A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO … · obtenção do título de Mestre em...
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM DIREITO
Leonardo Muniz Ramos da Rocha Júnior
A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO
DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DE ATENDIMENTOS
REALIZADOS PELO PROGRAMA “SUS MEDIADO” NO ANO DE 2014
Recife
2017
Leonardo Muniz Ramos da Rocha Júnior
A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO
DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DE ATENDIMENTOS
REALIZADOS PELO PROGRAMA “SUS MEDIADO” NO ANO DE 2014
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Católica de Pernambuco, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Direito.
Área de Concentração: Direito Constitucional
Orientadora: Profa. Dra. Virgínia Colares
Co-Orientador: Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos
Recife
2017
Leonardo Muniz Ramos da Rocha Júnior
A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO
DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DOS RELATÓRIOS DE ATENDIMENTOS
REALIZADOS PELO PROGRAMA “SUS MEDIADO” NO ANO DE 2014
Dissertação submetida à comissão examinadora designada pelo colegiado do mestrado em
direito da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, como requisito para obtenção do
grau de mestre em Direito.
Banca examinadora:
___________________________________________________________
PROFA. DRA. VIRGÍNIA COLARES
(Orientadora/UNICAP)
___________________________________________________________
PROF. DR. GLAUCO SALOMÃO LEITE
(Titular interno/UNICAP)
___________________________________________________________
PROF. DR. MARCELO CASSEB CONTINENTINO
(Titular externo/FADIC)
RECIFE
2017
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e pela proteção em todos os momentos de minha jornada.
Aos meus pais, cujo sacrificado investimento em minha formação acadêmica tornou-me
apto a sonhar com este momento.
À minha esposa e aos meus filhos, que sempre foram a inspiração e o grande incentivo
para a realização deste mestrado.
À professora Virgínia Colares, pelo empenho e disponibilidade na orientação deste
trabalho de pesquisa, bem como pelo estímulo à realização de um estudo de natureza empírica.
Ao professor Gustavo Ferreira Santos, pela discussão do assunto e indicação das
referências que tornaram possível a crítica à percepção predominante sobre os direitos sociais.
Ao amigo e professor Padre Caetano, pelas lições de vida e pelos impagáveis momentos
de descontração, que ficarão guardados na memória.
À Rosana Bezerra Vale pelas luzes que lançou sobre a forma de tratamento dos dados
coletados e pelo inestimável apoio na utilização do SSPS.
Aos amigos Alisson Wander Paixão, Ivan Peixoto Cunha Melo, Vinícius Diniz
Monteiro de Barros, Giêdra Cristina Pinto Moreira e Ilcelena de Souza Queiroz, cujo apoio
tornou possível a realização deste Mestrado.
À Cláudia Carvalho Queiroz, por abrir as portas do Programa SUS MEDIADO para a
realização desta pesquisa.
Aos diversos professores que me ajudaram a reunir o material bibliográfico necessário
à consecução desta empreitada.
À Escola Superior da Defensoria Pública da União, cujo Programa de Capacitação deu
respaldo financeiro à realização do Mestrado.
RESUMO
A multiplicação de processos relativos à concretização do direito à saúde tem suscitado intensos
debates jurídicos e sociais, que estimulam a busca e o desenvolvimento de meios alternativos
(extrajudiciais) de resolução dos conflitos de interesses relativos a esse direito social. No
entanto, ainda são poucos os estudos empíricos acerca da questão. Por meio de sessões de
mediação, realizadas semanalmente na sede da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do
Norte, o programa SUS MEDIADO propicia um “espaço de diálogo” entre o cidadão e as
instituições jurídicas e políticas diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde. Mas
em que medida o uso da mediação pela Defensoria Pública reduz a necessidade de
judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos? Para responder a essa
pergunta de partida foi realizada uma análise exploratório-descritiva de todos os Relatórios de
Atendimento do programa SUS MEDIADO, referentes ao ano de 2014. A hipótese inicial era
que a mediação somente seria capaz de reduz a necessidade de judicialização das demandas
expressamente contempladas por políticas públicas instituída no âmbito do SUS. No entanto, o
estudo revelou que a mediação possui um potencial maior do que o esperado para servir de
instrumento à efetivação do direito à saúde.
ABSTRACT
The extraordinary increase of lawsuits claiming the implementation of the right to health leads
to intense legal and social debates that stimulate the creation and development of alternative
(extrajudicial) means to resolve the conflicts of interests related to this social right. However,
there are few empirical studies on this subject. Through mediation sessions, which take place
weekly at the Public Defender's Office of Rio Grande do Norte State, the SUS MEDIADO
program provides a "space for dialogue" between the citizen and the institutions directly
involved in the implementation of the right to health. But to what extent does the use of
mediation by the Public Defender's Office reduces the need to judicialize the requests for free
medicine supply? To answer this question, the research was based on an exploratory-
descriptive analysis of all the service reports of the SUS MEDIADO program for the year 2014.
The initial hypothesis was that mediation would only be able to reduce the need to judicialize
the demands expressly contemplated by the SUS’s public policies instituted within the scope of
Health Unic System. However, the study revealed that mediation has a potential greater than
expected to serve as an instrument for the realization of the right to health.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Modelo de Relatório de Atendimento ............................................................ 78
Figura 2 – Cadastramento das Categorias de Análise no SSPS ........................................ 79
Figura 3 – Banco de Dados do SSPS ................................................................................ 80
Gráfico 1 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global ............................................... 81
Gráfico 2 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial por Grupos (“Medicamentos” x
“Procedimentos”) ............................................................................................................. 82
Quadro 1 – Visão Geral do grupo “Medicamentos” ........................................................ 84
Gráfico 3 – Medicamentos Contemplados pelo SUS, mas em falta na rede pública de
saúde .................................................................................................................................. 87
Gráfico 4 – Resultado da Mediação em demandas por medicamentos em sentido estrito 97
Gráfico 5 – Principais motivos de Indeferimento Administrativo dos pedidos de
Suplementos Alimentares e Dietas Especiais ................................................................. 100
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO ............................................................................. 16
1.1 Esclarecimentos de natureza terminológica ................................................................ 17
1.2 Constitucionalismo moderno e consagração dos direitos fundamentais como eixo
axiológico das constituições modernas ............................................................................ 18
1.3 Da incorporação da “questão social” no discurso do constitucionalismo moderno à
consagração dos direitos sociais........................................................................................ 20
1.3.1 Estado social, direitos sociais e a noção de direito subjetivo .............................. 24
2 CRÍTICA À PERCEPÇÃO DOMINANTE SOBRE OS DIREITOS SOCIAIS E
CONTRIBUTO PARA UMA RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E GARANTISTA
.................................................................................................................................................. 29
2.1 Análise estrutural: direitos sociais x direitos civis e políticos .................................... 30
2.1.1 Crítica à distinção baseada na natureza (negativa ou positiva) das obrigações que
integram a estrutura dos direitos civis e políticos e dos direitos sociais ...................... 31
2.1.2 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos vagos e indeterminados .... 35
2.1.3 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos de dimensão estritamente
coletiva .......................................................................................................................... 39
2.2 Os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988 ...................................... 42
2.2.1 A dignidade da pessoa humana como elo entre a Proteção Internacional dos
Direitos Humanos e a Defesa dos Direitos Fundamentais pelo Estado brasileiro ....... 43
2.2.2 A hierarquia privilegiada dos Tratados Internacionais sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais no Ordenamento Jurídico brasileiro ........................ 44
2.2.3 A intangibilidade dos direitos e garantias fundamentais (limites materiais à
reforma constitucional – art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88) ......................................... 46
2.2.4 A juridicidade reforçada das normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais (art. 5º, § 1º, da CF/88) ........................................................................... 48
2.3 O Regime Jurídico específico dos Direitos Sociais ................................................... 51
2.3.1 Observância do núcleo essencial dos direitos sociais .......................................... 52
2.3.1.1 Breves apontamentos sobre o conteúdo mínimo ou essencial do direito à
saúde ................................................................................................................. 55
2.3.2 Obrigação de utilização do máximo de recursos disponíveis ............................. 59
2.3.3 Implementação Progressiva dos Direitos Sociais e Proibição do Retrocesso .... 61
3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O CONTROLE JURISDICIONAL DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL .......................................................... 67
3.1. O reconhecimento da força normativa da Constituição ............................................ 68
3.3 O Controle Judicial das Políticas Públicas de Saúde no Brasil .................................. 69
4 O PROGRAMA SUS MEDIADO ................................................................................... 74
4.1 Delimitação Temporal da Amostra ............................................................................. 75
4.2 Instrumento de Coleta de Dados ................................................................................. 76
4.3 Análise Exploratório-Descritiva das informações extraídas do Relatórios de
Atendimento, referentes ao ano de 2014, do Programa SUS MEDIADO ....................... 79
4.3.1 Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global ...................................................... 79
4.3.2 Taxa de Resolutividade Extrajudicial por tipo de demanda: “Medicamentos
versus “Procedimentos” .............................................................................................. 80
4.3.3 A mediação nos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos,
suplementos alimentares (ou dietas especiais) e outros insumos necessários ao
tratamento de saúde das pessoas .................................................................................. 82
4.3.3.1 Visão geral do grupo “Medicamentos” ............................................................. 83
4.3.4 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados
na categoria “Medicamentos em sentido estrito” ......................................................... 84
4.3.4.1 Medicamento contemplado pelo SUS e disponível na rede pública de saúde .. 84
4.3.4.2 Medicamento contemplado pelo SUS, mas em falta (indisponível) na rede
pública de saúde ........................................................................................................... 86
4.3.4.3 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente é disponibilizado em
posologia diferente da que foi prescrita para a parte interessada (necessidade de ajuste
posológico) ................................................................................................................... 87
4.3.4.4 Medicamento contemplado pelo SUS, mas não é disponibilizado para o CID
constante no receituário médico apresentada pela parte interessada ou para a faixa
etária da parte interessada é incompatível com a política pública instituída no âmbito
do SUS .......................................................................................................................... 88
4.3.4.5 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente para pacientes
hospitalizados ou quando a parte interessada apresentou intolerância à marca que é
disponibilizada pela rede pública de saúde .................................................................. 88
4.3.4.6 Medicamento contemplado pelo SUS, mas o limite mensal disponibilizado pela
rede pública é insuficiente para o tratamento de saúde da parte interessada ............... 89
4.3.4.7 Medicamento recentemente incorporado (contemplado pelo SUS), mas que
ainda não está sendo disponibilizado pela rede pública de saúde ................................ 89
4.3.4.8 Medicamento contemplado pelo SUS, mas que teve seu fornecimento suspenso
pelas Secretaria de Saúde (estadual ou municipal) ....................................................... 89
4.3.4.9 Medicamento não contemplado pelo SUS ....................................................... 90
4.3.5 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados
na categoria “suplementos alimentares ou dietas especiais” ........................................ 90
4.3.5.1 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível
na Rede Pública ........................................................................................................... 91
4.3.5.2 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e em falta
na Rede Pública” ........................................................................................................... 91
4.3.5.3 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível
na Rede Pública, mas não disponibilizado em virtude da idade da parte interessada . 92
4.3.5.4 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível
na Rede Pública, mas apenas para pacientes hospitalizados ....................................... 93
4.3.5.5 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) não contemplados pelo SUS ....... 93
4.3.5.6 Informações indisponíveis ............................................................................... 94
4.3.6 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados
na categoria “outros” .................................................................................................... 94
4.3.6.1 Pedido de fornecimento de fraldas geriátricas ................................................. 94
4.3.6.2 Pedido de fornecimento de tiras para verificação de glicemia capilar ............. 94
4.3.7 Análise dos resultados das práticas de mediação do grupo “Medicamentos” ..... 95
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 100
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 102
INTRODUÇÃO
Os direitos sociais traduzem para a linguagem jurídica um conjunto de expectativas
ligadas à satisfação das necessidades básicas das pessoas em relação a diversos aspectos da vida
em sociedade, como a alimentação, a moradia, a saúde, a educação etc.
Sob a rubrica de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, essas expectativas foram
reconhecidas em diversos documentos internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San
José da Costa Rica) e pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos
em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador).
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 positivou os direitos sociais como
autênticos direitos fundamentais, assegurando-lhes, por conseguinte, a intangibilidade frente ao
poder constituinte reformador.
Dentre o vasto catálogo de direito sociais elencados na Constituição Federal de
1988, encontra-se o direito à saúde, que foi consagrado como um direito fundamental do
cidadão e dever do Estado, a quem compete prestar um atendimento integral, por meio do
acesso universal e igualitário às ações e serviços do Sistema Único de Saúde (artigos 6º, 196 a
200 da CF/88).
Isso decorre do reconhecimento de que a saúde integra o mínimo existencial do
indivíduo, haja vista que a preservação da higidez física e mental é indissociável do próprio
direito à vida em condições de dignidade.
Ocorre que a constitucionalização do direito à saúde teria um sentido meramente
simbólico se não produzisse efeitos concretos na vida das pessoas mais necessitadas.
Por esse motivo, o constituinte teve a preocupação de consignar que os direitos e
garantias fundamentais, classificação na qual estão inseridos o direito à saúde e os demais
direitos sociais, têm aplicação imediata (artigo 5º, parágrafo 1º, da CF/88), evidenciando que o
Poder Público deve estar comprometido com a busca incessante pela efetivação dos mesmos.
Apesar disso, o direito à saúde experimenta uma verdadeira crise de efetividade na
sociedade brasileira contemporânea, haja vista a grande distorção ainda existente entre a
dimensão normativa do Direito e aquilo que é concretamente disponibilizado às pessoas: faltam
leitos nos hospitais, médicos para atender a população, exames para diagnosticar as
enfermidades, materiais e insumos hospitalares etc.
A implementação do direito à saúde nos moldes delineados pela Constituição
Federal depende da elaboração de políticas públicas, da realização dos atos administrativos
12
necessários à concretização das mesmas e, sobretudo, da disponibilização de elevados recursos
financeiros pelos entes federados. Com efeito, a cláusula da “reserva do possível” acaba sendo
frequentemente invocada pela Administração Pública, muitas vezes de modo genérico e
desacompanhado de provas, com o propósito de justificar a inércia estatal na consecução de
medidas concretas relacionadas à efetivação do direito à saúde.
Esse fato é preocupante, pois a necessidade de suprir as omissões estatais
relacionadas com a efetivação do direito à saúde tem levado um número crescente de pessoas a
buscarem o Poder Judiciário, com vistas a obter um provimento jurisdicional que lhes garanta
um tratamento de saúde digno e compatível com a Constituição, que se revela, muitas vezes,
indispensável à própria manutenção da vida.
A multiplicação de processos relativos à concretização do direito à saúde, fenômeno
que vem sendo denominado “judicialização da saúde”, tem suscitado intensos debates jurídico-
sociais, que estimulam a busca e o desenvolvimento de técnicas processuais e extrajudiciais
destinadas a tentar concretizar o direito à saúde de maneira célere e efetiva.
Dentro desse contexto, surgem “espaços de diálogo” entre as instituições jurídicas
e políticas diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde, com o propósito de tentar
reduzir a litigiosidade, criando um ambiente colaborativo na busca por soluções para as
demandas apresentadas pelos usuários do Sistema Único de Saúde.
Um deles é o programa SUS MEDIADO, constituído por meio de um Termo de
Cooperação Técnica entre a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte - DPE/RN,
a Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Norte – PGE/RN, a Secretaria de Estado da
Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Norte – SESAP/RN, a Defensoria Pública da União
– DPU/RN, a Procuradoria Geral do Município do Natal - PGMN/RN, a Secretaria de Estado
da Saúde Pública - SESAP/RN e a Secretaria Municipal de Saúde do Natal - SMS/Natal,
celebrado em 14 de fevereiro de 2012, na cidade de Natal/RN.
O programa SUS MEDIADO procura viabilizar uma solução extrajudicial para os
conflitos de interesse envolvendo a efetivação do direito à saúde de cidadãos hipossuficientes
no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e contam com a participação direta do cidadão
hipossuficiente, de um farmacêutico, dos Técnicos das Secretarias de Saúde Estadual e
Municipal, de um Defensor Público Estadual, de um representante da Procuradoria Geral do
Estado e de um representante da Procuradoria Geral do Município.
Por meio de uma cultura de pacificação dos conflitos, em substituição à tradicional
cultura do litígio, o SUS MEDIADO estabelece uma cooperação entre os participantes, com o
propósito de promover uma maior celeridade na troca de informações, no intuito de tentar
13
viabilizar a resolução extrajudicial das demandas de cidadãos hipossuficientes relativas ao
Sistema Única de Saúde.
De acordo com os dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio
Grande do Norte, o programa SUS MEDIADO propiciou uma solução administrativa para 274
dos 1123 casos que lhe foram submetidos no ano de 2013, alcançando uma taxa de
resolutividade extrajudicial global de 24,4% no mencionado período. No ano de 2014, essa taxa
de resolutividade extrajudicial global foi ainda maior (subiu para 33,58%), pois o SUS
MEDIADO criou condições para a solução administrativa de 416 dos 1239 casos que lhe foram
submetidos no aludido período.
Esses resultados são animadores e apontam para a possível existência de um
caminho alternativo e mais participativo (a parte interessada protagoniza todas as etapas do
procedimento de mediação e recebe informações qualificadas que, associadas ao serviço de
orientação jurídica prestado pela Defensoria Pública no plano extrajudicial, contribuem para
formação de um cidadão mais consciente das dificuldades relacionadas à efetiva prestação dos
serviços públicos de saúde nos moldes traçados pela Constituição) e democrático (as demandas
apresentadas pelos cidadãos contribuem para a formação de um banco de dados capaz de
subsidiar as tomadas de decisões futuras no que tange aos critérios a serem utilizados para a
alocação dos recursos públicos destinados ao Sistema Único de Saúde).
Curiosamente, porém, se for levado em consideração apenas o universo dos pedidos
de fornecimentos gratuito de medicamentos, as estatísticas caem drasticamente. No ano de
2014, o SUS MEDIADO intermediou uma solução administrativa para 62 dos 514 pedidos de
fornecimento gratuito de medicamentos no ano de 2014, perfazendo uma taxa de resolutividade
extrajudicial de 12% (doze por cento), em matéria de medicamentos, no ano de 2014.
Apesar da simpatia doutrinária em relação à necessidade de se buscar meios
alternativos (extrajudiciais) de resolução dos conflitos de interesse relativos à efetivação do
direito à saúde, ainda são poucos os estudos empíricos acerca da questão.
Com efeito, a presente pesquisa busca respostas para a seguinte pergunta de partida:
em que medida o uso da mediação pela Defensoria Pública reduz a necessidade de
judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos?
Parte-se da hipótese de que a mediação somente reduz a necessidade de
judicialização das demandas expressamente contempladas na política de assistência
farmacêutica instituída no âmbito do SUS.
Como objetivo geral, a pesquisa pretende realizar um diagnóstico do programa SUS
MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, por meio de uma análise
14
exploratório-descritiva da integralidade dos dados empíricos encontrados nos Relatórios de
Atendimento de 2014.
Para a consecução dessa tarefa, a pesquisa teve os seguintes objetivos específicos:
• Coletar a totalidade dos Relatórios de Atendimento do Programa SUS MEDIADO,
desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014;
• Identificar e codificar as variáveis existentes nos Relatórios de Atendimento do
Programa SUS MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, com
destaques para o motivo pelo qual cada pedido de fornecimento gratuito de
medicamentos fora indeferido pelo SUS e para o resultado da mediação;
• Explorar e descrever os dados encontrados.
Os três primeiros capítulos compõem a primeira parte do trabalho de pesquisa,
consistente numa revisão de literatura destinada a fundamentar teoricamente a análise dos dados
coletados.
No primeiro capítulo, foi analisado o desenvolvimento histórico da matéria,
partindo da consagração dos direitos fundamentais como eixo axiológico das constituições
modernas até a incorporação da “questão social” no discurso do constitucionalismo moderno,
fenômeno que levou ao surgimento dos direitos sociais.
O segundo capítulo realiza uma crítica à percepção (ainda) dominante acerca dos
direitos sociais, que procura naturalizar a reduzida carga eficacial desses direitos no cenário
contemporâneo, sob o argumento de que os mesmos seriam estruturalmente diferentes dos
denominados direitos civis e políticos. Além disso, apresenta uma análise do estatuto jurídico
dos direitos fundamentais à luz Constituição Federal de 1988 e avança para estudo do pode ser
denominado regime jurídico específico dos direitos sociais.
Por sua vez, o terceiro capítulo apresenta algumas considerações acerca do
reconhecimento da força normativa da Constituição e do controle jurisdicional de políticas
públicas no Brasil, que servem para contextualizar o surgimento do programa SUS MEDIADO.
A segunda parte da pesquisa é dedicada à apresentação e análise dos resultados do
processamento eletrônico, realizado por meio do software IBM SSPS, dos dados colhidos dos
Relatórios de Atendimento do programa SUS MEDIADO, relativos ao ano 2014.
Nesse sentido, o quarto capítulo é dedicado à apresentação das categorias de análise
utilizadas na pesquisa (extraídas dos Relatórios de Atendimento do programa SUS
MEDIADO), bem como do resultado do cruzamento das mesmas, mediante processamento
eletrônico, que permitiu identificar quais situações contribuem para o sucesso ou fracasso da
15
tentativa de mediação dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos apresentados à
Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN, por cidadãos hipossuficientes.
O estudo forneceu informações que podem subsidiar a implantação de programas
semelhantes em outras unidades da federação.
Embora não tenha a pretensão de esgotar a matéria, a pesquisa fornece uma análise,
baseada em dados empíricos, acerca das consequências de uma articulação entre os atores
sociais, e suas respectivas representações jurídicas, para a construção de mecanismos de
efetivação do direito à saúde que não dependam da intervenção do Poder Judiciário.
16
1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Para uma adequada compreensão dos capítulos seguintes, é preciso não perder de
vista que o sentido da expressão “direitos sociais” (que hoje corresponde ao gênero, do qual o
direito à saúde é uma das espécies) costuma oscilar entre uma concepção que nega a
exigibilidade de seu conteúdo (na medida em que encara os direitos sociais como normas
desprovidas de exigibilidade, ou seja, como meras declarações de boas intenções ou, no
máximo, como normas de caráter estritamente programático, que estabelecem apenas um
objetivo a ser perseguido pelo Legislador e pelos poderes públicos) e outra concepção que
reconhece os direitos sociais como autênticos direitos subjetivos, dotados, portanto, do atributo
da exigibilidade (RIVADENEIRA, 2015, p. 1677).
Como bem ponderado por Luciano Oliveira (2010), quem hoje observa os direitos
sociais sendo tão corriqueiramente proclamados em textos normativos e reivindicados em
demandas judiciais, acaba sem perceber o turbulento processo histórico do qual emergiram
esses direitos:
(...) O processo não foi tão sereno quanto podem dar a entender as sumárias descrições
didáticas do seu percurso. Hoje, quando tais direitos viraram enunciados corriqueiros
– mas não a sua realização, óbvio! –, corremos o risco de esquecer que eles emergiram,
como diria o Bardo inglês, em meio ao “som e a fúria” que são o fardo da história. Foi
no México, em 1917, e em seguida na Alemanha, em 1919, que surgiram as primeiras
constituições anunciando-os. Foram enunciados em contextos extremamente
conflituosos: o México, esse, havia feito uma revolução, e a Alemanha, arruinada pela
derrota na primeira guerra mundial, vivia um período de permanente insurreição de
que resultou a efêmera República de Weimar, recepcionando os direitos sociais até
como forma de exorcizar a ameaça da temida revolução comunista – uma
possibilidade virtual desde que, dois anos antes, e não muito longe dali, os russos
haviam feito sua revolução e instituído o primeiro regime comunista no mundo. No
mesmo ano da Constituição de Weimar, aliás – vale dizer, em 1919 –, os
revolucionários russos enunciaram a sua Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado, na qual, obviamente, os direitos sociais eram a tônica.
De fato, as Constituições democráticas têm procurado estabelecer os instrumentos
institucionais necessários à proteção dos direitos fundamentais, com especial atenção ao
princípio da igualdade, que, para além da mera proibição de discriminações arbitrárias, impõe,
nos tempos modernos, a necessidade de viabilizar o efetivo acesso das pessoas aos bens
fundamentais para a convivência civil, colocando em evidência a importância de efetivação dos
direitos sociais (FIORAVANTI, 2001, p. 150).
Ocorre que a positivação dos direitos sociais ainda não conseguiu convertê-los em
direitos plenamente exigíveis ou em instrumentos aptos a satisfazer as necessidades de seus
destinatários e acentua que tal fato se deve mais a prejuízos de natureza ideológica do que a
17
uma real diferença estrutural entre a mencionada categoria de direitos fundamentais e os
denominados direitos civis e políticos (PISARELLO, 2007).
Dentro dessa perspectiva, reservamos o presente capítulo para breves apontamentos
acerca do processo histórico em que ocorreu a eclosão dos direitos sociais, a fim de obter os
primeiros elementos para uma crítica à percepção (ainda) dominante, que procura justificar a
reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada a dos direitos civis e políticos),
que será desenvolvida no capítulo seguinte.
1.1 Esclarecimentos de natureza terminológica
Antes de avançar, é necessário esclarecer algumas opções terminológicas adotadas
no presente de trabalho.
Primeiramente, convém registrar que as expressões direitos humanos e direitos
fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Todavia, por questões
metodológicas, o presente trabalho emprega a expressão “direitos humanos” no sentido que lhe
fora atribuído por Yara Maria Pereira Gurgel (2010), para quem os direitos humanos constituem
um padrão mínimo que a Ordem Internacional reconhece a todos os seres vivos, cabendo aos
diversos Estados, consoante destacado por Víctor Abramovich (2005) a tarefa de respeitá-los
(evitando a prática de atos lesivos aos direitos humanos em seus respectivos territórios),
protegê-los (evitando que os particulares tenham seus direitos humanos violados por atos de
terceiros), promovê-los (criando as condições necessárias ao exercício dos direitos humanos
pelos particulares) e garanti-los (assegurando aos particulares o efetivo acesso aos bens
juridicamente protegidos pelos direitos humanos, quando não puderem fazê-lo por seus
próprios meios).
Em contrapartida, acompanhando as lições de Antonio-Enrique Pérez Luño (2006),
optou-se por empregar a expressão “direitos fundamentais” com contornos mais restritos
(espacial e temporalmente delimitados) decorrentes de sua positivação pelo ordenamento
jurídico de determinado Estado. No Brasil, eles foram consagrados no Título II da Constituição
Federal de 1988, que abrange os direitos e deveres individuais (art. 5º da CF/88), os direitos
sociais (arts. 6º ao 11 da CF/88), a nacionalidade (art. 12 e 13 da CF/88), os direitos políticos
(art. 14 ao 16 da CF/88), as normas relativas à criação, incorporação e extinção de partidos
políticos (art. 17 da CF/88) e diversos outros dispositivos espalhados ao longo do texto
constitucional, que melhor detalham o conteúdo dos mencionados direitos.
18
Dentro dessa perspectiva, convém esclarecer, ainda, que, no presente trabalho, a
expressão “direitos econômicos, sociais e culturais” se identifica com os “direitos humanos”,
porquanto se refere às normas de direito internacional (ex. direito ao mais elevado nível de
saúde física e mental, previsto no art. 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais), ao passo que a expressão “direitos sociais” está relacionada aos “direitos
fundamentais”, referindo-se às normas consagradoras dos mencionados direitos no âmbito
ordenamento jurídico brasileiro (ex.: direito à saúde, consagrado nos arts. 6º e 196 da CF/88).
