguinte, uma elevada carga axiológica, com ênfase para o

valor da dignidade humana (PIOVESAN, 2015, p. 216).

Registre-se que a Constituição Federal de 1988 – marco jurídico da superação do

regime autoritário (instalado no Brasil a partir do Golpe de 1964) e da consequente restauração

da democracia e do Estado de Direito em nosso país – alinhou-se à cultura jurídica internacional

do pós-guerra e atribuiu ao princípio da dignidade da pessoa humana um importante papel

interpretativo e unificador dos direitos fundamentais, ao consagrá-lo como fundamento da

República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da CF/88).

Ela foi a primeira na história do constitucionalismo brasileiro a reservar um título

próprio para os princípios fundamentais, cuidadosamente posicionado pelo constituinte na parte

inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais, de modo a revelar

a importância dos mesmos para a estruturação do Estado Democrático (e Social) de Direito nela

consagrado (SARLET, 2015, p. 97).

44

Cláudia Carvalho Queiroz (2013, p. 47) sintetiza o que foi visto até o presente

momento, ao afirmar, com base nas lições de Flávia Piovesan, que o princípio dignidade da

pessoa humana constitui o núcleo básico informador de todo o ordenamento jurídico brasileiro

e que o mesmo, aliado aos direitos fundamentais, serve de suporte ético e axiológico para o

nosso sistema constitucional como um todo, conferindo-lhe unidade de sentido e legitimidade.

No mesmo sentido, Antônio-Enrique Pérez Luño (1995, p. 118) acentua que a

dignidade da pessoa humana não se restringe à garantia negativa de que o indivíduo não será

objeto de ofensas ou humilhações, pois é dotada de um importante sentido positivo, que se

refere à criação das condições necessárias para que cada indivíduo tenha a real possibilidade de

desenvolver suas potencialidades.

Em suma, a partir do momento em que a dignidade da pessoa humana foi

consagrada na condição de princípio constitucional estruturante e fundamento do Estado

Democrático de Direito, o Estado brasileiro assumiu a permanente missão de servir de

instrumento para a garantia e promoção da dignidade das pessoas (individual e coletivamente

consideradas) no âmbito de seu território (SARLET, 2015, p. 99).

Com efeito, observa-se uma estreita afinidade axiológica e normativa entre o direito

internacional contemporâneo (que, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

erigiu a dignidade da pessoa humana ao ápice da estrutura normativa de proteção internacional

dos direitos humanos) e o direito interno (que elegeu a dignidade da pessoa humana como

verdadeiro parâmetro de legitimidade do Ordenamento Jurídico brasileiro).

2.2.2 A hierarquia privilegiada dos Tratados Internacionais sobre Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais no Ordenamento Jurídico brasileiro

Um dos grandes avanços do constitucionalismo social contemporâneo consiste na

tendência de atribuição de força vinculante às normas internacionais sobre direitos humanos,

por meio do reconhecimento de sua hierarquia privilegiada (supralegal ou equiparada a normas

constitucionais) dentro do ordenamento jurídico estatal.

O Brasil aderiu a essa tendência por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004,

que promoveu a inclusão do § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e consagrou que

“os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada

Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos

membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

45

A mencionada reforma constitucional trouxe consigo a semente para uma

significativa transformação da posição hierárquico-normativa atribuída aos tratados

internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil e contribuiu para que o Supremo

Tribunal Federal abandonasse o entendimento segundo o qual os tratados internacionais

celebrados pelo Brasil (independentemente da matéria neles tratada) gozavam do status de

norma infraconstitucional, guardando uma situação de paridade normativa com as leis

ordinárias (que possibilitava sua posterior revogação, total ou parcial, por uma lei posterior).

Mas os contornos da atual posição hierárquico-normativa atribuída aos Tratados

Internacionais pelo Ordenamento Jurídico brasileiro só vieram a ser definidos em 03/12/2008,

quando o Supremo Tribunal Federal julgou os Recursos Extraordinários 349.703 e 466.343

(que versavam prisão civil do depositário infiel, prevista na parte final do inciso LXVII do

artigo 5º da Constituição Federal de 1988).

Naquela oportunidade, restou consagrada a tese de que os tratados internacionais

sobre direitos humanos (diferentemente do que ocorre com os tratados internacionais que

versam sobre matéria diversa) possuem uma hierarquia diferenciada no Ordenamento Jurídico

brasileiro, de modo que, quando não atenderem aos requisitos previstos no art. 5º, § 3º da CF/88

(que lhes concederiam o status de norma constitucional), serão dotados de caráter supralegal,

de modo que sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de

ratificação previsto na Constituição, terá o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e

qualquer disciplina normativa infraconstitucional (anterior ou posterior) com ela conflitante.

É o que se percebe no seguinte trecho do Voto proferido pelo Ministro Relator

Gilmar Mendes, Relator do supramencionado Recurso Extraordinário nº 466.343:

(...) diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da

proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no

ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na

Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer

disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. (...)

Para que não reste qualquer dúvida, observe-se o seguinte trecho do Voto proferido

pelo Ministro Relator Luiz Fux, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240:

(...) Esse caráter supralegal do tratado devidamente ratificado e internalizado na

ordem jurídica brasileira - porém não submetido ao processo legislativo estipulado

pelo artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal - foi reafirmado pela edição da Súmula

Vinculante 25, segundo a qual 'é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer

que seja a modalidade do depósito'. Tal verbete sumular consolidou o entendimento

deste tribunal de que o artigo 7º, item 7, da Convenção Americana de Direitos

Humanos teria ingressado no sistema jurídico nacional com status supralegal, inferior

à Constituição Federal, mas superior à legislação interna, a qual não mais produziria

qualquer efeito naquilo que conflitasse com a sua disposição de vedar a prisão civil

46

do depositário infiel. Tratados e convenções internacionais com conteúdo de direitos

humanos, uma vez ratificados e internalizados, ao mesmo passo em que criam

diretamente direitos para os indivíduos, operam a supressão de efeitos de outros atos

estatais infraconstitucionais que se contrapõem à sua plena efetivação. (...)

Essa reformulação da posição hierárquico-normativa ocupada pelos tratados

internacionais sobre direitos humanos no Ordenamento Jurídico brasileiro é “sintomática de

uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central” (TRINDADE,

1997, p. 409).

Nesse sentido, embora os acórdãos que serviram de paradigma para a construção

dessa nova orientação jurisprudencial acerca da estrutura hierárquico-normativa dos Tratados

Internacionais sobre Direitos Humanos tenham se referido a impossibilidade da prisão civil do

depositário infiel (questão tipicamente associada aos direitos civis e políticos), o raciocínio

empregado pelo Supremo Tribunal Federal acabou alargando as perspectivas de efetivação dos

direitos sociais na sociedade brasileira contemporânea. Afinal, o Brasil ratificou o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992) e a Convenção Americana

referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1996).

Garantir os direitos humanos é, frequentemente, tornar acessíveis os direitos sociais

a grupos humanos que habitualmente não teriam acesso efetivo aos mesmos, abrindo caminho

para uma cidadania verdadeiramente democrática (não excludente) e participativa. Mas, para

colocar em prática essa pretensão de transformação social é preciso desenvolver a capacidade

de idealizar novos conteúdos e técnicas que permitam recapacitar os direitos sociais e suas

garantias (SCHWARZ, 2011, p. 12), de modo permitir a superação da percepção atualmente

dominante acerca dos direitos sociais, responsável pela naturalização da reduzida efetividade

desses direitos no ordenamento jurídico brasileiro.

O ponto de partida para a construção de um estatuto jurídico diferenciado, que

reforce a tutela dos direitos sociais, reside na compreensão de que a adesão a tratados

internacionais sobre direitos econômicos, sociais e culturais geram obrigações concretas para o

Estado Brasileiro (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 19).

2.2.3 A intangibilidade dos direitos e garantias fundamentais (limites materiais à reforma

constitucional – art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88)

Antes de encerrar a análise do estatuto jurídico dos direitos fundamentais e adentrar,

especificamente, no estudo dos direitos sociais (afunilando os estudos rumo ao direito à saúde),

é necessário tecer breves considerações acerca do art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88, segundo o

47

qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir “os direitos e

garantias individuais”.

A referida norma guindou os direitos fundamentais (ou, ao menos, parte deles, para

os que defendem uma interpretação restritiva do dispositivo em questão) à condição de limite

material expresso ao poder de reforma constitucional, convertendo-lhes em verdadeiras

cláusulas pétreas, que representam o núcleo inviolável da ordem constitucional brasileira

(SARLET, 2015, p. 440).

No entanto, Paulo Bonavides (2001, p. 589) destaca que a redação do mencionado

dispositivo abre margem para dúvida acerca de seu alcance: por um lado, os adeptos de uma

interpretação literal, poderiam pretender restringir a proteção do mencionado dispositivo

unicamente aos ‘direitos e garantias individuais’, que corresponderiam aos direitos

fundamentais de matriz liberal-burguesa; por outro lado, partindo de uma interpretação

sistemática dos dispositivos constitucionais, é possível defender que o mencionado dispositivo

abarca toda a categoria dos direitos e garantias fundamentais, na qual, como se sabe, estão

inseridos os direitos sociais.

Impõe-se, dessa forma, uma análise da abrangência da proteção especial resultante

do art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88, de modo a expurgar eventual dúvida acerca da inclusão

dos direitos sociais entre as “cláusulas pétreas” da Constituição Federal de 1988.

Aderindo à interpretação literal (e restritiva) do mencionado dispositivo, Otávio

Bueno Magano (1994, p. 110-111) optou por excluir os direitos sociais das cláusulas pétreas,

sob o argumento de, se o Constituinte desejasse tê-los incluídos nesta categoria, bastaria ter

feito uma menção genérica aos direitos fundamentais ou incluir a expressão “direitos sociais”

ao lado dos “direitos e garantias individuais”.

No entanto, a expressão “direitos e garantias individuais” não foi reproduzida em

nenhum outro dispositivo constitucional, razão pela qual não pode ser confundida, nem mesmo

numa interpretação literal, com os “direitos e deveres individuais e coletivos” insculpidos no

art. 5º da CF/88 (LOPES, 1993, p. 182).

Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 440) pondera que se fôssemos aderir à exegese de

cunho estritamente literal, haveríamos de concluir que não apenas os direitos sociais (art. 6º ao

11 da CF/88), mas também os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13 da CF/88) e os direitos

políticos (arts. 14 a 17 da CF/88) estariam excluídos da proteção outorgada pelo dispositivo

constitucional em questão. Com muita propriedade, o mencionado autor vai mais além e afirma

que, por uma questão de coerência, se adotássemos uma concepção restritiva para a expressão

48

“direitos e garantias individuais” seríamos obrigados a defender que nem mesmo os direitos

coletivos constantes no art. 5º da CF/88 poderiam ser qualificados como cláusulas pétreas.

Embora concordemos com a observação de Ingo Wolfgang Sarlet, quando afirma

nem todos os direitos constantes no artigo 5º poderiam ser alcançados por uma interpretação

literal (de índole restritiva) do art. 61, § 4º, inciso IV, da CF/88, divergimos do referido autor

na parte em que o mesmo sustenta que os direitos à nacionalidade e os direitos políticos

restariam excluídos da proteção das cláusulas pétreas por meio de uma interpretação literal do

dispositivo em questão2.

Em que pese a discussão instalada em torno da matéria, a hermenêutica dos direitos

fundamentais deve levar em conta os postulados do Estado Social e Democrático de Direito

consagrado pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a que observância dos princípios

fundamentais da República Federativa do Brasil conduz à inevitável inconstitucionalidade de

qualquer inteligência restritiva da locução jurídica “direitos e garantias individuais” que venha

a servir de esteio para a exclusão dos direitos sociais do conjunto das cláusulas pétreas

(BONAVIDES, 2001, p. 597).

Com base nos argumentos sinteticamente reproduzidos nos parágrafos anteriores,

entendemos que a “proteção reforçada peculiar aos direitos fundamentais” (GOTTI, 2012, p.

71) é extensível aos direitos sociais, tendo em vista que os mesmos integram a identidade

constitucional, formada pelas decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte (SARLET,

2015, p. 444) do modelo de Estado Democrático (e Social) de Direito introduzido pela

Constituição Federal de 1988.

2.2.4 A juridicidade reforçada das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais

(art. 5º, § 1º, da CF/88)

A Constituição Federal de 1988 atribuiu uma juridicidade reforçada (GOTTI, 2012,

p. 54) às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, ao estabelecer que as

mesmas têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88).

A doutrina e a jurisprudência comungam o entendimento de que, embora situada

no capítulo destinado aos direitos e deveres individuais e coletivos, a norma constante no art.

2 Entendemos que (ressalvados alguns direitos de índole coletiva) os direitos de nacionalidade e os direitos

políticos podem ser considerados direitos e garantias “individuais”. No entanto, optamos por não aprofundar essa

discussão, porquanto ela não interessa ao regime jurídico específico dos direitos sociais, que será analisado no

próximo capítulo.

49

5º, § 1º, da CF/88 aplica-se a todos os direitos fundamentais (categoria na qual estão inseridos

não apenas os direitos e deveres individuais, mas também os direitos sociais, os direitos de

nacionalidade, os direitos políticos e as normas relativas à criação, fusão, incorporação e

extinção de partidos políticos).

Isso resulta não apenas de uma interpretação literal do dispositivo (que utiliza a

expressão “direitos fundamentais” e não “direitos e deveres individuais e coletivos”), mas

também de uma interpretação sistemática e teleológica, tendo em vista que, se restringíssemos

o alcance do 5º, § 1º, da CF/88 apenas ao capítulo destinado aos direitos e deveres individuais

e coletivos, estaríamos suprimindo a juridicidade reforçada não apenas dos direitos sociais, mas

também dos direitos de nacionalidade, dos direitos políticos e das normas relativas à criação,

fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, o que, não se coaduna com o posição

privilegiada ocupada pelos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro (SARLET,

2015, p. 270-271).

Ocorre que, apesar do consenso doutrinário e jurisprudencial acerca da abrangência

do dispositivo constitucional segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias

fundamentais (genericamente considerados) têm aplicação imediata, existe uma discussão

acerca do real significado da norma insculpida no art. 5º, § 1º, da CF/88 em relação às diversas

espécies de direitos fundamentais (SARLET, 2015, p. 271).

Em cuidadosa síntese das correntes doutrinárias em jogo, Alessandra Gotti (2012,

p. 66-67), afirma que as concepções acerca do significado do princípio da aplicabilidade

imediata oscilam entre:

a) posições extremamente tímidas, que sustentam que o dispositivo em comento não

pode atentar contra a natureza das coisas, de modo que boa parte dos direitos

fundamentais apenas alcança sua eficácia nos termos e na medida da lei (Manuel

Gonçalves Ferreira Filho);

b) posições intermediárias, que advogam que os direitos fundamentais são, em

princípio (na medida do possível), diretamente aplicáveis, excetuadas duas

hipóteses:

a. quando a Constituição expressamente remete a concretização do direito

fundamental ao legislador, estabelecendo que o direito somente será

exercido na forma prevista em lei;

b. quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos mínimos

indispensáveis que lhe possam assegurar a aplicabilidade, no sentido de que

não possui a normatividade suficiente à geração de seus efeitos principais

sem que seja necessária a assunção, pelo Judiciário, da posição reservada

ao legislador (Celso Bastos);

c) posições mais otimistas, que defendem a tese de inexistência, em nossa

Constituição, de normas programáticas, na medida em que, além da norma

que consagrou a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, o

Constituinte cuidou para que fossem criados instrumentos processuais

aptos a combater também a omissão por parte do legislador e dos demais

órgãos estatais, nomeadamente o mandado de injunção (art. 5º, LVVI, da

50

CF) – ele mesmo constituindo um autêntico direito-garantia fundamental –

e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, da CF).

Não podemos perder de vista que o art. 5º, § 1º, da CF/88 tem o evidente propósito

de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, razão

pela qual nos afastamos da primeira corrente doutrinária acima descrita.

Em contrapartida, devemos estar atentos à lição de André Ramos Tavares (2008, p.

