Cartaz curso distrito federal seu povo, sua história 2014 (1)
A IDEOLOGIA NO TEXTO LITERÁRIO LIDA NO ROMANCE … · Medina consegue apontar na história do...
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MARIA LECIR CONSTANTE BRASIL
A IDEOLOGIA NO TEXTO LITERÁRIO LIDA NO ROMANCE MEMO RIAL
DE SANTA CRUZ
Canoas, 2005
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MARIA LECIR CONSTANTE BRASIL A IDEOLOGIA NO TEXTO LITERÁRIO LIDA NO ROMANCE MEMO RIAL
DE SANTA CRUZ
Trabalho de conclusão de curso apresentado à banca examinadora do curso de Letras do UNILASALLE - Centro Universitário La Salle, como exigência parcial para obtenção de grau de Licenciada em Letras, sob a orientação do Profº. Dr. Cícero Galeno Urroz Lopes.
Canoas, 2005.
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“Só se vê bem com o coração. O essencial é invisíve l aos olhos” Exupéry
Agradecimentos,
Aproveito este espaço para agradecer a todos os que de muitas formas foram apoio, incentivo e conselheiros em toda a caminhada que vivenciei para alcançar agora minha graduação em Letras. Em especial gostaria de agradecer: minha querida amiga Josela por todo apoio recebido neste semestre tão complicado para ambas; à professora Aline, por sua dedicação e carinho, e pelas maravilhosas reflexões de mundo que vivenciamos em sala de aula; ao professor Celso e à professora Maria Luiza pela encantadora alegria e entusiasmo que sempre iluminaram nossas aulas; à professora Clarice, nossa coordenadora, pelo apoio recebido; a meu orientador professor Cícero, que guiou meus passos na elaboração deste trabalho, mas principalmente por nos instigar a buscarmos nossa própria superação, pois somente assim seremos realmente educadores; a meu mano e minha cunhada por terem emprestado muitas vezes os ouvidos; a meus queridos filhos que compreenderam minhas ausências e impaciências; meu mui amado esposo por toda a paciência em me ouvir e em configurar meus trabalhos e por todo seu amor e a minha querida mamá por todas as orações que sei foram feitas por mim.
Lecir.
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RESUMO
Este trabalho pesquisa a ideologia nos diversos aspectos da vida em sociedade e pretende responder ao questionamento sobre a presença ideológica no texto literário. Observamos no decorrer desse trabalho que a ideologia permeia as relações sociais e que não é possível estarmos isentos de qualquer tipo de ideologia, pois toda a estrutura social está baseada em pressupostos ideológicos. Identificamos a existência de um ideal utopista que busca a harmonia social. Ao buscarmos esclarecer a presença ideológica na obra literária verificamos que toda a obra literária se vê impregnada ideologicamente, esse entendimento vem do fato de que todo e qualquer signo é por natureza ideológico-histórico-social, como toda literatura é signo estará permeada dos aspectos ideológicos presentes nos signos. Analisamos a obra Memorial de Santa Cruz de Sinval Medina para identificar marcas ideológicas presentes no romance. Sinval Medina consegue apontar na história do personagem Brasil de Santa Cruz a história do povo brasileiro. Essa analogia ao povo brasileiro traz presente as dúvidas, anseios, frustrações e conquistas desse povo. Somente quando realizamos um paralelo entre ficção e realidade conseguimos identificar a verdade mimetizada ideologicamente. Identificamos a presença ideológica na obra literária quando observamos as ambigüidades na narrativa. A ambigüidade se verifica entre oprimido e opressor, entre a fuga e a derrota, entre a vitória e a ausência de méritos. A obra Memorial de Santa Cruz traz voz ao povo brasileiro, representado pelo personagem Brasil de Santa Cruz. Ao analisar a história do povo brasileiro pela perspectiva do próprio povo, traz nova ótica para as relações sociais existentes. Palavras-Chave: ideologia – utopia – Brasil – povo brasileiro – Memorial de Santa Cruz – Sinval Medina.
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RESUMEN
Este trabajo pesquisa la ideología en los diversos aspectos de la vida en sociedad y pretende responder a el questionamiento sobre la presencia ideológica en el texto literario. Observamos en el decorrer dese trabajo que la ideología permea las relaciones sociais y que no es possíble estarmos ajenos de cualquier tipo de ideología, pues toda la estructura social esta apoyada en presupostos ideológicos. Identificamos la existéncia de uno ideal utopista que busca la harmonía social. Al buscarmos esclarecer la presencia ideológica en la obra literaria verificamos que toda la obra literaria esta impregnada ideológicamente, ese entendimiento ocurre porque todo y cualquier signo es por naturaleza ideológico-histórico-social, como toda literatura es signo estará permeada de los aspectos ideológicos presentes en los signos. Analisamos la obra Memorial de Santa Cruz de Sinval Medina para identificar marcas ideológicas presentes en la novela. Sinval Medina consegue apuntar en la historia del personaje Brasil de Santa Cruz la historia del pueblo brasileño. Esa analogía al pueblo brasileño trae presente las dudas, anseos, frustraciones y conquistas dese pueblo. Solamente cuando realizamos un paralelo entre ficción y realidad conseguimos identificar la verdad mimetizada ideológicamente. Identificamos la presencia ideológica en la obra literária cuando observamos las ambigüedades en la narrativa. La ambigüedad verificase entre oprimido y opresor, entre la fuga y la derrota, entre la vitoria y la ausencia de méritos. La obra Memorial de Santa Cruz trae voz al pueblo brasileño, representado por el personaje Brasil de Santa Cruz. La analisis de la historia del pueblo brasileño por la perspectiva del própio pueblo, trae nueva ótica para las relaciones sociais existentes. Palabras-Clave: ideología – utopía – Brasil – pueblo brasileño – Memorial de Santa Cruz – Sinval Medina.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................7 2 TEORIZAÇÃO....................................... ........................................................................8 2.1 O que é ideologia .............................. .......................................................................8 2.2 A ideologia presente no texto literário ........ .........................................................14 3 APLICAÇÃO........................................ .......................................................................22 3.1 Análise da obra Memorial de Santa Cruz ............................................................22 4 CONCLUSÃO ........................................ .....................................................................33
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1 INTRODUÇÃO
Este estudo tem por objetivo analisar a presença ideológica na obra Memorial
de Santa Cruz de Sinval Medina. A temática de estudo deste trabalho será identificar as
marcas ideológicas presentes no romance. Faz-se fundamental em primeiro lugar o
aporte teórico que definirá o termo ideologia. Entende-se que a ideologia permeia todas
as relações sociais e, por conseguinte, as relações culturais. Assim, também a literatura
levará marcas ideológicas. Faremos a análise de diversos trechos da obra, e o subsídio
teórico será buscado em bibliografia específica, relacionada no final deste projeto.
O primeiro passo será a definição de ideologia, respondendo a questões como:
que é ideologia; onde ela está presente? Quem estabelece os aspectos ideológicos que
influenciam os povos? Como a ideologia faz parte de nossas vidas?
O segundo ponto a ser abordado é a resposta ao questionamento: existe
ideologia na obra literária? Como a ideologia se apresenta e como é identificada nos
textos literários?
Por fim, analisaremos a obra Memorial de Santa Cruz, aplicando a teorização
sobre a ideologia neste texto e identificando-lhe a presença ideológica.
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2 TEORIZAÇÃO
2.1 O que é ideologia
Falar em ideologia é se colocar necessariamente em posição incômoda e
arriscada, segundo Lucia Santaella. Para a autora ninguém pode se vangloriar de estar
fora dela. Estamos impregnados de ideologias, e negar isso já representaria
ingenuidade ideológica.