1.2 Constitucionalismo moderno e consagração dos direitos fundamentais como eixo
axiológico das constituições modernas
As transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas ao longo dos séculos
XVII e XVIII alimentaram o fenômeno atualmente denominado constitucionalismo moderno
(de matriz europeia e americana), cujos contornos podem ser percebidos na Declaração da
Virgínia (1776) e adquiriram maior visibilidade a partir da Declaração Francesa de Direitos do
Homem e do Cidadão (1789).
Com muita propriedade, Horst Dippel (2005) observa que a Declaração da Virgínia
(junho/1776) não foi o primeiro documento constitucional da Revolução Americana, pois foi
precedida pela Constituição de New Hampshire (janeiro/1776) e pela Constituição da Carolina
do Sul (março/1776), bem como destaca que seus principais elementos não eram totalmente
ignorados pelo cenário político-revolucionário americano daquela época, pois já vinham sendo
largamente discutidos no âmbito colônias inglesas da americana ao longo da década precedente.
No entanto, o mencionado autor salienta que o grande mérito da Declaração da Virgínia reside
na expressa formalização dos requisitos essenciais do constitucionalismo moderno, que até
então não haviam aparecido em nenhum documento público destinado a servir de base para
uma nova ordem jurídica (DIPPEL, 2005, p. 187):
(...) a importância singular da Declaração de Direitos da Virgínia em 1776 reside no
estabelecimento de um catálogo completo daquilo que é essencial para o
constitucionalismo moderno, cujo caráter fundamental não é menos válido nos dias
atuais do que o foi há mais de duzentos anos: soberania popular, princípios universais,
direitos humanos, governo representativo, supremacia da constituição, separação dos
poderes, governo limitado, responsabilidade governamental e obrigação de prestar
contas, independência judicial e imparcialidade e, por fim, o direito do povo de mudar
o seu próprio governo por meio do poder constituinte. Estes dez elementos essenciais
do constitucionalismo moderno são expressos na Declaração de Direitos da Virgínia
e, por mais de duzentos anos, nenhuma constituição que reclame sua adesão aos
princípios do constitucionalismo moderno se atreveu abertamente a desafiar nenhum
desses princípios, no momento de idealizar uma sociedade baseada na razão, que
19
disponha de uma base juridicamente sólida para atender aos interesses existentes e
muitas vezes conflitantes.
Todavia, é importante frisar, como o fez Lynn Hunt (2009, p. 20), que foi a
Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), fruto da revolução que
derrubou o Antigo Regime e possibilitou a instauração da ordem burguesa na França, quem
teve o mérito de encarnar a promessa de direitos humanos universais:
(...) a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamava que “Os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Não os homens franceses, não os
homens brancos, não os católicos, mas “os homens”, o que tanto naquela época como
agora não significa apenas machos, mas pessoas, isto é, membros da raça humana. Em
outras palavras, em algum momento entre 1689 e 1776 direitos que tinham sido
considerados muito frequentemente como sendo de determinado povo – os ingleses
nascidos livres, por exemplo – foram transformados em direitos humanos, direitos
naturais universais, o que os franceses chamavam les droits de l´homme, ou “os
direitos do homem”.
Tamanha a importância da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789), que, posteriormente, sua essência acabou sendo reproduzida pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), a qual integra, juntamente com o Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos (1966), seus dois Protocolos Facultativos (o primeiro,
disciplinando o procedimento para a apresentação de queixas relacionadas à violação de direitos
humanos; o segundo, visando à abolição da pena de morte), o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (1976) e seu Protocolo Facultativo, a Carta Internacional dos
Direitos Humanos, por meio da qual a Organização das Nações Unidas traça parâmetros globais
para a atuação das nações no que diz respeito à proteção dos direitos humanos nos dias de hoje.
Pois bem, em minuciosa análise, Lynn Hunt (2009, p. 19), observa que os direitos
humanos se caracterizam por serem naturais (inerentes aos seres humanos e anteriores à própria
constituição da associação política), iguais (todos os serem humanos são titulares dos mesmos
direitos humanos) e universais (os direitos humanos devem ser aplicáveis por toda parte e a
quem quer que seja), mas destaca que eles somente se tornam significativos quando assumem
um conteúdo político, fato que, como dito alhures, ocorreu pelas primeiras vezes na Declaração
da Independência americana (1776) e na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789).
Com efeito, o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789),
ao estabelecer que “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem
estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”, acabou convertendo a proteção
dos direitos fundamentais num autêntico axioma da teoria constitucional e transformando
20
aquilo que poderia uma ideia tipicamente americana em um fenômeno transnacional cujas
repercussões estão presentes até os dias de hoje (DIPPEL, 2005, p. 187).
É importante notar, porém, que a consagração dessa “primeira geração” de direitos
fundamentais nas primeiras Constituições escritas é fruto do pensamento liberal-burguês do
século XVIII, marcadamente individualista e preocupado apenas em estabelecer uma zona de
não intervenção do Estado sobre uma esfera da autonomia individual.
Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 47):
Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória
inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade
perante a lei. São, posteriormente, complementados por um leque de liberdades,
incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de
expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos de
participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva,
revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a
democracia.
Foi sobre essas bases (direitos civis e políticos e separação dos poderes) que se
estruturou o conceito de Estado de Direito (Estado Liberal Clássico). Todavia, seu conteúdo
individualista (preocupado apenas com a proteção formal da liberdade individual, tipicamente
associada aos anseios da burguesia, sem atentar para a necessidade de criação de meios que
viabilizassem o efetivo gozo dessa liberdade aos indivíduos economicamente hipossuficientes),
serviu de semente para o reconhecimento da fragilidade de seu potencial emancipatório.
1.3 Da incorporação da “questão social” no discurso do constitucionalismo moderno à
consagração dos direitos sociais
Paulo Bonavides (2014, p. 14) observa que o Estado liberal, após cumprir sua
missão revolucionária e exaurir sua essência racionalizadora, teve o mérito de incorporar,
definitivamente, o princípio da separação dos poderes na organização das instituições estatais.
No entanto, o mencionado autor pondera que o Estado liberal, ao assumir o patronato
meramente formal da liberdade humana (cujos conteúdos somente preencheu em favor do
capitalismo burguês), acabou expondo o seu próprio “calcanhar de Aquiles”.
Por sua vez, Alessandra Gotti (2012, p. 48) aponta que o agravamento dos conflitos
entre as classes burguesa e proletária, que vivia em situação de miséria e exclusão social, pôs
em evidência a fragilidade da liberdade meramente formal, conquistada pelas revoluções
burguesas, que não passava de uma verdadeira abstração para as classes menos favorecidas da
sociedade.
21
Foi dentro desse contexto que o ideal socialista de construção de uma comunidade,
termo empregado por Ferdinand Tönnies (em sua obra Comunidad y Sociedad, 1947) para
expressar um modelo de associação política no qual as interações humanas são
preponderantemente norteadas pela consciência da dependência mútua e pela busca da melhoria
das condições de vida da coletividade, ganhou fôlego ao longo do século XIX e abriu caminho
para uma mudança de foco em relação aos direitos que haviam sido consagrados pelas antigas
declarações.
Como bem observado por Roberto Gargarella (2004, p. 62-63), os direitos possuem
uma peculiaridade própria de outras criações humanas: eles nascem em momento históricos
muito especiais (v.g. as revoluções burguesas do século XVIII), a partir das mais variadas
razões, mas, após o seu nascimento, eles adquirem vida própria e podem se distanciar das
limitadas aspirações de seus criadores.
No mesmo sentido, Fernando Atria (2004, p. 21) destaca que os direitos civis e
políticos surgiram na histórica como justificativa para a revolução, propondo as bases para uma
nova forma de associação política, baseada no respeito dos diretos naturais dos seres humanos.
Dessa forma, não é que outras necessidades (como as que, posteriormente, passaram a ser
cobertas pelos denominados direitos sociais) fossem menos importantes: elas apenas não
estavam cobertas por direitos que pudessem ser concebidos como naturais (no sentido de
anteriores à constituição da associação política).
No entanto, à medida que a revolução começa a desaparecer do horizonte, o novo
contexto histórico, marcado pelas tensões sociais decorrentes da consolidação do capitalismo,
abre caminho para a percepção de que a proteção meramente formal do direito à liberdade tem
apenas um frágil conteúdo emancipador e, para as camadas menos favorecidas da população,
acaba sendo verdadeiramente opressiva, pois somente aparece em seu aspecto negativo
(impondo o dever de respeito à liberdade dos outros).
O constitucionalismo moderno é um fenômeno anterior à consolidação do
capitalismo, ao passo que os direitos sociais são fruto das contradições geradas pela evolução
do referido sistema. Com efeito, a chamada “questão social” somente se destacou no debate
jurídico a partir da segunda metade do século XIX, fruto do mencionado agravamento dos
conflitos entre as classes possuidoras e aqueles setores sociais empobrecidos e excluídos do
capitalismo liberal (PISARELLO, 2001, p. 82).
Essa incorporação da preocupação com a questão social no debate do
constitucionalismo moderno, em virtude da deterioração das condições de sobrevivência das
22
classes populares, abriu caminho para a reinvindicação dos direitos sociais, que costumam ser
apontados pela doutrina como a “segunda geração” dos direitos fundamentais.
Com muita propriedade, José Reinaldo de Lima Lopes (2006, p. 38) observa que, o
aparecimento da questão social no debate do constitucionalismo moderno fez com que a luta
não mais se restringisse à proteção da liberdade e da propriedade burguesas e passasse a enfocar,
dentre outras matérias, as condições de habitabilidade, salubridade e educação na periferia.
Dessa forma, a nova reivindicação transcendeu a garantia da liberdade perante o Estado e
passou mirar a liberdade por intermédio do Estado (SARLET, 2015, p. 47).
Como se pode ver, emergiu do novo contexto histórico a compreensão de que a
Constituição, na qualidade de ato jurídico constitutivo de uma nova ordem social, deve se
preocupar não apenas com a proteção dos indivíduos contra a agressão de terceiros (ou do
próprio Estado), mas também (e especialmente) com a criação de possibilidades para uma vida
mais propriamente humana para aquela vasta camada da população desprovida de recursos
(ATRIA, 2004, p. 17).
O Estado liberal-burguês havia demonstrado, na lição de Alessandra Gotti (2012,
p. 48), que a liberdade não passa de uma ficção, se não houver uma preocupação em
efetivamente oferecer a todos as condições materiais para o exercício da mesma. Afinal, sem o
efetivo acesso aos bens básicos (condições equitativas de trabalho, seguridade social, saúde,
educação), o indivíduo não tem condições de se desenvolver plenamente, e muito menos de
participar da vida política, cultural e social de seu país.
Foi dentro desse contexto que surgiu o clamor pelo reconhecimento de direitos
sociais, definidos por José Afonso da Silva (2002, p. 199) como “prestações positivas estatais,
enunciados em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais
fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações desiguais”.
A Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Weimar de 1919 (Alemanha)
foram as primeiras a consagrar direitos sociais como autênticos direitos fundamentais,
assumindo uma forte preocupação com a questão social. A partir de então, a ideia de igualdade
material passou a ser um dos elementos centrais do novo modelo de Estado (social) cujos
contornos estavam se desenhando.
Nos anos seguintes, como bem observado por Luciano Oliveira (2010), a
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948) foi enunciada, na cidade de Paris
(que havia sido palco da Declaração de 1789), num contexto de polarização entre capitalismo
e comunismo, traduzindo o compromisso de conciliar os princípios do liberalismo clássico
23
(materializados pelos direitos civis e políticos) e os princípios de justiça social (materializados
pelos direitos sociais).
Ao analisar o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948),
Luciano Oliveira (2010) destaca que os princípios que haviam irrigado as lutas sociais no século
XIX e a revolução socialista 1917, no século XX, foram incorporados com riqueza de detalhes
no novo documento, que dedicou 5 artigos (do art. 22 ao 27) aos direitos sociais:
(...) O prestígio desses novos direitos, concomitante à relevância que adquiriu a
chamada “questão social”, talvez explique um curioso deslocamento que se operou na
menção ao direito de propriedade – pedra de toque da sociedade burguesa – entre a
declaração liberal de 1789 e a declaração social-democrata de 1948. Na primeira, a
propriedade figura com um destaque inusitado e, sem exageros, único, pois além de
aparecer logo no artigo segundo – ao lado da liberdade, da segurança e da resistência
à opressão – como um dos direitos “naturais e imprescritíveis do homem”, volta a ser
referido no último artigo da Declaração, o de número 17, como sendo um “direito
inviolável e sagrado” – o único a merecer esses qualificativos. Já em 1948, num
contexto inteiramente outro, a propriedade não aparece com destaque logo nos
primeiros artigos. Quando vai aparecer, é num distante artigo 17 – curiosamente, o
mesmo número do artigo que em 1789 a definira como inviolável e sagrada –, mas
sem essa aura de inviolabilidade e sacralidade. O dispositivo apenas diz sucintamente
que “todo homem tem direito à propriedade”, menção imediatamente mitigada pela
observação de que ele tem esse direito “só ou em sociedade com outros”,
complemento sem dúvida destinado a tornar a Declaração mais palatável para os
países comunistas, notadamente a União Soviética, à época a segunda maior potência
militar do planeta e uma das grandes vencedoras da guerra mundial recém-terminada.
Nesse ponto, perceba-se que as constatações de Luciano Oliveira (2010) acerca do
direito à propriedade, que na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948)
perdeu o ar de sacralidade que lhe havia sido outorgado pela Declaração Francesa de Direitos
do Homem e do Cidadão (1789), dão suporte às ponderações de Roberto Gargarella (2004), no
sentido de que os direitos nascem em momento históricos muito especiais, mas, pelas mais
diversas razões, após o seu nascimento, adquirem vida própria e podem se distanciar das
limitadas aspirações de seus criadores.
Dentro dessa perspectiva, Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 48) pondera que os
direitos sociais, além de corresponderem às reivindicações das classes menos favorecidas (de
modo especial a operária) a título de compensação, em virtude da extrema desigualdade que
caracterizava (e, de certa forma, ainda caracteriza) as relações com a classe empregadora
(detentora do poder econômico), podem ser considerados como uma densificação do princípio
da justiça social.
Em sentido semelhante, Paulo Bonavides (2014, p. 38) descreve o Estado social
como um “Estado de direito reconstruído sobre os valores da dignidade da pessoa humana” e
24
afirma que o referido modelo de Estado “despontou para conciliar de forma duradoura e estável
a Sociedade com o Estado”, qualificando-o como “a chave das democracias do futuro”.
1.3.1 Estado Social, direitos sociais e a noção de direito subjetivo
Nos tópicos destinados à análise dos fatores históricos que acompanharam o
nascimento do constitucionalismo moderno e da posterior incorporação dos direitos sociais no
discurso dos direitos fundamentais, vimos que a doutrina liberal clássica, de origem burguesa,
serviu de base para a formulação do Estado liberal, mas, embora dominante no cenário global,
convivia com outras visões de mundo, que alimentadas pelo agravamento das tensões sociais
decorrentes da precariedade das condições de vida da vasta camada desafortunada da
população, acabaram contribuindo para o surgimento do Estado social por meio da consagração
dos direitos sociais.
Autores como Norberto Bobbio (1995), Fernando Atria (2004) e Roberto
Gargarella (2004), embora com percepções distintas a respeito do mesmo fenômeno, como será
visto mais adiante, encaram o surgimento dos direitos sociais como fruto da doutrina socialista
e de seu ideal de construção de uma verdadeira comunidade, no sentido que foi atribuído ao
termo do Ferdinand Tönnies (1947), cujo verdadeiro valor não reside na mera proteção dos
indivíduos contra a agressão de terceiros, mas sim na criação das condições necessárias para
que uma forma de vida propriamente humana esteja efetivamente ao alcance de todos.
Por oportuno, frise-se que, ao analisar as diversas formas de sociabilidade,
Ferdinand Tönnies, em sua obra Comunidad y Sociedad (1947), estabelece a oposição binária
comunidade-sociedade para diferenciar o modelo de associação política em que as interações
humanas são predominantemente individualistas (sociedade) do modelo associativo no qual as
relações humanas são preponderantemente norteadas pela consciência da dependência mútua e
pela busca da melhoria das condições de vida coletiva (comunidade).
Pois bem, para Norberto Bobbio (1995, p. 109), a incorporação dos direitos de
segunda geração em pé de igualdade com os da primeira pode ser considerada uma das mais
clamorosas conquistas desses movimentos socialistas.
No entanto, Roberto Gargarella (2004, p. 67) discorda desse posicionamento e
defende que os déficits próprios dessa incorporação do discurso socialista nas constituições
modernas, que serão analisados no capítulo seguinte, representam uma lamentável derrota dos
aludidos movimentos sociais. O mencionado autor ilustra seu pensamento ao comparar os
direitos sociais a um “enxerto” aplicado no corpo de um animal cujo sistema imunológico (as
25
estruturas institucionais remanescentes do modelo de Estado liberal) estava preparado para
repeli-lo. Com isso, ele acentua que costumamos superestimar as capacidades do Direito para
atuar como instrumento de transformação social e que, em nossa miopia, acabamos perdendo a
noção das dificuldades que aparecerão no caminho da efetivação dos direitos consagrados no
plano abstrato.
A tradição jurídica liberal clássica não se interessou em elaborar para os direitos
sociais um aparato teórico minimamente equiparável àquele cuidadosamente construído para a
tutela dos direitos de propriedade e liberdade. Por sua vez, a tradição jurídica de ascendência
marxista e socialista não se dedicou, por um longo período de tempo, à referida tarefa, por
desacreditar no potencial do Direito enquanto instrumento de transformação social
(FERRAJOLI, 2002, p. 14).
As consequências inevitáveis dessa “falta de interesse” na estruturação de um
aparato teórico capaz de resguardar os direitos sociais, especialmente em momentos de crise,
foram a fragilidade da tutela jurídica desses direitos e seu reduzido poder de resistência frente
às reiteradas investidas de políticas neoliberais.
Com efeito, sentencia Roberto Gargarella (2004, p. 67), os direitos sociais
descumpriram suas “desmedidas promessas” (de moradia digna e salário mínimo capaz de
atender a diversas necessidades consideradas básicas do trabalhador e de sua família etc.) para
acabar realmente expressados em “parcas, mas ainda assim valiosas, melhorias nas condições
de vida dos grupos mais desafortunados da sociedade”.
Frise-se, porém, que o direito constitucional vem passando por um processo de
reelaboração teórica nas últimas décadas, que tem produzido efeitos sobre a tradicional
percepção dos direitos sociais, que de normas meramente programáticas vêm, cada vez mais,
assumindo uma feição de direitos subjetivos e, portanto, dotados de justiciabilidade, atributo
que pode ser definido como a “possibilidade de reclamar em juízo o cumprimento de ao menos
alguns dos deveres que se derivam do direito” (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 37).
Mas essas transformações não ocorrem, como já era esperado, sem qualquer tipo de
resistência. Fernando Atria (2004, p. 54) sustenta que a noção de direitos subjetivos é
incompatível com a concepção política dos direitos sociais, que têm fundamento no ideal
socialista de criação de uma forma superior de comunidade, na qual os indivíduos estariam
comprometidos com o bem-estar coletivo.
De acordo com o mencionado autor, a constitucionalização dos denominados
direitos sociais se justificou pelo fato de que as demandas socialistas, para reverberarem no
discurso liberal, precisaram ser manifestadas na linguagem dos direitos, a fim de que um
26
conflito envolvendo as demandas dessas duas tradições (liberal e socialista) pudesse ser
encarado como um conflito de “direito contra direito” e não como um conflito entre um direito
e uma utilidade geral ou aspiração comunitária, no qual estas, fatalmente, restariam vencidas
(ATRIA, 2004, p. 27):
No entanto, Fernando Atria (2004, p. 23-26) defende que o discurso socialista não
pode ser traduzido para linguagem dos direitos subjetivos sem ser desvirtuado, na medida em
que a noção de direito subjetivo evoca a preocupação com o “proveito próprio” e permite fazer
um “recorte” da demanda, afastando-a de uma vasta gama de considerações morais relevantes
aplicáveis (ATRIA, 2004, p. 39-40):
Em abstrato, o argumento é relativamente simples: temos visto que o conceito de
direito subjetivo faz referência à ideia de que o que é justo dar, fazer ou não fazer ao
titular do direito pode determinar-se com independência de considerações
substantivas de índole geral. Por isso os direitos triunfam (ao menos em princípio)
sobre considerações de utilidade geral ou aspirações comunitárias. O maior bem-estar
social ou a aspiração comunitária não podem constituir uma razão que triunfe sobre
um direito. Isto é o que “ter direito a” significa no jogo de linguagem do direito. O
comprador demandante não necessita provar, para obter em juízo, que a sociedade
como um todo será melhor se sua demanda for acolhida, e o vendedor demandado não
pode opor uma “exceção de bem-estar geral” para escusar-se do cumprimento.
Os fins coletivos (ou comunitários) que justificam os direitos sociais, em
consequência, não poderão vencer aos direitos individuais si não estão expressos na
linguagem dos direitos. Enquanto eles forem “meros” fins comunitários, os direitos
serão sempre triunfantes. Como visto, essa é uma das razões pelas quais os direitos
sociais foram justamente apresentados como “direitos”. Todavia, no momento em que
essas ideias comunitárias são expressas como “direitos”, a ideia comunitária em que
elas descansam é negada e a demanda passa a ser entendida como uma de indivíduos
contra a comunidade.
O argumento a seguir tem como consequência que há um sentido importante no qual
a expressão “direitos sociais” é uma contradição, tanto quanto “solteiro-casado”.
Apesar disso, muito esforço e inteligência têm sido gastos para oferecer uma noção
de direitos sociais que seja razoável. Porém, persiste sempre uma tensão entre o que
depende do conteúdo do material jurídico positivo (v.g. positivado, posto) e o que
depende do modo de operação das práticas institucionalizadas que denominamos
“jurídicas”; uma tensão, em outras palavras, entre objetivar a substância contingente
o direito posto ou a sua forma necessária de operação para explicar a (desvalorada)
posição que ocupam os direitos sociais frente aos direitos de primeira geração nos
sistemas jurídicos ocidentais.
Com base nesse raciocínio, Fernando Atria (2004) defende o resgate da concepção
política dos direitos sociais como norte para a tomada de decisões (judiciais e administrativas)
em relação à matéria, rechaçando que os mesmos sejam dotados de justiciabilidade.
O problema é que, na prática, isso representaria uma espécie de resgate do caráter
estritamente programático das normas consagradoras dos direitos sociais e teria como
consequência deixar o indivíduo à mercê da “boa vontade” do Poder Público em cumprir as
promessas insculpidas na Constituição.
27
O que não podemos perder de vista é que os direitos fundamentais (dentre os quais se
encontram os direitos sociais) estabelecem verdadeiras regras de cooperação social cujo
conteúdo não é imutável, pois, nas palavras de Carlos Bernal Pulido (2004, p. 109), se modifica
ao longo do tempo, de acordo com os interesses predominantes em cada época e em
conformidade com as reivindicações que se impõem como resultado das lutas sociais.
Essa mutabilidade do conteúdo dos direitos fundamentais ao longo do tempo é o
elemento que permite conciliar a concepção política dos direitos sociais, a que se refere
Fernando Atria (2004), com a noção de direitos subjetivos, dotados de “justiciabilidade”.
Como bem observado por Víctor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 37), a
“justiciabilidade” é um requisito indispensável na luta pela progressiva concretização dos
direitos sociais, pois embora um Estado satisfaça habitualmente determinadas necessidades ou
interesses tutelados por um determinado direito social (ex.: desenvolvendo um programa de
distribuição de alimentos para a parcela da população ameaçada pela forme), somente se pode
afirmar que os beneficiados por essa conduta estatal gozam desse direito, se existirem efetivas
condições de demandarem judicialmente essa prestação em juízo, na hipótese de um eventual
inadimplemento. Com isso, os mencionados autores arrematam que o elemento chave para
qualificar a existência de um direito social como direito pleno não é a conduta cumprida pelo
Estado, mas a possibilidade conferida ao titular do direito de agir contra o descumprimento da
obrigação estatal.
Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2009, p. 9) destacam que, nos
dias atuais, existe, no Brasil, uma crescente tendência doutrinária e jurisprudencial no sentido
da afirmação da exigibilidade (inclusive judicial) de direitos subjetivos a prestações
relacionadas à tutela do mínimo existencial, assim compreendidas não apenas as ligadas à
sobrevivência física, mas também aquelas relativas à garantia de condições materiais mínimas
para uma vida saudável (ou o mais próximo disso, de acordo com as condições pessoais do
indivíduo) e, portanto, com certa qualidade.
No entanto, Antônio José Avelãs Nunes (2013, p. 59) registra sua preocupação
com a possível desmobilização da cidadania e das lutas cidadãs pela transformação do mundo
a partir da ilusão de que tudo está bem, porque se algo correr mal, o Poder Judiciário estará ao
alcance para resolver todos os problemas.
Dentro dessa perspectiva, Roberto Gargarella (2004, p. 66-67) adverte que é preciso
cuidado para não superestimarmos as capacidades do direito, pois a verdadeira transformação
social somente será possível a partir de uma tomada de consciência, por parte das pessoas que
integram a sociedade, acerca da necessidade de encurtar a distância entre os cidadãos e seus
28
representantes, rompendo com as regras da neutralidade liberal e com o modelo de cidadão
passivo que prevalece na sociedade nos dias de hoje.
Note-se que os autores anteriormente citados reconhecem a justiciabilidade dos
direitos sociais, mas chamam a necessidade de uma tomada de consciência e do engajamento
dos membros da sociedade na construção das estratégias para efetivação desses direitos.
Gerardo Pisarello (2007, p. 112) acentua que devemos “resistir à tentação de reduzir
a questão da exigibilidade dos direitos sociais à justiciabilidade dos mesmos” e que “é preciso
despertar para a existência de múltiplos órgãos e instituições que podem e devem intervir na
proteção desses direitos, inclusive com prioridade em relação às instâncias judiciais”.
Não podemos perder de vista, porém, que, se por um lado, devemos estimular o
emprego de estratégias alternativas (extrajudiciais) de resolução dos conflitos de interesse
relativos à efetivação dos direitos sociais (e, por conseguinte, do direito à saúde), por outro, o
sucesso dessa empreitada pressupõe uma reconstrução da concepção (ainda) dominante, que
procura naturalizar a reduzida carga eficacial desses direitos, consoante será melhor analisado
no próximo capítulo.
29
2 CRÍTICA À PERCEPÇÃO DOMINANTE SOBRE OS DIREITOS SOCIAIS E
CONTRIBUTO PARA UMA RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E
GARANTISTA
Um dos grandes desafios em matéria de efetivação dos direitos sociais consiste em
romper com a tradicional percepção de que os mencionados direitos estão insculpidos em
normas meramente programáticas e, portanto, não passam de uma espécie de catálogo de boas
intenções, carentes, portanto, de justiciabilidade (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 19).
Isso porque, apesar de sua hierarquia privilegiada dentro do ordenamento jurídico
brasileiro (tema que será melhor esmiuçado no item 2.2.2), as normas consagradoras dos
direitos sociais, contidas na Constituição e em Tratados Internacionais sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, costumam ser encaradas como documentos de caráter
estritamente político, diferentemente do que ocorre com as normas consagradoras dos direitos
civis e políticos, contra cuja juridicidade não se levanta qualquer questionamento.