44), quando adverte que “não há como pretender a aplicação imediata, irrestrita, em sua

integralidade, de direitos não definidos de maneira adequada, cuja própria hipótese de

incidência ou estrutura fica claramente a depender de integração por meio de lei”.

Nesse sentido, comungamos com o entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet (2015,

p. 278), quando sustenta que o art. 5º, § 1º, da CF/88 deve ser compreendido como um mandado

de otimização (ou de maximização), que impõem aos entes públicos a tarefa de reconhecer a

maior eficácia possível aos direitos fundamentais. Afinal, embora o princípio da aplicabilidade

de imediata não possa ser empregado a partir a lógica do “tudo ou nada” (pois a carga eficacial

de cada direito fundamental depende do caso concreto), o art. 5º, § 1º, da CF/88 tem o mérito

de estabelecer uma presunção em favor da aplicabilidade das normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais, de modo que eventual recusa de sua aplicação, baseada na ausência de

ato concretizador, deve ser, necessariamente, fundamentada e justificada (SARLET, 2015, p.

279).

Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 280):

Se, portanto, todas as normas constitucionais sempre são dotadas de um mínimo de

eficácia, no caso dos direitos fundamentais, à luz do significado outorgado ao art. 5º,

§ 1º, de nossa Lei Fundamental, pode afirmar-se que aos poderes públicos incumbe a

tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a

maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados

relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar a

circunstância de que a presunção de aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita

em favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua

fundamentalidade formal no âmbito da Constituição. Assim, para além da

aplicabilidade e eficácia imediata de toda a Constituição, na condição de ordem

jurídico-normativa, percebe-se – na esteira de García de Enterría – que o art. 5º, § 1º,

de nossa Lei Fundamental constitui, na verdade, um plus agregado às normas

definidoras dos direitos fundamentais, que tem por finalidade justamente a de ressaltar

sua aplicabilidade imediata, independentemente de qualquer medida concretizadora.

Poderá afirmar-se, portanto, que – no âmbito de uma força jurídica reforçada ao nível

da Constituição – os direitos fundamentais possuem, relativamente às demais normas

constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia, o que, por outro lado (consoante já

assinalado), não significa que mesmo dentre os direitos fundamentais não possam

existir distinções no que concerne à graduação desta aplicabilidade e eficácia,

dependendo da forma de positivação, do objeto e da função que cada preceito

desempenha. Negar-se aos direitos fundamentais esta condição privilegiada

significaria, em última análise, negar-lhes a própria fundamentalidade. Não por outro

motivo – isto é, pela sua especial relevância na Constituição – já se afirmou que, em

51

certo sentido, os direitos fundamentais (e a estes poderíamos acrescentar os princípios

fundamentais) governam a ordem constitucional.

Diante de tudo que foi exposto até o presente momento, não resta dúvida de que os

direitos fundamentais (juntamente com os princípios fundamentais) ocupam uma posição

privilegiada dentro da estrutura normativa traçada pela Constituição Federal.

Nesse contexto, o art. 5º, § 1º, da CF/88 deve ser compreendido como um mandado

de otimização, que abrange toda a categoria dos direitos fundamentais e lhe confere uma

juridicidade reforçada, mas que não impede a existência de uma graduação na carga eficacial

dos diversos preceitos distribuídos entre os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, da

CF/88), os direitos sociais (art. 6º ao 11, da CF/88), os direitos de nacionalidade (art. 12 e 13

da CF/88), os direitos políticos (art. 14 a 16 da CF/88), as normas relativas à criação,

incorporação e extinção de partidos políticos (art. 17 da CF/88) e os demais dispositivos que

melhor detalham o conteúdo dos mencionados direitos, espalhados ao longo do texto

constitucional.

2.3 O Regime Jurídico específico dos Direitos Sociais

No modelo de Estado Democrático (e Social) de Direito introduzido pela

Constituição de 1988, os direitos sociais estão investidos da missão de criar as condições

jurídicas necessárias para a melhoria das condições de vida das pessoas hipossuficientes, de

modo a assegurar uma convivência pacífica, livre, digna e igualitária entre as pessoas.

Tratam-se de direitos exercidos por meio do Estado, que deve colocar em marcha

as medidas necessárias (edição de leis e atos administrativos, bem como a criação e manutenção

de serviços públicos) que facultem o efetivo gozo desses direitos constitucionalmente

protegidos (KRELL, 1999, p. 240).

Não foi à toa, portanto, que o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

da ONU, esclarecendo o teor do art. 2º, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais

e Culturais3, emitiu a Observação Geral nº 3, na qual consignou expressamente que a aplicação

do PIDESC no âmbito interno dos Estados Partes não depende exclusivamente da promulgação

de disposições constitucionais ou legislativas, chamando a atenção dos Estados Partes para o

3 Tanto o art. 2º, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (ONU), quanto o art.

26 da Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (OEA) e seu correlato art. 1º do

Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San

Salvador), estabelecem para os Estados Partes a obrigação de adotarem, até o máximo de recursos disponíveis, as

providências necessárias à progressiva efetividade dos direitos sociais no âmbito de seus respectivos territórios.

52

fato de que a obrigação prevista no Pacto vai além do respeito (dever do estado de não interferir

nem obstaculizar ou impedir o acesso ao gozo dos bens que constituem objeto de determinado

direito) e da proteção (dever de evitar que terceiros interfiram, obstaculizem ou impeçam o

acesso dos indivíduos aos bens que constituem determinado direito) dos direitos sociais no

âmbito de seus respectivos territórios, pois o grande (e verdadeiro) desafio encontra-se na

efetiva garantia (dever de assegurar que o titular do direito tenha efetivo acesso ao bem quando

não puder fazê-lo por si mesmo) desses direitos.

Esses contornos traçados pela Constituição Federal de 1988 e pelos tratados

internacionais ratificado pela República Federativa do Brasil (o Pacto Internacional de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, no âmbito da ONU; a Convenção Americana de Direitos

Humanos e Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no âmbito da OEA), levaram Alessandra Gotti (2012,

p. 72) a defender que os direitos sociais, além de estarem jungidos ao regime jurídico próprio a

todos os direitos fundamentais (entre cujas características podemos destacar um princípio

informador comum lastreado no princípio da dignidade da pessoa humana, a juridicidade

reforçada pelo mandado de otimização insculpido no art. 5º, § 1º, da CF/88 e a proteção pelos

manto dos limites materiais à reforma constitucional), devem ser compreendidos à luz de um

regime jurídico peculiar, norteado (1) pelo princípio da observância do núcleo essencial desses

direitos; (2) pelo princípio da utilização do máximo de recursos disponíveis; (4) pelo princípio

da implementação progressiva e da proibição do retrocesso social e (5) pelo princípio

hermenêutico do in dubio pro justitia socialis.

2.3.1 Observância do núcleo essencial dos direitos sociais

Se o Estado deve definir, executar e implementar políticas públicas que facultem o

gozo dos direitos sociais (educação, saúde, trabalho, moradia etc.) constitucionalmente

protegidos (KRELL, 1999, p. 240), ele não pode perder de vista a obrigação de assegurar, ao

menos, a satisfação de níveis essenciais de cada um desses direitos consagrados na Constituição

de 1988 e em diversos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.

É bem verdade que a maior ou menor regulamentação legislativa pode condicionar

o grau de exigibilidade de determinado direito social. Entretanto, o simples fato de terem sido

diretamente consagrados em nível constitucional (ou incorporados ao ordenamento jurídico

brasileiro, em posição hierarquicamente privilegiada, mediante a ratificação de tratados

internacionais sobre direitos econômicos, sociais e culturais) faz com o que os direitos sociais

53

disponham de um conteúdo mínimo exigível dos Poderes Públicos e tutelável perante os

tribunais.

Nesse sentido, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da

Organização das Nações Unidas salienta que um Estado, no qual um número significativo de

indivíduos esteja desprovido de uma moradia ou de alimentos essenciais, bem como do ensino

fundamental ou de um serviço de atendimento às necessidades primárias de saúde, está, em

princípio, descumprimento as obrigações assumidas em decorrência do art. 2, item 1, no Pacto

Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Frise-se, inclusive, que o Comitê procurou definir o conteúdo básico do direito ao

desfrute do “mais elevado nível possível de saúde física e mental” (art. 12 do PIDESC),

merecendo destaque (para os fins do presente trabalho) a obrigação estatal de garantir o acesso

universal aos bens e serviços públicos de saúde (dando atenção especial para os grupos

vulneráveis ou marginalizados da sociedade) e de facilitar o acesso aos medicamentos

essenciais, seguindo as diretrizes periódicas do Programa de Ação sobre Medicamentos

Essenciais da Organização Mundial de Saúde, zelando pela distribuição equitativa de todas as

instalações e serviços de saúde.

Por sua vez, os Princípios de Limburgo sobre a aplicação dos Direitos Econômicos

Sociais e Culturais preveem que a avaliação do cumprimento da obrigação de garantir o

mencionado conteúdo mínimo deve levar em consideração a limitação de recursos, mas que um

Estado só pode atribuir o descumprimento desses deveres à ausência desses recursos se

conseguir demonstrar que realizou tudo que estava ao seu alcance para empregar a totalidade

dos recursos disponíveis a fim de satisfazer, prioritariamente, o núcleo essencial desses direitos

(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 90).

Convém salientar, porém, que as fronteiras do conteúdo mínimo ou essencial dos

direitos sociais não são fixas, nem podem ser estabelecidas, num plano estritamente abstrato ou

teórico, para a generalidade desses direitos. Afinal, os elementos que compõem o conteúdo

mínimo ou essencial de um direito social estão condicionados pelo contexto no qual se aplicam:

o que em determinado país economicamente desenvolvido poderia ser considerado o núcleo

mínimo ou essencial de um direito social, poderia ser considerado uma espécie de conteúdo

adicional (acessório) no contexto de um país subdesenvolvido (PISARELLO, 2007, p. 85-86).

Por um lado, uma concepção demasiadamente restritiva acerca do conteúdo mínimo

ou essencial dos direitos sociais poderia ensejar a desnaturalização dos direitos em jogo, por

meio da delimitação de níveis tão elementares que seu exercício acabaria desviado e a dignidade

de seus destinatários seria menoscabada (PISARELLO, 2007, p. 86).

54

Nesse sentido, é preciso ter o cuidado de não confundir o núcleo essencial dos

direitos sociais com a noção de mínimo existencial, pois a mera “identificação entre o mínimo

existencial e núcleo essencial dos direitos sociais poderia implicar um esvaziamento não apenas

dos direitos sociais, mas também dos direitos fundamentais” (SARLET, 2015, p. 332).

Embora possuam o objetivo comum de extrair dos direitos determinados prestações

fáticas que, por sua nota de fundamentalidade, não podem deixar de ser disponibilizadas pelo

Estado, a doutrina do “mínimo existencial” e a construção doutrinária das obrigações mínimas

(núcleo essencial dos direitos sociais) partem de premissas distintas (GOTTI, 2012, p. 85).

Em primeiro lugar, porque a doutrina do mínimo existencial, parte dos princípios

da dignidade da pessoa humana, da supremacia da Constituição e da máxima efetividade

possível das normas constitucionais para prestigiar prestações fáticas de apenas alguns direitos

sociais (ex.: alimentação, saúde básica, vestuário etc), ao passo que a noção de núcleo essencial

dos direitos sociais parte do pressuposto de que todos os direitos sociais, econômicos e sociais

possuem níveis essenciais que devem ser respeitados, em virtude do princípio da boa-fé,

(insculpido no art. 3º, parágrafo 1º, da Convenção de Viena, de 1969 - “Lei dos Tratados”) a

que os Estados-partes estão submetidos no momento da ratificação dos tratados internacionais

(GOTTI, 2012, p. 85).

Em segundo lugar, porque se os direitos sociais possuem o propósito de promover

a melhoria das condições de vida dos indivíduos de determinada sociedade (e não apenas de

garantir-lhes a subsistência). Com efeito, embora o princípio da razoabilidade imponha o

sacrifício ou a minoração de determinadas prestações, não se pode, por exemplo, restringir o

reconhecimento de direitos públicos subjetivos a ações e serviços públicos de saúde apenas às

hipóteses de iminente risco de morte, na medida em que a vida humana não pode ser reduzida

às condições de subsistência (QUEIROZ, 2013, p. 105).

Mas é preciso ter cuidado, pois, ao mesmo tempo em que uma visão

demasiadamente restritiva do núcleo essencial dos direitos sociais não é capaz de se adequar ao

propósito de transformação social que deu origem à consagração desses direitos nos textos

constitucionais, uma visão excessivamente alargada desses direitos também apresenta sérios

riscos, pois poderia sufocar outras possibilidades de desenvolvimento legislativo plural e

participativo (PISARELLO, 2007, p. 86).

Nas sociedades pluralistas modernas (assim consideradas aquelas marcadas pela

presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes,

mas que não possuem força suficiente para se tornarem exclusivos ou dominantes) a

Constituição não deve ter a função de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de

55

vida em comum, mas sim a de criar as condições necessárias para assegurar a efetiva

participação de todos aqueles grupos na condução da vida política do país (ZAGREBELSKY,

2011, p. 13).

Perceba-se, portanto, que as fronteiras do núcleo essencial dos direitos sociais são

móveis e devem estar em constante processo de atualização para conseguir acompanhar as

transformações históricas ocorridas no meio social em que estão inseridos cada um desses

direitos.

As Observações Gerais do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais têm

o propósito imediato de evitar uma concepção excessivamente restritiva acerca do núcleo

essencial dos direitos sociais no âmbito interno dos Estados Partes. Por sua vez, a obrigação de

empreender as medidas necessárias à satisfação desses direitos “até o máximo dos recursos

disponíveis” e o compromisso com a “progressividade” na efetivação dos direitos sociais

garantem a adequação do núcleo essencial desses direitos à realidade de cada país, evitando a

adoção de uma (talvez insustentável) concepção demasiadamente ampliada a esse respeito,

conforme será analisado nos tópicos seguintes.

O que não se pode perder de vista, é que o simples reconhecimento constitucional

ou a ratificação de um tratado internacional pelo país determina, em qualquer circunstância, um

núcleo indisponível para os diferentes poderes constituídos (legislativo, executivo e judiciário),

que precisa ser assegurado a todas as pessoas, especialmente àquelas que se encontram em

situações de maior vulnerabilidade e que, portanto, devem gozar de uma proteção prioritária

por parte dos entes públicos.

2.3.1.1 Breves apontamentos sobre o conteúdo mínimo ou essencial do direito à saúde

No tópico anterior foi apresentada a noção de que cada direito social (saúde,

educação, moradia etc.) possui um conteúdo mínimo a ser garantido pelo Estado, dentro de uma

perspectiva de implementação progressiva e de utilização do máximo de recursos disponíveis

(que será analisada nos tópicos seguintes).

Considerando que o presente trabalho tem como objetivo analisar a utilização de

meios alternativos para a efetivação do direito à saúde, revelam-se oportunas breves

considerações (que, frise-se, não têm a pretensão de esgotar o tema, face às limitações inerentes

ao trabalho de pesquisa ora realizado), acerca do conteúdo mínimo ou essencial desse direito

social em específico.

56

Cláudia Carvalho Queiroz (2013, p. 105) observa que a própria Constituição

Federal de 1988 assinalou algumas das obrigações estatais mínimas ou essenciais em matéria

de proteção à saúde:

1. Saneamento básico (arts. 21, inciso X; 23, inciso IX; e 200, inciso IV, da CF/88);

2. Ações de Medicina Preventiva (art. 198, inciso II, da CF/88)

3. Atendimento Materno-Infantil (art. 227, § 1º, inciso I, da CF/88);

4. Vigilância Sanitária e Epidemiológica (art. 200, II).

Essas obrigações devem ser tratadas com prioridade, na medida em que

expressamente consagradas no próprio texto constitucional, todavia não esgotam o conteúdo

mínimo ou essencial do direito à saúde.