As ideologias não são representações objetivas do mundo, mas representações
cheias de elementos imaginários; não descrevem necessariamente a realidade, mas
expressam desejos, esperanças e nostalgias. São as ideologias que formam e
conformam nossa consciência, atitudes, comportamentos, moldando-nos a nossa
existência social.
Um sistema de idéias, representações sociais que abrangem as idéias políticas,
jurídicas, morais, religiosas, estéticas e filosóficas dos homens de uma determinada
sociedade, é assim que Lucia Santaella define a ideologia. Adaptar os indivíduos às
tarefas fixadas pela sociedade, assegurando certa homogeneidade social, é uma das
principais funções das ideologias. Observamos entretanto que a ideologia apresenta-se
de forma orientada e tendenciosa, oferecendo aos homens uma visão mistificada do
sistema social (ALTHUSSER apud SANTAELLA, 1996, p. 215).
Numa sociedade de classes, a ideologia da classe dominante busca conformar os homens à imutabilidade do sistema para garantir sua reprodução e preservação. O papel mais saliente da ideologia é o de cristalizar as cisões da sociedade, fazendo-as passar por naturais ( SANTELLA, 1996, p. 215).
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A ideologia não esclarece, ou melhor, não diz a realidade; na verdade a ideologia
mascara a realidade buscando homogeneizar os indivíduos aos clichês e slogans
modernos. Essa teia de ilusão nos domina, transformando nossa maneira de enxergar o
mundo a nossa volta.
Ao observarmos mais minuciosamente a presença ideológica em nossa
sociedade, podemos nos apoiar em exemplos simples como as leis de trânsito. Todos
nós, pedestres e motoristas, precisamos estar cientes dos riscos que o trânsito traz à
vida de uma maneira geral. Sabemos que, se não houvesse sinais de trânsito, multas e
policiais rodoviários, haveria uma gama gigantesca de acidentes por atitudes idiotas,
como a arrogância, a ousadia, a imperícia e outros motivos. Por tudo isso aceitamos e
concordamos com todas as leis de trânsito, porque sabemos que têm por principal
objetivo salvaguardar o bem público.
Assim também funciona a ideologia em todos os demais aspectos da vida em
sociedade. Infelizmente nem todos os saberes que foram incutidos em nossa
concepção de mundo realmente são ferramentas para a manutenção do bem público.
Muitas posições políticas, religiosas, financeiras e outras, que nós adotamos, servem
para nos ludibriar. Um grande exemplo é a propaganda. Provavelmente se fôssemos
analisar criteriosamente tudo o que compramos levados pela propaganda não
entenderíamos como podemos pagar tanto por coisas que valeriam a metade. No
entanto, o consumo faz parte da sociedade moderna, da ideologia capitalista. Quem em
nossos dias não se deixa convencer pela calça da moda ou pela marca do tênis? Quem
plantou em nossas mentes a idéia da moda? Quem lucra com isso? Quem perde?
Os questionamentos acima nos auxiliam a esclarecer a importância de
refletirmos sobre ideologia, pois, como vimos, ela está presente a cada passo de
nossas vidas. Tendemos a ser por demais ingênuos com o fantástico bombardeio que o
marketing nos faz. Assimilamos com a maior naturalidade a vantagem de determinados
hábitos, porque a televisão nos diz que assim é melhor. Votamos em quem aparece
melhor nas propagandas, pois a divinização da imagem é o padrão estabelecido no
mundo pós-moderno. Nós aceitamos isso e nos recolhemos a nossa insignificância,
jamais questionando a quem interessa essa ou aquela doutrina. Não questionamos
nem mesmo se nos interessa, apenas aceitamos. Vejamos o que nos diz Santaella:
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Tanto em uma sociedade sem classes como em uma sociedade de classes, a ideologia tem como função assegurar uma determinada relação dos homens entre si e com suas condições de existência, adaptar os indivíduos a suas tarefas fixadas pela sociedade. É, portanto, a ideologia que fornece aos indivíduos de uma dada formação social uma certa homogeneidade nos modos como interpretam o mundo, nas suas maneiras de sentir, querer, julgar e de se conformar às condições reais de existência (SANTAELLA, 1996, p. 214).
Como vimos, a vida em sociedade seria impraticável sem as ideologias que
delineiam nossas ações. Como no exemplo do trânsito, seria um verdadeiro caos se
não houvesse uma aceitação tácita e geral das leis que o regem. Assim também seria
impossível viver em sociedade se os indivíduos não pensassem de forma análoga. Com
o passar dos anos, alguns critérios há muito estabelecidos vão sendo alterados, e a
sociedade passa a assumir novos posicionamentos. Tomemos como exemplo a
discussão atual sobre a utilização de células-tronco, futuramente este será assunto
corriqueiro. No entanto, essas novas concepções necessitam de tempo e
amadurecimento pelo grupo social. No geral, existem conceitos pré-estabelecidos, que
são aceitos pela sociedade e por ela praticados.
No horizonte ideológico de qualquer tempo e de qualquer grupo social não existe
apenas uma, mas muitas verdades contraditórias. Assim também não existe apenas
um, mas muitos caminhos ideológicos divergentes, e esse é um dos principais
dificultadores que encontramos para definir ou encontrar a ideologia dentro da vivência
social. As idéias nos ocorrem como se fossem nossas, as verdades de outrem são as
nossas verdades. Estamos tão intensamente inseridos no mar ideológico, que não
conseguimos separar as águas entre o que é verdadeiro e o que é mistificado
ideologicamente. Vemos em Terry Eagleton a suscetibilidade do concreto-sensorial, a
mutabilidade das leituras que fazemos do mundo que nos rodeia. Se o mundo concreto
apresenta-se com tantas possibilidades de leituras, muito mais leituras teremos no
mundo das idéias.
Um mundo não é um tipo de objeto espacial como as coisas que ele contém, sendo totalizado e retotalizado continuamente pela prática humana; por isso para a fenomenologia é estranho falar de mundo “externo”, como se fosse possível existir um mundo primeiramente sem os corpos humanos que o organizam e sustentam. Mas esse contexto de sustentação que torna possível a visão de qualquer coisa em particular é, ele mesmo, sempre evasivo, indeterminando-se à medida que a própria coisa surge no primeiro plano. Ao olhar para alguma coisa, é o que vemos de soslaio, mais do que o que temos
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diretamente sob nossos olhos. E nunca poderia ser apreendido na sua totalidade, sempre fugindo pelos cantos de nossa visão, sugerindo uma infinidade de conexões possíveis para além de qualquer horizonte real (EAGLETON, 1993, p.210).
Faz-se necessário estarmos munidos de lente capaz de filtrar as sutis distinções
entre os agentes ideológicos. Torna-se fundamental caracterizar os agentes de
produção e os agentes de reprodução de ideologias, sendo que os reprodutores muitas
vezes também são trabalhadores e explorados, diferentemente de quem detém os
meios de produção e de difusão ideológica. Nessa medida torna-se possível
caracterizar quais são os dominadores e quais são os dominados, onde estão os
exploradores e onde estão os explorados, adentrando inclusive o território da cultura,
tendo em vista que a ideologia não pode ser divorciada da realidade das linguagens
nas quais ela toma corpo e, por conseguinte, não pode ser divorciada da linguagem
cultural.
Caracterizamos assim o que podemos chamar de povo, que, longe de ser
homogêneo, é, de fato, campo da diversidade, pois na faixa de povo estão todos
aqueles que não detêm a propriedade dos meios de produção e de difusão cultural.
Nenhum corpo de conhecimentos pode ser formado sem um sistema de comunicações, de registros, de acumulação e de substituição que constitua em si mesmo uma forma de poder e que esteja ligado, em sua existência e funcionamento, a outras formas de poder. Inversamente, nenhum poder pode ser exercido sem a extração, apropriação, distribuição ou retenção de conhecimento. Nesse nível, não há conhecimento de um lado e sociedade do outro, ou ciência e estado, mas somente as formas fundamentais de conhecimento/poder (FOUCAULT apud SANTAELLA, 1996, p. 323).