Parte da doutrina constitucionalista já se insurge contra essa perspectiva que
naturaliza a reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada a dos direitos civis
e políticos), sustentando que os mencionados direitos assumem a feição de autênticos direitos
subjetivos, cujo cumprimento pode ser reivindicado em juízo.
Rodrigo García Schwarz (2011, p. 11) pondera que se decidimos tomar como norte
o princípio da dignidade da pessoa humana, não podemos descuidar da elaboração de um
estatuto jurídico privilegiado para os direitos sociais, na medida em que os mesmos tratam de
questões extremamente essenciais para a vida com dignidade (alimentação, saúde, moradia etc).
Essa lição é complementada por Gerardo Pisarello (2007, p. 11), quando destaca que a proteção
dos direitos sociais está intimamente relacionada à própria garantia das condições materiais que
possibilitam o pleno exercício da liberdade e da autonomia.
Revela-se, portanto, imprescindível a adoção de uma nova perspectiva acerca dos
direitos sociais, pois a efetividade de quaisquer direitos (inclusive dos tradicionais direitos
individuais, civis e políticos) afiançados na dignidade da pessoa humana somente é possível
mediante a garantia das condições materiais necessárias ao pleno exercício da liberdade
individual e da autonomia das pessoas.
Frise-se que a efetivação dos direitos sociais tem importante repercussão para a
consolidação do modelo de Estado Democrático de Direito traçado pela Constituição Federal
de 1988, pois nenhum modelo de democracia pode ser substancialmente democrático sem uma
cidadania participativa e comprometida com uma práxis autenticamente transformadora da
30
sociedade (SCHWARZ, 2011, p. 12) e não há espaço para esse tipo de cidadania quando o
sujeito está premido pela necessidade de manutenção da vida (ATRIA, 2004, p. 21).
Reconhecer os direitos sociais como autênticos direitos fundamentais (e não como
meros catálogos de boas intenções) é o primeiro passo para torná-los acessíveis aos grupos
humanos que habitualmente não teriam acesso a eles, pondo em marcha atos concretos e
orientados à plena efetividade dos direitos sociais, mediante o emprego do máximo de recursos
disponíveis (SCHWARZ, 2011, p. 11-12).
Nesse sentido, embora a simples existência de um estatuto jurídico diferenciado não
assegure, por si só, a satisfação dos direitos sociais, ela permitirá a articulação de um discurso
crítico (jurídico e não apenas político) capaz de deslegitimar as múltiplas formas de poder
arbitrário que, em diferentes medidas, criam obstáculos para o atendimento das necessidades
básicas e, consequentemente, para o efetivo gozo da liberdade e da autonomia individual, das
gerações presentes e futuras (PISARELLO, 2007, p. 17).
2.1 Análise estrutural: direitos sociais x direitos civis e políticos
Antes de avançar para a apresentação dos elementos essenciais de um estatuto
jurídico destinado a maximizar o potencial de efetivação dos direitos sociais, em conformidade
com o projeto de transformação social introduzido pela Constituição Federal de 1988, convém
responder à seguinte indagação: existe alguma diferença substancial entre a estrutura dos
direitos sociais e a dos direitos civis e políticos capaz de justificar a crise de efetividade
experimentada pelos direitos sociais na sociedade brasileira contemporânea?
Para a consecução dessa tarefa, é necessário analisar a estrutura dos direitos
fundamentais de primeira e segunda geração sob uma dupla perspectiva: em primeiro lugar, a
partir da natureza (negativa ou positiva) das obrigações que integram cada um desses direitos;
em segundo lugar, a partir da forma de proclamação desses direitos nos diplomas normativos
que os consagram.
A análise acerca de como as diferentes espécies de obrigações (negativas ou
positivas) se distribuem entre os dois grupos de direitos em questão, fornecerá elementos que
possibilitarão um posicionamento crítico em relação à definição sustentada pela doutrina
tradicional, no sentido de que os direitos civis e políticos corresponderiam a obrigações
estritamente negativas (obrigações de não fazer), diferenciando-se dos direitos sociais na
medida em que estes dariam origem às obrigações positivas (obrigações de fazer) do Estado.
31
Por sua vez, a análise comparativa da forma de proclamação dos direitos sociais e
dos direitos civis e políticos permitirá descobrir até que ponto a abertura semântica,
característica dos dispositivos consagradores dos direitos sociais, pode vir a ser considerada um
real obstáculo para a efetivação dos mesmos.
2.1.1 Crítica à distinção baseada na natureza (negativa ou positiva) das obrigações que
integram a estrutura dos direitos civis e políticos e dos direitos sociais
A doutrina tradicional, de inspiração liberal clássica, aponta para a existência de
uma diferença estrutural entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais com a finalidade
de justificar uma graduação da carga eficacial (SARLET, 2015, p. 282) dessas diferentes
espécies de direitos fundamentais a partir da natureza das obrigações impostas por cada uma
delas ao Estado.
Nesse sentido, os direitos civis e políticos são identificados como geradores de
obrigações negativas, não onerosas e, portanto, de fácil proteção (PISARELLO, 2007, p. 59),
fato que explicaria sua elevada carga eficacial, na medida em a satisfação desses direitos se
esgotaria em um não fazer (uma abstenção) por parte do Estado, de modo a evitar ingerências
abusivas na esfera de liberdade individual. Com efeito, não seria preciso destinar elevadas
montas de recursos públicos para a satisfação dos direitos civis e políticos, de acordo com a
doutrina tradicional, pois bastaria o Estado não deter arbitrariamente as pessoas, não aplicar
penas sem o devido processo legal, não interferir na propriedade privada etc (ABRAMOVICH
e COURTIS, 2002, p. 21).
Em contrapartida, essa mesma doutrina tradicional chama a atenção para o fato de
que os direitos sociais dão origem a obrigações positivas (prestações), cuja satisfação demanda
complexas e onerosas obrigações de fazer por parte do Estado (PISARELLO, 2007, p. 60), a
exemplo da criação e manutenção de serviços públicos de saúde e o fornecimento gratuito de
medicamentos, a construção de hospitais ou de moradias populares (ou a disponibilização de
financiamentos para a compra da casa própria em condições subsidiadas) etc.
Nesse diapasão, a reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada
a dos direitos civis e políticos) se justificaria pelo fato de que a satisfação dessas obrigações
positivas exige do Estado um significativo aporte de (escassos) recursos públicos, de modo que
a efetivação dos direitos sociais acaba condicionada à reserva do economicamente possível.
Em outras palavras, como a efetivação das obrigações positivas inerentes aos
direitos sociais (elemento central da tese de que haveria uma diferença estrutural entre os
32
direitos civis e políticos e os direitos sociais) está sempre condicionada à ocorrência de um
evento futuro e incerto (disponibilidade de recursos públicos), haveria uma espécie de “defeito
congênito”, que explicaria e, mais do que isso, naturalizaria a redução (e até mesmo o
esvaziamento) da carga eficacial dos direitos sociais consagrados pela Constituição, fazendo
com que expressões como “direito à saúde”, “direito à moradia” e “direito à educação”, apesar
de insculpidas na própria Constituição, acabem sendo assimiladas em sentido metafórico
(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 23).
Ocorre que, ao contrário do que pode parecer, os direitos civis e políticos também
requerem atuações positivas do Estado, as quais, muitas vezes, envolvem elevados aportes
financeiros. Para ilustrar, basta fazer referência à complexidade da infraestrutura material e de
pessoal que o Estado precisa dispor para fazer valer o direito ao voto (art. 14 da CF/88) e ao
fato de que o direito de não ser torturado (art. 5º, inciso III, da CF/88) exige a manutenção de
centros de detenção adequados e de corporações policiais formadas em princípios garantistas
(PISARELLO, 2003, p. 29-30).
E a lista não para por aí: o direito de liberdade de expressão (art. 5º, inciso VI, da
CF/88) não pode ser concebido como a mera ausência de censura, albergando também a
construção de centros culturais e praças públicas, a subvenção de publicações e concessão de
espaços gratuitos em rádio e televisões ou uma regulação geral que assegure o pluralismo
informativo (PISARELLO, 2003, p. 29-30).
Da mesma forma, em que pese a visão liberal clássica sustentar que as obrigações
estatais relacionadas ao direito à propriedade (art. 5º da CF/88) se esgotariam na ausência de
interferências arbitrárias (obrigação negativa) no patrimônio individual, é preciso abrir os olhos
para a vasta gama de prestações (obrigações positivas) implementadas pelo Estado (mediante a
necessária aplicação de recursos públicos) para a salvaguarda desse direito. Afinal, não se pode
conceber a proteção do direito à propriedade (imobiliária, automotiva etc.) sem a devida a
criação e manutenção de Registros Públicos (Cartórios, Detran etc.), das forças de segurança
pública destinadas a evitar as turbações de terceiros (ou para investigar as violações
indevidamente perpetradas) contra a propriedade individual, e até mesmo do aparato judicial
necessário para sanar os inevitáveis conflitos de interesses envolvendo a matéria (PISARELLO,
2007, p. 60).
Em última análise, todos os direitos possuem uma feição positiva e, portanto,
envolvem a necessidade de alocação de recursos públicos, na medida em que o Estado precisa,
no mínimo, estar aparelhado para fazer valer esses direitos contra eventuais turbações de
terceiros (HOLMES e SUNSTEIN, 2000, p. 43-44).
33
Percebe-se, portanto, que a efetivação dos direitos civis e políticos, ao contrário
daquilo que é preconizado pela concepção liberal, geralmente vem acompanhada (ainda que de
forma invisível aos olhares menos atentos) da necessidade de significativos aportes dos recursos
públicos necessários a criar e manter as condições institucionais necessárias ao gozo desses
direitos pelos particulares.
Como se não bastasse, os direitos sociais também não se limitam a originar
obrigações positivas, haja vista que tutela desses direitos impõe inúmeros deveres de abstenção
(obrigações negativas) para o Estado.
À guisa de exemplo, perceba-se que o direito à saúde (art. 6º da CF/88) não envolve
apenas a necessidade de criação de manutenção de serviços públicos e o fornecimento gratuito
de medicamentos, mas também impõe ao Estado a obrigação de não praticar atos capazes de
causar danos à saúde das pessoas, como a contaminação das águas de um rio que abastece a
população (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 25).
Por sua vez, o direito à moradia (art. 6º da CF/88) não pode ser reduzido à
construção de habitações populares (ou o financiamento de casas em condições subsidiadas),
pois também impõe ao Estado obrigações não necessariamente onerosas, como, por exemplo,
a derrogação de preceitos discriminatórios nas leis urbanísticas e a proibição de despejos
arbitrários (PISARELLO, 2003, p. 29-30).
Note-se que as chamadas as prestações normativas (v. g., criação de um marco
regulatório que forneça segurança jurídica à fruição de determinado direito) e algumas
prestações fáticas (v.g., criação e manutenção de um banco de dados sobre os programas
públicos ou a criação de mecanismos de consulta e participação popular), relacionadas à
efetivação dos direitos sociais, não demandam elevados aportes financeiros, razão pela qual o
inadimplemento das mesmas não pode ser mascarado pela cláusula da reserva do possível
(PISARELLO, 2007, p. 61).
Em síntese, a doutrina clássica traça uma distinção estrutural entre os direitos civis
e políticos e os direitos sociais, que serve para justificar a gradação da carga eficacial desses
grupos de direitos. Todavia, a referida distinção é equivocada, na medida em que ambas as
espécies de direitos comportam obrigações negativas e positivas. Os direitos civis e políticos
devem ser compreendidos como um complexo de obrigações (negativas e positivas) estatais,
compreendendo tanto a obrigação de abstenção em relação a determinados comportamentos
como a obrigação de criar e manter as condições institucionais necessárias para que a autonomia
do indivíduo não seja turbada por terceiros, da mesma forma que a estrutura dos direitos sociais
34
também abarca um complexo de obrigações positivas e negativas por parte do Estado
(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 24).
Na realidade, o que existe é uma diferença de grau (e não de substância) entre os
direitos civis e políticos e os direitos sociais, que se relaciona com a relevância que as prestações
têm para um ou outro grupo de direitos (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 25).
Dessa forma, é possível afirmar que não existem “direitos gratuitos” e “direitos
caros” (CARBONELL e MAC-GREGOR, 2014, p. 29), pois todos os direitos têm um custo e
necessitam de uma estrutura estatal que, ao menos, os proteja das possíveis violações
perpetradas por outras pessoas (HOLMES e SUNSTEIN, 2000, p. 43-48).
Mas se é assim, por que parte significativa da doutrina esquece (ou faz vista grossa)
para o conteúdo positivo (prestacional) dos direitos civis e políticos? A resposta a esta
indagação nos é dada por Víctor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 24), quando pontuam
que a coincidência histórica entre a racionalização dos direitos civis e políticos e a formulação
da definição do Estado Liberal Moderno tende a ‘naturalizar’ uma vasta gama de obrigações
positivas estatais e a pôr ênfase apenas nos limites de sua atuação.
A distinção estrutural entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais, com o
propósito de promover o esvaziamento normativo destes, somente se justifica a partir da adoção
do paradigma do Estado Mínimo, responsável unicamente pela manutenção ordem pública
interna e pela defesa exterior (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 23), o qual não se
compatibiliza com as balizas institucionais traçadas pela Constituição Federal de 1988, que
edificou um Estado Democrático de Direito em cujos fundamentos se encontra a dignidade da
pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CF/88) e que tem como objetivos fundamentais
construir uma sociedade livre, justa e solidária, por meio da erradicação da pobreza e da
marginalização e da redução das desigualdades sociais (artigo 3º, incisos I e III da CF/88).
Aderimos, portanto, à conclusão de Gerardo Pisarello (2007, p. 61), para quem “o
que está em jogo, portanto, não é como assegurar os direitos mais caros, mas decidir como e
com que prioridades se distribuem os recursos que a satisfação de todos os direitos exige”.
Essa percepção é importante para afastar (ou ao menos relativizar) a consagrada
tese das diferenças estruturais entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais e abre
caminho para o desenvolvimento dos princípios da indivisibilidade e interdependência dos
direitos (CARBONELL e MAC-GREGOR, 2014, p. 65), insculpidos na Declaração e Programa
de Ação adotado pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada na cidade de
Viena em Junho de 1993, cujo item 5 preconiza os Estados Humanos são universais,
indivisíveis, interdependentes e interrelacionados, cabendo aos Estados, independentemente de
35
seus sistemas políticos, econômicos e culturais (respeitadas as peculiaridades nacionais e
regionais) promover todos os direitos humanos “no mesmo pé e com igual ênfase”.
2.1.2 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos vagos e indeterminados
A tese que procura explicar as dificuldades de proteção dos direitos sociais a partir
de uma visão monocular hiperbólica (que enxerga a dimensão prestacional desses direitos como
uma suposta diferença estrutural entre o mencionado grupo de direitos e os direitos civis e
políticos sem atentar para o fato de que a estrutura destes direitos também abarca uma
significativa dimensão prestacional e onerosa, camuflada pela coincidência histórica entre a
racionalização dos direitos civis e políticos e o surgimento do Estado Liberal Moderno),
costuma ser reforçada pela invocação da baixa densidade normativa dos direitos sociais,
relacionada à forma de sua proclamação no texto constitucional.
A doutrina tradicional enfatiza que os direitos sociais, embora estabeleçam
obrigações de resultado, não especificam os meios pelos quais as mesmas devem ser satisfeitas
(nem as circunstâncias em que as referidas obrigações estariam sendo descumpridas), ao
contrário do que ocorre com os direitos civis e políticos, que além de estipularem os objetivos
a serem perseguidos, também proscreveriam os comportamentos que ensejam a sua violação
(PISARELLO, 2007, p. 67).
No entanto, é preciso ter em mente que um certo grau de vagueza e indeterminação
é inerente à linguagem (tanto a jurídica quanto a cotidiana) e que, no caso específico de direitos
consagrados em tratados internacionais e Constituições, essa forma de proclamação tem o
objetivo de respeitar o pluralismo político, evitando que uma descrição excessivamente
detalhada viesse impedir a criação e/ou desenvolvimento de espaço de discussão democrática
acerca do sentido e alcance da matéria (PISARELLO, 2007, p. 67).
A bem da verdade, o argumento da indeterminação do conteúdo específico dos
direitos sociais é bastante atrativo, todavia inúmeros direitos civis e políticos são marcados por
uma significativa abertura semântica e isso não costuma ser manejado como uma espécie de
limite insuperável para a aplicabilidade dos mesmos.
Tome-se, por exemplo, a inviolabilidade da “honra” (art. 5º, inciso X, da CF/88). A
compreensão do conteúdo desse direito fundamental (e, por conseguinte, das diversas formas
de violação do mesmo) depende da análise do contexto social e cultural em que o seu titular
está inserido. O mesmo se pode dizer a respeito da inviolabilidade do “domicílio” (art. 5º, inciso
XI, da CF/88) que demandou uma exaustiva reflexão doutrinária e jurisprudencial acerca de
36
seu sentido e alcance do termo “casa” (até que fosse alcançada, por exemplo, a definição de que
um quarto de hotel habitado está amparado pelo direito fundamental em questão).
Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 288) defende uma atuação proativa do Poder
Judiciário em relação à interpretação dos conceitos vagos e indeterminados dos direitos civis e
políticos, argumentando que, por se tratarem de direitos de defesa1, devem prevalecer a
presunção de aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88) e o postulado otimizador da
máxima eficácia possível (conforme será analisado no item 2.2.4). Dessa forma, os juízes e
tribunais devem (e não apenas podem) aplicar as respectivas normas ao caso concreto, mediante
a realização da operação hermenêutica necessária a viabilizar o pleno exercício desses direitos.
O mencionado autor frisa que o raciocínio descrito no parágrafo anterior é aplicável
à parcela dos direitos sociais em que prevalece a função essencialmente defensiva
(denominados direitos sociais de defesa ou liberdades sociais), em que preponderam deveres
de abstenção (obrigações negativas) para os destinatários e não dependem, em regra, da
alocação de recursos para a sua concretização, a exemplo do que ocorre com o direito de greve,
embora saliente que sua posição ainda é plenamente aceita no âmbito do Supremo Tribunal
Federal (SARLET, 2015, p. 284).
No entanto, o próprio Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 282) salienta que a parcela
dos direitos sociais com função de natureza preponderantemente prestacional constitui um
problema específico, que enfrenta maiores dificuldades.
É nesse particular que a crítica desenvolvida por Gerardo Pisarello (2007, p. 68)
assume maior relevo, ao destacar que o fato da maior parte da atividade legislativa, jurisdicional
e doutrinária se dedicar à elucidação do alcance dos direitos civis e políticos, sem que o
correspondente empenho seja destinado à explicitação do alcance dos direitos sociais, não se
deve a alguma espécie de obscuridade insuperável na estrutura dos direitos sociais, mas sim a
uma opção deliberada, muitas vezes decorrente de prejuízos ideológicos, alimentados pela
1 Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 288) utiliza o critério da preponderância da função dos direitos fundamentais
para qualificar um conjunto de direitos (dentre os quais estão os direitos civis e políticos) como direitos de defesa
e outro conjunto de direitos (dentre os quais se encontram os direitos sociais) como direitos a prestações. Esse
critério está em harmonia com a noção que sustentamos nos parágrafos anteriores, segundo a qual não existe uma
diferença substancial entre a estrutura dos direitos civis e políticos e a estrutura dos direitos sociais. Afinal, chamar
atenção para a preponderância de determinada função (ou dimensão) é reconhecer que tanto os direitos de defesa
quanto os direitos a prestações são compostos por uma gama de obrigações (positivas e negativas) e que existe
apenas uma diferença de grau (relativa a preponderância de cada tipo de obrigação) entre os referidos grupos de
direitos.
37
doutrina tradicional que defende a existência de uma suposta diferença estrutural entre os
direitos civis e políticos e os direitos sociais.
Comungamos deste posicionamento e reduzida densidade normativa dos direitos
sociais, relacionada à forma de sua proclamação no texto constitucional, não é capaz de
justificar (do ponto de vista teórico) a reduzida carga eficacial dos direitos sociais no cenário
contemporâneo.
Na realidade, o cerne do problema extrapola o campo estritamente jurídico e reside
na esfera política, palco da eleição de prioridades na distribuição dos recursos disponíveis para
a efetivação dos direitos consagrados pela Constituição Federal. Afinal, diferentes concepções
sobre os direitos sociais podem arrimar diferentes prioridades na tomada de decisões políticas
sobre o emprego dos limitados recursos públicos (MICHELON JR., 2004, p. 7).
No entanto, se pretendemos trilhar um caminho rumo à progressiva satisfação dos
direitos sociais, não podemos perder de vista que a adoção de normas constitucionais
consagradoras de direitos sociais e a adesão a tratados internacionais sobre direitos econômicos,
sociais e culturais geram obrigações concretas para o Estado (ABRAMOVICH e COURTIS,
2002, p. 19). As obrigações inerentes à consagração dos direitos sociais pelo sistema jurídico
brasileiro precisam ser encaradas como matéria de Estado e não como questões de governo.
Atento a essa realidade (que não é exclusivamente brasileira), o Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas vem, há mais de uma década, emitindo
diversas Observações Gerais com o intuito de fornecer vetores interpretativos capazes afastar
eventuais dúvidas acerca do conteúdo dos direitos formulados no Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e das obrigações que o seu reconhecimento
impõe aos poderes públicos e aos particulares (PISARELLO, 2007, p. 69).
À guisa de exemplo, a Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais das Nações Unidas esmiúça o “direito ao gozo do mais elevado nível
possível de saúde (insculpido no art. 12 do PIDESC) e adota um modelo interpretativo baseado
em níveis de obrigações estatais.
Víctor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 31) esclarecem que o referido
esquema interpretativo (adotado em diversas Observações Gerais) é inspirado em autores como
Fried van Hoof, que discerne 4 (quatro) níveis de obrigações estatais: obrigações de respeitar,
obrigações de proteger, obrigações de garantir e obrigações de promover determinado direito,
com ressalva de que o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais convencionou
sintetizar esse complexo de obrigações estatais em apenas 3 (três) níveis: respeitar, proteger e
38
satisfazer (cumprir), englobando nesta última categoria as previamente citadas obrigações de
garantir e de promover.
Vejamos em que consiste cada uma dessas obrigações, a partir das lições de Víctor
Abramovich (2005, p. 194-195) e dos exemplos trazidos pela mencionada Observação Geral nº
14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas:
1. Respeitar: dever do estado de não interferir nem obstaculizar ou impedir o acesso ao
gozo dos bens que constituem objeto de determinado direito. Trata-se, portanto, de um
dever de abstenção (obrigação negativa). Ex.: o Estado viola sua obrigação de respeitar
o direito ao mais elevado nível de saúde possível (art. 12 do PIDESC) quando nega
acesso de pessoas a estabelecimentos, bens e serviços de saúde, bem como quando
oculta ou deliberadamente mascara informações importantes para a proteção (ou
tratamento) da saúde das pessoas etc.
2. Proteger: evitar que terceiros interfiram, obstaculizem ou impeçam o acesso aos bens
que constituem determinado direito (note-se que as obrigações de proteger são
correlatas às de respeitar, diferenciando-se apenas pelo fato de que o Estado não deve
simplesmente abster-se de praticar determinada conduta violadora do direito em
questão, pois necessita tomar as medidas necessárias para que terceiros não a
pratiquem). Ex.: o Estado viola sua obrigação de proteger o direito ao mais elevado
nível de saúde possível (art. 12 do PIDESC) quando deixa de promulgar (ou fazer
cumprir) as leis destinadas a impedir a contaminação da água, do ar e do solo pelas
indústrias extrativistas e manufatureiras ou quando deixa de proteger os consumidores
ou trabalhadores contra práticas prejudiciais à saúde empregadas por alguns produtores
de alimentos ou, ainda, quando deixa de regular a atividade de particulares, grupos ou
empresas com o objetivo de impedir que os mesmos violem o direito a saúde dos demais
membros da coletividade etc.
3. Garantir: assegurar que o titular do direito tenha efetivo acesso ao bem quando não
puder fazê-lo por si mesmo. Ex.: o Estado viola sua obrigação de garantir o direito ao
mais elevado nível de saúde possível (art. 12 do PIDESC) por meio de uma previsão
orçamentária inadequada, que impeça a prestação de serviços públicos de saúde ou o
fornecimento gratuito (ou a preços subsidiados) de medicamentos aos particulares,
mormente quando se tratarem de pessoas hipossuficientes.
4. Promover: dever de criar condições para que os titulares do direito tenham acesso ao
bem (note-se que aqui não existe a necessidade de assegurar o efetivo acesso ao bem,
39
mas apenas a de viabilizar as condições de acesso ao bem pelo titular). Ex.: o Estado
viola sua obrigação de garantir o direito ao mais elevado nível de saúde possível (art.
12 do PIDESC) quando deixa de enfocar a saúde a partir de uma perspectiva de gênero,
bem como ao deixar de envidar esforços com vistas à redução das taxas de mortalidade
infantil e materna etc.
Embora as diretrizes interpretativas contidas nas Observações Gerais do Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sejam desprovidas de um caráter obrigatório
(PISARELLO, 2007, p. 69), sua invocação pelos titulares dos direitos sociais pode contribuir
para a demonstração de que nem a relativa abertura semântica da formulação desses direitos
equivale à ininteligibilidade, nem a indeterminação de seu conteúdo constitui um limite
insuperável à efetivação desses direitos (PISARELLO, 2007, p. 67).
2.1.3 Crítica à tese de que os direitos sociais são direitos de dimensão estritamente coletiva
Outro argumento que costuma ser levantado pela doutrina tradicional para
naturalizar a reduzida carga eficacial dos direitos sociais consiste numa oposição entre a
dimensão coletiva dos direitos sociais (supostamente peculiar aos mesmos) e a dimensão
individual dos direitos civis e políticos.
Fernando Atria (2004, p. 18) apresenta essa noção, por meio da oposição entre a
visão liberal e de sociedade e o modelo socialista de comunidade. O mencionado autor
argumenta que os direitos constituem o núcleo do qual irradia a legitimidade da visão liberal (o
Estado é utilizado como instrumento para a satisfação dos direitos que existiam desde o “estado
de natureza”) e pondera que essa perspectiva não é compatível com o modelo socialista de
comunidade, que se baseia na ideia de solidariedade, que consiste em “estender a mão a outra
pessoa”, porquanto esta não é compatível com a ideia de um conflito regido pelo princípio do
“ganhar ou perder” característico da visão individualista de matriz liberal.
Note-se que as objeções apresentadas por Fernando Atria (2004) contra a
possibilidade de tradução dos direitos sociais (dotados, segundo ele, de uma visão estritamente
coletiva) para a linguagem dos direitos subjetivos correspondem ao elemento central da crítica
comunitarista à visão liberal, segundo a qual a invocação de direitos subjetivos, como
verdadeiras “armas de defesa” apresentadas no cenário de um conflito regido pelo princípio do
“ganhar ou perder” nos remete a uma concepção hobbesiana da pessoa, associada à ideia de
indivíduos essencialmente competitivos, que não têm vínculos sociais específicos entre si, cuja
40
identidade é independente da dos demais e que não tem deveres positivos de ajudar aos demais,
incompatível com um modelo de comunidade lastreado pelo princípio da solidariedade
(PARCERO, 2004, p. 95).