Outra importante baliza para a construção do núcleo essencial do direito à saúde

pode ser encontrada no Relatório Final da VIII Convenção Nacional de Saúde, realizada em

março de 1986, que serviu de base para que o Constituinte elaborasse o Seção destinada à

estruturação do Sistema Único de Saúde na Constituição Federal de 1988, segundo o qual:

11 – O Estado tem como responsabilidades básicas quanto ao direito à saúde:

- a adoção de políticas sociais e econômicas que propiciem melhores condições de

vida, sobretudo, para os seguimentos mais carentes da população;

- definição, financiamento e administração de um sistema de saúde de acesso universal

e igualitário;

- operação descentralizada de serviços de saúde;

- normatização e controle das ações de saúde desenvolvidas por qualquer agente

público ou privado de forma a garantir padrões de qualidade adequados.

As diretrizes constantes do Relatório Final da VIII Convenção Nacional de Saúde

podem e devem servir de parâmetro para a avaliação do caso concreto à luz do princípio da

proporcionalidade, pois resultaram de um amplo debate, que contou com a participação dos

meios acadêmico, social e político e teve como propósito a construção de um novo modelo de

assistência à saúde para o Brasil, que, posteriormente, foi albergado pela Constituição Federal

de 1988, face à constatação de que o modelo até então vigente deixava desamparadas

justamente aquelas pessoas que se encontravam em situação de maior vulnerabilidade.

Registre-se, por fim, que a Emenda Constitucional nº 45/2004 assegurou aos

tratados internacionais sobre direitos humanos ratificado pela República Federativa do Brasil

uma posição hierárquica privilegiada na pirâmide normativa de nosso país, promovendo uma

ampliação do diálogo entre as normas internacionais e ordenamento jurídico brasileiro em

matéria de direitos humanos e, por conseguinte, de direitos econômicos, sociais e culturais.

57

Com efeito, a identificação do conteúdo mínimo ou essencial do direito à saúde

também deve observar as diretrizes traçadas na Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, que discorre sobre o “direito ao disfrute do mais elevado nível

possível de saúde”, insculpido no art. 12 do Pacto Internacional de Direito Econômicos, Sociais

e Culturais.

A mencionada Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais estabelece, em seu item 12, que o direito à saúde abrange os seguintes elementos

essenciais e inter-relacionados: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade.

Em relação à disponibilidade, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

frisa que cada Estado Parte do PIDESC deve contar com um número suficiente de

estabelecimentos, bens, serviços, programas e centros de atenção à saúde, cuja natureza exata

dependerá de diversos fatores, em particular do nível de desenvolvimento de cada Estado.

Destaca-se, porém, que o item 12, alínea “a” da Observação Geral nº 14 destaca que os Estados

devem disponibilizar os fatores determinantes básicos da saúde, como a oferta de água potável

e de condições sanitárias adequadas, hospitais, clínicas e demais estabelecimentos relacionados

à saúde, além de médicos e demais profissionais de saúde devidamente qualificados e bem

remunerados (tudo isso, obviamente, respeitando a capacidade financeira de cada Estado) e dos

medicamentos essenciais definidos no Programa de Ação sobre medicamentos essenciais da

Organização Mundial da Saúde.

Quanto à acessibilidade, a mencionada Observação Geral nº 14 frisa que os

estabelecimentos, bens e serviços de saúde devem ser acessíveis a todos dentro da jurisdição

do Estado Parte, sem discriminação, e esclarece que a acessibilidade apresenta quatro

dimensões sobrepostas:

• Não discriminação: os estabelecimentos, bens e serviços de saúde devem ser acessíveis,

de fato e de direito, aos setores mais vulneráveis e marginalizados da população, sem

qualquer tipo de discriminação negativa;

• Acessibilidade física: os estabelecimentos, bens e serviços de saúde (assim como os

fatores determinantes básicos da saúde, como água limpa potável e os serviços sanitários

adequados) devem estar a uma distância geográfica razoável (inclusive no que se refere

às zonas rurais), especialmente em relação aos grupos vulneráveis ou marginalizados,

como as minorias étnicas e populações indígenas, as mulheres, as crianças, os

adolescentes, os idosos, as pessoas com necessidades especiais e as pessoas com

HIV/SIDA.

58

• Acessibilidade Econômica (exequibilidade): os valores cobrados por serviços de

atenção à saúde e serviços relacionados com os fatores determinantes básicos da saúde

deverão ser baseados no princípio da equidade, de modo a assegurar que esses serviços

(públicos ou privados) estejam ao alcance de todos, inclusive dos grupos socialmente

desfavorecidos.

• Acesso à Informação: deve ser assegurado o direito de solicitar, receber e difundir

informações sobre questões relacionadas à saúde (respeitada a confidencialidade dos

dados pessoais dos pacientes).

O terceiro elemento essencial para a configuração do direito à saúde (de acordo com

o Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) é a

aceitabilidade, que consiste no fato de que os estabelecimentos, bens e serviços de saúde

deverão respeitar a ética médica e a cultura das pessoas (especialmente dos grupos vulneráveis

ou marginalizados), bem como serem adequados ao gênero e ciclo de vida do paciente.

Por fim, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais chama a atenção

para importância da qualidade dos estabelecimentos, bens e serviços de saúde, que devem ser

apropriados do ponto de vista científico e médico e serem de boa qualidade. Para isso, a

Observação Geral nº 14 estabelece que eles devem contar, dentre outras coisas, com pessoal

médico capacitado, medicamentos e equipamentos hospitalares cientificamente aprovados e em

bom estado de conservação, água limpa potável e condições sanitárias adequadas.

Embora as recomendações contidas na Observação Geral nº 14 não se esgotem

naquilo que fora aqui retratado (pois o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

ainda tratou de esmiuçar as repercussões do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais para o direito à saúde de diversos grupos vulneráveis ou marginalizados),

entendemos que os elementos essenciais acima elencados, quando aliados aos dispositivos da

Constituição Federal de 1988 e às diretrizes consagradas no Relatório Final da VIII Convenção

Nacional de Saúde (que serviu de base para a elaboração do atual modelo brasileiro de

assistência à saúde) são capazes de fornecer os elementos necessários para que o legislador (no

momento da elaboração de leis relacionados ao direito à saúde no Brasil), o administrador (no

momento da formulação e execução de políticas públicas de saúde) e o julgador (no momento

da apreciação dos conflitos de interesses relativos à efetivação do direito à saúde) possam

apreciar os inúmeros aspectos envolvidos no caso concreto e tomar as medidas cabíveis, à luz

do princípio da proporcionalidade.

59

2.3.2 Obrigação de utilização do máximo de recursos disponíveis

A faceta mais visível dos direitos sociais consiste na imposição de prestações

positivas (obrigações de fazer) ao Estado, destinadas a reduzir a desigualdade social e a

promover a melhoria das condições de vida das camadas menos favorecidas da população. Com

efeito, o principal argumento levantado por aqueles que pretendem naturalizar a reduzida carga

eficacial dos direitos sociais (quando comparada com a dos direitos civis e políticos) reside na

necessidade de alocação de recursos financeiros para a consecução desses direitos.

Essa necessidade de alocação de recursos financeiros destinados a viabilizar a

consecução dos direitos sociais está diretamente vinculada a uma dupla problemática: a efetiva

disponibilidade de recursos financeiros – disponibilidade material – e o poder de dispor dos

recursos financeiros disponíveis – disponibilidade jurídica (SARLET, 2015, p. 295).

Considerando que a limitação dos recursos públicos disponíveis (material e

juridicamente) para que o Estado possa levar a efeito todas a suas obrigações perante os

cidadãos impõe a necessidade de eleição de quais direitos serão atendidos (e em que medida)

pelo Poder Público, a obrigação de utilização do máximo de recursos disponíveis constitui um

importante princípio informador do regime jurídico peculiar dos direitos sociais.

Afinal, embora a escolha de onde serão alocados os recursos públicos tenha um

importante componente político, não podemos perder de vista as diretrizes estabelecidas pelas

normas constitucionais e pelos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro

(GOTTI, 2012, p. 87).

Frise-se que a Constituição Federal de 1988 consagrou entre os fundamentos da

República Federativa do Brasil os objetivos fundamentais de construir uma sociedade livre,

justa e solidária (art. 3º, inciso I, da CF/88), assumindo, para tanto, o compromisso de erradicar

a pobreza e a marginalização, bem como de reduzir as desigualdades sociais e regionais (art.

3º, inciso III, da CF/88). Além disso, o Constituinte fez questão de consignar que a ordem

econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da CF/88).

Em relação ao direito à saúde, tema em torno do qual gravitam as discussões deste

trabalho, convém salientar que a própria Constituição Federal de 1988 reservou uma parcela

(descrita por meio de um percentual mínimo) dos recursos públicos a ser necessariamente

empregada em ações e serviços públicos de saúde (art. 198, § 2º, incisos I, II e III, da CF/88).

Esse arcabouço constitucional revela a preocupação da Constituição Federal de

1988 em fortalecer os direitos sociais e ampliar o grau de concretização dos mesmos, eleitos

60

como instrumento normativo necessário para construção de uma sociedade livre, justa e

solidária, para a erradicação da pobreza e da marginalização e para a redução das desigualdades

sociais e regionais (GOTTI, 2012, p. 87).

Além disso, tanto o art. 2º, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos

Sociais e Culturais (ONU), quanto o art. 26 da Convenção Americana sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais (OEA) e seu correlato art. 1º do Protocolo Adicional à

Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San

Salvador), estabelecem para os Estados Partes a obrigação de adotarem, até o máximo de

recursos disponíveis, as providências necessárias à progressiva efetividade dos direitos sociais

no âmbito de seus respectivos territórios.

Essas normas internacionais (somadas às normas constitucionais de cada país)

restringem a discricionariedade dos Estados na alocação dos recursos públicos, motivo pelo

qual o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ao avaliar os relatórios elaborados

pelos Estados-partes, tem feito criticado a redução do percentual do PIB destinado a serviços

na área social do país, especialmente quando constata o aumento do percentual de gastos em

outros setores como a defesa (GOTTI, 2012, p. 88).

Por oportuno, convém destacar que a obrigação de empregar o máximo de recursos

disponíveis para a efetivação dos direitos sociais rege não apenas os tempos “normais”, mas

sobretudo os períodos de crises econômicas, causadas pelos mais diversos fatores

(PISARELLO, 2007, p. 86).

Afinal, tanto as Observações Gerais do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais (ONU), quanto os Princípios de Limburgo sobre a Implementação do Pacto

Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, acentuam que a expressão “o

máximo de recursos disponíveis” abrange não apenas os recursos existentes no Estado, mas

também aqueles disponibilizados pela comunidade internacional, por meio de cooperação e

assistência internacionais (2012, p. 88).

Dentro desse contexto, Alessandra Gotti (2012, p. 88-89) sustenta que “em épocas

de crise, o Estado-parte tem o dever de buscar ajuda internacional” para fazer valer as

obrigações assumidas em razão do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais.

Particularmente, reconhecemos que o arcabouço jurídico internacional permite, de

fato, o apelo à ajuda internacional para a garantia dos recursos necessários ao cumprimento das

obrigações assumidas pelos Estados-partes em decorrência do PIDESC. No entanto, antes de

apelar para esse remédio, parece-nos mais coerente (e politicamente menos “traumático”), que,

61

em momentos de crise, seja priorizada a afetação dos recursos públicos para o atendimento das

necessidades dos membros mais vulneráveis da sociedade (PISARELLO, 2007, p. 86).

No mesmo sentido, Victor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 92) defendem

que, em períodos de maior escassez de recursos, causadas por processos de ajustes, de recessão

econômica ou por outros fatores, o Estado deve proteger aos membros vulneráveis da sociedade

mediante a adoção de programas de relativo baixo custo.

De fato, embora o princípio da dignidade da pessoa humana inspire a consagração

do maior número de prestações possíveis, numa situação de comprovada escassez de recursos,

devem ser cuidadosamente levados à balança os princípios da razoabilidade, da economicidade

e da isonomia do caso concreto (QUEIROZ, 2013, p. 105).

Percebe-se, portanto, que a obrigação de emprego do máximo de recursos

disponíveis deve ser compreendida em conexão com a garantia dos níveis essenciais de cada

um dos direitos sociais e, em tempos de acentuada (e comprovada) escassez de recursos, deve

ser priorizada uma atenção para as demandas dos grupos mais vulneráveis da sociedade.

2.3.3 Implementação Progressiva dos Direitos Sociais e Proibição do Retrocesso

A incorporação no ordenamento jurídico brasileiro, em posição hierárquica

privilegiada, dos tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pela República

Federativa do Brasil contribuiu para o alargamento dos direitos de sociais no ordenamento

jurídico brasileiro (GOTTI, 2012, p. 156), de modo que o exame do fundamento jurídico dos

princípios da implementação progressiva dos direitos sociais e da proibição do retrocesso

devem ser analisados à luz de uma visão ampla, que contemple não apenas os dispositivos da

Constituição Federal de 1988, mas também os tratados internacionais que integram os sistemas

internacional e interamericano de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais.

A noção de progressividade foi introduzida no contexto dos direitos sociais em

virtude do art. 2, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

(ONU), que integra o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, que estabeleceu

para cada um dos Estados Partes a obrigação de adotar, até o máximo de recursos disponíveis,

as providências necessárias à progressiva efetivação desses direitos no âmbito de seus

respectivos territórios.

Na sequência, o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, por meio

do art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e

de seu correlato art. 1º do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos

62

em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), também

consagraram a fórmula da implementação progressiva ao disporem sobre as obrigações dos

Estados-partes na efetivação dos direitos sociais.

Por fim, para além de sua previsão em tratados internacionais sobre direitos

humanos devidamente ratificados pela República Federativa do Brasil, convém registrar que o

princípio da implementação progressiva dos direitos sociais decorre implicitamente de alguns

dispositivos constitucionais, seja por sua íntima relação com o princípio da dignidade da pessoa

humana (art. 1º, inciso III, da CF/88), ou por sua afinidade com a cláusula transformadora da

realidade prevista no art. 3º da CF/88 (GOTTI, 2012, p. 159).

Note-se que a noção de progressividade abrange dois sentidos complementares: por

um lado, supõe uma certa gradualidade na implementação dos direitos sociais; por outro, impõe

um compromisso com o progresso, na medida em que os Estados devem estar permanentemente

comprometidos com a melhoria das condições de gozo e exercício desses direitos

(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 93).

De acordo com a Observação Geral nº 3 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais, a noção progressividade resulta do reconhecimento de que, em geral, os direitos

econômicos, sociais e culturais geralmente dependem de um prazo razoável para sua plena

realização e busca conferir seriedade às obrigações assumidas pelos Estados-partes em

decorrência do PIDESC, na medida em que respeita as dificuldades do mundo real, mas impõe

a obrigação de permanente esforço no sentido da ampliação do grau de satisfação dos direitos

sociais.

Dessa obrigação estatal de implementação progressiva dos direitos sociais podem

ser extraídas algumas obrigações concretas e passíveis, inclusive, de serem submetidas à

apreciação judicial em caso de descumprimento.

Nesse sentido, Victor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 94) apontam que a

principal obrigação decorrente do princípio da progressividade é a proibição do retrocesso, em

virtude da qual o Estado deve se abster de praticar condutas (omissivas ou comissivas) que

reduzam o grau de satisfação dos direitos sociais no âmbito de seus respectivos territórios.

De fato, se não houve uma vinculação mínima do legislador e dos demais órgãos

estatais perante o núcleo já concretizado dos direitos sociais, estaria aberta uma porta para o

desrespeito à Constituição. Não se pode permitir, em matéria de justiça social, que o legislador,

ou o administrador, simplesmente desfaça aquilo que legislou, ou executou, pois tal providência

havia sido previamente tomada em estrito (SARLET, 2004, p. 122).

63

É preciso, no entanto, não perdermos de vista que o exame da proibição do

retrocesso deve levar em consideração não apenas os aportes do direito interno (em que costuma

se basear a doutrina brasileira para evitar retrocessos no campo normativo), mas, sobretudo, as

diretrizes do direito internacional que (por meio da imbricação da proibição do retrocesso com

o princípio da progressividade na implementação dos direitos sociais), permite transcender o

campo estritamente normativo e elevar a proibição do retrocesso como verdadeiro parâmetro

de aferição dos resultados concretos obtidos pelas políticas públicas destinadas à satisfação dos

direitos sociais (GOTTI, 2012, p. 150).