No trecho acima temos o posicionamento de Foucault, em que ele analisa quão
o poder está intrinsecamente ligado ao saber. Vemos que é através da comunicação
que se consolida a dominação ideológica. Somente com estrutura para atingir o maior
número possível de pessoas, uma ideologia poderá alcançar sucesso, pois, como
dizem os grandes agentes do marketing, a divulgação é a alma do negócio.
O poder se consolida basicamente na ação política. A política é presença
marcante em nossas vidas, mesmo que não tomemos consciência disso. A política está
presente, por exemplo, na vontade do pai, chefe de família, que determina as regras da
casa. Está presente em uma organização religiosa ou econômica. Na verdade, política
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é a regulação da existência social, sendo que, para sobreviver e se impor dentro do
meio social, a política utiliza-se de ideologias para assentar seus parâmetros (os
parâmetros de quem detém os meios de divulgação) no grupo social que pretende
regular.
Quem tem o poder sobre quem? Eis a grande questão do processo político, do
confronto entre forças sociais, da vontade de um ser sujeitada à vontade de outrem.
Vemos que o poder é uma relação social, em que alguém manda e alguém obedece.
As decisões tomadas politicamente se impõem a todos dentro de determinado grupo
social.
Na contrapartida à ideologia dominante temos a utopia, o sonho, o desejo da
eqüidade social. A discussão sobre o termo utopia remonta à origem do termo,
apresentado como o eu-topos , o lugar da beleza e da perfeição ou o outopos, o lugar
inexistente. Aprofundamos a questão do possível e do impossível, no sentido de
apontar os futuros possíveis para a história. Destacamos a utopia como a ordem social
ideal (BORGES, 1996, p. 25).
Novos sentidos surgem pelas reflexões históricas, filosóficas e sociológicas. Hoje
a utopia não é mais pensada somente sob a forma do tipo-ideal, como a representação
que marcaria uma grande ruptura na sociedade. Especialmente no campo da política
surgem os chamados dispositivos utópicos, idéias-guia, as quais marcam escolhas e
decisões individuais e de grupos. Essas idéias seriam projeções de desejos não
plenamente satisfeitos em uma determinada situação histórica, que os indivíduos e
grupos sociais pretendem efetivar em futuros mais ou menos longínquos. Essa teoria
defendida por Vavy Pacheco Borges em seu ensaio sobre Os anos trinta e utopias traz
a perseguição à idéia de uma sociedade nova, portanto não desaparece a idéia utópica,
mas se torna um movimento em busca de um ideal de cidadania, em busca das boas
leis etc., através de propostas não globais mas fragmentadas (BORGES, 1996, p. 25-
26).
De fato, no transcorrer da história as sociedades vêm criando incessantemente
suas utopias. Vamos partir do princípio de que toda utopia comporta uma provocação.
Que tipo de sociedade queremos construir? De que maneira pretendemos viver? Por
essa razão acabam se estabelecendo relações complexas entre a utopia e a história. A
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cidade ideal se realiza através das lutas sociais. No centro de todas as utopias
reaparece sempre o tema da igualdade entre os homens. Busca-se uma sociedade
equilibrada, isenta de conflitos. Segundo Ítalo Tronca, em seu ensaio sobre A história e
as utopias criativas, o ideal utopista aponta para além do indivíduo, para uma condição
em que a sociedade e o indivíduo não estão mais em conflito, mas se transformaram
em diferentes aspectos do mesmo corpo humano.
Se é verdade que todo o campo de experiências sociais exibe no horizonte recusas e expectativas, temores e esperanças – torna-se impossível estudar as mentalidades de uma época sem levar em conta esse horizonte sobre o qual se situam precisamente as utopias. Ao recusar a redução do imaginário ao ilusório, a pesquisa hoje procura mostrar como a realidade ou aquilo que chamamos de realidade recepciona os sonhos dos atores sociais e quais são as funções sociais desses sonhos (TRONCA, 1996, p.35).
A ideologia que se origina das classes dominadas tem seu embasamento
justamente nesta visão utópica da sociedade, isto é, a ideologia que prima pela
conscientização do homem e de seu papel social, como agente de sua história e não
apenas como massa de manobra dos interesses dominantes. A busca da sociedade
ideal, em que não existirão separações de classes, escapa do nível imaginário e
sonhador e adentra no nível do possível. A idéia da conjunção de forças sociais
marginalizadas – que representam a maioria dentro do grupo social – toma corpo
dentro da utopia de remodelação da estrutura social. Busca-se então trazer à tona os
diversos mecanismos de dominação social, iluminando a condição de dependência dos
dominados em relação aos dominantes.
Os grandes detentores dos meios de divulgação ideológica dominante atuam,
junto à camada social, como desmistificadores dessas correntes ideológicas/utópicas.
Elaboram pré-conceitos que são disseminados em larga escala, os agentes ideológicos
contrários são nomeados como deturpadores da ordem social, como inconseqüentes,
como fanfarrões – no sentido de pregarem algo que jamais poderia vir a ser viável
socialmente.
Fazendo uma analogia bíblica, poderíamos lembrar a ação da rainha contra as
acusações de João Batista – mandar cortarem-lhe a cabeça. Assim também atuam as
forças ideológicas dominantes: cortam as cabeças que intentam questionar seu
domínio.
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Vivemos na atualidade justamente um momento histórico de morte das utopias,
onde as esperanças depositadas nos mais diversos movimentos sociais ocorridos ao
longo da história parecem ter se mostrado vãs. Os povos, de uma maneira geral,
receiam acreditar em novas utopias e encontrar a desilusão na curva da estrada.
Encontramo-nos em um momento de dúvidas, em que tudo é questionado, nada
é definitivo. No entanto, mesmo em situação de incertezas, a discussão sobre a ordem
social se mantém. A busca pelo fortalecimento das ideologias continua presente nas
relações sociais, haja vista a necessidade de manutenção do poder dominante. Mas
temos também a imperiosa urgência de trazer à discussão a legalidade desse poder
constituído, pois, somente com a confrontação de pontos de vista, poderemos alcançar
uma situação de maior esclarecimento do indivíduo de seu papel na sociedade.
Discernir entre as mais diversas ideologias que permeiam nossa vivência social,
entre o que se faz nocivo ao nosso bem-estar e ao que se apresenta como alternativa
factível para uma nova ordem social, é papel melindroso para o indivíduo social. Daí a
importância de tomar ciência dos múltiplos significados ideológicos na sociedade e de
sua repercussão em suas próprias vidas e na ordem social como um todo.
2.2 A ideologia presente no texto literário
Lucia Santaella analisa a presença ideológica nas obras literárias e considera a
ocorrência de muitos equívocos ao confrontarem-se arte e literatura com problemas
ideológicos. Primeiramente ela questiona a exigência de que a literatura deva estar a
serviço da denúncia aos discursos dominantes. Segundo Santaella a sociedade de
consumo é capaz de consumir até mesmo os discursos de oposição, transformando-os
em modismo e acabando por minar-lhes a força questionadora. Temos em muitos
programas humorísticos essa formatação, que aparentemente é crítica, mas que atua
com efeito catártico no público ouvinte, gerando uma atenuação de suas inquietudes
em vista de vê-las apresentadas na televisão.
O erro mais grave que podem cometer os que se dizem engajados e participantes consiste em querer condicionar a literatura e a arte a necessidades imediatas. Esquecem-se de que manejar condutas e produtos faz parte integrante dos mecanismos da classe dominante. São, na realidade,
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pseudo-engajados que imitam justamente os comportamentos que pretendem refutar (SANTAELLA, 1996, p. 218).