Fernando Atria (2004, p. 24) critica a noção de direito subjetivo ao afirmar que ela
permite recortar a situação de duas pessoas (“credor e devedor”) e separá-las do resto das
considerações morais válidas:
(...) Quero defender a tese de que ter direito (moral) a “x” significa que, em princípio,
é possível pronunciar-se sobre a justiça de dar, fazer ou não fazer “x” a “w”, sem a
necessidade de avaliar o impacto que dar, fazer ou não fazer “x” a “w” terá em relação
ao cumprimento de outras questões moralmente valiosas. Se isso é correto, a noção
de “direitos”, em algum sentido, significa recortar a situação de duas pessoas, o credor
e o devedor, e separá-la do resto das considerações morais válidas, de modo que seja
possível determinar a justiça da ação do credor sem ter que levar em consideração
mais do que a relação existente entre devedor e credor, porque o que importante é a
maneira como (dentro de certos limites) o interesse do credor será satisfeito pelo
devedor. Por isso, é perfeitamente concebível que um tenha direito moral a fazer algo
moralmente lamentável.
Com esse raciocínio, o mencionado autor introduz a noção de que os direitos sociais
se caracterizam por uma dimensão coletiva, que os diferencia dos direitos civis e políticos.
Valendo-se do exemplo das demandas intentadas por particulares visando a
efetivação do seu direito à saúde, Fernando Atria (2004, p. 45-46) procura demonstrar que os
direitos sociais não podem ser traduzidos para a linguagem dos direitos subjetivos sem se
descaracterizarem:
(...) o direito social à proteção da saúde, que originalmente consistia na garantia de
um nível de atenção à saúde de todos (porque uma comunidade na qual nos
preocupamos com os outros é uma comunidade mais decente que outra na qual cada
um persegue seu bem-estar individual), se converte em um direito individual alegado
pelo demandante para que se obrigue o Estado a determinada prestação de saúde, sem
que as necessidades dos outros possam ser relevantes (as necessidades dos outros
aparecem para os juízes como não distribuídas, ou seja, como objetos de políticas ou
aspirações comunitárias e, por isso, os direitos triunfam sobre as mesmas). O que
chega ao tribunal não é um direito social, não pode ser um direito social, senão uma
demanda privada, que expressa não mais a ideia de uma forma superior de
comunidade, mas a negação desta: a pretensão do demandante de que seu interesse
seja atendido, mesmo que às custas do interesse dos demais.
No entanto, Gerardo Pisarello (2007, p. 72) rechaça esse posicionamento ao afirmar
que tanto os direitos sociais quanto os direitos civis e políticos protegem bens jurídicos que
possuem dimensões individualizadas e coletivas:
(...) A saúde, a educação, o entorno habitacional ou ambiental, por exemplo, são bens
cuja afetação pode produzir danos individuais ou coletivos, cuja reparação, por
conseguinte, pode exigir intervenções pontuais, dirigidas a dar resposta às vulnerações
41
do direito de uma pessoa, como intervenções mais complexas dirigidas a resolver a
situação de grupos de afetados mais amplos.
Algo similar ocorre, sem embargo, com a liberdade de expressão, com a liberdade
ideológica, ou com o direito de associação. Contra o que sugere certa mitologia liberal,
nenhum desses direitos pode conceber-se em termos exclusivamente individuais,
como se fossem exercidos fora da sociedade ou com independência da existência de
outros sujeitos. Todos eles, como quase todos os direitos, encerram na realidade
liberdades de expressar-se e de associar-se eventualmente contra outros mas também
com outros. Assim, quando são vulnerados, o que está em jogo não é apenas a
liberdade de expressão, ideológica ou de associação de uma pessoa concreta, senão
também a qualidade e o caráter plural e informado da esfera pública em seu conjunto.
De fato, a tutela da dimensão individualizada de um direito social não implica, via
de regra, a anulação da dimensão coletiva do direito em questão. Nesse sentido, eventual
alegação de sacrifício da dimensão coletiva deve ser especificamente demonstrada em termos
concretos e analisada à luz do princípio da proporcionalidade.
Para além das dificuldades teóricas de se objetar a satisfação da dimensão individual
de um direito social por meio da alegação genérica de que se trata de um direito de dimensão
coletiva, Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2009, p. 22) salientam que
existe uma tendência crescente da doutrina e da jurisprudência brasileiras no sentido da
afirmação da exigibilidade judicial de posições subjetivas ligadas à tutela de condições
materiais mínimas para uma vida com certa qualidade.
Reinaldo de Lima Lopes (1994, p. 136), valendo-se da experiência brasileira no
âmbito da seguridade social, chega a afirmar, inclusive, que a atuação do Poder Judiciário, no
âmbito de sucessivas demandas individuais, tem significativo impacto na ampliação da
abrangência da dimensão coletiva dos direitos sociais, por meio do afastamento de critérios
discriminatórios ou da fixação de parâmetros a serem considerados para a análise do
preenchimento dos requisitos necessários à obtenção de determinada prestação estatal.
No mesmo sentido, Victor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 43-44)
destacam que “as numerosas decisões judiciais individuais podem constituir um sinal de alerta
para os poderes públicos acerca de uma situação de descumprimento generalizado de
obrigações relevantes no âmbito de políticas públicas”.
Nesse sentido, percebe-se que as dimensões individual e coletiva dos direitos
sociais são complementares (e não excludentes), ao contrário dos argumentos alinhavados pela
doutrina tradicional, de modo que a tese genérica da prevalência da dimensão coletiva sobre a
individual não pode prosperar (quando desprovida de elementos concretos), cabendo aos
poderes públicos demonstrar em que medida determinada pretensão individual coloca em
perigo a satisfação da dimensão coletiva do direito social em questão, para que a questão seja
analisada à luz do princípio da proporcionalidade.
42
2.2 Os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a República Federativa do Brasil
constitui um Estado Democrático de Direito, que tem entre seus fundamentos a cidadania e a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III, da CF/88) e entre cujos objetivos
fundamentais está a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, mediante a erradicação
da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incisos I e III, da CF/88).
Para a consecução dessa importante missão, o Constituinte consagrou os direitos
sociais, que traduzem para a linguagem jurídica um conjunto de expectativas ligadas à
satisfação das necessidades básicas das pessoas em relação a diversos aspectos da vida em
sociedade (alimentação, moradia, saúde, educação etc.), como autênticos direitos fundamentais.
Como se não bastasse, a Emenda Constitucional nº 45/2004 assegurou aos tratados
internacionais sobre direitos humanos (dentre os quais se encontram os diplomas normativos
que tratam dos denominados Direitos Sociais, Econômicos e Culturais) uma posição
hierárquica privilegiada dentro da pirâmide normativa sobre a qual se estrutura o Ordenamento
Jurídico brasileiro. Com efeito, a vasta gama de direitos socais consagrados pela Constituição
Federal de 1988 é reforçada pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e
pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), dentre outros diplomas
internacionais ratificados pelo Brasil em matéria de direitos sociais, econômicos e culturais.
Outro aspecto digno de nota é o fato de que a Constituição Federal de 1988 atribuiu
uma juridicidade reforçada (GOTTI, 2012, p. 54) às normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais, ao estabelecer que as mesmas têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88).
A essas características, soma-se a condição de “cláusula pétrea” (núcleo inviolável
da Constituição, que não pode ter seu alcance suprimido, nem mesmo reduzido, por meio de
Emenda Constitucional) atribuída aos direitos e garantias fundamentais por meio do art. 60, §
4º, inciso IV, da CF/88, como forma de preservar o conjunto de decisões fundamentais tomadas
pelo Constituinte para a edificação do modelo Estado Democrático (e Social) de Direito
introduzido pela Constituição Federal de 1988.
Essa é a base do regime jurídico constitucional peculiar dos direitos fundamentais
(gênero), que será objeto de uma análise mais detalhada nos tópicos seguintes e servirá de
parâmetro para uma crítica acerca da percepção (ainda) dominante dos direitos sociais
43
(espécie), utilizada para justificar a reduzida efetividade desses direitos (comparada aos
denominados direitos civis e políticos).
2.2.1 A dignidade da pessoa humana como elo entre a Proteção Internacional dos Direitos
Humanos e a Defesa dos Direitos Fundamentais pelo Estado brasileiro
O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) proclama
que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidades e direitos”, consagrando a dignidade
da pessoa humana como valor fundamental na proteção internacional dos direitos humanos,
numa evidente reação ao holocausto e demais atrocidades perpetradas durante a 2ª Guerra
Mundial.
Em virtude das noções de universalidade e inerência dos direitos humanos,
introduzida pelo valor da dignidade da pessoa humana, os indivíduos deixaram de ser meros
objetos da compaixão internacional e passaram a constituírem-se como verdadeiros sujeitos do
direito internacional.
Essa mudança de paradigmas coincide com a crise do positivismo jurídico,
alimentada pela derrota do fascismo (Itália) e do nazismo (Alemanha), que haviam perpetrado
verdadeiras barbáries sob o falso manto de uma estrita legalidade (PIOVESAN, 2015, p. 94).
Esse contexto de reconstrução dos direitos humanos no Pós-Guerra abriu caminho
para uma nova feição do Direito Constitucional ocidental, na qual as Constituições europeias
do Pós-Guerra, em aversão às atrocidades constatadas durante a 2ª Guerra Mundial, abriram-se
aos princípios e assumiram, por conseguinte, uma elevada carga axiológica, com ênfase para o
valor da dignidade humana (PIOVESAN, 2015, p. 216).
Registre-se que a Constituição Federal de 1988 – marco jurídico da superação do
regime autoritário (instalado no Brasil a partir do Golpe de 1964) e da consequente restauração
da democracia e do Estado de Direito em nosso país – alinhou-se à cultura jurídica internacional
do pós-guerra e atribuiu ao princípio da dignidade da pessoa humana um importante papel
interpretativo e unificador dos direitos fundamentais, ao consagrá-lo como fundamento da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da CF/88).
Ela foi a primeira na história do constitucionalismo brasileiro a reservar um título
próprio para os princípios fundamentais, cuidadosamente posicionado pelo constituinte na parte
inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais, de modo a revelar
a importância dos mesmos para a estruturação do Estado Democrático (e Social) de Direito nela
consagrado (SARLET, 2015, p. 97).
44
Cláudia Carvalho Queiroz (2013, p. 47) sintetiza o que foi visto até o presente
momento, ao afirmar, com base nas lições de Flávia Piovesan, que o princípio dignidade da
pessoa humana constitui o núcleo básico informador de todo o ordenamento jurídico brasileiro
e que o mesmo, aliado aos direitos fundamentais, serve de suporte ético e axiológico para o
nosso sistema constitucional como um todo, conferindo-lhe unidade de sentido e legitimidade.
No mesmo sentido, Antônio-Enrique Pérez Luño (1995, p. 118) acentua que a
dignidade da pessoa humana não se restringe à garantia negativa de que o indivíduo não será
objeto de ofensas ou humilhações, pois é dotada de um importante sentido positivo, que se
refere à criação das condições necessárias para que cada indivíduo tenha a real possibilidade de
desenvolver suas potencialidades.
Em suma, a partir do momento em que a dignidade da pessoa humana foi
consagrada na condição de princípio constitucional estruturante e fundamento do Estado
Democrático de Direito, o Estado brasileiro assumiu a permanente missão de servir de
instrumento para a garantia e promoção da dignidade das pessoas (individual e coletivamente
consideradas) no âmbito de seu território (SARLET, 2015, p. 99).
Com efeito, observa-se uma estreita afinidade axiológica e normativa entre o direito
internacional contemporâneo (que, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
erigiu a dignidade da pessoa humana ao ápice da estrutura normativa de proteção internacional
dos direitos humanos) e o direito interno (que elegeu a dignidade da pessoa humana como
verdadeiro parâmetro de legitimidade do Ordenamento Jurídico brasileiro).
2.2.2 A hierarquia privilegiada dos Tratados Internacionais sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais no Ordenamento Jurídico brasileiro
Um dos grandes avanços do constitucionalismo social contemporâneo consiste na
tendência de atribuição de força vinculante às normas internacionais sobre direitos humanos,
por meio do reconhecimento de sua hierarquia privilegiada (supralegal ou equiparada a normas
constitucionais) dentro do ordenamento jurídico estatal.
O Brasil aderiu a essa tendência por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004,
que promoveu a inclusão do § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e consagrou que
“os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
45
A mencionada reforma constitucional trouxe consigo a semente para uma
significativa transformação da posição hierárquico-normativa atribuída aos tratados
internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil e contribuiu para que o Supremo
Tribunal Federal abandonasse o entendimento segundo o qual os tratados internacionais
celebrados pelo Brasil (independentemente da matéria neles tratada) gozavam do status de
norma infraconstitucional, guardando uma situação de paridade normativa com as leis
ordinárias (que possibilitava sua posterior revogação, total ou parcial, por uma lei posterior).
Mas os contornos da atual posição hierárquico-normativa atribuída aos Tratados
Internacionais pelo Ordenamento Jurídico brasileiro só vieram a ser definidos em 03/12/2008,
quando o Supremo Tribunal Federal julgou os Recursos Extraordinários 349.703 e 466.343
(que versavam prisão civil do depositário infiel, prevista na parte final do inciso LXVII do
artigo 5º da Constituição Federal de 1988).
Naquela oportunidade, restou consagrada a tese de que os tratados internacionais
sobre direitos humanos (diferentemente do que ocorre com os tratados internacionais que
versam sobre matéria diversa) possuem uma hierarquia diferenciada no Ordenamento Jurídico
brasileiro, de modo que, quando não atenderem aos requisitos previstos no art. 5º, § 3º da CF/88
(que lhes concederiam o status de norma constitucional), serão dotados de caráter supralegal,
de modo que sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de
ratificação previsto na Constituição, terá o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e
qualquer disciplina normativa infraconstitucional (anterior ou posterior) com ela conflitante.
É o que se percebe no seguinte trecho do Voto proferido pelo Ministro Relator
Gilmar Mendes, Relator do supramencionado Recurso Extraordinário nº 466.343:
(...) diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da
proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no
ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na
Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer
disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. (...)
Para que não reste qualquer dúvida, observe-se o seguinte trecho do Voto proferido
pelo Ministro Relator Luiz Fux, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240:
(...) Esse caráter supralegal do tratado devidamente ratificado e internalizado na
ordem jurídica brasileira - porém não submetido ao processo legislativo estipulado
pelo artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal - foi reafirmado pela edição da Súmula
Vinculante 25, segundo a qual 'é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer
que seja a modalidade do depósito'. Tal verbete sumular consolidou o entendimento
deste tribunal de que o artigo 7º, item 7, da Convenção Americana de Direitos
Humanos teria ingressado no sistema jurídico nacional com status supralegal, inferior
à Constituição Federal, mas superior à legislação interna, a qual não mais produziria
qualquer efeito naquilo que conflitasse com a sua disposição de vedar a prisão civil
46
do depositário infiel. Tratados e convenções internacionais com conteúdo de direitos
humanos, uma vez ratificados e internalizados, ao mesmo passo em que criam
diretamente direitos para os indivíduos, operam a supressão de efeitos de outros atos
estatais infraconstitucionais que se contrapõem à sua plena efetivação. (...)
Essa reformulação da posição hierárquico-normativa ocupada pelos tratados
internacionais sobre direitos humanos no Ordenamento Jurídico brasileiro é “sintomática de
uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central” (TRINDADE,
1997, p. 409).
Nesse sentido, embora os acórdãos que serviram de paradigma para a construção
dessa nova orientação jurisprudencial acerca da estrutura hierárquico-normativa dos Tratados
Internacionais sobre Direitos Humanos tenham se referido a impossibilidade da prisão civil do
depositário infiel (questão tipicamente associada aos direitos civis e políticos), o raciocínio
empregado pelo Supremo Tribunal Federal acabou alargando as perspectivas de efetivação dos
direitos sociais na sociedade brasileira contemporânea. Afinal, o Brasil ratificou o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992) e a Convenção Americana
referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1996).
Garantir os direitos humanos é, frequentemente, tornar acessíveis os direitos sociais
a grupos humanos que habitualmente não teriam acesso efetivo aos mesmos, abrindo caminho
para uma cidadania verdadeiramente democrática (não excludente) e participativa. Mas, para
colocar em prática essa pretensão de transformação social é preciso desenvolver a capacidade
de idealizar novos conteúdos e técnicas que permitam recapacitar os direitos sociais e suas
garantias (SCHWARZ, 2011, p. 12), de modo permitir a superação da percepção atualmente
dominante acerca dos direitos sociais, responsável pela naturalização da reduzida efetividade
desses direitos no ordenamento jurídico brasileiro.
O ponto de partida para a construção de um estatuto jurídico diferenciado, que
reforce a tutela dos direitos sociais, reside na compreensão de que a adesão a tratados
internacionais sobre direitos econômicos, sociais e culturais geram obrigações concretas para o
Estado Brasileiro (ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 19).
2.2.3 A intangibilidade dos direitos e garantias fundamentais (limites materiais à reforma
constitucional – art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88)
Antes de encerrar a análise do estatuto jurídico dos direitos fundamentais e adentrar,
especificamente, no estudo dos direitos sociais (afunilando os estudos rumo ao direito à saúde),
é necessário tecer breves considerações acerca do art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88, segundo o
47
qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir “os direitos e
garantias individuais”.
A referida norma guindou os direitos fundamentais (ou, ao menos, parte deles, para
os que defendem uma interpretação restritiva do dispositivo em questão) à condição de limite
material expresso ao poder de reforma constitucional, convertendo-lhes em verdadeiras
cláusulas pétreas, que representam o núcleo inviolável da ordem constitucional brasileira
(SARLET, 2015, p. 440).
No entanto, Paulo Bonavides (2001, p. 589) destaca que a redação do mencionado
dispositivo abre margem para dúvida acerca de seu alcance: por um lado, os adeptos de uma
interpretação literal, poderiam pretender restringir a proteção do mencionado dispositivo
unicamente aos ‘direitos e garantias individuais’, que corresponderiam aos direitos
fundamentais de matriz liberal-burguesa; por outro lado, partindo de uma interpretação
sistemática dos dispositivos constitucionais, é possível defender que o mencionado dispositivo
abarca toda a categoria dos direitos e garantias fundamentais, na qual, como se sabe, estão
inseridos os direitos sociais.
Impõe-se, dessa forma, uma análise da abrangência da proteção especial resultante
do art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88, de modo a expurgar eventual dúvida acerca da inclusão
dos direitos sociais entre as “cláusulas pétreas” da Constituição Federal de 1988.
Aderindo à interpretação literal (e restritiva) do mencionado dispositivo, Otávio
Bueno Magano (1994, p. 110-111) optou por excluir os direitos sociais das cláusulas pétreas,
sob o argumento de, se o Constituinte desejasse tê-los incluídos nesta categoria, bastaria ter
feito uma menção genérica aos direitos fundamentais ou incluir a expressão “direitos sociais”
ao lado dos “direitos e garantias individuais”.
No entanto, a expressão “direitos e garantias individuais” não foi reproduzida em
nenhum outro dispositivo constitucional, razão pela qual não pode ser confundida, nem mesmo
numa interpretação literal, com os “direitos e deveres individuais e coletivos” insculpidos no
art. 5º da CF/88 (LOPES, 1993, p. 182).
Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 440) pondera que se fôssemos aderir à exegese de
cunho estritamente literal, haveríamos de concluir que não apenas os direitos sociais (art. 6º ao
11 da CF/88), mas também os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13 da CF/88) e os direitos
políticos (arts. 14 a 17 da CF/88) estariam excluídos da proteção outorgada pelo dispositivo
constitucional em questão. Com muita propriedade, o mencionado autor vai mais além e afirma
que, por uma questão de coerência, se adotássemos uma concepção restritiva para a expressão
48
“direitos e garantias individuais” seríamos obrigados a defender que nem mesmo os direitos
coletivos constantes no art. 5º da CF/88 poderiam ser qualificados como cláusulas pétreas.
Embora concordemos com a observação de Ingo Wolfgang Sarlet, quando afirma
nem todos os direitos constantes no artigo 5º poderiam ser alcançados por uma interpretação
literal (de índole restritiva) do art. 61, § 4º, inciso IV, da CF/88, divergimos do referido autor
na parte em que o mesmo sustenta que os direitos à nacionalidade e os direitos políticos
restariam excluídos da proteção das cláusulas pétreas por meio de uma interpretação literal do
dispositivo em questão2.
Em que pese a discussão instalada em torno da matéria, a hermenêutica dos direitos
fundamentais deve levar em conta os postulados do Estado Social e Democrático de Direito
consagrado pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a que observância dos princípios
fundamentais da República Federativa do Brasil conduz à inevitável inconstitucionalidade de
qualquer inteligência restritiva da locução jurídica “direitos e garantias individuais” que venha
a servir de esteio para a exclusão dos direitos sociais do conjunto das cláusulas pétreas
(BONAVIDES, 2001, p. 597).
Com base nos argumentos sinteticamente reproduzidos nos parágrafos anteriores,
entendemos que a “proteção reforçada peculiar aos direitos fundamentais” (GOTTI, 2012, p.
71) é extensível aos direitos sociais, tendo em vista que os mesmos integram a identidade
constitucional, formada pelas decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte (SARLET,
2015, p. 444) do modelo de Estado Democrático (e Social) de Direito introduzido pela
Constituição Federal de 1988.
2.2.4 A juridicidade reforçada das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
(art. 5º, § 1º, da CF/88)
A Constituição Federal de 1988 atribuiu uma juridicidade reforçada (GOTTI, 2012,
p. 54) às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, ao estabelecer que as
mesmas têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88).
A doutrina e a jurisprudência comungam o entendimento de que, embora situada
no capítulo destinado aos direitos e deveres individuais e coletivos, a norma constante no art.
2 Entendemos que (ressalvados alguns direitos de índole coletiva) os direitos de nacionalidade e os direitos
políticos podem ser considerados direitos e garantias “individuais”. No entanto, optamos por não aprofundar essa
discussão, porquanto ela não interessa ao regime jurídico específico dos direitos sociais, que será analisado no
próximo capítulo.
49
5º, § 1º, da CF/88 aplica-se a todos os direitos fundamentais (categoria na qual estão inseridos
não apenas os direitos e deveres individuais, mas também os direitos sociais, os direitos de
nacionalidade, os direitos políticos e as normas relativas à criação, fusão, incorporação e
extinção de partidos políticos).
Isso resulta não apenas de uma interpretação literal do dispositivo (que utiliza a
expressão “direitos fundamentais” e não “direitos e deveres individuais e coletivos”), mas
também de uma interpretação sistemática e teleológica, tendo em vista que, se restringíssemos
o alcance do 5º, § 1º, da CF/88 apenas ao capítulo destinado aos direitos e deveres individuais
e coletivos, estaríamos suprimindo a juridicidade reforçada não apenas dos direitos sociais, mas
também dos direitos de nacionalidade, dos direitos políticos e das normas relativas à criação,
fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, o que, não se coaduna com o posição
privilegiada ocupada pelos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro (SARLET,
2015, p. 270-271).
Ocorre que, apesar do consenso doutrinário e jurisprudencial acerca da abrangência
do dispositivo constitucional segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais (genericamente considerados) têm aplicação imediata, existe uma discussão
acerca do real significado da norma insculpida no art. 5º, § 1º, da CF/88 em relação às diversas
espécies de direitos fundamentais (SARLET, 2015, p. 271).
Em cuidadosa síntese das correntes doutrinárias em jogo, Alessandra Gotti (2012,
p. 66-67), afirma que as concepções acerca do significado do princípio da aplicabilidade
imediata oscilam entre:
a) posições extremamente tímidas, que sustentam que o dispositivo em comento não
pode atentar contra a natureza das coisas, de modo que boa parte dos direitos
fundamentais apenas alcança sua eficácia nos termos e na medida da lei (Manuel
Gonçalves Ferreira Filho);
b) posições intermediárias, que advogam que os direitos fundamentais são, em
princípio (na medida do possível), diretamente aplicáveis, excetuadas duas
hipóteses:
a. quando a Constituição expressamente remete a concretização do direito
fundamental ao legislador, estabelecendo que o direito somente será
exercido na forma prevista em lei;
b. quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos mínimos
indispensáveis que lhe possam assegurar a aplicabilidade, no sentido de que
não possui a normatividade suficiente à geração de seus efeitos principais
sem que seja necessária a assunção, pelo Judiciário, da posição reservada
ao legislador (Celso Bastos);
c) posições mais otimistas, que defendem a tese de inexistência, em nossa
Constituição, de normas programáticas, na medida em que, além da norma
que consagrou a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, o
Constituinte cuidou para que fossem criados instrumentos processuais
aptos a combater também a omissão por parte do legislador e dos demais
órgãos estatais, nomeadamente o mandado de injunção (art. 5º, LVVI, da
50
CF) – ele mesmo constituindo um autêntico direito-garantia fundamental –
e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, da CF).
Não podemos perder de vista que o art. 5º, § 1º, da CF/88 tem o evidente propósito
de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, razão
pela qual nos afastamos da primeira corrente doutrinária acima descrita.
Em contrapartida, devemos estar atentos à lição de André Ramos Tavares (2008, p.
44), quando adverte que “não há como pretender a aplicação imediata, irrestrita, em sua
integralidade, de direitos não definidos de maneira adequada, cuja própria hipótese de
incidência ou estrutura fica claramente a depender de integração por meio de lei”.
Nesse sentido, comungamos com o entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet (2015,
p. 278), quando sustenta que o art. 5º, § 1º, da CF/88 deve ser compreendido como um mandado
de otimização (ou de maximização), que impõem aos entes públicos a tarefa de reconhecer a
maior eficácia possível aos direitos fundamentais. Afinal, embora o princípio da aplicabilidade
de imediata não possa ser empregado a partir a lógica do “tudo ou nada” (pois a carga eficacial
de cada direito fundamental depende do caso concreto), o art. 5º, § 1º, da CF/88 tem o mérito
de estabelecer uma presunção em favor da aplicabilidade das normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais, de modo que eventual recusa de sua aplicação, baseada na ausência de
ato concretizador, deve ser, necessariamente, fundamentada e justificada (SARLET, 2015, p.
279).
Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 280):
Se, portanto, todas as normas constitucionais sempre são dotadas de um mínimo de
eficácia, no caso dos direitos fundamentais, à luz do significado outorgado ao art. 5º,
§ 1º, de nossa Lei Fundamental, pode afirmar-se que aos poderes públicos incumbe a
tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a
maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados
relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar a
circunstância de que a presunção de aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita
em favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua
fundamentalidade formal no âmbito da Constituição. Assim, para além da
aplicabilidade e eficácia imediata de toda a Constituição, na condição de ordem
jurídico-normativa, percebe-se – na esteira de García de Enterría – que o art. 5º, § 1º,
de nossa Lei Fundamental constitui, na verdade, um plus agregado às normas
definidoras dos direitos fundamentais, que tem por finalidade justamente a de ressaltar
sua aplicabilidade imediata, independentemente de qualquer medida concretizadora.
Poderá afirmar-se, portanto, que – no âmbito de uma força jurídica reforçada ao nível
da Constituição – os direitos fundamentais possuem, relativamente às demais normas
constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia, o que, por outro lado (consoante já
assinalado), não significa que mesmo dentre os direitos fundamentais não possam
existir distinções no que concerne à graduação desta aplicabilidade e eficácia,
dependendo da forma de positivação, do objeto e da função que cada preceito
desempenha. Negar-se aos direitos fundamentais esta condição privilegiada
significaria, em última análise, negar-lhes a própria fundamentalidade. Não por outro
motivo – isto é, pela sua especial relevância na Constituição – já se afirmou que, em
51
certo sentido, os direitos fundamentais (e a estes poderíamos acrescentar os princípios
fundamentais) governam a ordem constitucional.