Sob o prisma do direito internacional, os princípios de Princípios de Maastricht

consideram violadoras dos direitos econômicos, sociais e culturais “a derrogação ou suspensão

da legislação necessária para o gozo contínuo de um direito econômico, social e cultural que já

se goza” (princípio 14ª), “a adoção de legislação ou de políticas manifestamente incompatíveis

com a obrigações legais preexistentes relativas a esses direitos, salvo que seu propósito e efeito

sejam o de aumentar a igualdade e melhorar a realização dos direitos econômicos, sociais e

culturais para os grupos mais vulneráveis” (princípio 14d) e “a adoção de qualquer medida

deliberadamente regressiva que reduza o alcance da garantia do direito” (princípio 14e)

(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 94).

O retrocesso social pode ser de duas espécies: normativo, que pressupõe um

comparativo com a norma jurídica anterior para verificar se houve uma eventual supressão ou

restrição de benefícios ou direitos pela norma jurídica posterior; ou de resultados, que requer a

análise dos resultados de uma política, tomando-se como referência um ponto de referência

temporal anterior (GOTTI, 2012, p. 161-162).

Em outras palavras, a regressividade pode ser referir aos resultados de uma política

pública (regressividade de resultados), quando seus estes pioram em relação a um ponto de

partida temporalmente anterior escolhido como parâmetro. Para que seja possível constatar essa

espécie de regressividade são, obviamente, necessários indicadores ou referências empíricas

(COURTIS, 2006, p. 3-4), muitas vezes indisponíveis (e certas vezes ou não confiáveis).

Mas a noção regressividade também pode se voltar para as normas jurídicas

(regressividade normativa) quando avalia a extensão dos direitos concedidos por uma norma.

Para avaliar este tipo de regressividade, basta comparar a norma mais recente com a que ela

substituiu ou modificou, a fim de descobrir se foram suprimidos ou limitados direitos

anteriormente concedidos (COURTIS, 2006, p. 4).

Partindo dessa concepção ampliada (para além do campo estritamente normativo)

da proibição do retrocesso, Christiano de Oliveira Taveira e Thaís Boia Marçal (2013, p. 164)

64

destacam que a mesma deve ser efetivamente empregada em matéria orçamentária, com vistas

a impedir a realização de cortes que reduzam (em relação à lei orçamentária do ano anterior) o

montante dos recursos destinados à implementação de determinado direito social ainda não

plenamente concretizado:

Assim, a partir do momento em que se vincula a atuação estatal ao propósito de atingir

as metas traçadas pela Constituição, torna-se imperiosa a adoção de uma postura

estatal com vistas a conferir gradual eficácia aos direitos fundamentais, não se

admitindo condutas que impliquem retrocesso das conquistas alcançadas. Tal

premissa pode (e deve) ser aplicada em matéria orçamentária, pois é possível conceber

como trivial a opção de uma maioria política de ocasião optar por prover dotações

orçamentárias reduzidas para implementação de direitos fundamentais, optando por

custear gastos que não correspondem às prioridades constitucionalmente previstas,

enquanto a Constituição prevê sua gradual implementação.

Esse caminho é igualmente trilhado por Victor Abramovich e Christian Courtis

(2002, p. 36), quando destacam que a adesão por parte do Estado a tratados internacionais que

versam sobre direitos econômicos, sociais e culturais e a consagração de direitos sociais no

texto constitucional supõem, mesmo num contexto de relativa escassez de recursos, uma

autolimitação da discricionariedade estatal em matéria orçamentária.

Por sua vez, Alessandra Gotti (2012, p. 161) defende que a proibição do retrocesso

também deve servir de parâmetro para a aferição da validade da conduta de um administrador

público que, no limite de sua discricionariedade, reduza a amplitude de uma política pública,

deixando de beneficiar substantiva parcela da comunidade que antes era contemplada.

Marcelo Casseb Continentino (2015) adverte, porém, que a adoção de uma

concepção rígida e inflexível acerca do princípio da vedação do retrocesso pressupõe um

(ingênuo) otimismo e uma (equivocada) concepção determinista da história, trazendo à

discussão a denominada “jurisprudência da crise”, desenvolvida pelo Tribunal Constitucional

de Portugal para permitir a flexibilização do princípio da proibição do retrocesso (que

pressupunha um aumento contínuo das prestações sociais) em favor da máxima “menos

trabalho e menos salário, mas trabalho e salário e para todos”, numa reação aos elevados índices

de desemprego que assolavam o país.

De fato, o estouro de uma crise econômica (como a que assombra o Brasil nos dias

atuais) cria o cenário perfeito para o agravamento da tensão existente entre as diversas

concepções que permeiam o discurso jurídico acerca da concretização dos direitos sociais

(PISARELLO, 2009, p. 13).

A diminuição dos recursos financeiros disponíveis dificulta a execução das políticas

públicas existentes e compromete a expansão da oferta de bens e serviços destinados a satisfazer

65

as necessidades básicas dos integrantes da sociedade, começando pelas pessoas e grupos que se

encontram em maior situação de vulnerabilidade.

O problema, como adverte o próprio Marcelo Casseb Continentino (2015), é que a

noção de “crise” não é de fácil apreensão e é tão frequentemente utilizada que seu conteúdo

acaba sendo esvaziado, afinal, “se tudo está em crise, nada é crítico; e, portanto, está dentro da

normalidade”.

Dentro dessa perspectiva, o mencionado autor pondera que precisamos ter o

cuidado de não cair numa “metanarrativa da crise” que tenha o propósito de legitimar, pela

mera referência ao termo “crise” ou “emergência”, a adoção de medidas que restrinjam, limitem

ou até mesmo suprimam os direitos sociais (ou até mesmo os demais direitos fundamentais),

embora também advirta que não podemos criar, em torno da noção de crise, uma carga

semântica tão negativa que inviabilize qualquer medida política ou jurídica excepcional, que

venha a ser adotada em situações de particular gravidade.

Ao final, Marcelo Casseb Continentino (2015) conclui que em situações

excepcionais é possível a restrição do alcance das medidas destinadas à satisfação dos direitos

sociais, mas que essa restrição deve se submeter a um rigoroso controle de constitucionalidade,

orientado pelo princípio da proporcionalidade.

Em sentido semelhante, Ingo Wolfgang Sarlet (2007) destaca que a aferição da

legitimidade de eventuais medidas restritivas somente pode ocorrer à luz do caso concreto (não

podendo ser estabelecida de forma genérica e abstrata) e deve ser norteada pelo princípio da

proporcionalidade, pois a resposta dependerá da comparação entre o interesse público na

restrição e o interesse individual do titular do direito na sua preservação.

Essa possibilidade excepcional de restrição do alcance das medidas destinadas à

satisfação dos direitos sociais precisa levar em conta a advertência de António Manuel

Hespanha, no sentido de que a crise não se supera pela dissolução do direito, mas sim pelo

reforço dos elementos que promovem a consensualidade da ordem jurídica (HESPANHA,

2013, p. 117-118).

Sendo assim, a redução do alcance dos direitos sociais somente se legitima quando

comprovadamente destinada a salvaguardar a manutenção desses direitos para as pessoas e

grupos mais vulneráveis.

Quando falamos em princípio da proporcionalidade, num contexto de restrição do

alcance dos direitos sociais, devemos ter em mente que toda e qualquer medida restritiva deve

zelar pela manutenção de uma proteção prioritária aos grupos sociais que se encontram em

maior situação de vulnerabilidade (PISARELLO, 2007, p. 86) e que não basta a mera alegação

66

de um suposto contexto de crise (ou da insuficiência de recursos) para autorizar a redução do

alcance das medidas destinadas à satisfação dos direitos sociais, sendo necessário que o Estado

demonstre que empreendeu todos os esforços que estavam ao seu alcance, até o máximo de

recursos disponíveis, para satisfazer os direitos sociais consagrados na Constituição Federal de

1988 e nos Tratados Internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.

Afinal, como adverte Gerardo Pisarello (2007, p. 61), o que costuma estar em jogo,

via de regra, não é a forma de assegurar esses direitos, mas sim a decisão acerca de como e com

que prioridades serão distribuídos os recursos que a satisfação dos direitos de um modo geral

exige.

67

3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O CONTROLE JURISDICIONAL DE

POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL

Nos capítulos anteriores, apresentamos o desenvolvimento histórico do

constitucionalismo moderno e realizamos uma crítica acerca da visão (ainda) dominante que

busca justificar a reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada com a dos

direitos civis e políticos). Além disso, traçamos os contornos do regime jurídico dos direitos

fundamentais e apresentamos uma proposta para a formulação de um regime jurídico específico

dos direitos sociais, com vistas a reforçar a efetividade dessas normas constitucionais.

É chegada a hora de realizarmos uma breve reflexão acerca das relações entre o

Direito e a Política, com ênfase no controle judicial de políticas públicas no Brasil, de modo a

prepararmos o terreno para uma discussão acerca do surgimento de espaços de diálogo

interinstitucionais destinados fomentar a resolução extrajudiciais dos conflitos de interesses

relativos à efetivação do direito à saúde no Brasil.

Para uma adequada compreensão da matéria, não podemos perder de vista as noções

introduzidas no primeiro capítulo, quando foram apresentados os princípios do

constitucionalismo moderno: respeito aos direitos humanos, separação dos poderes, existência

de um governo representativo, limitação do poder governamental e independência judicial

(DIPPEL, 2005, p. 182-183). Note-se que a exigência de um governo representativo surge como

corolário da ideia de soberania popular e visa a ampliar a legitimidade do exercício do poder.

Por sua vez, a independência judicial revela-se como uma característica necessária à limitação

do poder governamental e defesa dos direitos fundamentais.

Pois bem, a missão do Estado Democrático de Direito consiste em harmonizar as

ideais de constitucionalismo e democracia, por meio de mecanismos capazes de superar

adequadamente as tensões surgidas na experiência cotidiana, limitando o poder da maioria nos

estreitos limites necessários para a salvaguarda dos direitos fundamentais. Afinal, o governo da

maioria, em determinadas situações, pode se inclinar ao desrespeito de direitos fundamentais

das minorias e, por isso, precisa ser limitado pelas normas jurídicas. Da mesma forma, é preciso

ter cuidado para que os dogmas limitadores do Direito não acabem asfixiando a manifestação

da vontade popular (BINENBOJM, 2014, p. 48).

A importância do delicado equilíbrio entre a vontade da maioria, a limitação do

poder e a garantia dos direitos fundamentais confere especial relevo ao debate acerca das

relações entre o Direito e à Política – aspectos distintos da estrutura de um país democrático,

mas cuja linha divisória tem se mostrado maleável e nem sempre tão evidente.

68

Quando o foco da discussão se volta para as relações entre o Direito e a Política no

contexto da efetivação do direito à saúde, frequentemente se aborda a questão da judicialização

da saúde, com ênfase nos argumentos favoráveis e contrários à intervenção do poder judicial

nas diversas fases da política pública do Sistema Único de Saúde.

Neste trabalho, porém, a questão será tocada apenas tangencialmente, na medida

necessária para a compreensão do surgimento dos espaços de diálogo interinstitucionais que se

propõem a buscar uma solução alternativa (extrajudicial) para a resolução dos conflitos de

interesse relativos à efetivação do direito à saúde.

3.1 O reconhecimento da força normativa da Constituição

Uma das principais mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX reside

na percepção de que a Constituição não pode ser considerada um mero repositório de promessas

vagas, cuja concretização dependa essencialmente da atuação do legislador ordinário ou da

discricionariedade do administrador público. O reconhecimento da força normativa da

Constituição significa, portanto, atribuir um caráter vinculativo, obrigatório e imperativo de

suas disposições, cuja inobservância deve deflagrar mecanismos próprios de coação e

cumprimento forçado (BARROSO, 2015, p. 7).

Uma interessante perspectiva para se estudar a mudança de paradigma promovida

pelo gradativo reconhecimento da força normativa da Constituição reside no contraponto entre

ideias de Ferdinand Lassalle ([1862], 2014) – para quem a Constituição Jurídica não passava

de um “pedaço de papel” que refletia a “soma dos fatores reais de poder” de uma sociedade –

e de Konrad Hesse (1991, p. 19) – segundo o qual a Constituição transforma-se numa “força

ativa” na medida em que a disposição de orientar sua conduta a partir da ordem nela

estabelecida esteja incutida na “consciência geral” e “particularmente, na consciência dos

principais responsáveis pela ordem constitucional”.

O raciocínio desenvolvido por Lassalle ([1862], 2014), em sua obra “O que é uma

Constituição?” é bastante convidativo, especialmente quando nos desafia a inovar o conteúdo

de uma nova constituição a ser criada (numa hipotética situação em que tivéssemos rasgado a

“folha de papel” e não houvesse mais nenhum outro exemplar disponível do texto

constitucional).

Ao esmiuçar o imenso desafio para se conseguir efetivamente alterar a moldura que

nos é traçada pelos fatores reais de poder em nossa sociedade, Lassalle ([1862], 2014) defende

69

que a Constituição deve descrever rigorosamente a realidade política do país, sob pena de não

ter efetividade.

Dessa forma, Lassalle ([1862], 2014) foi responsável pela elaboração do conceito

sociológico de Constituição, cujas premissas foram contrapostas por Hesse (1991), que advertiu

para o fato de que a Constituição nem sempre sairia derrotada numa disputa com os fatores

reais de poder da sociedade.

Em sua obra “A força normativa da Constituição”, Konrad Hesse (1991, p. 10)

atribui o fascínio exercido pela tese inicialmente defendida por Lassalle ([1862], 2014) à sua

aparente simplicidade e evidência, às suas bases empíricas e à sua aparente confirmação

histórica. Todavia, jurista alemão defende a existência de uma “vontade da Constituição”, que

pode ser capaz de superar os fatores reais de poder de uma sociedade, quando estiver

consolidada a crença em torno de sua imperatividade (HESSE, 1991, p. 19):

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A

Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente

realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela

estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos

juízes de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem.

É dentro da perspectiva lançada por Hesse que se pode compreender o fato de que

a constitucionalização de determinados princípios e direitos acaba subtraindo certas matérias

do embate político cotidiano, tornando-as imunes a contra as maiorias legislativas ocasionais.

Registre-se, porém, que o debate acerca da força normativa da Constituição aportou

no Brasil na década de 80, e enfrentou sérias resistências, pois sofre de “patologias crônicas,

ligadas ao autoritarismo e à insinceridade constitucional”, pois a efetivação dos direitos

consagrados na Constituição Federal de 1988, em especial do direito à saúde, esbarra no

problema da limitação de recursos materiais e da disponibilidade orçamentária, bem como na

eficiência da gestão dos recursos disponíveis etc.

3.2 O Controle Judicial das Políticas Públicas de Saúde no Brasil

Para efeitos deste trabalho, consideram-se políticas públicas os instrumentos de

execução de programas políticos por meio dos quais o Estado intervém na sociedade com o

escopo de assegurar as condições materiais para a existência digna de todos os cidadãos

(APPIO, 2012, p. 136).

70

Tratam-se do conjunto de ações empreendias pelo Poder Público com o propósito

de concretizar o projeto político de bem comum, justiça social e igualdade dos cidadãos,

insculpido da Constituição Federal (OHLWEILLER, 2008, p. 323).

Quando o assunto é a efetivação dos direitos sociais, as políticas públicas assumem

um papel de destaque, na medida em que a faceta mais visível da referida espécie de direitos

fundamentais consiste em seu conteúdo prestacional.

Com efeito, os órgãos e agentes encarregados da elaboração e execução das

políticas públicas devem partir sempre da premissa que a Administração Pública deve

empreender todas as medidas necessárias e possíveis para o cumprimento do Constituição em

sua integralidade, com ênfase para a satisfação direitos fundamentais, categoria na qual estão

inseridos os direitos sociais (OHLWEILLER, 2008, p. 326).