Num segundo momento, temos também o questionamento quanto a que a
literatura deva ser, necessariamente, uma linguagem compreensível, didática, acessível
ao nível de entendimento de um leitor médio. Para a autora, uma obra, se merece o
nome de criação, incorpora novas conquistas mentais ou sensíveis ao patrimônio que
se quer legar ao homem novo, esta obra se situa quase sempre em desajuste com seu
tempo.
Temos em Donaldo Schüler posicionamento semelhante ao de Santaella quanto
à produção literária e sua característica única, inédita, transformadora quando nos diz
que “opacidade e transparência são como todos, recursos esteticamente neutros. Cabe
ao romancista conferir-lhes dignidade literária no compromisso de renovar o que a
tradição oferece. [...] A arte não acompanha a história, ela faz história” (SCHÜLER,
1989, p. 12).
A atividade artística reúne qualidade do trabalho e da ação, produz obras duráveis e eleva o homem acima da necessidade e da utilidade. O romance quando bem-sucedido, age livremente sobre o mundo para transformá-lo e apresenta-se durável e novo à experiência do leitor. O autor de romances sustenta o mundo romanesco sobre a palavra persuasiva do narrador que, ao narrar, congrega livre e criativamente os homens (SCHÜLER, 1989, p. 38).
Poderíamos, a partir das colocações acima, questionar-nos pelo menos quanto a
um ponto de estrangulamento: Se a arte não se liga diretamente aos problemas sócio-
econômico-políticos da atualidade, não seria ela um produto desvinculado dessa
realidade?
Para respondermos a esses questionamentos faz-se necessário observar junto
ao senso-comum qual a apreensão que o povo de maneira geral tem de realidade. Para
isso, num primeiro momento definamos senso-comum. Através do Dicionário Aurélio,
podemos defini-lo como “conjunto de opiniões tão geralmente aceitas em época
determinada que as opiniões contrárias aparecem como aberrações individuais”. Se o
senso-comum é a idéia aceita pela grande maioria dos envolvidos em determinado
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grupo social, essa idéia acaba sendo a própria realidade, pois é a forma como as
relações sociais são compreendidas pela maior parte dos envolvidos nessas relações.
A realidade apreendida pelo senso-comum é, na maioria das vezes, a apreensão
das aparências das relações sociais. O homem acaba por ser enganado pela própria
realidade, pela dissimulação das aparências, que acabam por designar como realidade
as posições ideológicas e mistificadoras que o sistema produz. Como então conectar a
arte ao contexto contemporâneo, se a própria noção comum de realidade já é
deformada? Vemos que os elementos da superestrutura social estão ligados direta ou
indiretamente à mudanças operadas na base; existe certa autonomia, mas com leis
específicas. Segundo Santaella, daí advém a dificuldade de explicarem-se os
procedimentos a serem adotados na elaboração de uma obra literária e a evolução
artística com o desenvolvimento e as contradições econômico-materiais.
Uma obra que comunica imediatamente seu conteúdo indica que fala de um
espaço-tempo já conhecido, ou seja, que nada traz de novo, que não acrescenta uma
reflexão nova à realidade também conhecida, no entanto, em vista do já acontecido,
não gera justamente a reflexão sobre os acontecimentos.
Vemos na imprevisibilidade e estranheza de sentidos, na insubmissão a qualquer
cânone ou expectativa de narratividade as características necessárias para abalar “os
alicerces do instituído, visto que ou desmascaram ou criam novas necessidades
imprevistas pelos mecanismos de reprodução das condições de produção do sistema
artístico e ideológico”(SANTAELLA, 1996, p. 222).
O produto ideológico é uma parte da realidade social material em torno do
homem, está na palavra, no som, nos gestos, na combinação de cores, de corpos etc.
O signo, ou a palavra refletem a realidade histórico-social, sendo que a ideologia não
pode prescindir da realidade material do signo. Temos então que todo e qualquer signo
é por natureza ideológico-histórico-social, pois tem seu modo próprio de dizer a
realidade, de uma certa maneira e numa certa medida. Essa vinculação direta entre
signo e ideologia nos faz pensar que toda literatura é signo e, como signo, está
permeada dos aspectos ideológicos presentes nos signos. Não existirá portanto
literatura isenta ideologicamente. O que ocorre é a literatura que reproduz a situação
conhecida e, em contraposição, a literatura que transgride, que foge aos padrões
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estabelecidos desvendando aspectos da realidade que passam despercebidos dentro
da superestrutura social.
A literatura espelha em si o horizonte ideológico do qual, ao mesmo tempo, ela é parte. [...] A História da Literatura deve pesquisar a vida concreta da obra na unidade do processo do desenvolvimento do meio literário. Este deve ser analisado no processo de desenvolvimento do meio ideológico, que , por sua vez, deve ser analisado no desenvolvimento da esfera sócio-econômica.[...] Cada fenômeno literário é determinado simultaneamente de fora e de dentro: de dentro, pelo própria literatura; de fora pelos outros setores da vida social ( KOTHE apud SANTAELLA, 1996, p. 241-242).
As obras artísticas e literárias são, como qualquer outro produto cultural,
histórico-ideológicas, ou seja, devem ser analisados seus papéis específicos tanto
como elementos na obra artística, quanto o papel específico na vida social. Temos
então que a estrutura de uma obra artística seja um corpo denso e tenso, vital e
mutável, resistente e ao mesmo tempo frágil. No entanto, esse caráter que faz da obra
uma qualidade frágil porque viva é aquilo que a faz também objeto de leituras
distorcidas e que reduzem sua abrangência, leituras essas realizadas por aqueles que
procuram impor-lhe um caráter supra-histórico e autônomo.
A obra literária apóia-se em dois pilares: o estético e o ideológico. Como vimos
acima, na falta de um desses pilares a obra perde seu conjunto ficando capenga. A
obra completa está estética e ideologicamente construída. Daí o fundamento da
inovação, pois uma obra completa, rica em sua releitura do mundo, necessita estar
alicerçada em um forte pilar estético, que traga um modelo próprio de escritura do texto,
sem recair em mesmices que roubariam todo o prazer literário. O outro pilar, a reflexão
ideológica do mundo, precisa apresentar-se instigador, convidando o leitor a aprofundar
sua leitura para desvendar verdades muito bem codificadas no texto.
Em Terry Eagleton encontramos uma grande defesa da estética em seu papel
fundamental de concretizar a teoria. Para Eagleton “a imaginação é a fonte comum da
sensibilidade e do entendimento, e também a raiz da razão prática”(EAGLETON, 1993,
p.213). A presença estética traz o sensitivo, o humano para o campo teórico, ou seja, a
construção do texto teórico torna-se palpável no plano-sensorial do leitor, sendo muito
mais facilmente apreendida. Percebemos claramente seu ponto de vista quando cita
Rousseau:
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Rousseau não propõe que o sentimento possa simplesmente substituir a lei racional; mas, segundo ele, a razão, em si mesma, é insuficiente para prover a unidade social. Para se tornar uma força reguladora na sociedade ela deve ser animada pelo amor e a afeição. É nesse campo que ele polemizou com os enciclopedistas, cujo sonho de reconstruir a sociedade a partir da razão pura lhe parecia simplesmente ignorar o problema do sujeito. Passar por cima do sujeito é ignorar a questão vital da hegemonia política (EAGLETON, 1993, p. 26).