Diante de tudo que foi exposto até o presente momento, não resta dúvida de que os
direitos fundamentais (juntamente com os princípios fundamentais) ocupam uma posição
privilegiada dentro da estrutura normativa traçada pela Constituição Federal.
Nesse contexto, o art. 5º, § 1º, da CF/88 deve ser compreendido como um mandado
de otimização, que abrange toda a categoria dos direitos fundamentais e lhe confere uma
juridicidade reforçada, mas que não impede a existência de uma graduação na carga eficacial
dos diversos preceitos distribuídos entre os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, da
CF/88), os direitos sociais (art. 6º ao 11, da CF/88), os direitos de nacionalidade (art. 12 e 13
da CF/88), os direitos políticos (art. 14 a 16 da CF/88), as normas relativas à criação,
incorporação e extinção de partidos políticos (art. 17 da CF/88) e os demais dispositivos que
melhor detalham o conteúdo dos mencionados direitos, espalhados ao longo do texto
constitucional.
2.3 O Regime Jurídico específico dos Direitos Sociais
No modelo de Estado Democrático (e Social) de Direito introduzido pela
Constituição de 1988, os direitos sociais estão investidos da missão de criar as condições
jurídicas necessárias para a melhoria das condições de vida das pessoas hipossuficientes, de
modo a assegurar uma convivência pacífica, livre, digna e igualitária entre as pessoas.
Tratam-se de direitos exercidos por meio do Estado, que deve colocar em marcha
as medidas necessárias (edição de leis e atos administrativos, bem como a criação e manutenção
de serviços públicos) que facultem o efetivo gozo desses direitos constitucionalmente
protegidos (KRELL, 1999, p. 240).
Não foi à toa, portanto, que o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
da ONU, esclarecendo o teor do art. 2º, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais
e Culturais3, emitiu a Observação Geral nº 3, na qual consignou expressamente que a aplicação
do PIDESC no âmbito interno dos Estados Partes não depende exclusivamente da promulgação
de disposições constitucionais ou legislativas, chamando a atenção dos Estados Partes para o
3 Tanto o art. 2º, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (ONU), quanto o art.
26 da Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (OEA) e seu correlato art. 1º do
Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San
Salvador), estabelecem para os Estados Partes a obrigação de adotarem, até o máximo de recursos disponíveis, as
providências necessárias à progressiva efetividade dos direitos sociais no âmbito de seus respectivos territórios.
52
fato de que a obrigação prevista no Pacto vai além do respeito (dever do estado de não interferir
nem obstaculizar ou impedir o acesso ao gozo dos bens que constituem objeto de determinado
direito) e da proteção (dever de evitar que terceiros interfiram, obstaculizem ou impeçam o
acesso dos indivíduos aos bens que constituem determinado direito) dos direitos sociais no
âmbito de seus respectivos territórios, pois o grande (e verdadeiro) desafio encontra-se na
efetiva garantia (dever de assegurar que o titular do direito tenha efetivo acesso ao bem quando
não puder fazê-lo por si mesmo) desses direitos.
Esses contornos traçados pela Constituição Federal de 1988 e pelos tratados
internacionais ratificado pela República Federativa do Brasil (o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, no âmbito da ONU; a Convenção Americana de Direitos
Humanos e Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no âmbito da OEA), levaram Alessandra Gotti (2012,
p. 72) a defender que os direitos sociais, além de estarem jungidos ao regime jurídico próprio a
todos os direitos fundamentais (entre cujas características podemos destacar um princípio
informador comum lastreado no princípio da dignidade da pessoa humana, a juridicidade
reforçada pelo mandado de otimização insculpido no art. 5º, § 1º, da CF/88 e a proteção pelos
manto dos limites materiais à reforma constitucional), devem ser compreendidos à luz de um
regime jurídico peculiar, norteado (1) pelo princípio da observância do núcleo essencial desses
direitos; (2) pelo princípio da utilização do máximo de recursos disponíveis; (4) pelo princípio
da implementação progressiva e da proibição do retrocesso social e (5) pelo princípio
hermenêutico do in dubio pro justitia socialis.
2.3.1 Observância do núcleo essencial dos direitos sociais
Se o Estado deve definir, executar e implementar políticas públicas que facultem o
gozo dos direitos sociais (educação, saúde, trabalho, moradia etc.) constitucionalmente
protegidos (KRELL, 1999, p. 240), ele não pode perder de vista a obrigação de assegurar, ao
menos, a satisfação de níveis essenciais de cada um desses direitos consagrados na Constituição
de 1988 e em diversos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.
É bem verdade que a maior ou menor regulamentação legislativa pode condicionar
o grau de exigibilidade de determinado direito social. Entretanto, o simples fato de terem sido
diretamente consagrados em nível constitucional (ou incorporados ao ordenamento jurídico
brasileiro, em posição hierarquicamente privilegiada, mediante a ratificação de tratados
internacionais sobre direitos econômicos, sociais e culturais) faz com o que os direitos sociais
53
disponham de um conteúdo mínimo exigível dos Poderes Públicos e tutelável perante os
tribunais.
Nesse sentido, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da
Organização das Nações Unidas salienta que um Estado, no qual um número significativo de
indivíduos esteja desprovido de uma moradia ou de alimentos essenciais, bem como do ensino
fundamental ou de um serviço de atendimento às necessidades primárias de saúde, está, em
princípio, descumprimento as obrigações assumidas em decorrência do art. 2, item 1, no Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Frise-se, inclusive, que o Comitê procurou definir o conteúdo básico do direito ao
desfrute do “mais elevado nível possível de saúde física e mental” (art. 12 do PIDESC),
merecendo destaque (para os fins do presente trabalho) a obrigação estatal de garantir o acesso
universal aos bens e serviços públicos de saúde (dando atenção especial para os grupos
vulneráveis ou marginalizados da sociedade) e de facilitar o acesso aos medicamentos
essenciais, seguindo as diretrizes periódicas do Programa de Ação sobre Medicamentos
Essenciais da Organização Mundial de Saúde, zelando pela distribuição equitativa de todas as
instalações e serviços de saúde.
Por sua vez, os Princípios de Limburgo sobre a aplicação dos Direitos Econômicos
Sociais e Culturais preveem que a avaliação do cumprimento da obrigação de garantir o
mencionado conteúdo mínimo deve levar em consideração a limitação de recursos, mas que um
Estado só pode atribuir o descumprimento desses deveres à ausência desses recursos se
conseguir demonstrar que realizou tudo que estava ao seu alcance para empregar a totalidade
dos recursos disponíveis a fim de satisfazer, prioritariamente, o núcleo essencial desses direitos
(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 90).
Convém salientar, porém, que as fronteiras do conteúdo mínimo ou essencial dos
direitos sociais não são fixas, nem podem ser estabelecidas, num plano estritamente abstrato ou
teórico, para a generalidade desses direitos. Afinal, os elementos que compõem o conteúdo
mínimo ou essencial de um direito social estão condicionados pelo contexto no qual se aplicam:
o que em determinado país economicamente desenvolvido poderia ser considerado o núcleo
mínimo ou essencial de um direito social, poderia ser considerado uma espécie de conteúdo
adicional (acessório) no contexto de um país subdesenvolvido (PISARELLO, 2007, p. 85-86).
Por um lado, uma concepção demasiadamente restritiva acerca do conteúdo mínimo
ou essencial dos direitos sociais poderia ensejar a desnaturalização dos direitos em jogo, por
meio da delimitação de níveis tão elementares que seu exercício acabaria desviado e a dignidade
de seus destinatários seria menoscabada (PISARELLO, 2007, p. 86).
54
Nesse sentido, é preciso ter o cuidado de não confundir o núcleo essencial dos
direitos sociais com a noção de mínimo existencial, pois a mera “identificação entre o mínimo
existencial e núcleo essencial dos direitos sociais poderia implicar um esvaziamento não apenas
dos direitos sociais, mas também dos direitos fundamentais” (SARLET, 2015, p. 332).
Embora possuam o objetivo comum de extrair dos direitos determinados prestações
fáticas que, por sua nota de fundamentalidade, não podem deixar de ser disponibilizadas pelo
Estado, a doutrina do “mínimo existencial” e a construção doutrinária das obrigações mínimas
(núcleo essencial dos direitos sociais) partem de premissas distintas (GOTTI, 2012, p. 85).
Em primeiro lugar, porque a doutrina do mínimo existencial, parte dos princípios
da dignidade da pessoa humana, da supremacia da Constituição e da máxima efetividade
possível das normas constitucionais para prestigiar prestações fáticas de apenas alguns direitos
sociais (ex.: alimentação, saúde básica, vestuário etc), ao passo que a noção de núcleo essencial
dos direitos sociais parte do pressuposto de que todos os direitos sociais, econômicos e sociais
possuem níveis essenciais que devem ser respeitados, em virtude do princípio da boa-fé,
(insculpido no art. 3º, parágrafo 1º, da Convenção de Viena, de 1969 - “Lei dos Tratados”) a
que os Estados-partes estão submetidos no momento da ratificação dos tratados internacionais
(GOTTI, 2012, p. 85).
Em segundo lugar, porque se os direitos sociais possuem o propósito de promover
a melhoria das condições de vida dos indivíduos de determinada sociedade (e não apenas de
garantir-lhes a subsistência). Com efeito, embora o princípio da razoabilidade imponha o
sacrifício ou a minoração de determinadas prestações, não se pode, por exemplo, restringir o
reconhecimento de direitos públicos subjetivos a ações e serviços públicos de saúde apenas às
hipóteses de iminente risco de morte, na medida em que a vida humana não pode ser reduzida
às condições de subsistência (QUEIROZ, 2013, p. 105).
Mas é preciso ter cuidado, pois, ao mesmo tempo em que uma visão
demasiadamente restritiva do núcleo essencial dos direitos sociais não é capaz de se adequar ao
propósito de transformação social que deu origem à consagração desses direitos nos textos
constitucionais, uma visão excessivamente alargada desses direitos também apresenta sérios
riscos, pois poderia sufocar outras possibilidades de desenvolvimento legislativo plural e
participativo (PISARELLO, 2007, p. 86).
Nas sociedades pluralistas modernas (assim consideradas aquelas marcadas pela
presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes,
mas que não possuem força suficiente para se tornarem exclusivos ou dominantes) a
Constituição não deve ter a função de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de
55
vida em comum, mas sim a de criar as condições necessárias para assegurar a efetiva
participação de todos aqueles grupos na condução da vida política do país (ZAGREBELSKY,
2011, p. 13).
Perceba-se, portanto, que as fronteiras do núcleo essencial dos direitos sociais são
móveis e devem estar em constante processo de atualização para conseguir acompanhar as
transformações históricas ocorridas no meio social em que estão inseridos cada um desses
direitos.
As Observações Gerais do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais têm
o propósito imediato de evitar uma concepção excessivamente restritiva acerca do núcleo
essencial dos direitos sociais no âmbito interno dos Estados Partes. Por sua vez, a obrigação de
empreender as medidas necessárias à satisfação desses direitos “até o máximo dos recursos
disponíveis” e o compromisso com a “progressividade” na efetivação dos direitos sociais
garantem a adequação do núcleo essencial desses direitos à realidade de cada país, evitando a
adoção de uma (talvez insustentável) concepção demasiadamente ampliada a esse respeito,
conforme será analisado nos tópicos seguintes.
O que não se pode perder de vista, é que o simples reconhecimento constitucional
ou a ratificação de um tratado internacional pelo país determina, em qualquer circunstância, um
núcleo indisponível para os diferentes poderes constituídos (legislativo, executivo e judiciário),
que precisa ser assegurado a todas as pessoas, especialmente àquelas que se encontram em
situações de maior vulnerabilidade e que, portanto, devem gozar de uma proteção prioritária
por parte dos entes públicos.
2.3.1.1 Breves apontamentos sobre o conteúdo mínimo ou essencial do direito à saúde
No tópico anterior foi apresentada a noção de que cada direito social (saúde,
educação, moradia etc.) possui um conteúdo mínimo a ser garantido pelo Estado, dentro de uma
perspectiva de implementação progressiva e de utilização do máximo de recursos disponíveis
(que será analisada nos tópicos seguintes).
Considerando que o presente trabalho tem como objetivo analisar a utilização de
meios alternativos para a efetivação do direito à saúde, revelam-se oportunas breves
considerações (que, frise-se, não têm a pretensão de esgotar o tema, face às limitações inerentes
ao trabalho de pesquisa ora realizado), acerca do conteúdo mínimo ou essencial desse direito
social em específico.
56
Cláudia Carvalho Queiroz (2013, p. 105) observa que a própria Constituição
Federal de 1988 assinalou algumas das obrigações estatais mínimas ou essenciais em matéria
de proteção à saúde:
1. Saneamento básico (arts. 21, inciso X; 23, inciso IX; e 200, inciso IV, da CF/88);
2. Ações de Medicina Preventiva (art. 198, inciso II, da CF/88)
3. Atendimento Materno-Infantil (art. 227, § 1º, inciso I, da CF/88);
4. Vigilância Sanitária e Epidemiológica (art. 200, II).
Essas obrigações devem ser tratadas com prioridade, na medida em que
expressamente consagradas no próprio texto constitucional, todavia não esgotam o conteúdo
mínimo ou essencial do direito à saúde.
Outra importante baliza para a construção do núcleo essencial do direito à saúde
pode ser encontrada no Relatório Final da VIII Convenção Nacional de Saúde, realizada em
março de 1986, que serviu de base para que o Constituinte elaborasse o Seção destinada à
estruturação do Sistema Único de Saúde na Constituição Federal de 1988, segundo o qual:
11 – O Estado tem como responsabilidades básicas quanto ao direito à saúde:
- a adoção de políticas sociais e econômicas que propiciem melhores condições de
vida, sobretudo, para os seguimentos mais carentes da população;
- definição, financiamento e administração de um sistema de saúde de acesso universal
e igualitário;
- operação descentralizada de serviços de saúde;
- normatização e controle das ações de saúde desenvolvidas por qualquer agente
público ou privado de forma a garantir padrões de qualidade adequados.
As diretrizes constantes do Relatório Final da VIII Convenção Nacional de Saúde
podem e devem servir de parâmetro para a avaliação do caso concreto à luz do princípio da
proporcionalidade, pois resultaram de um amplo debate, que contou com a participação dos
meios acadêmico, social e político e teve como propósito a construção de um novo modelo de
assistência à saúde para o Brasil, que, posteriormente, foi albergado pela Constituição Federal
de 1988, face à constatação de que o modelo até então vigente deixava desamparadas
justamente aquelas pessoas que se encontravam em situação de maior vulnerabilidade.
Registre-se, por fim, que a Emenda Constitucional nº 45/2004 assegurou aos
tratados internacionais sobre direitos humanos ratificado pela República Federativa do Brasil
uma posição hierárquica privilegiada na pirâmide normativa de nosso país, promovendo uma
ampliação do diálogo entre as normas internacionais e ordenamento jurídico brasileiro em
matéria de direitos humanos e, por conseguinte, de direitos econômicos, sociais e culturais.
57
Com efeito, a identificação do conteúdo mínimo ou essencial do direito à saúde
também deve observar as diretrizes traçadas na Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, que discorre sobre o “direito ao disfrute do mais elevado nível
possível de saúde”, insculpido no art. 12 do Pacto Internacional de Direito Econômicos, Sociais
e Culturais.
A mencionada Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais estabelece, em seu item 12, que o direito à saúde abrange os seguintes elementos
essenciais e inter-relacionados: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade.
Em relação à disponibilidade, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
frisa que cada Estado Parte do PIDESC deve contar com um número suficiente de
estabelecimentos, bens, serviços, programas e centros de atenção à saúde, cuja natureza exata
dependerá de diversos fatores, em particular do nível de desenvolvimento de cada Estado.
Destaca-se, porém, que o item 12, alínea “a” da Observação Geral nº 14 destaca que os Estados
devem disponibilizar os fatores determinantes básicos da saúde, como a oferta de água potável
e de condições sanitárias adequadas, hospitais, clínicas e demais estabelecimentos relacionados
à saúde, além de médicos e demais profissionais de saúde devidamente qualificados e bem
remunerados (tudo isso, obviamente, respeitando a capacidade financeira de cada Estado) e dos
medicamentos essenciais definidos no Programa de Ação sobre medicamentos essenciais da
Organização Mundial da Saúde.
Quanto à acessibilidade, a mencionada Observação Geral nº 14 frisa que os
estabelecimentos, bens e serviços de saúde devem ser acessíveis a todos dentro da jurisdição
do Estado Parte, sem discriminação, e esclarece que a acessibilidade apresenta quatro
dimensões sobrepostas:
• Não discriminação: os estabelecimentos, bens e serviços de saúde devem ser acessíveis,
de fato e de direito, aos setores mais vulneráveis e marginalizados da população, sem
qualquer tipo de discriminação negativa;
• Acessibilidade física: os estabelecimentos, bens e serviços de saúde (assim como os
fatores determinantes básicos da saúde, como água limpa potável e os serviços sanitários
adequados) devem estar a uma distância geográfica razoável (inclusive no que se refere
às zonas rurais), especialmente em relação aos grupos vulneráveis ou marginalizados,
como as minorias étnicas e populações indígenas, as mulheres, as crianças, os
adolescentes, os idosos, as pessoas com necessidades especiais e as pessoas com
HIV/SIDA.
58
• Acessibilidade Econômica (exequibilidade): os valores cobrados por serviços de
atenção à saúde e serviços relacionados com os fatores determinantes básicos da saúde
deverão ser baseados no princípio da equidade, de modo a assegurar que esses serviços
(públicos ou privados) estejam ao alcance de todos, inclusive dos grupos socialmente
desfavorecidos.
• Acesso à Informação: deve ser assegurado o direito de solicitar, receber e difundir
informações sobre questões relacionadas à saúde (respeitada a confidencialidade dos
dados pessoais dos pacientes).
O terceiro elemento essencial para a configuração do direito à saúde (de acordo com
o Observação Geral nº 14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) é a
aceitabilidade, que consiste no fato de que os estabelecimentos, bens e serviços de saúde
deverão respeitar a ética médica e a cultura das pessoas (especialmente dos grupos vulneráveis
ou marginalizados), bem como serem adequados ao gênero e ciclo de vida do paciente.
Por fim, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais chama a atenção
para importância da qualidade dos estabelecimentos, bens e serviços de saúde, que devem ser
apropriados do ponto de vista científico e médico e serem de boa qualidade. Para isso, a
Observação Geral nº 14 estabelece que eles devem contar, dentre outras coisas, com pessoal
médico capacitado, medicamentos e equipamentos hospitalares cientificamente aprovados e em
bom estado de conservação, água limpa potável e condições sanitárias adequadas.
Embora as recomendações contidas na Observação Geral nº 14 não se esgotem
naquilo que fora aqui retratado (pois o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
ainda tratou de esmiuçar as repercussões do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais para o direito à saúde de diversos grupos vulneráveis ou marginalizados),
entendemos que os elementos essenciais acima elencados, quando aliados aos dispositivos da
Constituição Federal de 1988 e às diretrizes consagradas no Relatório Final da VIII Convenção
Nacional de Saúde (que serviu de base para a elaboração do atual modelo brasileiro de
assistência à saúde) são capazes de fornecer os elementos necessários para que o legislador (no
momento da elaboração de leis relacionados ao direito à saúde no Brasil), o administrador (no
momento da formulação e execução de políticas públicas de saúde) e o julgador (no momento
da apreciação dos conflitos de interesses relativos à efetivação do direito à saúde) possam
apreciar os inúmeros aspectos envolvidos no caso concreto e tomar as medidas cabíveis, à luz
do princípio da proporcionalidade.
59
2.3.2 Obrigação de utilização do máximo de recursos disponíveis
A faceta mais visível dos direitos sociais consiste na imposição de prestações
positivas (obrigações de fazer) ao Estado, destinadas a reduzir a desigualdade social e a
promover a melhoria das condições de vida das camadas menos favorecidas da população. Com
efeito, o principal argumento levantado por aqueles que pretendem naturalizar a reduzida carga
eficacial dos direitos sociais (quando comparada com a dos direitos civis e políticos) reside na
necessidade de alocação de recursos financeiros para a consecução desses direitos.
Essa necessidade de alocação de recursos financeiros destinados a viabilizar a
consecução dos direitos sociais está diretamente vinculada a uma dupla problemática: a efetiva
disponibilidade de recursos financeiros – disponibilidade material – e o poder de dispor dos
recursos financeiros disponíveis – disponibilidade jurídica (SARLET, 2015, p. 295).
Considerando que a limitação dos recursos públicos disponíveis (material e
juridicamente) para que o Estado possa levar a efeito todas a suas obrigações perante os
cidadãos impõe a necessidade de eleição de quais direitos serão atendidos (e em que medida)
pelo Poder Público, a obrigação de utilização do máximo de recursos disponíveis constitui um
importante princípio informador do regime jurídico peculiar dos direitos sociais.
Afinal, embora a escolha de onde serão alocados os recursos públicos tenha um
importante componente político, não podemos perder de vista as diretrizes estabelecidas pelas
normas constitucionais e pelos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro
(GOTTI, 2012, p. 87).
Frise-se que a Constituição Federal de 1988 consagrou entre os fundamentos da
República Federativa do Brasil os objetivos fundamentais de construir uma sociedade livre,
justa e solidária (art. 3º, inciso I, da CF/88), assumindo, para tanto, o compromisso de erradicar
a pobreza e a marginalização, bem como de reduzir as desigualdades sociais e regionais (art.
3º, inciso III, da CF/88). Além disso, o Constituinte fez questão de consignar que a ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da CF/88).
Em relação ao direito à saúde, tema em torno do qual gravitam as discussões deste
trabalho, convém salientar que a própria Constituição Federal de 1988 reservou uma parcela
(descrita por meio de um percentual mínimo) dos recursos públicos a ser necessariamente
empregada em ações e serviços públicos de saúde (art. 198, § 2º, incisos I, II e III, da CF/88).
Esse arcabouço constitucional revela a preocupação da Constituição Federal de
1988 em fortalecer os direitos sociais e ampliar o grau de concretização dos mesmos, eleitos
60
como instrumento normativo necessário para construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, para a erradicação da pobreza e da marginalização e para a redução das desigualdades
sociais e regionais (GOTTI, 2012, p. 87).
Além disso, tanto o art. 2º, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos
Sociais e Culturais (ONU), quanto o art. 26 da Convenção Americana sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (OEA) e seu correlato art. 1º do Protocolo Adicional à
Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San
Salvador), estabelecem para os Estados Partes a obrigação de adotarem, até o máximo de
recursos disponíveis, as providências necessárias à progressiva efetividade dos direitos sociais
no âmbito de seus respectivos territórios.
Essas normas internacionais (somadas às normas constitucionais de cada país)
restringem a discricionariedade dos Estados na alocação dos recursos públicos, motivo pelo
qual o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ao avaliar os relatórios elaborados
pelos Estados-partes, tem feito criticado a redução do percentual do PIB destinado a serviços
na área social do país, especialmente quando constata o aumento do percentual de gastos em
outros setores como a defesa (GOTTI, 2012, p. 88).
Por oportuno, convém destacar que a obrigação de empregar o máximo de recursos
disponíveis para a efetivação dos direitos sociais rege não apenas os tempos “normais”, mas
sobretudo os períodos de crises econômicas, causadas pelos mais diversos fatores
(PISARELLO, 2007, p. 86).
Afinal, tanto as Observações Gerais do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (ONU), quanto os Princípios de Limburgo sobre a Implementação do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, acentuam que a expressão “o
máximo de recursos disponíveis” abrange não apenas os recursos existentes no Estado, mas
também aqueles disponibilizados pela comunidade internacional, por meio de cooperação e
assistência internacionais (2012, p. 88).
Dentro desse contexto, Alessandra Gotti (2012, p. 88-89) sustenta que “em épocas
de crise, o Estado-parte tem o dever de buscar ajuda internacional” para fazer valer as
obrigações assumidas em razão do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais.
Particularmente, reconhecemos que o arcabouço jurídico internacional permite, de
fato, o apelo à ajuda internacional para a garantia dos recursos necessários ao cumprimento das
obrigações assumidas pelos Estados-partes em decorrência do PIDESC. No entanto, antes de
apelar para esse remédio, parece-nos mais coerente (e politicamente menos “traumático”), que,
61
em momentos de crise, seja priorizada a afetação dos recursos públicos para o atendimento das
necessidades dos membros mais vulneráveis da sociedade (PISARELLO, 2007, p. 86).
No mesmo sentido, Victor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 92) defendem
que, em períodos de maior escassez de recursos, causadas por processos de ajustes, de recessão
econômica ou por outros fatores, o Estado deve proteger aos membros vulneráveis da sociedade
mediante a adoção de programas de relativo baixo custo.
De fato, embora o princípio da dignidade da pessoa humana inspire a consagração
do maior número de prestações possíveis, numa situação de comprovada escassez de recursos,
devem ser cuidadosamente levados à balança os princípios da razoabilidade, da economicidade
e da isonomia do caso concreto (QUEIROZ, 2013, p. 105).
Percebe-se, portanto, que a obrigação de emprego do máximo de recursos
disponíveis deve ser compreendida em conexão com a garantia dos níveis essenciais de cada
um dos direitos sociais e, em tempos de acentuada (e comprovada) escassez de recursos, deve
ser priorizada uma atenção para as demandas dos grupos mais vulneráveis da sociedade.
2.3.3 Implementação Progressiva dos Direitos Sociais e Proibição do Retrocesso
A incorporação no ordenamento jurídico brasileiro, em posição hierárquica
privilegiada, dos tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pela República
Federativa do Brasil contribuiu para o alargamento dos direitos de sociais no ordenamento
jurídico brasileiro (GOTTI, 2012, p. 156), de modo que o exame do fundamento jurídico dos
princípios da implementação progressiva dos direitos sociais e da proibição do retrocesso
devem ser analisados à luz de uma visão ampla, que contemple não apenas os dispositivos da
Constituição Federal de 1988, mas também os tratados internacionais que integram os sistemas
internacional e interamericano de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais.
A noção de progressividade foi introduzida no contexto dos direitos sociais em
virtude do art. 2, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(ONU), que integra o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, que estabeleceu
para cada um dos Estados Partes a obrigação de adotar, até o máximo de recursos disponíveis,
as providências necessárias à progressiva efetivação desses direitos no âmbito de seus
respectivos territórios.
Na sequência, o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, por meio
do art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e
de seu correlato art. 1º do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos
62
em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), também
consagraram a fórmula da implementação progressiva ao disporem sobre as obrigações dos
Estados-partes na efetivação dos direitos sociais.
Por fim, para além de sua previsão em tratados internacionais sobre direitos
humanos devidamente ratificados pela República Federativa do Brasil, convém registrar que o
princípio da implementação progressiva dos direitos sociais decorre implicitamente de alguns
dispositivos constitucionais, seja por sua íntima relação com o princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inciso III, da CF/88), ou por sua afinidade com a cláusula transformadora da
realidade prevista no art. 3º da CF/88 (GOTTI, 2012, p. 159).
Note-se que a noção de progressividade abrange dois sentidos complementares: por
um lado, supõe uma certa gradualidade na implementação dos direitos sociais; por outro, impõe
um compromisso com o progresso, na medida em que os Estados devem estar permanentemente
comprometidos com a melhoria das condições de gozo e exercício desses direitos
(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 93).