De um modo geral, a formulação de políticas públicas leva em consideração os

custos que a execução das mesmas imporá aos cofres públicos. Todavia, existe um intenso

debate jurídico-social acerca de “quando e em que medida os limites financeiros podem

justificar a não realização dos direitos fundamentais sociais” (APPIO, 2012, p. 382).

É recomendável que as decisões estratégicas acerca da alocação dos limitados

recursos públicos (assim consideradas aquelas que repercutem na definição de quais direitos

serão efetivados e em que medida isto ocorrerá) sejam tomadas de forma mais transparente

possível, cabendo ao Estado tomar as medidas necessárias para que a população tenha acesso a

níveis adequados de informação a esse respeito (HOLMES e SUNSTEIN, 2000).

Porém o descrédito das instâncias políticas majoritárias e a consagração dos direitos

fundamentais como eixo axiológico das constituições contemporâneas, associados ao

reconhecimento da força normativa da Constituição, impulsionaram a intensificação da atuação

dos órgãos jurisdicionais, os quais foram gradualmente se afastando da ortodoxia do “legislador

negativo” e passaram a assumir um certo protagonismo na construção da ordem jurídica,

convertendo-se em “um novo espaço público de deliberação”, no qual vêm sendo decididas

importantes controvérsias da agenda política nacional (LEITE, 2014, p. 11).

Aliás, a própria arquitetura aberta da Constituição Federal de 1988 favorece a

gradual ocupação judicial dos normativos deixados vazios (intencionalmente ou não) pelo

Congresso Nacional (LEITE, 2014, p. 12).

Ao traçar um panorama das posições existentes do debate jurídico contemporâneo

acerca da eficácia do direito à saúde e dos limites do Poder Judiciário quanto à determinação do

conteúdo das prestações a serem cumpridas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), Miriam Ventura,

Luciana Simas, Vera Lúcia Edais Pepe e Fermin Roland Schramm (2010, p. 86) apontam que:

71

No debate jurídico atual, há três posições sobre a eficácia do direito à saúde, que se

desdobram em análises acerca das possibilidades de atuação do Judiciário na

determinação de prestações a serem cumpridas pelo SUS.

Uma primeira posição entende que a eficácia desse direito deve ser restrita aos

serviços e insumos disponíveis do SUS, determinados pelo gestor público.

Uma segunda compreende que o direito à saúde implica garantia do direito à vida e

integridade física do indivíduo, devendo o Judiciário considerar a autoridade absoluta

do médico que assiste ao autor da ação judicial, obrigando o SUS a fornecer o

tratamento indicado.

Uma terceira posição defende que a eficácia do direito à saúde necessita ser a mais

ampla possível, devendo o Judiciário – na análise do caso concreto – ponderar direitos,

bens e interesses em jogo, para fixar o conteúdo da prestação devida pelo Estado.

Os mencionados autores arrematam sustentando que a terceira posição é a mais

adequada diante do sistema jurídico consagrado pela Constituição Federal de 1988, ampliando

a margem de atuação discricionária, desde que racionalmente fundamentada, do magistrado

diante do caso concreto (VENTURA, SIMAS, et al., 2010, p. 87):

A terceira posição é a que se revela mais adequada à compreensão da sinergia entre

saúde e direito, na garantia do cidadão ao acesso à justiça e acesso à saúde (LEIVAS,

2006). O juiz deverá levar em conta, por exemplo, se as alternativas terapêuticas,

oferecidas pelo SUS, podem atender às necessidades do demandante, sem prejuízos

significativos para seu bem-estar; ou se a prescrição médica individual requerida,

comparada ao que há disponível no SUS e respaldada por evidências científicas, é o

único meio eficiente para garantir a saúde do demandante.

O tema é preocupante, em virtude da multiplicação do número de demandas e

condenações judiciais que impõem ao Estado a obrigação de concretizar direitos insculpidos na

Constituição, exigindo a aplicação de recursos públicos para o fornecimento de medicamentos

ou a prestação de serviços de saúde (CAMBI, 2010, p. 382).

O controle judicial de políticas públicas de saúde no Brasil pode se dar em caráter

preventivo (no momento de formulação das mesmas), ocorrer concomitante (por ocasião da

execução das políticas públicas) ou ser realizado em momento sucessivo à execução da política

pública (quando da avaliação dos resultados por elas atingidos).

Em geral, as objeções geralmente são apontadas para o controle preventivo, sob o

argumento de que a participação do poder judiciário no processo de formulação das políticas

públicas implica em substituição de um ato de vontade dos representantes democraticamente

eleitos por um ato de vontade de juízes não-eleitos (APPIO, 2012, p. 135).

Por sua vez, os controles concomitante e sucessivo das políticas públicas de saúde

no Brasil, por meio do qual o poder judiciário determina o cumprimento do plano de ação

estabelecido pela própria administração pública, não costumam gerar maiores controvérsias,

72

exceto quanto às hipóteses concessão judicial de medicamentos ou prestação de serviços que

não estão contemplados na política pública instituída no âmbito do SUS.

Em geral, os poderes públicos argumentam que seria indevida a ingerência

casuística do poder judiciário nos critérios técnico-científicos que orientam a elaboração das

listas de medicamentos. Entretanto, a questão não é tão simples quanto o argumento faz parecer,

pois a atuação do poder judiciário é indispensável para a correção de diversas anomalias que

envolvem a elaboração das políticas públicas de saúde (SABINO, 2013, p. 371).

Nesse sentido, Marco Antônio da Costa Sabino (2013, p. 371) salienta:

A verdade de que não se pode escapar é que a inclusão de determinado medicamento

nas listas de dispensação obrigatória interessa a muita gente. Esses interesses podem

redundar na cooptação de determinados agentes administrativos que, por fim, definem

quais medicamentos entram e quais medicamentos saem das listas. É verdade que, em

sua maioria, os componentes dos órgãos responsáveis por essa definição são técnicos,

mas técnicos que respondem, sempre, a uma autoridade inegavelmente motivada por

interesses políticos.

A grande inquietação que surge com a necessidade de intervenção judicial para o

fornecimento de medicamentos ou a realização de procedimentos médicos que não constam da

política pública instituída no âmbito do SUS é que isso pode causar um desequilíbrio nas contas

públicas e, num cenário mais extremado, prejudicar (ou mesmo inviabilizar) a execução das

políticas públicas elaboradas pelo poder executivo.

Os poderes públicos argumentam que para dar cumprimento às determinações

judiciais em matéria de efetivação do direito à saúde é preciso por em prática a lógica do

cobertor curto, pois como não existe uma dotação orçamentária previamente definida para

aquele medicamento ou procedimento médico específico, acaba sendo preciso realocar recursos

originalmente destinados a atender outra necessidade da população (SABINO, 2013, p. 386).

Além disso, na medida em que cresce o número de demandas envolvendo pedidos

de efetivação do direito à saúde, a população perde parcela de sua participação na construção

de uma solução para os problemas relativos à matéria, pois as estratégias de efetivação do

direito à saúde vão se afastando de um referencial societário calcado na realidade dos serviços

públicos de saúde brasileiros para assumir um referencial jurídico calcado, quase que

exclusivamente, em critérios legais abstratos (ASENSI, 2013, p. 107).

Ao enfrentar especificamente a questão do possível deslocamento das instâncias

participativas de discussão para a esfera institucional do direito, durante a Conferência

Inaugural do XXXVIII Congresso Nacional dos Procuradores de Estado, realizado em Foz do

Iguaçu, Antônio José Avelãs Nunes (2013, p. 59) revelou sua preocupação com a potencial

73

desmobilização da cidadania resultante da falsa ilusão de que está bem, pois o poder judiciário

está sempre a postos para sanar os todos os problemas.

Essa percepção das limitações do poder judiciário para enfrentar o problema da

efetivação do direito à saúde no Brasil tem estimulado os diversos atores sociais (públicos e

privados), e suas respectivas representações jurídicas, a buscarem mecanismos de efetivação do

direito à saúde que não dependam da intervenção do Poder Judiciário.

Estudo recente revelou que a vontade política e o diálogo institucional

potencializam a organização de fluxos de atendimento aos usuários, a disseminação de

informações, tanto sobre o direito à saúde quanto sobre o funcionamento dos programas de

saúde locais, além de favorecerem a própria efetivação do direito à saúde, tanto na esfera

judicial quanto extrajudicialmente (ASENSI e PINHEIRO, 2015, p. 76).

É dentro desse contexto que podemos compreender o surgimento de verdadeiros

espaços de diálogos interinstitucionais, por meio dos quais se estabelece uma rotina

extrajudicial destinada a tentar alcançar uma solução alternativa para os conflitos de interesses

relativos à efetivação do direito à saúde, a exemplo do programa SUS MEDIADO, que será

analisado no próximo capítulo.

74

4 O PROGRAMA SUS MEDIADO

Consoante tivemos a oportunidade de deixar antever nos capítulos anteriores, a

multiplicação de processos relativos à concretização do direito à saúde (fenômeno que vem

sendo denominado “judicialização da saúde”) tem suscitado intensos debates jurídico-sociais,

que buscam identificar e desenvolver práticas jurídicas capazes de reduzir a necessidade de

judicialização das demandas relativas à efetivação desse direito fundamental.

Foi nesse contexto que surgiu o programa SUS MEDIADO, desenvolvido na

cidade de Natal/RN, que procura viabilizar uma solução extrajudicial para os conflitos de

interesse envolvendo a efetivação do direito à saúde de cidadãos hipossuficientes no âmbito do

Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de sessões de mediação que ocorrem semanalmente

na sede da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte e contam com a participação

direta do cidadão hipossuficiente, de um farmacêutico, dos Técnicos das Secretarias de Saúde

Estadual e Municipal, de um Defensor Público Estadual, de um representante da Procuradoria

Geral do Estado e de um representante da Procuradoria Geral do Município.

O referido programa foi constituído por meio de um Termo de Cooperação Técnica

entre a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte - DPE/RN, a Procuradoria Geral

do Estado do Rio Grande do Norte – PGE/RN – a Secretaria de Estado da Saúde Pública do

Estado do Rio Grande do Norte – SESAP/RN, a Defensoria Pública da União – DPU/RN, a

Procuradoria Geral do Município do Natal - PGMN/RN, a Secretaria de Estado da Saúde

Pública - SESAP/RN e a Secretaria Municipal de Saúde do Natal - SMS/Natal, celebrado em

14 de fevereiro de 2012, na cidade de Natal/RN.

O programa SUS MEDIADO estabelece um ambiente de cooperação entre os

participantes, com o propósito de promover uma maior celeridade na troca de informações e

tentar viabilizar a resolução extrajudicial das demandas relativas à efetivação do direito à saúde

no âmbito do SUS.

De acordo com os dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio

Grande do Norte, o programa SUS MEDIADO propiciou uma solução administrativa para 274

dos 1123 casos que lhe foram submetidos no ano de 2013 (taxa de resolutividade extrajudicial

global no ano de 2013 = 24,4%) e que no ano de 2014 a taxa de resolutividade extrajudicial

global subiu para 33,58% (o SUS MEDIADO criou condições para a solução administrativa de

416 dos 1239 casos que lhe foram submetidos no ano de 2014).

75

Apesar de animadores, esses números não esclarecem quais as situações que

contribuem para o sucesso ou fracasso da tentativa de mediação dos casos relativos à efetivação

do direito à saúde que são apresentados à Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN, por

cidadãos hipossuficientes. Essa informação é extremamente relevante e constitui um importante

dado para subsidiar a implantação (ou não) de programas semelhantes em outros municípios e

unidades da federação.

O presente trabalho se propôs a realizar um diagnóstico do programa SUS

MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN e, para a consecução desse objetivo, foi

requerido à Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (em junho de 2015) o acesso

aos Relatórios de Atendimento do Programa SUS MEDIADO, solicitação que foi prontamente

atendida pela referida instituição.

4.1 Delimitação Temporal da Amostra

O presente trabalho de pesquisa teve o propósito de realizar um diagnóstico do

Programa SUS MEDIADO, a partir da análise dos dados empíricos encontrados no Relatórios

de Atendimento referentes ao ano de 2014, para descobrir quais as condições que favorecem

e/ou dificultam que a mediação reduza a necessidade de judicialização dos pedidos de

fornecimento gratuito de medicamentos apresentados por cidadãos hipossuficientes à

Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN.

A delimitação temporal da amostra levou em conta os aspectos a seguir:

1. O Programa SUS MEDIADO teve início a partir de um Termo de Cooperação Técnica

firmado em 14 de fevereiro de 2012. Dessa forma, não houve atendimento em todos os

meses do referido ano. Além disso, houve alteração na forma de registro dos resultados dos

atendimentos obtidos ao longo de 2012. Inicialmente, os atendimentos diários eram

consolidados em atas, que posteriormente foram substituídas por Relatórios de Atendimento

com o propósito de desburocratizar a tentativa de mediação.

2. Tivemos acesso à integralidade dos Relatórios de Atendimento relativos ao ano de 2013,

em que foram submetidos 1.123 casos ao SUS MEDIADO;

3. Tivemos acesso à integralidade Relatórios de Atendimento relativos ao ano de 2014, em

que 1.239 casos foram submetidos à mencionada tentativa de resolução extrajudicial dos

conflitos de interesses relativos à efetivação do direito à saúde;

76

4. No requerimento de acesso aos Relatórios de Atendimento do programa SUS MEDIADO

foi apresentado em julho/2015. Por conseguinte, somente tivemos acesso aos dados

relativos ao primeiro semestre do referido ano.

Os Relatórios de Atendimento do ano de 2012 foram excluídos da amostra por dois

motivos: primeiro, porque não houve atendimento durante todos os meses do referido ano;

segundo, porque não houve uniformidade na forma registro dos resultados alcançados ao longo

do referido período. Por sua vez, decidimos excluir da amostra os Relatórios de Atendimento

do ano de 2015, porque somente dispúnhamos dos dados relativos ao primeiro semestre do

referido ano.

Restaram, portanto, os Relatórios de Atendimento relativos aos anos de 2013 e

2014, que, juntos, totalizavam 2.363 (dois mil trezentos e sessenta e três) casos submetidos ao

programa SUS MEDIADO.

Nesse sentido, optamos pela análise da integralidade dos Relatórios de Atendimento

relativos ao ano de 2014, por se tratar do período mais recente a cuja integralidade dos

Relatórios de Atendimento tivemos acesso para a realização do presente trabalho de pesquisa.

Afinal, como a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME (lista de

medicamentos que deve atender às necessidades de saúde prioritárias da população brasileira e

que constitui a referência central para as ações de assistência farmacêutica no âmbito do SUS)

é objeto de atualização periódica, a incorporação de novos medicamentos e outros insumos

necessários ao tratamento de saúde das pessoas pode influenciar no resultado da mediação.

4.2 Instrumento de Coleta de Dados

Após a delimitação do recorte temporal da amostra (ano de 2014), todos os

Relatórios de Atendimento cujos dados seriam analisados passaram por um processo de

anonimização e codificação.

Cada Relatório de Atendimento recebeu um número sequencial, baseado na ordem

em que os casos foram sendo submetidos ao Programa SUS MEDIADO ao longo do ano de

2014. Com isso, os nomes dos assistidos e seus respectivos telefones para contato puderam ser

descartados, porquanto não guardavam qualquer relevância para o estudo que seria realizado.

77

Figura 1 - Modelo de Relatório de Atendimento

Na sequência, a análise da estrutura dos Relatórios de Atendimento (fontes de

informação) possibilitou a identificação das categorias de análises que deveriam compor o

instrumento de coleta de dados (planilha):

1. Natureza da Demanda (fornecimento de medicamentos, marcação de consultas,

realização de exames ou cirurgias etc.);

2. Situação Atual do Objeto da Pretensão (ex.: medicamento não contemplado pelo SUS,

medicamento contemplado pelo SUS, mas está em falta, medicamento contemplado

pelo SUS, mas não é disponibilizado para o CID do requerente etc), que nos informa o

motivo pelo qual o cidadão hipossuficiente teve sua pretensão indeferida pelo Sistema

Único de Saúde;

3. Resultado da Tentativa de Resolução Extrajudicial do Conflito (ex.: mediado,

encaminhado para judicialização etc.).