Eagleton também reflete sobre a ambivalência que um texto marcado pelo valor
estético-sensorial pode apresentar, pois “não é fácil distinguir um apelo ao gosto e ao
sentimento que propõe alternativas à autocracia, de outro que permite ao poder fundar-
se, ainda mais seguramente, na sensibilidade viva de seus subordinados” (EAGLETON,
1993, p. 27). Vemos nas observações de Eagleton que o sentimento, a sensualidade, a
paixão e outras manifestações sensíveis de nosso corpo também podem estar
manipuladas ideologicamente. A presença estética e a ideológica, formam um conjunto
que refrata a posição teórica do criador, não sendo dissociáveis a estética e a ideologia.
Também em Schüler vemos a confluência entre imagem (concreto-estético) e
imaginário (idéias-ideologias) e a força que essa composição traz para o texto literário:
No texto literário, entrelaçam-se, portanto, imagens que valem como imagens, não obrigadas a nenhum absoluto, na~assentadas sobre objetos. Como procurá-las na cabeça do autor ou em estruturas sociais, degradado o texto, as imagens sustentam elas mesmas o universo imaginário. Quem vê no imaginário tradução ou cópia, faz-lhe injustiça, cabe-lhe categoria de original. O texto não exprime autor ou sociedade. O eu do narrador, quando comparece, age como personagem entre as personagens, centros de referência no mesmo nível, pólos que se atraem e se repelem (SCHÜLER, 1989, p.73).
O artista é aquele que tem uma aguda antena para problemas ideológicos, de
modo que o conteúdo essencial da literatura gere a reflexão sobre os processos vivos
de geração do horizonte ideológico. Santaella adverte para o perigo de que a literatura
seja feita mera serva de outras ideologias, perdendo-se o contacto com a arte em sua
artística especificidade e, de outro, que as estruturas criativas sejam reduzidas à mera
percepção individualista.
O papel da obra literária não pode ser reduzido ao de mero auxiliar no reflexo de outras áreas ideológicas. Ela tem seu próprio papel e seu próprio tipo de refração da existência sócio-econômica. A refração da realidade na literatura tem dois tipos de reflexo: o reflexo do ambiente ideológico no próprio conteúdo
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da literatura; o reflexo da base que é comum a todas as ideologias (MEDVEDEV apud SANTAELLA, 1996, p. 243).
Segundo Medvedev, produtos ideológicos diversos têm funções diferentes dentro
de uma mesma sociedade histórica. A grande dúvida do escritor pode ser resumida na
questão: sobre quem e para quem escrevo? Num extremo, uns escolheram o caminho
do chamado engajamento que busca, pela voz do escritor, dar voz aos oprimidos.
Outros, no outro extremo, optaram por uma voz quase inaudível, representando um
grito de liberdade contra as amarras de qualquer ideologia “o que a literatura pode
oferecer é a pulsação daquilo que poderia ter sido e daquilo que ainda pode ser: o
imaginário da história, as camadas que pulsam no inconsciente da
história”(SANTAELLA, 1996, p. 262).
O território da cultura pode ser compreendido também como o território de
produção. Quem são os detentores, proprietários desses meios de produção? Serão
esses, e não os agentes da produção, que exercem o mando e controle político e
ideológico desses meios. Temos de nos livrar do vício de considerar os chamados
meios de comunicação de massa simplesmente como meios de difusão, quando se
trata também de meios de produção e reprodução de linguagem e de cultura, ou seja,
de ideologias.
Ora, as linguagens não são inocentes nem inconseqüentes. Toda linguagem é ideológica porque, ao refletir a realidade, ela necessariamente a refrata. Há sempre, queira-se ou não, uma transfiguração, uma obliqüidade da linguagem em relação àquilo a que ela se refere (SANTAELLA, 1996, p. 330).
Temos também em Lopes a visão da unicidade entre linguagem e ideologia,
quando diz que “falar em áreas discursivas que incluem e excluem é falar em áreas de
dominação ideológica” (LOPES, 2005, p. 29). A análise realizada por Lopes em sua
obra Literatura e poder traz presente a literatura que foge aos padrões sociais
previamente estabelecidos e, por conseguinte, tornam-nas obras dissidentes, ou
literatura fora-da-escola. Essas obras acabam por distanciar-se da análise nos bancos
escolares em vista de seu caráter heterogêneo e de sua diferenciada perspectiva
narrativa.
20
Essa marca da formação das escolas pode provocar desvio dos temas decisivos para a vida social e da consistência literária. No que é aqui primordialmente relevante, essa prática se afasta dos interesses sociais das classes órfãs do poder organizado e das formas discursivas que constituem o foco da literatura de dissidência. Com tal procedimento, a arte literária, como aconteceu com o Parnasianismo, recorta o mundo em limbo (LOPES, 2005, p. 29-30).
Voltamos a identificar a existência de presenças ideológicas diversas em obras
diversas, ou seja, cada obra carrega em si uma opção pelo tipo de voz que pretende
fazer ressoar. A literatura de dissidência dá direito à voz para as camadas sociais antes
relegadas ao silêncio. Temos na literatura de dissidência a presença do picaresco,
entendido como “palavra centrada em personagens representativos das coletividades”
(LOPES, 2005, p. 44). Nessas obras a linguagem volta-se para a oralidade, e os
personagens primam pela forma peculiar que apresentam de encarar o mundo, dentro
da necessidade de sobrevivência que enfrentam num mundo sem muitas alternativas
sociais.
Dessa forma, a leitura contra-ideológica sobre a picaresca desvela também os procedimentos do poder e como ele se organiza e se mantém, no sistema social então vigente. Isso determina narrativas de vínculo e de expressão populares. [...] Ao empregar marcas da linguagem vigente na época ou simplesmente de registros tradicionais para expressar a condição social dessas camadas afastadas do poder, através de personagens caracteristicamente populares que transpõem as narrativas, os textos assumem expressão popular (LOPES, 2005, p. 47).
Em Teoria do romance, Donaldo Schüler nos traz uma reflexão sobre a obra Viva
o povo brasileiro, que vem reforçar o posicionamento de que a obra literária não
consegue assumir postura neutra; sempre representará uma forma de ver o mundo, de
analisar o mundo e trará uma forma de compreensão desse mundo, de manutenção de
uma condição social ou de questionamento dessa condição:
A idealização da existência dos desfavorecidos mantém estável a situação em que se encontram. Diferente é o tratamento das classes inferiores em Viva o povo brasileiro. João Ubaldo Ribeiro escreve uma história ficcional em que os oprimidos adquirem consciência da opressão e descobrem meios para lutar contra ela. Os heróis resumem tendências coletivas. O individualismo, competitivo e opressor, fica restrito aos dominadores (SCHÜLER, 1989, p. 44).
A marca popular presente em uma obra literária a afasta da hegemonia
característica de grande parcela de obras literárias. Essa marca aproxima a obra de
21
uma outra leitura de mundo onde os problemas sociais transparecem de forma
concreta, dolorida. A representação popular nessas obras faz com que seu objeto seja
olhado de baixo, ou seja, com o olhar de quem sofre a situação de dependência, de
quem não possui liberdade para realizar escolhas e, muitas vezes, não consegue
determinar seu próprio destino:
Essas características especiais dos personagens podem estar centradas simuladamente em símbolos ou em representações alegóricas. Os personagens serão elaborados de tal maneira, que se possa reconhecer neles distanciamento com relação às figuras representativas da hegemonia (LOPES, 2005, p. 48).
Por fim, ressaltamos novamente que a obra literária não leva consigo o
compromisso de linearidade e clareza, muito pelo contrário, a obra literária é sinônimo
de criação, de inovação. Dentro do jogo literário as idéias são articuladas e lançadas de
forma a criar um mosaico de cores e experiências. Ao leitor caberá a decodificação das
imagens desenvolvidas pela obra e a identificação da ideologia predominante nela. O
trecho abaixo desenha exatamente essa qualidade instigadora da obra literária:
Fazendo-se poesia, o romance foge da rigidez do texto científico e do autoritarismo do discurso ideológico. O texto romanesco desdobra-se como espaço de experimentação, de configurações variadas, de recursos múltiplos, que substituem a unidade do enunciador pela pluralidade dos enunciados. O leitor, estabelecendo as relações textualmente sugeridas, participa da invenção. O romance, livre de compromissos, surge como lugar em que idéias se fazem, se desfazem, se refazem (SCHÜLER, 1989, p. 19).