De acordo com a Observação Geral nº 3 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, a noção progressividade resulta do reconhecimento de que, em geral, os direitos
econômicos, sociais e culturais geralmente dependem de um prazo razoável para sua plena
realização e busca conferir seriedade às obrigações assumidas pelos Estados-partes em
decorrência do PIDESC, na medida em que respeita as dificuldades do mundo real, mas impõe
a obrigação de permanente esforço no sentido da ampliação do grau de satisfação dos direitos
sociais.
Dessa obrigação estatal de implementação progressiva dos direitos sociais podem
ser extraídas algumas obrigações concretas e passíveis, inclusive, de serem submetidas à
apreciação judicial em caso de descumprimento.
Nesse sentido, Victor Abramovich e Christian Courtis (2002, p. 94) apontam que a
principal obrigação decorrente do princípio da progressividade é a proibição do retrocesso, em
virtude da qual o Estado deve se abster de praticar condutas (omissivas ou comissivas) que
reduzam o grau de satisfação dos direitos sociais no âmbito de seus respectivos territórios.
De fato, se não houve uma vinculação mínima do legislador e dos demais órgãos
estatais perante o núcleo já concretizado dos direitos sociais, estaria aberta uma porta para o
desrespeito à Constituição. Não se pode permitir, em matéria de justiça social, que o legislador,
ou o administrador, simplesmente desfaça aquilo que legislou, ou executou, pois tal providência
havia sido previamente tomada em estrito (SARLET, 2004, p. 122).
63
É preciso, no entanto, não perdermos de vista que o exame da proibição do
retrocesso deve levar em consideração não apenas os aportes do direito interno (em que costuma
se basear a doutrina brasileira para evitar retrocessos no campo normativo), mas, sobretudo, as
diretrizes do direito internacional que (por meio da imbricação da proibição do retrocesso com
o princípio da progressividade na implementação dos direitos sociais), permite transcender o
campo estritamente normativo e elevar a proibição do retrocesso como verdadeiro parâmetro
de aferição dos resultados concretos obtidos pelas políticas públicas destinadas à satisfação dos
direitos sociais (GOTTI, 2012, p. 150).
Sob o prisma do direito internacional, os princípios de Princípios de Maastricht
consideram violadoras dos direitos econômicos, sociais e culturais “a derrogação ou suspensão
da legislação necessária para o gozo contínuo de um direito econômico, social e cultural que já
se goza” (princípio 14ª), “a adoção de legislação ou de políticas manifestamente incompatíveis
com a obrigações legais preexistentes relativas a esses direitos, salvo que seu propósito e efeito
sejam o de aumentar a igualdade e melhorar a realização dos direitos econômicos, sociais e
culturais para os grupos mais vulneráveis” (princípio 14d) e “a adoção de qualquer medida
deliberadamente regressiva que reduza o alcance da garantia do direito” (princípio 14e)
(ABRAMOVICH e COURTIS, 2002, p. 94).
O retrocesso social pode ser de duas espécies: normativo, que pressupõe um
comparativo com a norma jurídica anterior para verificar se houve uma eventual supressão ou
restrição de benefícios ou direitos pela norma jurídica posterior; ou de resultados, que requer a
análise dos resultados de uma política, tomando-se como referência um ponto de referência
temporal anterior (GOTTI, 2012, p. 161-162).
Em outras palavras, a regressividade pode ser referir aos resultados de uma política
pública (regressividade de resultados), quando seus estes pioram em relação a um ponto de
partida temporalmente anterior escolhido como parâmetro. Para que seja possível constatar essa
espécie de regressividade são, obviamente, necessários indicadores ou referências empíricas
(COURTIS, 2006, p. 3-4), muitas vezes indisponíveis (e certas vezes ou não confiáveis).
Mas a noção regressividade também pode se voltar para as normas jurídicas
(regressividade normativa) quando avalia a extensão dos direitos concedidos por uma norma.
Para avaliar este tipo de regressividade, basta comparar a norma mais recente com a que ela
substituiu ou modificou, a fim de descobrir se foram suprimidos ou limitados direitos
anteriormente concedidos (COURTIS, 2006, p. 4).
Partindo dessa concepção ampliada (para além do campo estritamente normativo)
da proibição do retrocesso, Christiano de Oliveira Taveira e Thaís Boia Marçal (2013, p. 164)
64
destacam que a mesma deve ser efetivamente empregada em matéria orçamentária, com vistas
a impedir a realização de cortes que reduzam (em relação à lei orçamentária do ano anterior) o
montante dos recursos destinados à implementação de determinado direito social ainda não
plenamente concretizado:
Assim, a partir do momento em que se vincula a atuação estatal ao propósito de atingir
as metas traçadas pela Constituição, torna-se imperiosa a adoção de uma postura
estatal com vistas a conferir gradual eficácia aos direitos fundamentais, não se
admitindo condutas que impliquem retrocesso das conquistas alcançadas. Tal
premissa pode (e deve) ser aplicada em matéria orçamentária, pois é possível conceber
como trivial a opção de uma maioria política de ocasião optar por prover dotações
orçamentárias reduzidas para implementação de direitos fundamentais, optando por
custear gastos que não correspondem às prioridades constitucionalmente previstas,
enquanto a Constituição prevê sua gradual implementação.
Esse caminho é igualmente trilhado por Victor Abramovich e Christian Courtis
(2002, p. 36), quando destacam que a adesão por parte do Estado a tratados internacionais que
versam sobre direitos econômicos, sociais e culturais e a consagração de direitos sociais no
texto constitucional supõem, mesmo num contexto de relativa escassez de recursos, uma
autolimitação da discricionariedade estatal em matéria orçamentária.
Por sua vez, Alessandra Gotti (2012, p. 161) defende que a proibição do retrocesso
também deve servir de parâmetro para a aferição da validade da conduta de um administrador
público que, no limite de sua discricionariedade, reduza a amplitude de uma política pública,
deixando de beneficiar substantiva parcela da comunidade que antes era contemplada.
Marcelo Casseb Continentino (2015) adverte, porém, que a adoção de uma
concepção rígida e inflexível acerca do princípio da vedação do retrocesso pressupõe um
(ingênuo) otimismo e uma (equivocada) concepção determinista da história, trazendo à
discussão a denominada “jurisprudência da crise”, desenvolvida pelo Tribunal Constitucional
de Portugal para permitir a flexibilização do princípio da proibição do retrocesso (que
pressupunha um aumento contínuo das prestações sociais) em favor da máxima “menos
trabalho e menos salário, mas trabalho e salário e para todos”, numa reação aos elevados índices
de desemprego que assolavam o país.
De fato, o estouro de uma crise econômica (como a que assombra o Brasil nos dias
atuais) cria o cenário perfeito para o agravamento da tensão existente entre as diversas
concepções que permeiam o discurso jurídico acerca da concretização dos direitos sociais
(PISARELLO, 2009, p. 13).
A diminuição dos recursos financeiros disponíveis dificulta a execução das políticas
públicas existentes e compromete a expansão da oferta de bens e serviços destinados a satisfazer
65
as necessidades básicas dos integrantes da sociedade, começando pelas pessoas e grupos que se
encontram em maior situação de vulnerabilidade.
O problema, como adverte o próprio Marcelo Casseb Continentino (2015), é que a
noção de “crise” não é de fácil apreensão e é tão frequentemente utilizada que seu conteúdo
acaba sendo esvaziado, afinal, “se tudo está em crise, nada é crítico; e, portanto, está dentro da
normalidade”.
Dentro dessa perspectiva, o mencionado autor pondera que precisamos ter o
cuidado de não cair numa “metanarrativa da crise” que tenha o propósito de legitimar, pela
mera referência ao termo “crise” ou “emergência”, a adoção de medidas que restrinjam, limitem
ou até mesmo suprimam os direitos sociais (ou até mesmo os demais direitos fundamentais),
embora também advirta que não podemos criar, em torno da noção de crise, uma carga
semântica tão negativa que inviabilize qualquer medida política ou jurídica excepcional, que
venha a ser adotada em situações de particular gravidade.
Ao final, Marcelo Casseb Continentino (2015) conclui que em situações
excepcionais é possível a restrição do alcance das medidas destinadas à satisfação dos direitos
sociais, mas que essa restrição deve se submeter a um rigoroso controle de constitucionalidade,
orientado pelo princípio da proporcionalidade.
Em sentido semelhante, Ingo Wolfgang Sarlet (2007) destaca que a aferição da
legitimidade de eventuais medidas restritivas somente pode ocorrer à luz do caso concreto (não
podendo ser estabelecida de forma genérica e abstrata) e deve ser norteada pelo princípio da
proporcionalidade, pois a resposta dependerá da comparação entre o interesse público na
restrição e o interesse individual do titular do direito na sua preservação.
Essa possibilidade excepcional de restrição do alcance das medidas destinadas à
satisfação dos direitos sociais precisa levar em conta a advertência de António Manuel
Hespanha, no sentido de que a crise não se supera pela dissolução do direito, mas sim pelo
reforço dos elementos que promovem a consensualidade da ordem jurídica (HESPANHA,
2013, p. 117-118).
Sendo assim, a redução do alcance dos direitos sociais somente se legitima quando
comprovadamente destinada a salvaguardar a manutenção desses direitos para as pessoas e
grupos mais vulneráveis.
Quando falamos em princípio da proporcionalidade, num contexto de restrição do
alcance dos direitos sociais, devemos ter em mente que toda e qualquer medida restritiva deve
zelar pela manutenção de uma proteção prioritária aos grupos sociais que se encontram em
maior situação de vulnerabilidade (PISARELLO, 2007, p. 86) e que não basta a mera alegação
66
de um suposto contexto de crise (ou da insuficiência de recursos) para autorizar a redução do
alcance das medidas destinadas à satisfação dos direitos sociais, sendo necessário que o Estado
demonstre que empreendeu todos os esforços que estavam ao seu alcance, até o máximo de
recursos disponíveis, para satisfazer os direitos sociais consagrados na Constituição Federal de
1988 e nos Tratados Internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.
Afinal, como adverte Gerardo Pisarello (2007, p. 61), o que costuma estar em jogo,
via de regra, não é a forma de assegurar esses direitos, mas sim a decisão acerca de como e com
que prioridades serão distribuídos os recursos que a satisfação dos direitos de um modo geral
exige.
67
3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O CONTROLE JURISDICIONAL DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL
Nos capítulos anteriores, apresentamos o desenvolvimento histórico do
constitucionalismo moderno e realizamos uma crítica acerca da visão (ainda) dominante que
busca justificar a reduzida carga eficacial dos direitos sociais (quando comparada com a dos
direitos civis e políticos). Além disso, traçamos os contornos do regime jurídico dos direitos
fundamentais e apresentamos uma proposta para a formulação de um regime jurídico específico
dos direitos sociais, com vistas a reforçar a efetividade dessas normas constitucionais.
É chegada a hora de realizarmos uma breve reflexão acerca das relações entre o
Direito e a Política, com ênfase no controle judicial de políticas públicas no Brasil, de modo a
prepararmos o terreno para uma discussão acerca do surgimento de espaços de diálogo
interinstitucionais destinados fomentar a resolução extrajudiciais dos conflitos de interesses
relativos à efetivação do direito à saúde no Brasil.
Para uma adequada compreensão da matéria, não podemos perder de vista as noções
introduzidas no primeiro capítulo, quando foram apresentados os princípios do
constitucionalismo moderno: respeito aos direitos humanos, separação dos poderes, existência
de um governo representativo, limitação do poder governamental e independência judicial
(DIPPEL, 2005, p. 182-183). Note-se que a exigência de um governo representativo surge como
corolário da ideia de soberania popular e visa a ampliar a legitimidade do exercício do poder.
Por sua vez, a independência judicial revela-se como uma característica necessária à limitação
do poder governamental e defesa dos direitos fundamentais.
Pois bem, a missão do Estado Democrático de Direito consiste em harmonizar as
ideais de constitucionalismo e democracia, por meio de mecanismos capazes de superar
adequadamente as tensões surgidas na experiência cotidiana, limitando o poder da maioria nos
estreitos limites necessários para a salvaguarda dos direitos fundamentais. Afinal, o governo da
maioria, em determinadas situações, pode se inclinar ao desrespeito de direitos fundamentais
das minorias e, por isso, precisa ser limitado pelas normas jurídicas. Da mesma forma, é preciso
ter cuidado para que os dogmas limitadores do Direito não acabem asfixiando a manifestação
da vontade popular (BINENBOJM, 2014, p. 48).
A importância do delicado equilíbrio entre a vontade da maioria, a limitação do
poder e a garantia dos direitos fundamentais confere especial relevo ao debate acerca das
relações entre o Direito e à Política – aspectos distintos da estrutura de um país democrático,
mas cuja linha divisória tem se mostrado maleável e nem sempre tão evidente.
68
Quando o foco da discussão se volta para as relações entre o Direito e a Política no
contexto da efetivação do direito à saúde, frequentemente se aborda a questão da judicialização
da saúde, com ênfase nos argumentos favoráveis e contrários à intervenção do poder judicial
nas diversas fases da política pública do Sistema Único de Saúde.
Neste trabalho, porém, a questão será tocada apenas tangencialmente, na medida
necessária para a compreensão do surgimento dos espaços de diálogo interinstitucionais que se
propõem a buscar uma solução alternativa (extrajudicial) para a resolução dos conflitos de
interesse relativos à efetivação do direito à saúde.
3.1 O reconhecimento da força normativa da Constituição
Uma das principais mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX reside
na percepção de que a Constituição não pode ser considerada um mero repositório de promessas
vagas, cuja concretização dependa essencialmente da atuação do legislador ordinário ou da
discricionariedade do administrador público. O reconhecimento da força normativa da
Constituição significa, portanto, atribuir um caráter vinculativo, obrigatório e imperativo de
suas disposições, cuja inobservância deve deflagrar mecanismos próprios de coação e
cumprimento forçado (BARROSO, 2015, p. 7).
Uma interessante perspectiva para se estudar a mudança de paradigma promovida
pelo gradativo reconhecimento da força normativa da Constituição reside no contraponto entre
ideias de Ferdinand Lassalle ([1862], 2014) – para quem a Constituição Jurídica não passava
de um “pedaço de papel” que refletia a “soma dos fatores reais de poder” de uma sociedade –
e de Konrad Hesse (1991, p. 19) – segundo o qual a Constituição transforma-se numa “força
ativa” na medida em que a disposição de orientar sua conduta a partir da ordem nela
estabelecida esteja incutida na “consciência geral” e “particularmente, na consciência dos
principais responsáveis pela ordem constitucional”.
O raciocínio desenvolvido por Lassalle ([1862], 2014), em sua obra “O que é uma
Constituição?” é bastante convidativo, especialmente quando nos desafia a inovar o conteúdo
de uma nova constituição a ser criada (numa hipotética situação em que tivéssemos rasgado a
“folha de papel” e não houvesse mais nenhum outro exemplar disponível do texto
constitucional).
Ao esmiuçar o imenso desafio para se conseguir efetivamente alterar a moldura que
nos é traçada pelos fatores reais de poder em nossa sociedade, Lassalle ([1862], 2014) defende
69
que a Constituição deve descrever rigorosamente a realidade política do país, sob pena de não
ter efetividade.
Dessa forma, Lassalle ([1862], 2014) foi responsável pela elaboração do conceito
sociológico de Constituição, cujas premissas foram contrapostas por Hesse (1991), que advertiu
para o fato de que a Constituição nem sempre sairia derrotada numa disputa com os fatores
reais de poder da sociedade.
Em sua obra “A força normativa da Constituição”, Konrad Hesse (1991, p. 10)
atribui o fascínio exercido pela tese inicialmente defendida por Lassalle ([1862], 2014) à sua
aparente simplicidade e evidência, às suas bases empíricas e à sua aparente confirmação
histórica. Todavia, jurista alemão defende a existência de uma “vontade da Constituição”, que
pode ser capaz de superar os fatores reais de poder de uma sociedade, quando estiver
consolidada a crença em torno de sua imperatividade (HESSE, 1991, p. 19):
Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A
Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente
realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela
estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos
juízes de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem.
É dentro da perspectiva lançada por Hesse que se pode compreender o fato de que
a constitucionalização de determinados princípios e direitos acaba subtraindo certas matérias
do embate político cotidiano, tornando-as imunes a contra as maiorias legislativas ocasionais.
Registre-se, porém, que o debate acerca da força normativa da Constituição aportou
no Brasil na década de 80, e enfrentou sérias resistências, pois sofre de “patologias crônicas,
ligadas ao autoritarismo e à insinceridade constitucional”, pois a efetivação dos direitos
consagrados na Constituição Federal de 1988, em especial do direito à saúde, esbarra no
problema da limitação de recursos materiais e da disponibilidade orçamentária, bem como na
eficiência da gestão dos recursos disponíveis etc.
3.2 O Controle Judicial das Políticas Públicas de Saúde no Brasil
Para efeitos deste trabalho, consideram-se políticas públicas os instrumentos de
execução de programas políticos por meio dos quais o Estado intervém na sociedade com o
escopo de assegurar as condições materiais para a existência digna de todos os cidadãos
(APPIO, 2012, p. 136).
70
Tratam-se do conjunto de ações empreendias pelo Poder Público com o propósito
de concretizar o projeto político de bem comum, justiça social e igualdade dos cidadãos,
insculpido da Constituição Federal (OHLWEILLER, 2008, p. 323).
Quando o assunto é a efetivação dos direitos sociais, as políticas públicas assumem
um papel de destaque, na medida em que a faceta mais visível da referida espécie de direitos
fundamentais consiste em seu conteúdo prestacional.
Com efeito, os órgãos e agentes encarregados da elaboração e execução das
políticas públicas devem partir sempre da premissa que a Administração Pública deve
empreender todas as medidas necessárias e possíveis para o cumprimento do Constituição em
sua integralidade, com ênfase para a satisfação direitos fundamentais, categoria na qual estão
inseridos os direitos sociais (OHLWEILLER, 2008, p. 326).
De um modo geral, a formulação de políticas públicas leva em consideração os
custos que a execução das mesmas imporá aos cofres públicos. Todavia, existe um intenso
debate jurídico-social acerca de “quando e em que medida os limites financeiros podem
justificar a não realização dos direitos fundamentais sociais” (APPIO, 2012, p. 382).
É recomendável que as decisões estratégicas acerca da alocação dos limitados
recursos públicos (assim consideradas aquelas que repercutem na definição de quais direitos
serão efetivados e em que medida isto ocorrerá) sejam tomadas de forma mais transparente
possível, cabendo ao Estado tomar as medidas necessárias para que a população tenha acesso a
níveis adequados de informação a esse respeito (HOLMES e SUNSTEIN, 2000).
Porém o descrédito das instâncias políticas majoritárias e a consagração dos direitos
fundamentais como eixo axiológico das constituições contemporâneas, associados ao
reconhecimento da força normativa da Constituição, impulsionaram a intensificação da atuação
dos órgãos jurisdicionais, os quais foram gradualmente se afastando da ortodoxia do “legislador
negativo” e passaram a assumir um certo protagonismo na construção da ordem jurídica,
convertendo-se em “um novo espaço público de deliberação”, no qual vêm sendo decididas
importantes controvérsias da agenda política nacional (LEITE, 2014, p. 11).
Aliás, a própria arquitetura aberta da Constituição Federal de 1988 favorece a
gradual ocupação judicial dos normativos deixados vazios (intencionalmente ou não) pelo
Congresso Nacional (LEITE, 2014, p. 12).
Ao traçar um panorama das posições existentes do debate jurídico contemporâneo
acerca da eficácia do direito à saúde e dos limites do Poder Judiciário quanto à determinação do
conteúdo das prestações a serem cumpridas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), Miriam Ventura,
Luciana Simas, Vera Lúcia Edais Pepe e Fermin Roland Schramm (2010, p. 86) apontam que:
71
No debate jurídico atual, há três posições sobre a eficácia do direito à saúde, que se
desdobram em análises acerca das possibilidades de atuação do Judiciário na
determinação de prestações a serem cumpridas pelo SUS.
Uma primeira posição entende que a eficácia desse direito deve ser restrita aos
serviços e insumos disponíveis do SUS, determinados pelo gestor público.
Uma segunda compreende que o direito à saúde implica garantia do direito à vida e
integridade física do indivíduo, devendo o Judiciário considerar a autoridade absoluta
do médico que assiste ao autor da ação judicial, obrigando o SUS a fornecer o
tratamento indicado.
Uma terceira posição defende que a eficácia do direito à saúde necessita ser a mais
ampla possível, devendo o Judiciário – na análise do caso concreto – ponderar direitos,
bens e interesses em jogo, para fixar o conteúdo da prestação devida pelo Estado.
Os mencionados autores arrematam sustentando que a terceira posição é a mais
adequada diante do sistema jurídico consagrado pela Constituição Federal de 1988, ampliando
a margem de atuação discricionária, desde que racionalmente fundamentada, do magistrado
diante do caso concreto (VENTURA, SIMAS, et al., 2010, p. 87):
A terceira posição é a que se revela mais adequada à compreensão da sinergia entre
saúde e direito, na garantia do cidadão ao acesso à justiça e acesso à saúde (LEIVAS,
2006). O juiz deverá levar em conta, por exemplo, se as alternativas terapêuticas,
oferecidas pelo SUS, podem atender às necessidades do demandante, sem prejuízos
significativos para seu bem-estar; ou se a prescrição médica individual requerida,
comparada ao que há disponível no SUS e respaldada por evidências científicas, é o
único meio eficiente para garantir a saúde do demandante.
O tema é preocupante, em virtude da multiplicação do número de demandas e
condenações judiciais que impõem ao Estado a obrigação de concretizar direitos insculpidos na
Constituição, exigindo a aplicação de recursos públicos para o fornecimento de medicamentos
ou a prestação de serviços de saúde (CAMBI, 2010, p. 382).
O controle judicial de políticas públicas de saúde no Brasil pode se dar em caráter
preventivo (no momento de formulação das mesmas), ocorrer concomitante (por ocasião da
execução das políticas públicas) ou ser realizado em momento sucessivo à execução da política
pública (quando da avaliação dos resultados por elas atingidos).
Em geral, as objeções geralmente são apontadas para o controle preventivo, sob o
argumento de que a participação do poder judiciário no processo de formulação das políticas
públicas implica em substituição de um ato de vontade dos representantes democraticamente
eleitos por um ato de vontade de juízes não-eleitos (APPIO, 2012, p. 135).
Por sua vez, os controles concomitante e sucessivo das políticas públicas de saúde
no Brasil, por meio do qual o poder judiciário determina o cumprimento do plano de ação
estabelecido pela própria administração pública, não costumam gerar maiores controvérsias,
72
exceto quanto às hipóteses concessão judicial de medicamentos ou prestação de serviços que
não estão contemplados na política pública instituída no âmbito do SUS.
Em geral, os poderes públicos argumentam que seria indevida a ingerência
casuística do poder judiciário nos critérios técnico-científicos que orientam a elaboração das
listas de medicamentos. Entretanto, a questão não é tão simples quanto o argumento faz parecer,
pois a atuação do poder judiciário é indispensável para a correção de diversas anomalias que
envolvem a elaboração das políticas públicas de saúde (SABINO, 2013, p. 371).
Nesse sentido, Marco Antônio da Costa Sabino (2013, p. 371) salienta:
A verdade de que não se pode escapar é que a inclusão de determinado medicamento
nas listas de dispensação obrigatória interessa a muita gente. Esses interesses podem
redundar na cooptação de determinados agentes administrativos que, por fim, definem
quais medicamentos entram e quais medicamentos saem das listas. É verdade que, em
sua maioria, os componentes dos órgãos responsáveis por essa definição são técnicos,
mas técnicos que respondem, sempre, a uma autoridade inegavelmente motivada por
interesses políticos.
A grande inquietação que surge com a necessidade de intervenção judicial para o
fornecimento de medicamentos ou a realização de procedimentos médicos que não constam da
política pública instituída no âmbito do SUS é que isso pode causar um desequilíbrio nas contas
públicas e, num cenário mais extremado, prejudicar (ou mesmo inviabilizar) a execução das
políticas públicas elaboradas pelo poder executivo.
Os poderes públicos argumentam que para dar cumprimento às determinações
judiciais em matéria de efetivação do direito à saúde é preciso por em prática a lógica do
cobertor curto, pois como não existe uma dotação orçamentária previamente definida para
aquele medicamento ou procedimento médico específico, acaba sendo preciso realocar recursos
originalmente destinados a atender outra necessidade da população (SABINO, 2013, p. 386).
Além disso, na medida em que cresce o número de demandas envolvendo pedidos
de efetivação do direito à saúde, a população perde parcela de sua participação na construção
de uma solução para os problemas relativos à matéria, pois as estratégias de efetivação do
direito à saúde vão se afastando de um referencial societário calcado na realidade dos serviços
públicos de saúde brasileiros para assumir um referencial jurídico calcado, quase que
exclusivamente, em critérios legais abstratos (ASENSI, 2013, p. 107).
Ao enfrentar especificamente a questão do possível deslocamento das instâncias
participativas de discussão para a esfera institucional do direito, durante a Conferência
Inaugural do XXXVIII Congresso Nacional dos Procuradores de Estado, realizado em Foz do
Iguaçu, Antônio José Avelãs Nunes (2013, p. 59) revelou sua preocupação com a potencial
73
desmobilização da cidadania resultante da falsa ilusão de que está bem, pois o poder judiciário
está sempre a postos para sanar os todos os problemas.
Essa percepção das limitações do poder judiciário para enfrentar o problema da
efetivação do direito à saúde no Brasil tem estimulado os diversos atores sociais (públicos e
privados), e suas respectivas representações jurídicas, a buscarem mecanismos de efetivação do
direito à saúde que não dependam da intervenção do Poder Judiciário.
Estudo recente revelou que a vontade política e o diálogo institucional
potencializam a organização de fluxos de atendimento aos usuários, a disseminação de
informações, tanto sobre o direito à saúde quanto sobre o funcionamento dos programas de
saúde locais, além de favorecerem a própria efetivação do direito à saúde, tanto na esfera
judicial quanto extrajudicialmente (ASENSI e PINHEIRO, 2015, p. 76).
É dentro desse contexto que podemos compreender o surgimento de verdadeiros
espaços de diálogos interinstitucionais, por meio dos quais se estabelece uma rotina
extrajudicial destinada a tentar alcançar uma solução alternativa para os conflitos de interesses
relativos à efetivação do direito à saúde, a exemplo do programa SUS MEDIADO, que será
analisado no próximo capítulo.
74
4 O PROGRAMA SUS MEDIADO
Consoante tivemos a oportunidade de deixar antever nos capítulos anteriores, a
multiplicação de processos relativos à concretização do direito à saúde (fenômeno que vem
sendo denominado “judicialização da saúde”) tem suscitado intensos debates jurídico-sociais,
que buscam identificar e desenvolver práticas jurídicas capazes de reduzir a necessidade de
judicialização das demandas relativas à efetivação desse direito fundamental.
Foi nesse contexto que surgiu o programa SUS MEDIADO, desenvolvido na
cidade de Natal/RN, que procura viabilizar uma solução extrajudicial para os conflitos de
interesse envolvendo a efetivação do direito à saúde de cidadãos hipossuficientes no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de sessões de mediação que ocorrem semanalmente
na sede da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte e contam com a participação
direta do cidadão hipossuficiente, de um farmacêutico, dos Técnicos das Secretarias de Saúde
Estadual e Municipal, de um Defensor Público Estadual, de um representante da Procuradoria
Geral do Estado e de um representante da Procuradoria Geral do Município.