As categorias de análises identificadas foram codificadas e distribuídas numa

planilha (instrumento de coleta de dados) que, posteriormente, foi alimentada com as

informações extraídas de cada um dos Relatórios de Atendimentos (fontes de informações).

Resultado

Natureza da Pretensão

Situação Atual do

Objeto da Pretensão

78

Em seguida, as informações constantes no instrumento de coleta de dados foram

convertidas em um banco de dados do Software IBM SSPS, no qual será realizado o

processamento eletrônico dos dados coletados.

A primeira etapa desse processo foi o cadastramento das categorias de análise

anteriormente apontadas no Software IBM SSPS, seguindo a codificação utilizada no

instrumento de coleta de dados (ex.: na categoria de análise Natureza da Pretensão, o código

101 corresponde a um pedido de medicamentos, ao passo que o código 102 refere-se a um

pedido de suplementos e o código 103 indica que estamos diante de um pedido de outros

insumos necessários ao tratamento de saúde da pessoa), conforme se verifica na Figura 2.

Figura 2 – Cadastramento das Categorias de Análise no SSPS

As categorias de análise Natureza da Pretensão (linha 2), Situação Atual do Objeto

da Pretensão (linha 4) e Resultado da Tentativa de Resolução Extrajudicial do Conflito (linha

5) foram devidamente tratadas como variáveis qualitativas, porque não estamos diante de

eventos quantitativos, mas sim de uma classificação atribuída pelo pesquisador a cada evento

dos Relatórios de Atendimento do Programa SUS MEDIADO.

Isso pode ser observado na coluna “Medir”, em que as categorias de análise das

linhas 2 (Natureza da Pretensão), 4 (Situação Atual do Objeto da Pretensão) e 5 (Resultado da

Tentativa de Resolução Extrajudicial do Conflito) foram classificadas como variáveis do tipo

nominal, espécies do gênero variáveis qualitativas que é utilizado quando não existe uma

relação de ordenação entre os diversos eventos que podem ser encontrados na respectiva

categoria de análise.

Após o cadastramento das categorias de análise e a devida classificação das

respectivas variáveis, os dados do instrumento de coleta de dados foram transportados para um

Banco de Dados do Software IBM SSPS, criado a partir das categorias de análise anteriormente

cadastradas, conforme se verifica na Figura 3.

79

Figura 3 – Banco de Dados do SSPS

Após as etapas anteriormente descritas, os dados coletados foram submetidos a

processamento eletrônico no Software IBM SSPS, que possibilitou uma análise exploratório-

descritiva das informações extraídas dos Relatórios de Atendimento do programa SUS

MEDIADO, referentes ao ano de 2014.

4.3 Análise Exploratório-Descritiva das informações extraídas do Relatórios de

Atendimento, referentes ao ano de 2014, do Programa SUS MEDIADO

4.3.1 Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global

O Programa SUS MEDIADO propiciou uma solução administrativa para 414

(quatrocentos e quatorze) dos 1239 (mil duzentos e trinta e nove) casos que lhe foram

submetidos no ano de 2014. Isso corresponde a 33%4 (trinta e três por cento) do total de pedidos

de assistência jurídica dirigidos à Defensoria Pública em causas que relativas à efetivação do

direito à saúde no âmbito do SUS, no estado do Rio Grande do Norte, no ano de 2014, consoante

se verifica no Gráfico 1:

4 Todos os percentuais apresentados doravante foram arredondados em conformidade com a norma ABNT NBR

5891:2014 - Regras de arredondamento na numeração decimal, que revisou a norma ABNT NBR 5891:1977,

elaborada pelo Comitê Brasileiro de Máquinas e Equipamentos Mecânicos (ABNT/CB-04).

80

Gráfico 1 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global

Note-se que o uso da mediação pela Defensoria Pública reduziu em

aproximadamente 1/3 (um terço) a necessidade de judicialização dos pedidos relacionados a

efetivação do direito à saúde que lhe foram apresentados à Defensoria Pública, na cidade de

Natal/RN, por cidadãos hipossuficientes no ano de 2014.

Isso corrobora a tese de que é preciso atentar para a possibilidade de resolução

extrajudicial dos conflitos de interesses, bem como para o fato de que existem diversos órgãos

e instituições vocacionados para esta tarefa, a exemplo da Defensoria Pública, que tem a missão

institucional de promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à

composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação,

arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos, nos termos do artigo

4º, inciso II, da Lei Complementar nº 80/94.

4.3.2 Taxa de Resolutividade Extrajudicial por tipo de demanda: “Medicamentos” versus

“Procedimentos”

A constatação de uma taxa de resolutividade extrajudicial global de 34%, serviu

de ponto de partida rumo à compreensão do real impacto das práticas de mediação

desenvolvidas pelo programa SUS MEDIADO, no ano de 2014, sobre a necessidade de

judicialização das demandas relacionadas a efetivação do direito à saúde, que foram

apresentadas (sob a formas de pedidos de assistência jurídica) à Defensoria Pública, na cidade

de Natal/RN, no aludido período.

O passo seguinte consistiu em verificar se a taxa de resolutividade extrajudicial

oscilava com base no tipo de demanda submetida ao programa SUS MEDIADO, mediante o

Encaminhados para Judicialização

67%

Mediados33%

81

cruzamento dos dados da primeira (Natureza da Pretensão) e terceira (Resultado da Tentativa

de Resolução Extrajudicial do Conflito) categorias de análise, conforme consta no Gráfico 2.

Inicialmente, os dados da primeira categoria (Natureza da Pretensão) foram

classificados em 2 (dois) grandes grupos (“Medicamentos” e “Procedimentos”) de modo a

possibilitar o aprofundamento das análises, conforme será visto adiante.

No primeiro grupo (genericamente denominado “Medicamentos”) foram incluídos

todos os casos que versavam sobre pedidos de fornecimentos de medicamentos (em sentido

estrito) suplementos ou dietas alimentares e outros insumos necessário ao tratamento de saúde

das pessoas (como fraldas geriátricas e instrumentos de aferição da glicemia capilar). No

segundo grupo (genericamente denominado “Procedimentos”), foram incluídos os pedidos de

marcação de consultas, realização de exames ou cirurgias, tratamentos fora do domicílio etc.

Gráfico 2 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial por Grupos

(“Medicamentos” x “Procedimentos”)

Como é possível observar a partir do Gráfico 2, o grupo “Procedimentos” é

composto por 724 (setecentos e vinte e quatro) casos, que correspondem a 59% (cinquenta e

nove por cento) da amostra. Enquanto isso, o grupo “Medicamento” abrange 514 (quinhentos

e quatorze) casos, que representam 41% (quarenta e um por cento) do total de demandas

envolvendo a efetivação do direito à saúde, submetidas do programa SUS MEDIADO, na

cidade de Natal/RN, no ano de 2014.

Note-se, ainda, que ao longo do ano de 2014, o programa SUS MEDIADO

conseguiu viabilizar uma resolução extrajudicial para 352 (trezentos e cinquenta e dois casos)

725

514

352

74

0

100

200

300

400

500

600

700

800

Grupo "Procedimentos" Grupo "Medicamentos"

Total de Casos por Grupo Mediados

82

integrantes do grupo “Procedimentos” e para 62 (sessenta e dois) casos pertencentes ao grupo

“Medicamentos”.

Dessa forma, a taxa resolutividade extrajudicial do grupo “Medicamentos” foi de

apenas 12% (doze por cento), no período compreendido na amostra. Em contrapartida, o

programa SUS MEDIADO alcançou, na cidade de Natal/RN, uma taxa de resolutividade

extrajudicial de 49% (quarenta e nove por cento) no grupo “Procedimentos”, no ano 2014.

Esses números preliminares sugerem que a mediação tem um reduzido potencial de

resolução extrajudicial em pedidos de fornecimento de medicamentos, suplementos

alimentares (ou dietas especiais) e outros insumos necessários ao tratamento de saúde (ex.:

fraldas geriátricas ou instrumento de aferição da glicemia capilar). Afinal, 88% (oitenta e oito

por cento) dos casos pertencentes ao grupo “Medicamentos” precisaram ser judicializados.

Por outro lado, os números permitem afirmar que a mediação possui um elevado

potencial de resolução extrajudicial quando a pretensão da parte interessada consiste em

consultas médicas, realização de exames ou cirurgias, tratamento fora do domicílio etc., pois

somente pouco mais da metade (51%) dos casos pertencentes ao grupo “Procedimentos”

precisaram ser levados à apreciação do Poder Judiciário.

4.3.3 A mediação nos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos, suplementos

alimentares (ou dietas especiais) e outros insumos necessários ao tratamento de saúde

das pessoas

Após verificar que as práticas de mediação apresentam uma maior taxa de

resolutividade nas demandas passíveis de serem classificadas no grupo “Procedimentos”, a

pesquisa procurou desvendar a responder de partida: “em que situações o uso da mediação pela

Defensoria Pública reduz a necessidade de judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito

de medicamentos apresentados por cidadãos hipossuficientes à Defensoria Pública?”, de modo

a colocar à prova a hipótese de que “a mediação somente reduz a necessidade de judicialização

das demandas expressamente contempladas pela política de assistência farmacêutica do SUS”.

A partir desse momento, somente os 514 (quinhentos e quatorze) Relatórios de

Atendimento pertencentes ao grupo “Medicamentos” continuaram a ser analisados.

Os dados da primeira categoria de análise (natureza da pretensão) foram

classificados em três espécies: “medicamentos em sentido estrito”, “suplementos alimentares

ou dietas especiais” e “outros”, conforme detalhado no item 5.3.3.1. Essa providência permitiu

a análise individualizada de cada uma das espécies de pretensões integrantes da amostra.

83

4.3.3.1 Visão geral do grupo “Medicamentos”

Antes de avançarmos para a análise da influência da segunda categoria de análise

(situação atual do objeto da pretensão) sobre o resultado das tentativas de resolução

extrajudicial das demandas por fornecimento gratuito de medicamentos levadas por cidadãos

hipossuficientes à Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, convém

detalharmos a composição do grupo “Medicamentos”, de modo a viabilizar uma adequada

compreensão do objeto do presente estudo.

Nesse sentido, o Quadro 1 apresenta não apenas o tipo de produto integrante do

grupo “Medicamentos”, mas também a quantidade de casos identificados no ano de 2014 (em

números absolutos e percentuais) e o percentual de: (1) casos mediados, (2) casos encaminhados

para Judicialização, (3) casos encaminhados para apresentação de requerimento administrativo;

(4) casos em que não haviam informações disponíveis e (5) casos relativos a descumprimento

de demandas judiciais em curso.

Quadro 1 – Visão Geral do grupo “Medicamentos”

TOTAL

TIPO DO PRODUTO

Medicamentos

em sentido

estrito

Suplemento

Alimentar /

Dieta

Outros (Fraldas

Geriátricas,

Sondas etc.)

TOTAL PESQUISADO 514 448 64 2

RESULTADO

FINAL

Mediado 12% 14% 0% 0%

Judicialização 81% 79% 95% 100%

Encaminhado para

apresentar requerimento

administrativo

1% 1% 2% 0%

Informações

Indisponíveis

5% 5% 3% 0%

Descumprimento de

Tutela Judicial

1% 1% 0% 0%

Note-se que, ressalvados aqueles constantes da coluna “TOTAL”, os percentuais se

referem ao total de cada tipo de produto (e não de casos integrantes do grupo Medicamentos).

Registre-se, ainda, que ao menos 2% das demandas pertencentes ao grupo

“Medicamentos” não puderam ser submetidas às práticas de mediação desenvolvidas pelo

Programa SUS MEDIADO:

84

• Em 1% dos casos, a parte interessada não havia apresentado requerimento

administrativo antes de buscar a mediação/judicialização para solucionar o problema,

situação que impede o acesso ao Programa SUS MEDIADO. Nesses casos, a parte

interessada recebeu as informações necessárias à apresentação do requerimento

administrativo (local onde o mesmo deve ser apresentado, documentação necessária

etc.) e foi orientada acerca da possibilidade de retornar ao SUS MEDIADO caso o seu

pedido seja efetivamente negado pelos órgãos competentes;

• Em 1% dos casos, foi identificado que a parte interessada já possuía demanda judicial

com tutela antecipada deferida em seu favor e estava buscando o Programa SUS

MEDIADO com a expectativa de solucionar uma situação de descumprimento da

decisão que deferiu a antecipação de tutela no caso concreto. Nesses casos, a parte

interessada foi informada que o Programa SUS MEDIADO atua exclusivamente na fase

extrajudicial, a fim de tentar evitar a judicialização do conflito e foi orientada a relatar

o descumprimento da tutela ao setor de atendimento da Defensoria Pública, para que

possam ser adotadas as providências cabíveis.

Por fim, é preciso esclarecer que 5% do Relatórios de Atendimento referentes ao

grupo “Medicamentos” (ano 2014) estão “em branco” (não possuem qualquer indicação acerca

da situação atual do objeto da pretensão ou do resultado final do processo mediação), motivo

pelo qual foram classificados como “informações indisponíveis”. Isso provavelmente se deve

ao fato de que a parte interessada (por qualquer motivo) não compareceu na data marcada para

a realização da sessão de mediação.

Feitas essas breves considerações, é possível observar no Quadro 1 que o grupo

“Medicamentos” foi composto essencialmente por pedidos de medicamentos em sentido estrito

(87% da amostra) e suplementos alimentares ou dietas (12% da amostra). Note-se que a

categoria outros teve apenas 2 (dois) casos, que, juntos, representam menos de 1% da amostra

do grupo Medicamentos.

4.3.4 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados na

categoria “Medicamentos em sentido estrito”

Os pedidos de medicamentos em sentido estrito compõem a categoria merecedora

de uma análise mais detalhada na presente pesquisa. Não apenas pelo fato de que ela

85

corresponde a 87% (oitenta e sete por cento) dos casos abrangidos pela amostra, mas

especialmente pelo fato de que ela foi a única integrante do grupo “Medicamentos” na qual o

programa SUS MEDIADO conseguiu viabilizar uma resolução extrajudicial para o problema

apresentado pela parte interessada.

Nos tópicos seguintes, será apresentada a forma como a segunda categoria de

análise (situação atual do objeto da pretensão) se manifesta nos 448 (quatrocentos e quarenta

e oito) casos que integram a subcategoria “Medicamentos em sentido estrito”.

Frise-se, desde logo, porém, que 10 (dez) dos referidos casos não chegaram a ser

efetivamente submetidos às práticas de mediação do programa SUS MEDIADO, seja porque a

parte interessada ainda não havia apresentado requerimento administrativo (como ocorreu em

5 casos) ou porque a pretensão se enquadrava como descumprimento de decisão judicial

antecipatória de tutela (situação que não se enquadra na proposta do SUS MEDIADO, cuja

proposta é a de evitar a própria judicialização da questão), como ocorreu em 5 (cinco) ocasiões.

Além disso, não havia informações disponíveis em 16 (dezesseis) Relatórios de

Atendimento integrantes da categoria de análise medicamentos em sentido estrito.

4.3.4.1 Medicamento contemplado pelo SUS e disponível na rede pública de saúde

A pesquisa constatou que foram submetidos ao programa SUS MEDIADO, na

cidade de Natal/RN, no período abrangido pela amostra, 46 (quarenta e seis) pedidos de

medicamentos (em sentido estrito) contemplados pela política pública de assistência

farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde e que estavam disponíveis na Rede pública

de saúde na oportunidade da mediação, sendo que, destes, 5 (cinco) não chegaram a ser

efetivamente submetidos às práticas de mediação do programa SUS MEDIADO, porque a parte

interessada ainda não havia apresentado requerimento administrativo.

Dos 41 (quarenta e um) casos que foram efetivamente submetidos ao programa SUS

MEDIADO, somente 1 (um) único caso não alcançou uma resolução extrajudicial por meio do

referido programa, porque a parte interessada não apresentou a documentação médica

necessária ao fornecimento do medicamento em questão.

Com efeito, é possível afirmar que a mediação tem um elevado potencial de

resolução extrajudicial dos pedidos de fornecimento de medicamentos que já estão

contemplados na política pública do SUS, se o medicamento estiver disponível na rede pública

de saúde.