Schüler traz, no trecho acima, o papel do leitor, ou seja de quem interpreta a
obra, de quem desfaz e refaz as muitas leituras que o texto literário traz consigo. Ao
leitor cabe a sensibilidade estética e a racionalidade ideológica, quando essas
características faltam a decodificação da obra acontece de forma incompleta, talvez
mesmo equivocada. Dependerá então do grau de sensibilidade, de abstração, de
reflexão que o leitor conseguir aplicar sobre a obra literária o alcance das muitas
mensagens contidas na obra e sua adequada decodificação.
22
3 APLICAÇÃO
3.1 Análise da obra Memorial de Santa Cruz
A obra Memorial de Santa Cruz conta a história do personagem Brasil de Santa
Cruz, um brasileiro, como tantos outros, que vive as agruras e desventuras que a vida e
a miséria trazem para quem nasce em condição de precariedade. Sinval Medina traz,
em sua obra, uma analogia ao povo brasileiro. Tece as relações sociais vividas por
nosso povo em muitos momentos de sua história. A identificação do personagem como
representante do povo, portanto como personagem coletivo aparece, por exemplo,
quando é salientada sua origem mestiça:
Diz que a minha mãe foi escrava e meu velho liberto. Ou o contrário. [...] minha mãe era mulata clara e o pai, branco, um tipo até meio alourado, que segundo vim a saber mais além, seria filho de fazendeiro, porém bastardo. Então: vem desse avô torto, fidalgo, meu olho azul. Diz que também na minha infância eu tive e tinha cabelo de palha de milho, tão amarelo que era. [...] sou tisnado. Ou não sou? Mulato do cabelo bom, lábio fino, nariz afilado, mas a pele, não nega, herança da minha mãe, ou do velho meu pai: dos dois, talvez (MEDINA, 1983 p. 10).
No trecho acima vemos a mistura de raças característica da grande maioria dos
brasileiros, pois em nosso país houve muitos imigrantes fazendo com que tenhamos em
nosso povo representantes de muitas raças. Estamos todos sobre o mesmo solo,
abençoados pelo mesmo sol, brancos, negros, amarelos. Essa característica brasileira
representada em Memorial de Santa Cruz reflete a igualdade de todos os povos e a
possibilidade de convivência harmoniosa, sem preconceitos, sem diferenças de credos,
de cor ou de classes.
23
Juntamente com a origem mestiça, temos a identificação com a classe operária.
Essa identificação ocorre pelo fato de o personagem, no decorrer da obra, atuar nas
mais diversas atividades braçais. De pescador a artista circense, de operário de fábrica
a caminhoneiro, Brasil de Santa Cruz perpassa as muitas representações populares em
nosso país, não deixando de fora nem mesmo nossos indígenas.
O personagem Brasil encontra junto ao povo indígena uma ligação profunda com
a natureza e com a simplicidade. Aprendeu na convivência com a tribo que os
cranhaquintim não eram isentos de defeitos e qualidades, temperos e destemperos,
como qualquer mortal. Novamente temos a linearidade humana, ou seja, não importa
nossa origem, somos seres humanos, trazemos conosco toda uma bagagem de
aspectos positivos e negativos, mas não somos melhores ou piores entre os grupos
sociais.
Regina Zilberman ao introduzir a obra diz que o personagem “sintetiza, pois, a
condição do trabalhador brasileiro, atravessando a história e o tempo aos trancos e
barrancos, sem, todavia, abdicar de sua dignidade, nem desistir de sua luta por um
lugar ao sol”(MEDINA, 1983, p. 5). Mas, é no próprio título do romance que
encontramos o indício mais claro de seu objetivo pois Memorial de Santa Cruz é
justamente um memorial à Terra de Santa Cruz, ou Brasil, trazendo da história passada
um dos primeiros nomes de nosso país. Daí concordarmos com Zilberman quando nos
diz tratar-se da epopéia da classe trabalhadora, mostrando-nos como essa classe foi
agente de sua própria história
A história contada em primeira pessoa começa dizendo “cheguei em tempo de
escravidão”, relatando o nascimento miserável do protagonista com todas as
dificuldades vividas por sua família expulsa do pedaço de terra onde viviam. No
decorrer da narrativa vão sendo descritas as muitas façanhas de Brasil de Santa Cruz,
as dificuldades, o medo, o sentimento de estar num beco sem saída. O personagem em
muitos momentos depara-se com a morte quase certa, com a fome, com o abandono,
com a fuga, com a miséria.
As alternativas encontradas pelo personagem para escapar das armadilhas que
a vida lhe prepara acabam, muitas vezes, colocando-o em posição de opressor. Essa
situação ocorre quando, por exemplo, como marinheiro, participa do ataque ao vilarejo
24
comandado pelo Profeta, em que acaba assassinando o próprio irmão. Também
quando aceita trabalhar como capanga nos seringais está em situação de perseguidor,
de mantenedor da ordem de opressão imposta pelo patrão. Ainda no trabalho na
ferrovia encontra-se oprimindo os que antes eram seus companheiros.
[...] pensei na inutilidade de tudo aquilo, e na sorte daquela gente que tínhamos vindo de tão longe molestar, apenas porque tinham o jeito e a maneira lá deles de adorar a Deus, e criam nas falações de um Profeta maluco. Em meio a uma ação, diante da situação de fato, o normal é você se fixar apenas no que está fazendo, na repetição do tiro, na precisão da trajetória dos obuses, mas eu não podia esquecer que estávamos despejando fogo sobre homens, mulheres, crianças, que resistiam ao choque de uma potente esquadra com velhos canhões de bronze, escudados na convicção de que morriam por uma causa justa (MEDINA, 1983, p. 83).
Vemos na citação acima um exemplo da dúvida que persiste em todos estes
momentos, a angústia de não ter alternativa entre sua vida ou a dos demais. Vemos
situação semelhante também quando tem de decidir-se entre entregar os índios com os
quais conviveu por muitos anos, ou morrer lutando com eles. A angústia que sente é
muito forte, mas sua teimosia em sobreviver é maior. Está representada nestes
momentos a garra do povo brasileiro em sobreviver, em não se deixar abater frente às
adversidades. Mas, vemos principalmente a situação de engodo em que o povo vive,
pois acaba sendo levado a atacar seus companheiros de misérias na premência da
sobrevivência, não consegue distinguir seus verdadeiros inimigos.
Pensei que repensei, muitas noites, estirado na rede, a viola ao peito e a garrafa de pinga no alcance da mão, que o mundo, até a data, tinha me dado motivo de sobra, em injustiça, ponta-pé e cusparada, para que agora pensasse um pouco no próprio lombo e decidisse mudar de lado, passando a ginete em lugar de montaria, olhos fechados para a miséria alheia e abertos para o meu próprio quere e bem estar. [...] minha decisão estava feita, de aceitar em definitivo o encargo de guarda-costas, cobrador de contas, caçador de fugitivos, fabricante de viúvas, enfim, toda e qualquer missão a que me destinasse o homem (MEDINA, 1983, p.113).
Vemos em nosso dia-a-dia que o povo também é ludibriado, é levado ao
individualismo, pois sua união seria sua força. Na busca pela sobrevivência vale a lei do
mais forte, então irmãos levantam-se contra irmãos, pois o desespero cega e confunde.