O referido programa foi constituído por meio de um Termo de Cooperação Técnica
entre a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte - DPE/RN, a Procuradoria Geral
do Estado do Rio Grande do Norte – PGE/RN – a Secretaria de Estado da Saúde Pública do
Estado do Rio Grande do Norte – SESAP/RN, a Defensoria Pública da União – DPU/RN, a
Procuradoria Geral do Município do Natal - PGMN/RN, a Secretaria de Estado da Saúde
Pública - SESAP/RN e a Secretaria Municipal de Saúde do Natal - SMS/Natal, celebrado em
14 de fevereiro de 2012, na cidade de Natal/RN.
O programa SUS MEDIADO estabelece um ambiente de cooperação entre os
participantes, com o propósito de promover uma maior celeridade na troca de informações e
tentar viabilizar a resolução extrajudicial das demandas relativas à efetivação do direito à saúde
no âmbito do SUS.
De acordo com os dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio
Grande do Norte, o programa SUS MEDIADO propiciou uma solução administrativa para 274
dos 1123 casos que lhe foram submetidos no ano de 2013 (taxa de resolutividade extrajudicial
global no ano de 2013 = 24,4%) e que no ano de 2014 a taxa de resolutividade extrajudicial
global subiu para 33,58% (o SUS MEDIADO criou condições para a solução administrativa de
416 dos 1239 casos que lhe foram submetidos no ano de 2014).
75
Apesar de animadores, esses números não esclarecem quais as situações que
contribuem para o sucesso ou fracasso da tentativa de mediação dos casos relativos à efetivação
do direito à saúde que são apresentados à Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN, por
cidadãos hipossuficientes. Essa informação é extremamente relevante e constitui um importante
dado para subsidiar a implantação (ou não) de programas semelhantes em outros municípios e
unidades da federação.
O presente trabalho se propôs a realizar um diagnóstico do programa SUS
MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN e, para a consecução desse objetivo, foi
requerido à Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (em junho de 2015) o acesso
aos Relatórios de Atendimento do Programa SUS MEDIADO, solicitação que foi prontamente
atendida pela referida instituição.
4.1 Delimitação Temporal da Amostra
O presente trabalho de pesquisa teve o propósito de realizar um diagnóstico do
Programa SUS MEDIADO, a partir da análise dos dados empíricos encontrados no Relatórios
de Atendimento referentes ao ano de 2014, para descobrir quais as condições que favorecem
e/ou dificultam que a mediação reduza a necessidade de judicialização dos pedidos de
fornecimento gratuito de medicamentos apresentados por cidadãos hipossuficientes à
Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN.
A delimitação temporal da amostra levou em conta os aspectos a seguir:
1. O Programa SUS MEDIADO teve início a partir de um Termo de Cooperação Técnica
firmado em 14 de fevereiro de 2012. Dessa forma, não houve atendimento em todos os
meses do referido ano. Além disso, houve alteração na forma de registro dos resultados dos
atendimentos obtidos ao longo de 2012. Inicialmente, os atendimentos diários eram
consolidados em atas, que posteriormente foram substituídas por Relatórios de Atendimento
com o propósito de desburocratizar a tentativa de mediação.
2. Tivemos acesso à integralidade dos Relatórios de Atendimento relativos ao ano de 2013,
em que foram submetidos 1.123 casos ao SUS MEDIADO;
3. Tivemos acesso à integralidade Relatórios de Atendimento relativos ao ano de 2014, em
que 1.239 casos foram submetidos à mencionada tentativa de resolução extrajudicial dos
conflitos de interesses relativos à efetivação do direito à saúde;
76
4. No requerimento de acesso aos Relatórios de Atendimento do programa SUS MEDIADO
foi apresentado em julho/2015. Por conseguinte, somente tivemos acesso aos dados
relativos ao primeiro semestre do referido ano.
Os Relatórios de Atendimento do ano de 2012 foram excluídos da amostra por dois
motivos: primeiro, porque não houve atendimento durante todos os meses do referido ano;
segundo, porque não houve uniformidade na forma registro dos resultados alcançados ao longo
do referido período. Por sua vez, decidimos excluir da amostra os Relatórios de Atendimento
do ano de 2015, porque somente dispúnhamos dos dados relativos ao primeiro semestre do
referido ano.
Restaram, portanto, os Relatórios de Atendimento relativos aos anos de 2013 e
2014, que, juntos, totalizavam 2.363 (dois mil trezentos e sessenta e três) casos submetidos ao
programa SUS MEDIADO.
Nesse sentido, optamos pela análise da integralidade dos Relatórios de Atendimento
relativos ao ano de 2014, por se tratar do período mais recente a cuja integralidade dos
Relatórios de Atendimento tivemos acesso para a realização do presente trabalho de pesquisa.
Afinal, como a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME (lista de
medicamentos que deve atender às necessidades de saúde prioritárias da população brasileira e
que constitui a referência central para as ações de assistência farmacêutica no âmbito do SUS)
é objeto de atualização periódica, a incorporação de novos medicamentos e outros insumos
necessários ao tratamento de saúde das pessoas pode influenciar no resultado da mediação.
4.2 Instrumento de Coleta de Dados
Após a delimitação do recorte temporal da amostra (ano de 2014), todos os
Relatórios de Atendimento cujos dados seriam analisados passaram por um processo de
anonimização e codificação.
Cada Relatório de Atendimento recebeu um número sequencial, baseado na ordem
em que os casos foram sendo submetidos ao Programa SUS MEDIADO ao longo do ano de
2014. Com isso, os nomes dos assistidos e seus respectivos telefones para contato puderam ser
descartados, porquanto não guardavam qualquer relevância para o estudo que seria realizado.
77
Figura 1 - Modelo de Relatório de Atendimento
Na sequência, a análise da estrutura dos Relatórios de Atendimento (fontes de
informação) possibilitou a identificação das categorias de análises que deveriam compor o
instrumento de coleta de dados (planilha):
1. Natureza da Demanda (fornecimento de medicamentos, marcação de consultas,
realização de exames ou cirurgias etc.);
2. Situação Atual do Objeto da Pretensão (ex.: medicamento não contemplado pelo SUS,
medicamento contemplado pelo SUS, mas está em falta, medicamento contemplado
pelo SUS, mas não é disponibilizado para o CID do requerente etc), que nos informa o
motivo pelo qual o cidadão hipossuficiente teve sua pretensão indeferida pelo Sistema
Único de Saúde;
3. Resultado da Tentativa de Resolução Extrajudicial do Conflito (ex.: mediado,
encaminhado para judicialização etc.).
As categorias de análises identificadas foram codificadas e distribuídas numa
planilha (instrumento de coleta de dados) que, posteriormente, foi alimentada com as
informações extraídas de cada um dos Relatórios de Atendimentos (fontes de informações).
Resultado
Natureza da Pretensão
Situação Atual do
Objeto da Pretensão
78
Em seguida, as informações constantes no instrumento de coleta de dados foram
convertidas em um banco de dados do Software IBM SSPS, no qual será realizado o
processamento eletrônico dos dados coletados.
A primeira etapa desse processo foi o cadastramento das categorias de análise
anteriormente apontadas no Software IBM SSPS, seguindo a codificação utilizada no
instrumento de coleta de dados (ex.: na categoria de análise Natureza da Pretensão, o código
101 corresponde a um pedido de medicamentos, ao passo que o código 102 refere-se a um
pedido de suplementos e o código 103 indica que estamos diante de um pedido de outros
insumos necessários ao tratamento de saúde da pessoa), conforme se verifica na Figura 2.
Figura 2 – Cadastramento das Categorias de Análise no SSPS
As categorias de análise Natureza da Pretensão (linha 2), Situação Atual do Objeto
da Pretensão (linha 4) e Resultado da Tentativa de Resolução Extrajudicial do Conflito (linha
5) foram devidamente tratadas como variáveis qualitativas, porque não estamos diante de
eventos quantitativos, mas sim de uma classificação atribuída pelo pesquisador a cada evento
dos Relatórios de Atendimento do Programa SUS MEDIADO.
Isso pode ser observado na coluna “Medir”, em que as categorias de análise das
linhas 2 (Natureza da Pretensão), 4 (Situação Atual do Objeto da Pretensão) e 5 (Resultado da
Tentativa de Resolução Extrajudicial do Conflito) foram classificadas como variáveis do tipo
nominal, espécies do gênero variáveis qualitativas que é utilizado quando não existe uma
relação de ordenação entre os diversos eventos que podem ser encontrados na respectiva
categoria de análise.
Após o cadastramento das categorias de análise e a devida classificação das
respectivas variáveis, os dados do instrumento de coleta de dados foram transportados para um
Banco de Dados do Software IBM SSPS, criado a partir das categorias de análise anteriormente
cadastradas, conforme se verifica na Figura 3.
79
Figura 3 – Banco de Dados do SSPS
Após as etapas anteriormente descritas, os dados coletados foram submetidos a
processamento eletrônico no Software IBM SSPS, que possibilitou uma análise exploratório-
descritiva das informações extraídas dos Relatórios de Atendimento do programa SUS
MEDIADO, referentes ao ano de 2014.
4.3 Análise Exploratório-Descritiva das informações extraídas do Relatórios de
Atendimento, referentes ao ano de 2014, do Programa SUS MEDIADO
4.3.1 Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global
O Programa SUS MEDIADO propiciou uma solução administrativa para 414
(quatrocentos e quatorze) dos 1239 (mil duzentos e trinta e nove) casos que lhe foram
submetidos no ano de 2014. Isso corresponde a 33%4 (trinta e três por cento) do total de pedidos
de assistência jurídica dirigidos à Defensoria Pública em causas que relativas à efetivação do
direito à saúde no âmbito do SUS, no estado do Rio Grande do Norte, no ano de 2014, consoante
se verifica no Gráfico 1:
4 Todos os percentuais apresentados doravante foram arredondados em conformidade com a norma ABNT NBR
5891:2014 - Regras de arredondamento na numeração decimal, que revisou a norma ABNT NBR 5891:1977,
elaborada pelo Comitê Brasileiro de Máquinas e Equipamentos Mecânicos (ABNT/CB-04).
80
Gráfico 1 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial Global
Note-se que o uso da mediação pela Defensoria Pública reduziu em
aproximadamente 1/3 (um terço) a necessidade de judicialização dos pedidos relacionados a
efetivação do direito à saúde que lhe foram apresentados à Defensoria Pública, na cidade de
Natal/RN, por cidadãos hipossuficientes no ano de 2014.
Isso corrobora a tese de que é preciso atentar para a possibilidade de resolução
extrajudicial dos conflitos de interesses, bem como para o fato de que existem diversos órgãos
e instituições vocacionados para esta tarefa, a exemplo da Defensoria Pública, que tem a missão
institucional de promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à
composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação,
arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos, nos termos do artigo
4º, inciso II, da Lei Complementar nº 80/94.
4.3.2 Taxa de Resolutividade Extrajudicial por tipo de demanda: “Medicamentos” versus
“Procedimentos”
A constatação de uma taxa de resolutividade extrajudicial global de 34%, serviu
de ponto de partida rumo à compreensão do real impacto das práticas de mediação
desenvolvidas pelo programa SUS MEDIADO, no ano de 2014, sobre a necessidade de
judicialização das demandas relacionadas a efetivação do direito à saúde, que foram
apresentadas (sob a formas de pedidos de assistência jurídica) à Defensoria Pública, na cidade
de Natal/RN, no aludido período.
O passo seguinte consistiu em verificar se a taxa de resolutividade extrajudicial
oscilava com base no tipo de demanda submetida ao programa SUS MEDIADO, mediante o
Encaminhados para Judicialização
67%
Mediados33%
81
cruzamento dos dados da primeira (Natureza da Pretensão) e terceira (Resultado da Tentativa
de Resolução Extrajudicial do Conflito) categorias de análise, conforme consta no Gráfico 2.
Inicialmente, os dados da primeira categoria (Natureza da Pretensão) foram
classificados em 2 (dois) grandes grupos (“Medicamentos” e “Procedimentos”) de modo a
possibilitar o aprofundamento das análises, conforme será visto adiante.
No primeiro grupo (genericamente denominado “Medicamentos”) foram incluídos
todos os casos que versavam sobre pedidos de fornecimentos de medicamentos (em sentido
estrito) suplementos ou dietas alimentares e outros insumos necessário ao tratamento de saúde
das pessoas (como fraldas geriátricas e instrumentos de aferição da glicemia capilar). No
segundo grupo (genericamente denominado “Procedimentos”), foram incluídos os pedidos de
marcação de consultas, realização de exames ou cirurgias, tratamentos fora do domicílio etc.
Gráfico 2 – Taxa de Resolutividade Extrajudicial por Grupos
(“Medicamentos” x “Procedimentos”)
Como é possível observar a partir do Gráfico 2, o grupo “Procedimentos” é
composto por 724 (setecentos e vinte e quatro) casos, que correspondem a 59% (cinquenta e
nove por cento) da amostra. Enquanto isso, o grupo “Medicamento” abrange 514 (quinhentos
e quatorze) casos, que representam 41% (quarenta e um por cento) do total de demandas
envolvendo a efetivação do direito à saúde, submetidas do programa SUS MEDIADO, na
cidade de Natal/RN, no ano de 2014.
Note-se, ainda, que ao longo do ano de 2014, o programa SUS MEDIADO
conseguiu viabilizar uma resolução extrajudicial para 352 (trezentos e cinquenta e dois casos)
725
514
352
74
0
100
200
300
400
500
600
700
800
Grupo "Procedimentos" Grupo "Medicamentos"
Total de Casos por Grupo Mediados
82
integrantes do grupo “Procedimentos” e para 62 (sessenta e dois) casos pertencentes ao grupo
“Medicamentos”.
Dessa forma, a taxa resolutividade extrajudicial do grupo “Medicamentos” foi de
apenas 12% (doze por cento), no período compreendido na amostra. Em contrapartida, o
programa SUS MEDIADO alcançou, na cidade de Natal/RN, uma taxa de resolutividade
extrajudicial de 49% (quarenta e nove por cento) no grupo “Procedimentos”, no ano 2014.
Esses números preliminares sugerem que a mediação tem um reduzido potencial de
resolução extrajudicial em pedidos de fornecimento de medicamentos, suplementos
alimentares (ou dietas especiais) e outros insumos necessários ao tratamento de saúde (ex.:
fraldas geriátricas ou instrumento de aferição da glicemia capilar). Afinal, 88% (oitenta e oito
por cento) dos casos pertencentes ao grupo “Medicamentos” precisaram ser judicializados.
Por outro lado, os números permitem afirmar que a mediação possui um elevado
potencial de resolução extrajudicial quando a pretensão da parte interessada consiste em
consultas médicas, realização de exames ou cirurgias, tratamento fora do domicílio etc., pois
somente pouco mais da metade (51%) dos casos pertencentes ao grupo “Procedimentos”
precisaram ser levados à apreciação do Poder Judiciário.
4.3.3 A mediação nos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos, suplementos
alimentares (ou dietas especiais) e outros insumos necessários ao tratamento de saúde
das pessoas
Após verificar que as práticas de mediação apresentam uma maior taxa de
resolutividade nas demandas passíveis de serem classificadas no grupo “Procedimentos”, a
pesquisa procurou desvendar a responder de partida: “em que situações o uso da mediação pela
Defensoria Pública reduz a necessidade de judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito
de medicamentos apresentados por cidadãos hipossuficientes à Defensoria Pública?”, de modo
a colocar à prova a hipótese de que “a mediação somente reduz a necessidade de judicialização
das demandas expressamente contempladas pela política de assistência farmacêutica do SUS”.
A partir desse momento, somente os 514 (quinhentos e quatorze) Relatórios de
Atendimento pertencentes ao grupo “Medicamentos” continuaram a ser analisados.
Os dados da primeira categoria de análise (natureza da pretensão) foram
classificados em três espécies: “medicamentos em sentido estrito”, “suplementos alimentares
ou dietas especiais” e “outros”, conforme detalhado no item 5.3.3.1. Essa providência permitiu
a análise individualizada de cada uma das espécies de pretensões integrantes da amostra.
83
4.3.3.1 Visão geral do grupo “Medicamentos”
Antes de avançarmos para a análise da influência da segunda categoria de análise
(situação atual do objeto da pretensão) sobre o resultado das tentativas de resolução
extrajudicial das demandas por fornecimento gratuito de medicamentos levadas por cidadãos
hipossuficientes à Defensoria Pública, na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, convém
detalharmos a composição do grupo “Medicamentos”, de modo a viabilizar uma adequada
compreensão do objeto do presente estudo.
Nesse sentido, o Quadro 1 apresenta não apenas o tipo de produto integrante do
grupo “Medicamentos”, mas também a quantidade de casos identificados no ano de 2014 (em
números absolutos e percentuais) e o percentual de: (1) casos mediados, (2) casos encaminhados
para Judicialização, (3) casos encaminhados para apresentação de requerimento administrativo;
(4) casos em que não haviam informações disponíveis e (5) casos relativos a descumprimento
de demandas judiciais em curso.
Quadro 1 – Visão Geral do grupo “Medicamentos”
TOTAL
TIPO DO PRODUTO
Medicamentos
em sentido
estrito
Suplemento
Alimentar /
Dieta
Outros (Fraldas
Geriátricas,
Sondas etc.)
TOTAL PESQUISADO 514 448 64 2
RESULTADO
FINAL
Mediado 12% 14% 0% 0%
Judicialização 81% 79% 95% 100%
Encaminhado para
apresentar requerimento
administrativo
1% 1% 2% 0%
Informações
Indisponíveis
5% 5% 3% 0%
Descumprimento de
Tutela Judicial
1% 1% 0% 0%
Note-se que, ressalvados aqueles constantes da coluna “TOTAL”, os percentuais se
referem ao total de cada tipo de produto (e não de casos integrantes do grupo Medicamentos).
Registre-se, ainda, que ao menos 2% das demandas pertencentes ao grupo
“Medicamentos” não puderam ser submetidas às práticas de mediação desenvolvidas pelo
Programa SUS MEDIADO:
84
• Em 1% dos casos, a parte interessada não havia apresentado requerimento
administrativo antes de buscar a mediação/judicialização para solucionar o problema,
situação que impede o acesso ao Programa SUS MEDIADO. Nesses casos, a parte
interessada recebeu as informações necessárias à apresentação do requerimento
administrativo (local onde o mesmo deve ser apresentado, documentação necessária
etc.) e foi orientada acerca da possibilidade de retornar ao SUS MEDIADO caso o seu
pedido seja efetivamente negado pelos órgãos competentes;
• Em 1% dos casos, foi identificado que a parte interessada já possuía demanda judicial
com tutela antecipada deferida em seu favor e estava buscando o Programa SUS
MEDIADO com a expectativa de solucionar uma situação de descumprimento da
decisão que deferiu a antecipação de tutela no caso concreto. Nesses casos, a parte
interessada foi informada que o Programa SUS MEDIADO atua exclusivamente na fase
extrajudicial, a fim de tentar evitar a judicialização do conflito e foi orientada a relatar
o descumprimento da tutela ao setor de atendimento da Defensoria Pública, para que
possam ser adotadas as providências cabíveis.
Por fim, é preciso esclarecer que 5% do Relatórios de Atendimento referentes ao
grupo “Medicamentos” (ano 2014) estão “em branco” (não possuem qualquer indicação acerca
da situação atual do objeto da pretensão ou do resultado final do processo mediação), motivo
pelo qual foram classificados como “informações indisponíveis”. Isso provavelmente se deve
ao fato de que a parte interessada (por qualquer motivo) não compareceu na data marcada para
a realização da sessão de mediação.
Feitas essas breves considerações, é possível observar no Quadro 1 que o grupo
“Medicamentos” foi composto essencialmente por pedidos de medicamentos em sentido estrito
(87% da amostra) e suplementos alimentares ou dietas (12% da amostra). Note-se que a
categoria outros teve apenas 2 (dois) casos, que, juntos, representam menos de 1% da amostra
do grupo Medicamentos.
4.3.4 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados na
categoria “Medicamentos em sentido estrito”
Os pedidos de medicamentos em sentido estrito compõem a categoria merecedora
de uma análise mais detalhada na presente pesquisa. Não apenas pelo fato de que ela
85
corresponde a 87% (oitenta e sete por cento) dos casos abrangidos pela amostra, mas
especialmente pelo fato de que ela foi a única integrante do grupo “Medicamentos” na qual o
programa SUS MEDIADO conseguiu viabilizar uma resolução extrajudicial para o problema
apresentado pela parte interessada.
Nos tópicos seguintes, será apresentada a forma como a segunda categoria de
análise (situação atual do objeto da pretensão) se manifesta nos 448 (quatrocentos e quarenta
e oito) casos que integram a subcategoria “Medicamentos em sentido estrito”.
Frise-se, desde logo, porém, que 10 (dez) dos referidos casos não chegaram a ser
efetivamente submetidos às práticas de mediação do programa SUS MEDIADO, seja porque a
parte interessada ainda não havia apresentado requerimento administrativo (como ocorreu em
5 casos) ou porque a pretensão se enquadrava como descumprimento de decisão judicial
antecipatória de tutela (situação que não se enquadra na proposta do SUS MEDIADO, cuja
proposta é a de evitar a própria judicialização da questão), como ocorreu em 5 (cinco) ocasiões.
Além disso, não havia informações disponíveis em 16 (dezesseis) Relatórios de
Atendimento integrantes da categoria de análise medicamentos em sentido estrito.
4.3.4.1 Medicamento contemplado pelo SUS e disponível na rede pública de saúde
A pesquisa constatou que foram submetidos ao programa SUS MEDIADO, na
cidade de Natal/RN, no período abrangido pela amostra, 46 (quarenta e seis) pedidos de
medicamentos (em sentido estrito) contemplados pela política pública de assistência
farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde e que estavam disponíveis na Rede pública
de saúde na oportunidade da mediação, sendo que, destes, 5 (cinco) não chegaram a ser
efetivamente submetidos às práticas de mediação do programa SUS MEDIADO, porque a parte
interessada ainda não havia apresentado requerimento administrativo.
Dos 41 (quarenta e um) casos que foram efetivamente submetidos ao programa SUS
MEDIADO, somente 1 (um) único caso não alcançou uma resolução extrajudicial por meio do
referido programa, porque a parte interessada não apresentou a documentação médica
necessária ao fornecimento do medicamento em questão.
Com efeito, é possível afirmar que a mediação tem um elevado potencial de
resolução extrajudicial dos pedidos de fornecimento de medicamentos que já estão
contemplados na política pública do SUS, se o medicamento estiver disponível na rede pública
de saúde.
86
4.3.4.2 Medicamento contemplado pelo SUS, mas em falta (indisponível) na rede pública de
saúde
Foram identificados 79 (setenta e nove) casos em que o “medicamento em
sentido estrito”, embora contemplado pela política pública de fornecimento gratuito de
medicamentos no âmbito do Sistema Único de Saúde, estava em falta (indisponível) na rede
pública de saúde, dos quais 62 (sessenta e dois) foram encaminhados para judicialização e 17
(dezessete) alcançaram uma resolução extrajudicial por meio do programa SUS MEDIADO,
conforme se verifica no Gráfico 3.
Gráfico 3 – Medicamentos Contemplados pelo SUS, mas em falta na rede pública de saúde
Esses dados surpreenderam, pois não imaginávamos que a mediação fosse capaz de
viabilizar uma resolução extrajudicial de situações em que o medicamento está em falta
(indisponível) na rede pública de saúde.
Por esse motivo, decidimos aprofundamos a análise para tentar identificar quais
fatores viabilizaram o êxito da mediação em 16% dos casos.
Procedemos ao cruzamento da segunda (situação atual do objeto da pretensão) e
da terceira variável (resultado da tentativa de resolução extrajudicial do conflito) dentro do
universo dos pedidos de “medicamento contemplado pelo SUS, mas em falta (indisponível) na
rede pública de saúde”.
Como resultado, constatamos que em 1 (um) dos casos, a pretensão da parte
assistida consistia na obtenção de apenas 1 (uma) ampola de medicamento de baixo custo, de
modo que os entes públicos constaram, durante o processo de mediação, que os custos do
processo seriam desproporcionais para a situação. Para solucionar o impasse, o Setor de
79%
16%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
Encaminhados para Judicialização Mediados
87
Atendimento de Demandas Judiciais providenciou a aquisição do medicamento e,
posteriormente, foi ressarcido pela Secretaria Estadual de Saúde.
Situação semelhante ocorreu em outro caso em que os órgãos administrativos do
Sistema Único de Saúde conseguiram o medicamento, que estava indisponível no estado do Rio
Grande do Norte, mediante empréstimo de outra unidade da federação.
No entanto, o que mais chamou a atenção foi que em 12 (doze) dos 17 (dezessete)
casos de medicamento indisponível na rede pública de saúde que alcançaram uma resolução
extrajudicial mediante a atuação do SUS MEDIADO, no ano de 2014, o fator essencial para o
sucesso da mediação foi a qualidade da informação prestada pelos agentes do Sistema Único
de Saúde que participam do referido programa.
Isso porque, durante o processo de mediação, constatou-se que, embora o
medicamento estivesse indisponível, o mesmo já havia sido empenhado e havia, inclusive, uma
previsão acerca da data em que o mesmo estaria disponível.
Em todos os casos 12 (doze) casos em que foi apresentada uma previsão de
disponibilidade do medicamento para a parte interessada, a mesma aceitou aguardar pelo
medicamento, desistindo de buscar a via judicial para a solução de seu problema.
Esses dados permitem afirmar que a mediação apresenta um baixo potencial de
resolução extrajudicial nos casos em que o medicamento, embora contemplado na política
pública do SUS, está em falta (indisponível) na rede pública de saúde, mas que a qualidade da
informação prestada à parte interessada por ocasião de seu requerimento administrativo pode
evitar o ajuizamento de diversas demandas judiciais.
4.3.4.3 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente é disponibilizado em posologia
diferente da que foi prescrita para a parte interessada (necessidade de ajuste
posológico)
A pesquisa identificou 1 (um) caso em que a parte interessada não havia conseguido
obter, perante a rede pública, o medicamento necessário ao seu tratamento de saúde porque a
política pública de fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito do SUS somente
disponibilizava uma posologia diferente daquela que havia sido prescrita pelo médico que a
acompanhava.
A mediação evitou o ajuizamento da demanda, por meio de um ajuste posológico
que compatibilizou o medicamento disponibilizado pelo SUS com a prescrição médica
apresentada pela parte interessada.
88
4.3.4.4 Medicamento contemplado pelo SUS, mas não é disponibilizado para o CID constante
no receituário médico apresentada pela parte interessada ou para a faixa etária da parte
interessada é incompatível com a política pública instituída no âmbito do SUS
Foram identificados 44 (quarenta e quatro) casos em que, embora contemplado pelo
SUS, o medicamento não era fornecido para o tratamento da doença indicada na documentação
médica apresentada pela parte interessada.
O programa SUS MEDIADO somente conseguiu viabilizar uma resolução
administrativa para 2 (dois) dos referidos casos, provavelmente porque a enfermidade podia ser
descrita por meio de mais de um CID e algum deles estava contemplado na política pública do
Sistema Único de Saúde.Isso representa somente 4% do total de casos apurados nessa situação,
de modo que é possível afirmar que a mediação apresenta um baixo potencial de resolução
extrajudicial quando existe uma incompatibilidade entre o CID constante na documentação
médica apresentada pela parte interessada e aqueles em que a política pública do SUS autoriza
o fornecimento do medicamento em questão.