86

4.3.4.2 Medicamento contemplado pelo SUS, mas em falta (indisponível) na rede pública de

saúde

Foram identificados 79 (setenta e nove) casos em que o “medicamento em

sentido estrito”, embora contemplado pela política pública de fornecimento gratuito de

medicamentos no âmbito do Sistema Único de Saúde, estava em falta (indisponível) na rede

pública de saúde, dos quais 62 (sessenta e dois) foram encaminhados para judicialização e 17

(dezessete) alcançaram uma resolução extrajudicial por meio do programa SUS MEDIADO,

conforme se verifica no Gráfico 3.

Gráfico 3 – Medicamentos Contemplados pelo SUS, mas em falta na rede pública de saúde

Esses dados surpreenderam, pois não imaginávamos que a mediação fosse capaz de

viabilizar uma resolução extrajudicial de situações em que o medicamento está em falta

(indisponível) na rede pública de saúde.

Por esse motivo, decidimos aprofundamos a análise para tentar identificar quais

fatores viabilizaram o êxito da mediação em 16% dos casos.

Procedemos ao cruzamento da segunda (situação atual do objeto da pretensão) e

da terceira variável (resultado da tentativa de resolução extrajudicial do conflito) dentro do

universo dos pedidos de “medicamento contemplado pelo SUS, mas em falta (indisponível) na

rede pública de saúde”.

Como resultado, constatamos que em 1 (um) dos casos, a pretensão da parte

assistida consistia na obtenção de apenas 1 (uma) ampola de medicamento de baixo custo, de

modo que os entes públicos constaram, durante o processo de mediação, que os custos do

processo seriam desproporcionais para a situação. Para solucionar o impasse, o Setor de

79%

16%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

Encaminhados para Judicialização Mediados

87

Atendimento de Demandas Judiciais providenciou a aquisição do medicamento e,

posteriormente, foi ressarcido pela Secretaria Estadual de Saúde.

Situação semelhante ocorreu em outro caso em que os órgãos administrativos do

Sistema Único de Saúde conseguiram o medicamento, que estava indisponível no estado do Rio

Grande do Norte, mediante empréstimo de outra unidade da federação.

No entanto, o que mais chamou a atenção foi que em 12 (doze) dos 17 (dezessete)

casos de medicamento indisponível na rede pública de saúde que alcançaram uma resolução

extrajudicial mediante a atuação do SUS MEDIADO, no ano de 2014, o fator essencial para o

sucesso da mediação foi a qualidade da informação prestada pelos agentes do Sistema Único

de Saúde que participam do referido programa.

Isso porque, durante o processo de mediação, constatou-se que, embora o

medicamento estivesse indisponível, o mesmo já havia sido empenhado e havia, inclusive, uma

previsão acerca da data em que o mesmo estaria disponível.

Em todos os casos 12 (doze) casos em que foi apresentada uma previsão de

disponibilidade do medicamento para a parte interessada, a mesma aceitou aguardar pelo

medicamento, desistindo de buscar a via judicial para a solução de seu problema.

Esses dados permitem afirmar que a mediação apresenta um baixo potencial de

resolução extrajudicial nos casos em que o medicamento, embora contemplado na política

pública do SUS, está em falta (indisponível) na rede pública de saúde, mas que a qualidade da

informação prestada à parte interessada por ocasião de seu requerimento administrativo pode

evitar o ajuizamento de diversas demandas judiciais.

4.3.4.3 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente é disponibilizado em posologia

diferente da que foi prescrita para a parte interessada (necessidade de ajuste

posológico)

A pesquisa identificou 1 (um) caso em que a parte interessada não havia conseguido

obter, perante a rede pública, o medicamento necessário ao seu tratamento de saúde porque a

política pública de fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito do SUS somente

disponibilizava uma posologia diferente daquela que havia sido prescrita pelo médico que a

acompanhava.

A mediação evitou o ajuizamento da demanda, por meio de um ajuste posológico

que compatibilizou o medicamento disponibilizado pelo SUS com a prescrição médica

apresentada pela parte interessada.

88

4.3.4.4 Medicamento contemplado pelo SUS, mas não é disponibilizado para o CID constante

no receituário médico apresentada pela parte interessada ou para a faixa etária da parte

interessada é incompatível com a política pública instituída no âmbito do SUS

Foram identificados 44 (quarenta e quatro) casos em que, embora contemplado pelo

SUS, o medicamento não era fornecido para o tratamento da doença indicada na documentação

médica apresentada pela parte interessada.

O programa SUS MEDIADO somente conseguiu viabilizar uma resolução

administrativa para 2 (dois) dos referidos casos, provavelmente porque a enfermidade podia ser

descrita por meio de mais de um CID e algum deles estava contemplado na política pública do

Sistema Único de Saúde.Isso representa somente 4% do total de casos apurados nessa situação,

de modo que é possível afirmar que a mediação apresenta um baixo potencial de resolução

extrajudicial quando existe uma incompatibilidade entre o CID constante na documentação

médica apresentada pela parte interessada e aqueles em que a política pública do SUS autoriza

o fornecimento do medicamento em questão.

O mesmo ocorreu nos 2 (dois) casos em que se observou que, embora o

medicamento estivesse contemplado na política pública do SUS e estivesse disponível, havia

uma restrição quantos às faixas etárias em que mesmo poderia ser disponibilizado e a parte

interessada possuía idade inferior ou superior aos limites estabelecidos.

4.3.4.5 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente para pacientes hospitalizados ou

quando a parte interessada apresentou intolerância à marca que é disponibilizada pela

rede pública de saúde

A pesquisa revelou que o programa SUS MEDIADO não foi capaz de viabilizar

uma resolução extrajudicial para nenhum dos 11 (onze) casos em que o medicamento postulado

pela parte interessada, embora contemplado pelo SUS, somente é disponibilizado para

pacientes hospitalizados, situação na qual a parte interessada não se encontra, nem para 1 (um)

caso em que a parte interessada apresentou intolerância à marca fornecida pelo SUS.

Isso denota a mediação não é capaz de solucionar demandas nas quais as

peculiaridades do caso concreto esbarrem em óbice expressamente instituído na política pública

de assistência farmacêutica instituída no âmbito do SUS.

89

4.3.4.6 Medicamento contemplado pelo SUS, mas o limite mensal disponibilizado pela rede

pública é insuficiente para o tratamento de saúde da parte interessada

Foram observados 5 (cinco) casos em que o medicamento estava contemplado pelo

SUS, mas o limite mensal disponibilizado pela rede pública é insuficiente para o tratamento de

saúde da parte interessada.

Nenhum desses casos alcançou uma resolução extrajudicial por meio do programa

SUS MEDIADO, de modo que é possível afirmar que a mediação apresenta um baixo potencial

de resolução extrajudicial nas hipóteses em que a quantidade de medicamento exigida para o

tratamento de saúde da parte interessada extrapola o limite mensal estabelecido na política

pública instituída no âmbito do SUS.

4.3.4.7 Medicamento recentemente incorporado (contemplado pelo SUS), mas que ainda não

está sendo disponibilizado pela rede pública de saúde

Como era de se esperar, o programa SUS MEDIADO não conseguiu viabilizar uma

solução extrajudicial para nenhum dos 4 (quatro) casos em que o medicamento postulado pela

parte interessada, embora tivesse sido recentemente incorporado pelo SUS, ainda não estava

sendo disponibilizado pela rede pública de saúde.

A absoluta indisponibilidade do medicamento na rede pública e a ausência de uma

previsão acerca de quando o mesmo estaria disponível inviabilizou a mediação nesses casos.

4.3.4.8 Medicamento contemplado pelo SUS, mas que teve seu fornecimento suspenso pelas

Secretaria de Saúde (estadual ou municipal)

O programa SUS MEDIADO também não conseguiu viabilizar uma solução

extrajudicial para nenhum dos 4 (quatro) casos em que o medicamento, embora contemplado

pela política pública de assistência farmacêutica no âmbito do SUS, teve seu fornecimento

suspenso pela Secretaria de Saúde (estadual ou municipal).

A mediação não foi capaz de viabilizar uma solução para esses casos, que foram

encaminhados para judicialização.

90

4.3.4.9 Medicamento não contemplado pelo SUS

A pesquisa constatou que 231 (duzentos e trinta e um) pedidos de fornecimento de

medicamentos (em sentido estrito) não contemplados pelo SUS foram submetidos ao programa

SUS MEDIADO ao longo do ano de 2014.

A hipótese inicial era a de que a mediação não seria capaz de reduzir a necessidade

de judicialização das demandas que não estivessem expressamente contempladas por políticas

públicas instituída no âmbito do SUS.

Para nossa surpresa, o programa SUS MEDIADO conseguiu, ao longo do ano de

2014, viabilizar uma solução extrajudicial para 9 (nove) pedidos de fornecimento gratuito de

medicamentos não contemplados pela política pública de assistência farmacêutica instituída no

âmbito do SUS.

Diante dessa constatação, procuramos aprofundar a análise em busca dos fatores

que permitiram que isso ocorresse e observamos que todos os 9 (nove) casos solucionados

extrajudicialmente referiam-se a medicamentos que, embora não estivessem contemplados pelo

SUS, possuíam uma alternativa terapêutica contemplada e disponível na rede pública de saúde.

Na sequência, constatamos que, no período compreendido na amostra, a mediação

conseguiu viabilizar uma solução extrajudicial para o conflito sempre que havia uma alternativa

terapêutica contemplada e disponível no âmbito na rede pública de saúde (com exceção daquele

único caso, mencionado no item 4.3.4.5, em que a parte interessada apresentou intolerância à

marca do medicamento oferecido pelo SUS).

Dessa forma, contrariando a hipótese inicial da pesquisa, o estudo revelou que a

mediação é capaz de reduzir a necessidade de judicialização dos pedidos de fornecimento

gratuito de medicamentos não contemplados pela política de assistência farmacêutica do SUS,

se houver uma alternativa terapêutica contemplada e disponível na rede pública de saúde.

4.3.5 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados na

categoria “suplementos alimentares ou dietas especiais”

A pesquisa revelou que nenhum dos 64 (sessenta e quatro) pedidos de fornecimento

de suplementos alimentares ou dietas especiais alcançou uma resolução extrajudicial por meio

das práticas de mediação desenvolvidas pelo Programa SUS MEDIADO, na cidade de

Natal/RN, no ano de 2014.

91

Com efeito, decidimos aprofundar nossas análises e traçar um perfil das demandas

por suplementos alimentares ou dietas especiais, submetidas ao programa SUS MEDIADO, no

período compreendido na amostra, a fim de tentar compreender os motivos que levaram à

ausência de resolutividade extrajudicial nesses casos.

Para a consecução dessa tarefa, identificamos os diversos eventos da segunda

categoria de análise (situação atual do objeto da pretensão) dentro do universo dos pedidos de

suplementos alimentares ou dietas especiais.

4.3.5.1 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível na

Rede Pública

Foi observado 1 (um) único caso em que a pretensão veiculada pela parte assistida

estava contemplada pela política pública de fornecimento gratuito de medicamentos do Sistema

Único de Saúde.

Frise-se, porém, que este caso não foi submetido às práticas de mediação do

Programa SUS MEDIADO (e, portanto, não foi somado ao percentual de casos em que a

tentativa de mediação foi exitosa), tendo em vista que a parte interessada não ainda não havia

apresentado requerimento administrativo.

A parte interessada foi orientada para apresentação de requerimento administrativo

perante o órgão competente e a retornar ao Programa SUS MEDIADO na eventualidade de se

deparar com um indeferimento administrativo (o que não ocorreu).

4.3.5.2 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e em falta na Rede

Pública

A pesquisa identificou 2 (dois) casos em que o objeto da pretensão veiculada pela

parte assistida, apesar de contemplada pela política pública de fornecimento gratuito de

medicamentos do SUS, estava em falta da rede pública. Não houve sucesso no processo de

mediação em questão e os casos foram encaminhados para judicialização.

Em princípio, esse dado poderia sugerir uma incapacidade da mediação em lidar

com situações que não estejam disponíveis na rede pública. No entanto, quando analisamos os

pedidos de medicamentos em sentido estrito que, apesar de contemplados pela política pública

de assistência farmacêutica do SUS, estavam indisponíveis na rede pública (item 4.3.4.2),

92

constatamos que a mediação tem chances de êxito quando existe uma acerca da data em que o

medicamento estará disponível.

Por esse motivo, analisamos os Relatórios de Atendimento dos 2 (dois) pedidos de

suplementos alimentares ou dietas especiais que, embora contemplados pelo SUS, estavam em

falta da rede pública de saúde e constatamos que, em ambos, a parte interessada não recebeu

nenhuma previsão acerca de quando o objeto da pretensão estaria disponível na rede pública,

de modo que as conclusões apresentadas no item 4.3.4.2 são perfeitamente compatíveis com os

casos analisados no presente tópico.

4.3.5.3 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível na

Rede Pública, mas não disponibilizado em virtude da idade da parte interessada

A pesquisa identificou 1 (um) caso em que o suplemento alimentar é fornecido pelo

Sistema Único de Saúde e, embora esteja disponível na rede pública, não pode ser

disponibilizado para a parte assistida, tendo em vista que a idade da mesma era superior ao

limite estabelecido pela política pública de fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito

do SUS.

O pedido referia-se ao fornecimento da fórmula nutricional Aptamil Soja 2 (isolado

de soja), que atualmente é fornecido pelo município de Natal e pelo Estado do Rio Grande do

Norte, em virtude de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrando com o Ministério

Público do Rio Grande do Norte, por meio do qual os entes federativos assumiram a

responsabilidade de fornecer a fórmula nutricional em questão para crianças de 0 (zero) a 3

(três) anos de idade, critério no qual a parte interessada já não mais se enquadrava, por estar

com 3 (três) anos e 2 (dois) meses de idade.

Num contexto em que a próprio fornecimento da fórmula nutricional em questão

somente foi possível para crianças com até 3 (três) anos de idade após a celebração de um

Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Município de Natal, o Estado do Rio Grande

do Norte e o Ministério Público do Rio Grande do Norte, a mediação não foi capaz de viabilizar

o fornecimento do suplemento alimentar (dieta especial) em questão.

Dessa forma, a mediação se revelou incapaz de solucionar demandas nas quais as

peculiaridades do caso concreto esbarrem em óbice expressamente instituído na política pública

de assistência farmacêutica instituída no âmbito do SUS, consoante havia se observado no item

4.3.4.4.

93

4.3.5.4 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível na

Rede Pública, mas apenas para pacientes hospitalizados

A pesquisa também revelou a existência de 10 (dez) casos em que o suplemento

alimentar (ou dieta especial), embora disponível na rede pública, não pode ser fornecido à parte

interessada porque a política pública de fornecimento gratuito de medicamentos do SUS só

prevê a dispensação do mesmo para pacientes hospitalizados.

A mediação não foi capaz solucionar o conflito, em virtude da taxatividade dos

casos em que a Administração Pública está autorizada a liberar o medicamento, revelando-se,

mais uma vez, incapaz de solucionar demandas nas quais as peculiaridades do caso concreto

esbarrem em óbice expressamente instituído na política pública de assistência farmacêutica

instituída no âmbito do SUS, conforme havia se observado no item 4.3.4.5.

4.3.5.5 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) não contemplados pelo SUS

Foram identificados 47 (quarenta e sete) pedidos de suplemento alimentar (ou dieta

especial) não contemplados pelo SUS, número que corresponde a 73% (setenta e três por cento)

dos pedidos de fornecimento gratuito de suplementos alimentares ou dietas especiais

submetidos ao programa SUS MEDIADO, no ano de 2014.

A mediação não conseguiu viabilizar uma solução extrajudicial para nenhum deles.

Se fôssemos analisar esse dado isoladamente, poderíamos concluir que a mediação

não tem aptidão para solucionar pedidos de fornecimento de suplementos alimentares (ou dietas

especiais) que não estejam contemplados na política pública de fornecimento gratuito de

medicamentos do Sistema Único de Saúde. Aliás, essa era a hipótese inicial da pesquisa.