Temos no trecho “não havia amizade que pagasse ficar ali, grudado e imobilizado
25
aguardando outros acontecidos”(MEDINA, 1983, p. 220), um exemplo dessa opção pela
sobrevivência que ocorre na obra.
Passei momentos angustiosos no meu mutismo, explicável, quem sabe, pela fraqueza da grande perda de sangue, temendo eu, contudo, que a minha não abrição de boca pudesse ser interpretada como sinal de rebeldia ou tentativa de proteger os índios, despertando animosidades no comandante, que me parecia homem nervoso e malévolo na frieza daqueles olhos verdes e no contorno da boca, caída nos cantos para baixo (MEDINA, 1983, p. 185).
É importante salientar que, apesar das opções que fez, sempre houve uma voz
que o instigava a pensar, a questionar o motivo pelo qual agia daquela forma. Essa voz
da consciência que, de certa forma, incomodava o personagem da obra, é justamente a
voz que Medina quer trazer à tona. Essa dúvida que persiste, que constrange, que leva
a pensar sobre as decisões tomadas é o questionamento profundo que a obra nos faz
de nossas vidas e de nossas ações. Vemos, na seqüência dos acontecimentos, a
seguinte observação “faltava que faltava mesmo era só estar do lado certo, e isso faz
muita falta” (MEDINA, 1983, p. 221). Nesse momento o personagem reflete sobre a
situação em que se encontra de policial dos trabalhadores da ferrovia e sente que está
do lado errado.
A presença desse questionamento remete a presença ideológica na obra.
Percebemos que a narrativa não relata apenas uma história ficcional, mas que nos
provoca. Ao leitor atento fica a mesma angústia sentida pelo personagem, fica a
sensação de que alguma coisa está errada, que a situação pode e deve ser diferente.
As ações do personagem passam então a ser questionadas pelo receptor da
mensagem, as perguntas se sobrepõem: Existiria outra forma de agir? Como conseguir
sobreviver nesta selva em que vivemos sem sermos também caçadores? Como
desvendar o melhor caminho?
A representação popular nessa obra traz o olhar que vem de baixo, conforme
nos coloca Lopes, é o olhar de quem sofre a situação de dependência, de quem não
possui liberdade para realizar escolhas. Essa forma de olhar o mundo afasta a
concepção de perfeição que a ideologia dominante propaga, e aproxima o olhar para a
situação vista de outra perspectiva, a perspectiva de quem está em baixo da pirâmide
social. Aproxima o olhar para situações desesperadoras que acabam por inibir a ação
26
de quem as sofre, no entanto, a mensagem transmitida choca e ao chocar traz a
necessidade de reação.
Memorial de Santa Cruz traz a perplexidade frente à realidade apresentada,
incomoda nossas reações sensoriais, fazendo-nos sentir estremecer nosso mundo que
considerávamos relativamente estável. Deparamo-nos com uma realidade diversa da
que conhecemos, somos transportados para um mundo que sabemos existir, mas que
acaba passando despercebido na correria de nosso dia-a-dia. Esse outro mundo
incomoda, faz com que sintamos uma parcela de responsabilidade por este abismo
social. Retomamos Eagleton quando declara que o objeto observado possui muitos
lados e muitas interpretações. A literatura vem nos subsidiar no vislumbre dessas várias
nuances da vida, e Sinval Medina em sua obra ilumina alguns dos muitos caminhos da
realidade social.
O que igualava esses capoeirões de mato, e terreiros, e taperas, e crianças de cu de fora, e mulheres trapentas, e cabras mordidos de cobra, e trabalhos desmesurados, e barrigas inchadas por falta de sustança, e gente morrendo das coisas mais bestas, e homem sendo pisado porque olhou torto para um poderoso, e família sendo enxotada de casa como se espanta manada de bicho daninho, isso que em minha criancice tornava tudo, lugares, paragens, pessoas, tudo, tudo igual, isso se chama miséria (MEDINA, 1983, p. 13).
Como vimos a presença ideológica não é flagrante, não está descrita em
discursos sobre o bem e o mal. A presença ideológica está presente nas vivências que
remetem para situações reais, que constrangem, que incomodam, que geram a dúvida
e o questionamento.
Poderíamos chamar de massa de manobra a todos esses que são levados a
realizar coisas alheias a seus instintos naturais, levados por princípios que não são
seus, por objetivos que desconhecem. Massa de manobra é a forma que encontramos
para definir a ideologia que, imposta a um determinado grupo social, o leva a agir
conforme os preceitos de quem está manobrando suas idéias. A massa é o povo, que é
moldado, direcionado, enganado, no objetivo primeiro de manutenção do sistema social
dominante.
Tudo lendas, o povo humilde botava fé e dava crédito, nos achando uma horda de bandidos que só pensava em assolar os interiores para espoliar as populações: era esta a nossa fama em muito lugar, espalhada pelas
27
maledicências do governo. Quando na verdade quem fazia e acontecia eram as tropas deles, principalmente os jagunços assoldados pelo erário público (MEDINA, 1983, p. 192).
O trecho acima apresenta a situação de manobra junto ao povo, direcionando o
entendimento para uma situação falsa. Ao nos depararmos com trechos semelhantes
em toda a obra acabamos por perceber semelhanças com situações vividas em nossa
rotina atual. Quando realizamos o paralelo entre a ficção e a realidade começamos o
processo de interpretação dessa realidade. Guiados pela sugestão contida na narrativa,
passamos à associação com nosso contexto real e a discernir a existência de
direcionamentos em nossa maneira de pensar, que ocorrem em virtude de idéias que
não são nossas, mas que assumimos como sendo. Lembramos das palavras de
Schüler, quando nos diz que ao leitor cabe participar da invenção, desfazendo e
refazendo o texto literário, ou seja, analisando seu conteúdo e interpretando-o.
A obra Memorial de Santa Cruz apresenta-se num primeiro momento como uma
obra de aventuras. Uma leitura mais atenta chamará a atenção para a realidade
apresentada e os grupos sociais destacados na obra. Se partirmos para uma análise
mais detalhada não encontraremos dificuldade em trazer para nossas vidas as muitas
situações vividas pelo personagem Brasil. É exatamente a realização desse paralelo
entre a realidade ficcional e nossa realidade concreta que nos remeterá às diversas
leituras ideológicas que a obra nos traz.
Observamos na citação abaixo outra situação comum, em que a necessidade de
sobrevivência é superior até mesmo à honra, onde encontramos o personagem Brasil
vendendo sua palavra pelo prato de comida, sem dar-se conta de que está entregando
a arma para o bandido:
[...] saía pelas ruas dizendo maravilhas do futuro deputado Antônio Leitão da Costa, que era benemérito, que só pensava no bem do povo, que mais isso e mais aquilo, vota nele, minha gente, que Leitão da Costa é a esperança das populações desvalidas dessa nossa cidade, e mais outras mentiras que era industriado a falar (MEDINA, 1983, p. 259).
Não precisaremos pensar muito para evocar os milhares de panfleteiros que
trabalham nas eleições vendendo as muitas qualidades de seus candidatos. Quantas
dessas pessoas não sabem como é realmente o candidato para quem estão fazendo
28
propaganda? No entanto, acreditam que a índole do candidato não é importante, mas
quanto ele paga pelo serviço. Mais uma vez passa despercebida a situação de
opressão, pois será esse candidato que votará as leis que manterão o trabalhador
dependente. A situação descrita ocorre com grande freqüência, mas quantas vezes
realmente paramos para pensar nela? A forma como a realidade é descrita na obra
força a reflexão, justamente por ser chocante, pois sentimos claramente a imoralidade
da situação. A analogia realizada com a realidade não é percebida apenas pela
verossimilhança do texto, mas principalmente pela qualidade repugnante que
apresenta, reforçamos que essa característica acaba por chocar, acaba por despertar o
leitor.