O mesmo ocorreu nos 2 (dois) casos em que se observou que, embora o
medicamento estivesse contemplado na política pública do SUS e estivesse disponível, havia
uma restrição quantos às faixas etárias em que mesmo poderia ser disponibilizado e a parte
interessada possuía idade inferior ou superior aos limites estabelecidos.
4.3.4.5 Medicamento contemplado pelo SUS, mas somente para pacientes hospitalizados ou
quando a parte interessada apresentou intolerância à marca que é disponibilizada pela
rede pública de saúde
A pesquisa revelou que o programa SUS MEDIADO não foi capaz de viabilizar
uma resolução extrajudicial para nenhum dos 11 (onze) casos em que o medicamento postulado
pela parte interessada, embora contemplado pelo SUS, somente é disponibilizado para
pacientes hospitalizados, situação na qual a parte interessada não se encontra, nem para 1 (um)
caso em que a parte interessada apresentou intolerância à marca fornecida pelo SUS.
Isso denota a mediação não é capaz de solucionar demandas nas quais as
peculiaridades do caso concreto esbarrem em óbice expressamente instituído na política pública
de assistência farmacêutica instituída no âmbito do SUS.
89
4.3.4.6 Medicamento contemplado pelo SUS, mas o limite mensal disponibilizado pela rede
pública é insuficiente para o tratamento de saúde da parte interessada
Foram observados 5 (cinco) casos em que o medicamento estava contemplado pelo
SUS, mas o limite mensal disponibilizado pela rede pública é insuficiente para o tratamento de
saúde da parte interessada.
Nenhum desses casos alcançou uma resolução extrajudicial por meio do programa
SUS MEDIADO, de modo que é possível afirmar que a mediação apresenta um baixo potencial
de resolução extrajudicial nas hipóteses em que a quantidade de medicamento exigida para o
tratamento de saúde da parte interessada extrapola o limite mensal estabelecido na política
pública instituída no âmbito do SUS.
4.3.4.7 Medicamento recentemente incorporado (contemplado pelo SUS), mas que ainda não
está sendo disponibilizado pela rede pública de saúde
Como era de se esperar, o programa SUS MEDIADO não conseguiu viabilizar uma
solução extrajudicial para nenhum dos 4 (quatro) casos em que o medicamento postulado pela
parte interessada, embora tivesse sido recentemente incorporado pelo SUS, ainda não estava
sendo disponibilizado pela rede pública de saúde.
A absoluta indisponibilidade do medicamento na rede pública e a ausência de uma
previsão acerca de quando o mesmo estaria disponível inviabilizou a mediação nesses casos.
4.3.4.8 Medicamento contemplado pelo SUS, mas que teve seu fornecimento suspenso pelas
Secretaria de Saúde (estadual ou municipal)
O programa SUS MEDIADO também não conseguiu viabilizar uma solução
extrajudicial para nenhum dos 4 (quatro) casos em que o medicamento, embora contemplado
pela política pública de assistência farmacêutica no âmbito do SUS, teve seu fornecimento
suspenso pela Secretaria de Saúde (estadual ou municipal).
A mediação não foi capaz de viabilizar uma solução para esses casos, que foram
encaminhados para judicialização.
90
4.3.4.9 Medicamento não contemplado pelo SUS
A pesquisa constatou que 231 (duzentos e trinta e um) pedidos de fornecimento de
medicamentos (em sentido estrito) não contemplados pelo SUS foram submetidos ao programa
SUS MEDIADO ao longo do ano de 2014.
A hipótese inicial era a de que a mediação não seria capaz de reduzir a necessidade
de judicialização das demandas que não estivessem expressamente contempladas por políticas
públicas instituída no âmbito do SUS.
Para nossa surpresa, o programa SUS MEDIADO conseguiu, ao longo do ano de
2014, viabilizar uma solução extrajudicial para 9 (nove) pedidos de fornecimento gratuito de
medicamentos não contemplados pela política pública de assistência farmacêutica instituída no
âmbito do SUS.
Diante dessa constatação, procuramos aprofundar a análise em busca dos fatores
que permitiram que isso ocorresse e observamos que todos os 9 (nove) casos solucionados
extrajudicialmente referiam-se a medicamentos que, embora não estivessem contemplados pelo
SUS, possuíam uma alternativa terapêutica contemplada e disponível na rede pública de saúde.
Na sequência, constatamos que, no período compreendido na amostra, a mediação
conseguiu viabilizar uma solução extrajudicial para o conflito sempre que havia uma alternativa
terapêutica contemplada e disponível no âmbito na rede pública de saúde (com exceção daquele
único caso, mencionado no item 4.3.4.5, em que a parte interessada apresentou intolerância à
marca do medicamento oferecido pelo SUS).
Dessa forma, contrariando a hipótese inicial da pesquisa, o estudo revelou que a
mediação é capaz de reduzir a necessidade de judicialização dos pedidos de fornecimento
gratuito de medicamentos não contemplados pela política de assistência farmacêutica do SUS,
se houver uma alternativa terapêutica contemplada e disponível na rede pública de saúde.
4.3.5 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados na
categoria “suplementos alimentares ou dietas especiais”
A pesquisa revelou que nenhum dos 64 (sessenta e quatro) pedidos de fornecimento
de suplementos alimentares ou dietas especiais alcançou uma resolução extrajudicial por meio
das práticas de mediação desenvolvidas pelo Programa SUS MEDIADO, na cidade de
Natal/RN, no ano de 2014.
91
Com efeito, decidimos aprofundar nossas análises e traçar um perfil das demandas
por suplementos alimentares ou dietas especiais, submetidas ao programa SUS MEDIADO, no
período compreendido na amostra, a fim de tentar compreender os motivos que levaram à
ausência de resolutividade extrajudicial nesses casos.
Para a consecução dessa tarefa, identificamos os diversos eventos da segunda
categoria de análise (situação atual do objeto da pretensão) dentro do universo dos pedidos de
suplementos alimentares ou dietas especiais.
4.3.5.1 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível na
Rede Pública
Foi observado 1 (um) único caso em que a pretensão veiculada pela parte assistida
estava contemplada pela política pública de fornecimento gratuito de medicamentos do Sistema
Único de Saúde.
Frise-se, porém, que este caso não foi submetido às práticas de mediação do
Programa SUS MEDIADO (e, portanto, não foi somado ao percentual de casos em que a
tentativa de mediação foi exitosa), tendo em vista que a parte interessada não ainda não havia
apresentado requerimento administrativo.
A parte interessada foi orientada para apresentação de requerimento administrativo
perante o órgão competente e a retornar ao Programa SUS MEDIADO na eventualidade de se
deparar com um indeferimento administrativo (o que não ocorreu).
4.3.5.2 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e em falta na Rede
Pública
A pesquisa identificou 2 (dois) casos em que o objeto da pretensão veiculada pela
parte assistida, apesar de contemplada pela política pública de fornecimento gratuito de
medicamentos do SUS, estava em falta da rede pública. Não houve sucesso no processo de
mediação em questão e os casos foram encaminhados para judicialização.
Em princípio, esse dado poderia sugerir uma incapacidade da mediação em lidar
com situações que não estejam disponíveis na rede pública. No entanto, quando analisamos os
pedidos de medicamentos em sentido estrito que, apesar de contemplados pela política pública
de assistência farmacêutica do SUS, estavam indisponíveis na rede pública (item 4.3.4.2),
92
constatamos que a mediação tem chances de êxito quando existe uma acerca da data em que o
medicamento estará disponível.
Por esse motivo, analisamos os Relatórios de Atendimento dos 2 (dois) pedidos de
suplementos alimentares ou dietas especiais que, embora contemplados pelo SUS, estavam em
falta da rede pública de saúde e constatamos que, em ambos, a parte interessada não recebeu
nenhuma previsão acerca de quando o objeto da pretensão estaria disponível na rede pública,
de modo que as conclusões apresentadas no item 4.3.4.2 são perfeitamente compatíveis com os
casos analisados no presente tópico.
4.3.5.3 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível na
Rede Pública, mas não disponibilizado em virtude da idade da parte interessada
A pesquisa identificou 1 (um) caso em que o suplemento alimentar é fornecido pelo
Sistema Único de Saúde e, embora esteja disponível na rede pública, não pode ser
disponibilizado para a parte assistida, tendo em vista que a idade da mesma era superior ao
limite estabelecido pela política pública de fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito
do SUS.
O pedido referia-se ao fornecimento da fórmula nutricional Aptamil Soja 2 (isolado
de soja), que atualmente é fornecido pelo município de Natal e pelo Estado do Rio Grande do
Norte, em virtude de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrando com o Ministério
Público do Rio Grande do Norte, por meio do qual os entes federativos assumiram a
responsabilidade de fornecer a fórmula nutricional em questão para crianças de 0 (zero) a 3
(três) anos de idade, critério no qual a parte interessada já não mais se enquadrava, por estar
com 3 (três) anos e 2 (dois) meses de idade.
Num contexto em que a próprio fornecimento da fórmula nutricional em questão
somente foi possível para crianças com até 3 (três) anos de idade após a celebração de um
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Município de Natal, o Estado do Rio Grande
do Norte e o Ministério Público do Rio Grande do Norte, a mediação não foi capaz de viabilizar
o fornecimento do suplemento alimentar (dieta especial) em questão.
Dessa forma, a mediação se revelou incapaz de solucionar demandas nas quais as
peculiaridades do caso concreto esbarrem em óbice expressamente instituído na política pública
de assistência farmacêutica instituída no âmbito do SUS, consoante havia se observado no item
4.3.4.4.
93
4.3.5.4 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) contemplado pelo SUS e disponível na
Rede Pública, mas apenas para pacientes hospitalizados
A pesquisa também revelou a existência de 10 (dez) casos em que o suplemento
alimentar (ou dieta especial), embora disponível na rede pública, não pode ser fornecido à parte
interessada porque a política pública de fornecimento gratuito de medicamentos do SUS só
prevê a dispensação do mesmo para pacientes hospitalizados.
A mediação não foi capaz solucionar o conflito, em virtude da taxatividade dos
casos em que a Administração Pública está autorizada a liberar o medicamento, revelando-se,
mais uma vez, incapaz de solucionar demandas nas quais as peculiaridades do caso concreto
esbarrem em óbice expressamente instituído na política pública de assistência farmacêutica
instituída no âmbito do SUS, conforme havia se observado no item 4.3.4.5.
4.3.5.5 Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) não contemplados pelo SUS
Foram identificados 47 (quarenta e sete) pedidos de suplemento alimentar (ou dieta
especial) não contemplados pelo SUS, número que corresponde a 73% (setenta e três por cento)
dos pedidos de fornecimento gratuito de suplementos alimentares ou dietas especiais
submetidos ao programa SUS MEDIADO, no ano de 2014.
A mediação não conseguiu viabilizar uma solução extrajudicial para nenhum deles.
Se fôssemos analisar esse dado isoladamente, poderíamos concluir que a mediação
não tem aptidão para solucionar pedidos de fornecimento de suplementos alimentares (ou dietas
especiais) que não estejam contemplados na política pública de fornecimento gratuito de
medicamentos do Sistema Único de Saúde. Aliás, essa era a hipótese inicial da pesquisa.
No entanto, não podemos perder de vista que os resultados apresentados no item
4.3.4.9 indicaram que a mediação pode ser capaz de viabilizar uma solução extrajudicial para
pedidos de medicamentos não contemplados pelo Sistema Único de Saúde, quando houver uma
alternativa terapêutica contemplada pela política de assistência do SUS.
Por conseguinte, analisamos individualmente os Relatórios de Atendimento dos 47
(quarenta e sete) pedidos de suplementos alimentares ou dietas especiais não contemplados pelo
SUS e constatamos que, em nenhum deles foi apresentada à parte interessada uma alternativa
contemplada pelo Sistema Único de Saúde.
94
Sendo assim, as conclusões apresentadas no item 4.3.4.9 permanecem válidas e são
capazes de explicar o ocorrido em relação aos pedidos de suplementos alimentares (ou dietas
especiais) não contemplados pela política de assistência farmacêutica do SUS.
4.3.5.6 Informações indisponíveis
Por derradeiro, convém registrar que 2 (dois) Relatórios de Atendimento da
categoria Suplementos Alimentares e Dietas Especiais não possuíam qualquer informação
acerca da situação atual do objeto da pretensão ou do resultado final do processo mediação).
4.3.6 Apresentação dos resultados das práticas de mediação em pedidos enquadrados na
categoria “outros”
Apenas 2 (dois) casos foram enquadrados na categoria “outros” ao longo do período
analisado: um deles consistiu em pedido de fornecimento de fraldas geriátricas e o outro foi
um pedido de fornecimento de tiras para verificação de glicemia capilar.
4.3.6.1 Pedido de fornecimento de fraldas geriátricas
Durante todo o ano de 2014 somente um único pedido de fornecimento de fraldas
geriátricas foi submetido ao Programa SUS MEDIADO, na cidade de Natal/RN.
As fraldas geriátricas costumam ser regularmente fornecidas pelo município de
Natal/RN, mas estavam em falta (indisponíveis) na época em que foi apresentado o
requerimento administrativo e também na época em que foi realizada a tentativa de mediação
(novembro/2014).
Não houve sucesso na tentativa mediação e o caso foi encaminhado à Defensoria
Pública Estadual, para fins de ajuizamento da demanda (em conformidade com o Termo de
Cooperação que deu origem ao Programa SUS MEDIADO), pois a pretensão já está inserida
na política pública de distribuição de medicamentos e outros insumos relacionados à proteção
do direito à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde.
4.3.6.2 Pedido de fornecimento de tiras para verificação de glicemia capilar
95
Os testes de glicemia capilar servem para aferir o nível de glicose (açúcar) no
sangue, no momento exato em que são realizados. Dessa forma, eles auxiliam no
acompanhamento e controle do Diabetes, funcionando de forma complementar à avaliação
periódica que deve ser realizada pelos pacientes através de exames de dosagem de glicose no
sangue (glicemia) e hemoglobina glicada (média de glicose no sangue nos últimos 3 meses).
De acordo com as informações prestadas, durante a sessão de mediação, pela área
técnica do Município de Natal/RN, as tiras para verificação de glicemia capilar estão sendo
regularmente fornecidas pelo Sistema Único de Saúde na cidade de Natal/RN. Entretanto, existe
um limite de 100 (cem) tiras mensais por pacientes, situação que não atende à necessidade da
parte interessada que, de acordo com a prescrição médica apresentada perante o Programa SUS
MEDIADO, necessita realizar 7 (sete) medições ao dia, totalizando a necessidade de 210
(duzentas e dez) tiras mensais.
Não houve sucesso na tentativa de mediação e o caso precisou ser judicializado.
4.3.7 Análise dos resultados das práticas de mediação do grupo “Medicamentos”
O Gráfico 4 fornece uma visão geral do resultado da mediação promovida pelo
programa SUS MEDIADO, nas principais demandas por medicamentos em sentido, no ano de
2014:
Gráfico 4 – Resultado da Mediação em demandas por medicamentos em sentido estrito
0
50
100
150
200
250
Medicamentocontemplado pelo SUS e
Disponível na RedePública
Medicamentocontemplado pelo SUS,
mas está em falta(indisponível) na Rede
Pública
Medicamentocontemplado pelo SUS,mas o caso esbarra em
óbice expresso da políticapública do SUS
Medicamento nãocontemplado pelo SUS
Total de Casos Casos Mediados
96
Como se pode ver, a mediação tem um elevado potencial de resolução extrajudicial
dos pedidos de fornecimento de medicamentos que já estão contemplados na política pública
de assistência farmacêutica do Sistema Único de Saúde, quando o medicamento está disponível
da rede pública de saúde.
A pesquisa evidenciou que o SUS MEDIADO somente não conseguiu solucionar
extrajudicial um único caso de medicamento contemplado pelo SUS e disponível na rede
pública de saúde. Todavia, é importante notar que isso somente ocorreu porque a parte
interessada não apresentou nenhuma documentação médica indicando a necessidade do
medicamento no referido caso (motivo justo para o indeferimento administrativo).
A criação desse “espaço de diálogo” entre as instituições jurídicas e políticas
diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde permitiu a constatação de que o
indeferimento administrativo havia sido equivocado nesses casos, tornando desnecessária a
judicialização da questão.
Outro aspecto relevante evidenciado pela pesquisa foi a importância da qualidade
da informação prestada pelos órgãos administrativos do Sistema Único de Saúde para a redução
da litigiosidade dos conflitos envolvendo pedidos de medicamentos que, embora contemplado
na política pública do SUS, estão em falta (indisponível) na rede pública de saúde.
Embora o estudo tenha revelado um baixo potencial de resolução extrajudicial nos
casos em que o medicamento contemplado pela política de assistência farmacêutica do SUS
está em falta (indisponível) na rede pública de saúde, foi possível observar que a informação
de previsão concreta (e com prazo razoável) para a chegada do medicamento aos pontos de
distribuição foi decisiva para evitar a judicialização do conflito, pois as partes interessadas
acabaram preferindo aguardar a data prevista informada a ter que enfrentar a via judicial para
discutir o problema.
Além disso, o ambiente colaborativo criado pelo Programa SUS MEDIADO
permitiu que fosse solucionado um caso em que o valor do medicamento era insignificante,
bem como para uma demanda pudesse ser atendida mediante empréstimo do medicamento por
outra unidade da federação.
Como se não bastasse, o registro dos casos e dos motivos pelos quais as pretensões
foram originalmente indeferidas pela esfera administrativa, ao apontarem onde estão ocorrendo
as principais falhas na execução da política pública do Sistema Único de Saúde, podem servir
de importante instrumento para que a Administração Pública aperfeiçoe a política pública de
assistência farmacêutica no âmbito do SUS.
97
Veja-se, por exemplo, o caso em que o pedido da parte interessada fora
originalmente indeferido na esfera administrativa porque a posologia prescrita pelo médico não
correspondia à que era contemplada pela política de assistência farmacêutica do SUS: a
mediação evitou o ajuizamento da demanda, por meio de um ajuste posológico que
compatibilizou o medicamento disponibilizado pelo SUS com a prescrição médica apresentada
pela parte interessada, mas também serviu de alerta para que esse tipo de preocupação
(verificação da possibilidade de ajuste posológico) seja levado em conta pelos agentes do
Sistema Único de Saúde encarregados da análise dos pedidos de fornecimento gratuito de
medicamento antes de indeferirem eventual requerimento administrativo.
O estudo também revelou (informação que serviu para contrariar a hipótese inicial
da pesquisa) que a mediação também é capaz de reduzir a necessidade de judicialização nos
casos em que o medicamento postulado pela parte interessada não está contemplado na política
de assistência farmacêutica do Sistema Único de Saúde, desde que exista uma alternativa
terapêutica contemplada pelo SUS e disponível na rede pública de saúde (hipótese que não
havia sido inicialmente cogitada pelo pesquisador, porque se presumia que isso já teria sido
previamente analisado por ocasião da apresentação do requerimento administrativo).
Mais uma vez, o ambiente de diálogo criado pelo programa SUS MEDIADO
propiciou que os órgãos administrativos do Sistema Único de Saúde oferecessem à parte
interessada a informação acerca da existência de uma alternativa terapêutica (que foi aceita na
quase totalidade dos casos, ressalvado um único caso em que a parte interessada já havia
apresentado intolerância ao medicamento contemplado pelo SUS) e conseguiram evitar a
judicialização do conflito.
Obviamente, porém, não podemos superestimar o potencial da mediação enquanto
meio alternativo de resolução dos conflitos de interesse dos pedidos de fornecimento gratuito
de medicamentos no âmbito do SUS.
A pesquisa revelou que a mediação não tem aptidão de solucionar conflitos que se
originem de possíveis problemas na formulação da política pública, pois o princípio da
legalidade impõe limites à margem de negociação da administração pública.
Isso pode ser observado pelo fato de que foi praticamente nula a resolução
extrajudicial de pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos cujas particularidades
esbarravam em algum óbice expressamente contido na política de assistência farmacêutica do
SUS, como ocorreu nos casos em que a CID constante na documentação médica do paciente
era incompatível com a lista de enfermidades para as quais o SUS fornece determinada
98
medicação, bem como nos casos em que o medicamento postulado pela parte interessada
somente era oferecido para pacientes hospitalizados.
Também refletem essa situação os casos em que o limite mensal estabelecido pela
política de assistência farmacêutica do SUS era insuficiente para atender à necessidade do
tratamento de saúde da parte interessada (de acordo com a documentação médica por ela
apresentada) e quando a idade da mesma não estava contida da faixa etária estabelecida para o
fornecimento de determinada vacina ou disponibilização de medicamento pelo SUS.
Apesar dessas limitações, os resultados obtidos estimulam que os pedidos de
fornecimento gratuito de medicamentos em sentido estrito no âmbito do SUS sejam submetidos
a uma tentativa de mediação antes que seja busca a via judicial para a solução do conflito.
Registre-se, porém, que em se tratando de pedidos de suplementos alimentares ou
dietas especiais a situação é alterada, pois nenhum dos 64 casos submetidos ao programa SUS
MEDIADO, no período compreendido na amostra, conseguiram alcançar uma solução
extrajudicial por meio da mediação.
O Gráfico 5 fornece uma visão geral dos motivos pelos quais a os pedidos de
fornecimento de suplementos alimentares ou dietas especiais, submetidos ao Programa SUS
MEDIADO, no ano de 2014, foram indeferidos na esfera administrativa:
Gráfico 5 – Principais motivos de Indeferimento Administrativo dos pedidos de
Suplementos Alimentares e Dietas Especiais
Convém ressaltar que o caso em que o suplemento alimentar (ou dieta especial) era
fornecido pelo SUS e estava disponível na rede pública (item 4.3.4.1) não foi incluído no
gráfico, em virtude de não ter sido submetido ao processo de mediação, porque a parte
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%
Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) fornecidopelo SUS e em falta na Rede Pública
Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial)fornecido pelo SUS e disponível na Rede Pública,mas não disponibilizado em virtude da idade da…
Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial)fornecido pelo SUS e disponível na Rede Pública,
mas apenas para pacientes hospitalizados
Suplemento Alimentar (ou Dieta Especial) nãofornecido pelo SUS
99
interessada não havia apresentado requerimento administrativo, tendo sido orientada a fazê-lo
e a retornar ao SUS MEDIADO em caso de indeferimento do pleito pelos órgãos
administrativos do Sistema Único de Saúde.
Da mesma forma, não foram incluídos no gráfico os 2 (dois) casos cujos Relatórios
de Atendimento não apresentavam as informações necessárias ao aprofundamento da análise.
Feitas essas breves considerações, observa-se claramente que a ampla maioria
(78%) das demandas que integram a categoria Suplementos e Dietas Especiais refere-se a
pretensões não contempladas pela política pública de fornecimento gratuito de medicamentos
do Sistema Único de Saúde, hipótese em que a mediação somente tem o potencial de viabilizar
uma solução extrajudicial para o caso se houver uma alternativa terapêutica contemplada pelo
SUS (item 4.3.4.9), o que não ocorreu em nenhum dos pedidos de suplementos alimentares ou
dietas especiais submetidos ao programa SUS MEDIADO no ano de 2014.
Os 22% (vinte e dois por cento) restantes referem-se a situações em que a pretensão
da parte interessada esbarra em óbice expressamente constante na política de assistência
instituída no âmbito do SUS, situação para a qual a mediação se mostrou incapaz de viabilizar
uma solução extrajudicial, por se tratar de problema relacionado à formulação da política
pública, matéria sobre a qual os órgãos encarregados de sua execução não têm competência
para dispor.
Por fim, convém salientar que as demandas enquadradas na categoria “outros”, em
razão de seu reduzido número, pouco contribuíram para a realização de um diagnóstico do
programa SUS MEDIADO, desenvolvido na cidade de Natal/RN, no ano de 2014, exceto por
reforçarem as conclusões a que chegamos quando da análise dos pedidos de medicamentos em
sentido estrito (itens 4.3.4.2 e 4.3.4.6) e de suplementos alimentares ou dietas especiais (itens
4.3.5.2 e 4.3.5.4).
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise exploratório-descritiva da integralidade dos Relatórios de
Atendimentos realizados pelo programa SUS MEDIADO no ano de 2014, foi possível perceber
em que medida o uso da mediação pela Defensoria Pública reduz a necessidade de
judicialização dos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos que lhe são apresentados
por cidadãos hipossuficientes.
O presente trabalho serviu para contrariar a hipótese de que a mediação somente
reduziria a necessidade de judicialização das demandas expressamente contempladas por
políticas públicas instituída no âmbito do SUS, ao revelar que a mediação é capaz de reduzir a
necessidade de judicialização de pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos não
contemplados pela política de assistência farmacêutica do SUS, quando existe uma alternativa
terapêutica contemplada e disponível na rede pública de saúde.
O estudo revelou, ainda, que a mediação é capaz de oferecer uma solução
extrajudicial para pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos que, embora estejam
contemplados na política de assistência farmacêutica do SUS, encontram-se indisponíveis na
rede pública de saúde, especialmente quando existem informações concretas acerca do
andamento do procedimento administrativo de aquisição dos medicamentos em questão e
alguma data estimada para a disponibilidade dos mesmos.
Como se pode ver, a qualidade da informação prestada ao autor de um pedido de
fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito Sistema Único de Saúde é um fator
fundamental para a redução da necessidade de judicialização dos pedidos de fornecimento
gratuito de medicamentos indeferidos na esfera administrativa.
A criação de “espaços de diálogo” entre as instituições jurídicas e políticas
diretamente envolvidas na efetivação do direito à saúde, a exemplo do que ocorre no programa
SUS MEDIADO, possibilita uma maior celeridade na troca de informações e no esclarecimento
das dúvidas apresentadas pelo usuário do sistema, medida que reduz a litigiosidade das questões
relativas ao fornecimento gratuito de medicamentos no âmbito do SUS.
Esse compromisso com a tentativa de pacificação dos conflitos permite que as
partes envolvidas busquem soluções quem não dependam da intervenção do poder judiciário,
como a realização de ajustes posológicos para que a pretensão da parte interessada se adeque
ao que está previsto na política pública do SUS ou a obtenção do medicamento mediante
empréstimo por outra unidade da federação.
101
Não se pode ignorar, porém o fato de que a mediação não é capaz de viabilizar uma
solução extrajudicial para os casos em que a pretensão veiculada pela parte interessada no
fornecimento gratuito de medicamentos esbarra em alguma vedação expressa na política
pública do SUS, a exemplo do que ocorre quando o limite mensal disponibilizado pela rede
pública é insuficiente para o tratamento de saúde da parte interessada ou quando é fixada uma
determinada faixa etária para disponibilização de um determinado medicamento ou
procedimento médico.
Isso ocorre porque o princípio da legalidade impõe uma significativa limitação à
margem de negociação da administração pública em matéria de fornecimento gratuito de
medicamentos no âmbito do SUS.
Apesar dessa limitação, a pesquisa demonstra que deve ser estimulada uma maior
articulação entre a Defensoria Pública, a Advocacia Pública e as Secretarias de Saúde, pois tal
medida contribui para a melhoria da qualidade da informação que chega à parte interessada e
favorece a construção de soluções alternativas (extrajudiciais) para os pedidos de fornecimento
gratuito de medicamentos originariamente indeferidos pelos órgãos administrativos do Sistema
Único de Saúde.
102
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