No entanto, não podemos perder de vista que os resultados apresentados no item

4.3.4.9 indicaram que a mediação pode ser capaz de viabilizar uma solução extrajudicial para

pedidos de medicamentos não contemplados pelo Sistema Único de Saúde, quando houver uma

alternativa terapêutica contemplada pela política de assistência do SUS.

Por conseguinte, analisamos individualmente os Relatórios de Atendimento dos 47

(quarenta e sete) pedidos de suplementos alimentares ou dietas especiais não contemplados pelo

SUS e constatamos que, em nenhum deles foi apresentada à parte interessada uma alternativa

contemplada pelo Sistema Único de Saúde.

94

Sendo assim, as conclusões apresentadas no item 4.3.4.9 permanecem válidas e são

capazes de explicar o ocorrido em relação aos pedidos de suplementos alimentares (ou dietas

especiais) não contemplados pela política de assistência farmacêutica do SUS.

4.3.5.6 Informações indisponíveis

Por derradeiro, convém registrar que 2 (dois) Relatórios de Atendimento da

categoria Suplementos Alimentares e Dietas Especiais não possuíam qualquer informação

acerca da situação atual do objeto da pretensão ou do resultado final do processo mediação).

4.3.6 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados na

categoria “outros”

Apenas 2 (dois) casos foram enquadrados na categoria “outros” ao longo do período

analisado: um deles consistiu em pedido de fornecimento de fraldas geriátricas e o outro foi

um pedido de fornecimento de tiras para verificação de glicemia capilar.

4.3.6.1 Pedido de fornecimento de fraldas geriátricas

Durante todo o ano de 2014 somente um único pedido de fornecimento de fraldas

geriátricas foi submetido ao Programa SUS MEDIADO, na cidade de Natal/RN.

As fraldas geriátricas costumam ser regularmente fornecidas pelo município de

Natal/RN, mas estavam em falta (indisponíveis) na época em que foi apresentado o

requerimento administrativo e também na época em que foi realizada a tentativa de mediação

(novembro/2014).

Não houve sucesso na tentativa mediação e o caso foi encaminhado à Defensoria

Pública Estadual, para fins de ajuizamento da demanda (em conformidade com o Termo de

Cooperação que deu origem ao Programa SUS MEDIADO), pois a pretensão já está inserida

na política pública de distribuição de medicamentos e outros insumos relacionados à proteção

do direito à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde.

4.3.6.2 Pedido de fornecimento de tiras para verificação de glicemia capilar

95

Os testes de glicemia capilar servem para aferir o nível de glicose (açúcar) no

sangue, no momento exato em que são realizados. Dessa forma, eles auxiliam no

acompanhamento e controle do Diabetes, funcionando de forma complementar à avaliação

periódica que deve ser realizada pelos pacientes através de exames de dosagem de glicose no

sangue (glicemia) e hemoglobina glicada (média de glicose no sangue nos últimos 3 meses).

De acordo com as informações prestadas, durante a sessão de mediação, pela área

técnica do Município de Natal/RN, as tiras para verificação de glicemia capilar estão sendo

regularmente fornecidas pelo Sistema Único de Saúde na cidade de Natal/RN. Entretanto, existe

um limite de 100 (cem) tiras mensais por pacientes, situação que não atende à necessidade da

parte interessada que, de acordo com a prescrição médica apresentada perante o Programa SUS

MEDIADO, necessita realizar 7 (sete) medições ao dia, totalizando a necessidade de 210

(duzentas e dez) tiras mensais.

Não houve sucesso na tentativa de mediação e o caso precisou ser judicializado.

4.3.7 Análise dos resultados das práticas de mediação do grupo “Medicamentos”

O Gráfico 4 fornece uma visão geral do resultado da mediação promovida pelo

programa SUS MEDIADO, nas principais demandas por medicamentos em sentido, no ano de

2014:

Gráfico 4 – Resultado da Mediação em demandas por medicamentos em sentido estrito

0

50

100

150

200

250

Medicamentocontemplado pelo SUS e

Disponível na RedePública

Medicamentocontemplado pelo SUS,

mas está em falta(indisponível) na Rede

Pública

Medicamentocontemplado pelo SUS,mas o caso esbarra em

óbice expresso da políticapública do SUS

Medicamento nãocontemplado pelo SUS

Total de Casos Casos Mediados

96

Como se pode ver, a mediação tem um elevado potencial de resolução extrajudicial

dos pedidos de fornecimento de medicamentos que já estão contemplados na política pública

de assistência farmacêutica do Sistema Único de Saúde, quando o medicamento está disponível

da rede pública de saúde.

A pesquisa evidenciou que o SUS MEDIADO somente não conseguiu solucionar

extrajudicial um único caso de medicamento contemplado pelo SUS e disponível na rede

pública de saúde. Todavia, é importante notar que isso somente ocorreu porque a parte

interessada não apresentou nenhuma documentação médica indicando a necessidade do

medicamento no referido caso (motivo justo para o indeferimento administrativo).

A criação desse “espaço de diálogo” entre as instituições jurídicas e políticas

diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde permitiu a constatação de que o

indeferimento administrativo havia sido equivocado nesses casos, tornando desnecessária a

judicialização da questão.

Outro aspecto relevante evidenciado pela pesquisa foi a importância da qualidade

da informação prestada pelos órgãos administrativos do Sistema Único de Saúde para a redução

da litigiosidade dos conflitos envolvendo pedidos de medicamentos que, embora contemplado

na política pública do SUS, estão em falta (indisponível) na rede pública de saúde.

Embora o estudo tenha revelado um baixo potencial de resolução extrajudicial nos

casos em que o medicamento contemplado pela política de assistência farmacêutica do SUS

está em falta (indisponível) na rede pública de saúde, foi possível observar que a informação

de previsão concreta (e com prazo razoável) para a chegada do medicamento aos pontos de

distribuição foi decisiva para evitar a judicialização do conflito, pois as partes interessadas

acabaram preferindo aguardar a data prevista informada a ter que enfrentar a via judicial para

discutir o problema.

Além disso, o ambiente colaborativo criado pelo Programa SUS MEDIADO

permitiu que fosse solucionado um caso em que o valor do medicamento era insignificante,

bem como para uma demanda pudesse ser atendida mediante empréstimo do medicamento por

outra unidade da federação.

Como se não bastasse, o registro dos casos e dos motivos pelos quais as pretensões

foram originalmente indeferidas pela esfera administrativa, ao apontarem onde estão ocorrendo

as principais falhas na execução da política pública do Sistema Único de Saúde, podem servir

de importante instrumento para que a Administração Pública aperfeiçoe a política pública de

assistência farmacêutica no âmbito do SUS.

97

Veja-se, por exemplo, o caso em que o pedido da parte interessada fora

originalmente indeferido na esfera administrativa porque a posologia prescrita pelo médico não

correspondia à que era contemplada pela política de assistência farmacêutica do SUS: a

mediação evitou o ajuizamento da demanda, por meio de um ajuste posológico que

compatibilizou o medicamento disponibilizado pelo SUS com a prescrição médica apresentada

pela parte interessada, mas também serviu de alerta para que esse tipo de preocupação

(verificação da possibilidade de ajuste posológico) seja levado em conta pelos agentes do

Sistema Único de Saúde encarregados da análise dos pedidos de fornecimento gratuito de

medicamento antes de indeferirem eventual requerimento administrativo.

O estudo também revelou (informação que serviu para contrariar a hipótese inicial

da pesquisa) que a mediação também é capaz de reduzir a necessidade de judicialização nos

casos em que o medicamento postulado pela parte interessada não está contemplado na política

de assistência farmacêutica do Sistema Único de Saúde, desde que exista uma alternativa

terapêutica contemplada pelo SUS e disponível na rede pública de saúde (hipótese que não

havia sido inicialmente cogitada pelo pesquisador, porque se presumia que isso já teria sido

previamente analisado por ocasião da apresentação do requerimento administrativo).

Mais uma vez, o ambiente de diálogo criado pelo programa SUS MEDIADO

propiciou que os órgãos administrativos do Sistema Único de Saúde oferecessem à parte

interessada a informação acerca da existência de uma alternativa terapêutica (que foi aceita na

quase totalidade dos casos, ressalvado um único caso em que a parte interessada já havia

apresentado intolerância ao medicamento contemplado pelo SUS) e conseguiram evitar a

judicialização do conflito.

Obviamente, porém, não podemos superestimar o potencial da mediação enquanto

meio alternativo de resolução dos conflitos de interesse dos pedidos de fornecimento gratuito

de medicamentos no âmbito do SUS.

A pesquisa revelou que a mediação não tem aptidão de solucionar conflitos que se

originem de possíveis problemas na formulação da política pública, pois o princípio da

legalidade impõe limites à margem de negociação da administração pública.

Isso pode ser observado pelo fato de que foi praticamente nula a resolução

extrajudicial de pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos cujas particularidades

esbarravam em algum óbice expressamente contido na política de assistência farmacêutica do

SUS, como ocorreu nos casos em que a CID constante na documentação médica do paciente

era incompatível com a lista de enfermidades para as quais o SUS fornece determinada

98

medicação, bem como nos casos em que o medicamento postulado pela parte interessada

somente era oferecido para pacientes hospitalizados.

Também refletem essa situação os casos em que o limite mensal estabelecido pela

política de assistência farmacêutica do SUS era insuficiente para atender à necessidade do

tratamento de saúde da parte interessada (de acordo com a documentação médica por ela

apresentada) e quando a idade da mesma não estava contida da faixa etária estabelecida para o

fornecimento de determinada vacina ou disponibilização de medicamento pelo SUS.

Apesar dessas limitações, os resultados obtidos estimulam que os pedidos de

fornecimento gratuito de medicamentos em sentido estrito no âmbito do SUS sejam submetidos

a uma tentativa de mediação antes que seja busca a via judicial para a solução do conflito.

Registre-se, porém, que em se tratando de pedidos de suplementos alimentares ou

dietas especiais a situação é alterada, pois nenhum dos 64 casos submetidos ao programa SUS

MEDIADO, no período compreendido na amostra, conseguiram alcançar uma solução

extrajudicial por meio da mediação.

O Gráfico 5 fornece uma visão geral dos motivos pelos quais a os pedidos de

fornecimento de suplementos alimentares ou dietas especiais, submetidos ao Programa SUS

MEDIADO, no ano de 2014, foram indeferidos na esfera administrativa:

Gráfico 5 – Principais motivos de Indeferimento Administrativo dos pedidos de

Suplementos Alimentares e Dietas Especiais

Convém ressaltar que o caso em que o suplemento alimentar (ou dieta especial) era

fornecido pelo SUS e estava disponível na rede pública (item 4.3.4.1) não foi incluído no

gráfico, em virtude de não ter sido submetido ao processo de mediação, porque a parte

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%

Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) fornecidopelo SUS e em falta na Rede Pública

Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial)fornecido pelo SUS e disponível na Rede Pública,mas não disponibilizado em virtude da idade da…

Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial)fornecido pelo SUS e disponível na Rede Pública,

mas apenas para pacientes hospitalizados

Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) nãofornecido pelo SUS

99

interessada não havia apresentado requerimento administrativo, tendo sido orientada a fazê-lo

e a retornar ao SUS MEDIADO em caso de indeferimento do pleito pelos órgãos

administrativos do Sistema Único de Saúde.

Da mesma forma, não foram incluídos no gráfico os 2 (dois) casos cujos Relatórios

de Atendimento não apresentavam as informações necessárias ao aprofundamento da análise.

Feitas essas breves considerações, observa-se claramente que a ampla maioria

(78%) das demandas que integram a categoria Suplementos e Dietas Especiais refere-se a

pretensões não contempladas pela política pública de fornecimento gratuito de medicamentos

do Sistema Único de Saúde, hipótese em que a mediação somente tem o potencial de viabilizar

uma solução extrajudicial para o caso se houver uma alternativa terapêutica contemplada pelo

SUS (item 4.3.4.9), o que não ocorreu em nenhum dos pedidos de suplementos alimentares ou

dietas especiais submetidos ao programa SUS MEDIADO no ano de 2014.

Os 22% (vinte e dois por cento) restantes referem-se a situações em que a pretensão

da parte interessada esbarra em óbice expressamente constante na política de assistência

instituída no âmbito do SUS, situação para a qual a mediação se mostrou incapaz de viabilizar

uma solução extrajudicial, por se tratar de problema relacionado à formulação da política

pública, matéria sobre a qual os órgãos encarregados de sua execução não têm competência

para dispor.

Por fim, convém salientar que as demandas enquadradas na categoria “outros”, em

razão de seu reduzido número, pouco contribuíram para a realização de um diagnóstico do

programa SUS MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, exceto por

reforçarem as conclusões a que chegamos quando da análise dos pedidos de medicamentos em

sentido estrito (itens 4.3.4.2 e 4.3.4.6) e de suplementos alimentares ou dietas especiais (itens

4.3.5.2 e 4.3.5.4).

100

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da análise exploratório-descritiva da integralidade dos Relatórios de

Atendimentos realizados pelo programa SUS MEDIADO no ano de 2014, foi possível perceber

em que medida o uso da mediação pela Defensoria Pública reduz a necessidade de

judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos que lhe são apresentados

por cidadãos hipossuficientes.

O presente trabalho serviu para contrariar a hipótese de que a mediação somente

reduziria a necessidade de judicialização das demandas expressamente contempladas por

políticas públicas instituída no âmbito do SUS, ao revelar que a mediação é capaz de reduzir a

necessidade de judicialização de pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos não

contemplados pela política de assistência farmacêutica do SUS, quando existe uma alternativa

terapêutica contemplada e disponível na rede pública de saúde.

O estudo revelou, ainda, que a mediação é capaz de oferecer uma solução

extrajudicial para pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos que, embora estejam

contemplados na política de assistência farmacêutica do SUS, encontram-se indisponíveis na

rede pública de saúde, especialmente quando existem informações concretas acerca do

andamento do procedimento administrativo de aquisição dos medicamentos em questão e

alguma data estimada para a disponibilidade dos mesmos.

Como se pode ver, a qualidade da informação prestada ao autor de um pedido de

fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito Sistema Único de Saúde é um fator

fundamental para a redução da necessidade de judicialização dos pedidos de fornecimento

gratuito de medicamentos indeferidos na esfera administrativa.

A criação de “espaços de diálogo” entre as instituições jurídicas e políticas

diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde, a exemplo do que ocorre no programa

SUS MEDIADO, possibilita uma maior celeridade na troca de informações e no esclarecimento

das dúvidas apresentadas pelo usuário do sistema, medida que reduz a litigiosidade das questões

relativas ao fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito do SUS.

Esse compromisso com a tentativa de pacificação dos conflitos permite que as

partes envolvidas busquem soluções quem não dependam da intervenção do poder judiciário,

como a realização de ajustes posológicos para que a pretensão da parte interessada se adeque

ao que está previsto na política pública do SUS ou a obtenção do medicamento mediante

empréstimo por outra unidade da federação.

101

Não se pode ignorar, porém o fato de que a mediação não é capaz de viabilizar uma

solução extrajudicial para os casos em que a pretensão veiculada pela parte interessada no

fornecimento gratuito de medicamentos esbarra em alguma vedação expressa na política

pública do SUS, a exemplo do que ocorre quando o limite mensal disponibilizado pela rede

pública é insuficiente para o tratamento de saúde da parte interessada ou quando é fixada uma

determinada faixa etária para disponibilização de um determinado medicamento ou

procedimento médico.

Isso ocorre porque o princípio da legalidade impõe uma significativa limitação à

margem de negociação da administração pública em matéria de fornecimento gratuito de

medicamentos no âmbito do SUS.

Apesar dessa limitação, a pesquisa demonstra que deve ser estimulada uma maior

articulação entre a Defensoria Pública, a Advocacia Pública e as Secretarias de Saúde, pois tal

medida contribui para a melhoria da qualidade da informação que chega à parte interessada e

favorece a construção de soluções alternativas (extrajudiciais) para os pedidos de fornecimento

gratuito de medicamentos originariamente indeferidos pelos órgãos administrativos do Sistema

Único de Saúde.

102

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