Outra característica que destacamos é a representação da maldade sem motivo.
No trecho transcrito abaixo aparece uma criança loira que age com maldade
premeditada, sem que exista qualquer motivo para tal. O enfoque aponta para a
presença de atitudes imotivadas realizadas por pessoas que, imbuídas na situação
dominante, não enxergam outras pessoas como seres humanos mas, de certa forma,
como brinquedos.
[...] quando apercebi que o que o menino loiro desejava era me jogar do lombo do cavalinho branco, aí já era tarde, vi-me rolando pelo morro abaixo, esfolado em pedras e espinhos, chuliando para não arrebentar de vez. Foi a primeira raiva verdadeira da minha vida, nunca entendi como um anjo loiro e encacheado fora capaz de maldade como aquela, tamanha e desprovida de sentido (MEDINA, 1983, p. 14).
A simbologia presente na obra nos remete num primeiro momento para a
imagem angelical que a criança loira representa. A atitude da criança é, no entanto,
totalmente contraditória a essa representação, ou seja, age de forma cruel,
traiçoeiramente. O menino Brasil não compreende a maldade sem sentido, não
compreende sua própria situação subalterna, não compreende a miséria. Novamente a
obra nos questiona, deixa-nos pensando, por quê? As respostas virão pela comparação
e pela identificação da situação vivida.
A ideologia que prega as diferenças de classes sociais está tão enraizada no que
chamamos senso-comum que as adversidades vividas são aceitas como naturais e
irremediáveis, vejamos as citações abaixo:
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Só sei que mãe começou a dizer que se abatera sobre a família uma data de sete pragas, e enquanto não se cumprissem todas, não teríamos sossego. E contava: a primeira, o passamento repentino do velho; segunda, a gravidez da mana; terceira, o parto infeliz: o que o destino nos reservaria dali para a frente? (MEDINA, 1983, p. 16). Entramos na canoa de tronco que outrora servira às pescarias do pai e deixamos que a corrente nos levasse sem destino, para longe do local das desgraças; e fazendo contas, no fundo do caíque, escondidos no medo de ter a fuga interrompida, concluíamos que ao todo haviam-se cumprido seis pragas, inteiradas com o suplício e morte da mãe. A sétima, a sétima não se realizou naquela quadra, nem em época seguinte, nem depois, nem nunca: e foi muito pior. Ficou pendente sobre cada uma de nossas cabeças, pelos anos afora, ao longo da vida, eu e os manos sempre à espera, no aguardo de que o pior estivesse por vir. E assim foi: descobri depois que não só eu e a minha irmandade, mas as pessoas em geral, têm sobre si sempre, o peso da sétima praga (MEDINA, 1983, p. 23).
A situação de opressão e de miséria acaba por enegrecer os horizontes, não se
consegue vislumbrar perspectivas, espera-se sempre a sétima praga, como nos diz
Santa Cruz. Estamos sempre esperando que alguma coisa má aconteça, não temos
sonhos, objetivos, pois concluímos que, automaticamente, nada de bom poderá
acontecer, estamos predestinados para o infortúnio. Esse olhar sobre o mundo não está
apenas na obra, está como dito antes, no entendimento do senso-comum, o povo não
acredita que possa haver melhora da situação, mas aceita a condição de miséria como
destino.
Ao realizarmos a leitura dos trechos acima podemos analisar como bobagem,
necessitamos então da racionalidade ideológica para identificar esta mesma leitura de
mundo na vida real. Somente quando realizamos o paralelo entre ficção e realidade
conseguimos identificar a verdade mimetizada ideologicamente. Identificamos então
que o povo é direcionado a pensar de forma pessimista, que a imagem que a massa
possui de si mesma é de incapacidade para superar as intempéries da vida. Por esse
motivo aceita a situação de domínio como natural e inquestionável.
Uma das propostas ideológicas da sociedade capitalista aparece no trecho a
seguir, onde o personagem comenta sua busca pelo novo, encantado com as
possibilidades que a vida lhe apresentava sem refletir sobre as conseqüências “[...]
nunca fui homem de mais vale um pássaro agarrado do que dois voando, e o
pássaro que o comércio me oferecia, apesar de gordo, pelo menos na aparência, era
sem canto ou encanto, e de pouco e baixo voar” (MEDINA, 1983, p.34). A dificuldade
de fincar raízes traz a certeza de que não se possui um chão, ou seja, a propriedade é
30
de outros. Cabe ao povo a característica nômade, vagando em busca de um canto para
viver. A busca pelo sucesso apresentada pelos meios de comunicação social faz muitas
vezes com que as pessoas persigam sonhos impossíveis não construindo seu próprio
espaço na sociedade.
A desconstrução do mito também é uma característica forte da obra. Não existe
o herói; existe o ser humano com todos os aspectos comportamentais e físicos, com
todas as dúvidas e medos. No trecho abaixo Brasil teme que sua fisiologia acabe por
denunciar seu medo:
Tivesse que morrer, poderia fazê-lo com decência; sem deitar merda por nenhum buraco. No fundo, vaidades, porque ninguém se caga, na hora da morte, por desejo próprio, ou covardia que seja, mas sim por imperiosidades superiores à própria consciência, de modo que não seria eu a desmentir a regra. A verdade é que tentei ir para o combate com os intestinos vazios, temendo o pior (MEDINA, 1983, p.232).
Na história de nosso país quantos homens tiveram de demonstrar coragem na
luta pela pátria, na defesa dos interesses da nação, mas que pouco ou nada houve de
retorno para eles próprios. Quantas vezes o pavor, o desespero da guerra foi vencido
pelo grito, única forma de encarnar o personagem soldado e se atirar na batalha.
Temos aqui o questionamento de alguns valores sociais como a própria coragem e a
honra.
A obra Memorial de Santa Cruz também nos leva para uma reflexão filosófica
sobre a vida e as relações sociais. Apresentadas de forma cômica, as reflexões dos
amigos Públio e Aroeira congregam verdades profundas sobre a forma como as
pessoas se relacionam e, em especial, sobre os cuidados necessários para não sermos
ludibriados em nossa ingenuidade, vejamos:
Dom Públio aprendi que quanto mais você se abaixa, mais seu cu aparece e, por conseguinte, maiores as tentações despertadas em amigos, inimigos e neutros, levadas às vias de fato, de enfiarem coisas desagradáveis em seu rabo. Ensinamento que também aprendi com o italiano foi: que todos os homens, até prova o contrário são iguais, gozando portanto de idênticos direitos, e que por trás de todo filho da puta existe sempre interesse de dinheiro [...] Com Aroeira aprendi que é importante você saber a hora de curvar a espinha, ou pelo menos de tirar o chapéu, ainda que com sorriso falso e teatral, a amigos e inimigos, porque nunca se sabe o dia de amanhã [...] Acabei por concluir que cada um dos dois, a seu modo, estava certo, conhecendo então, pela primeira vez, que a vida não é só branco no preto e preto no branco,
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infinitas sendo as variedades de tons que separam uma cor da outra (MEDINA, 1983, p. 36-37).
Nada na vida é definitivo, tudo que é pode não ser, ou deixar de ser. Esse clima
de incertezas e dúvidas, de não termos respostas concretas para os mais diversos
problemas, essa angústia pela descoberta da verdade são algumas das marcas da
literatura pós-moderna. Memorial de Santa Cruz traz essas marcas, pois nada se
apresenta como definitivo, nem mesmo as filosofias. Os amigos de Brasil discordam em
suas formas de ver o mundo. O personagem acaba percebendo que existe razão em
ambos, que a vida não é somente submissão, mas que também é preciso ter bom-
senso, ter o que chamamos de jogo de cintura, pois “nunca se sabe o dia de amanhã”.
[...] é possível perceber que a escola literária pós-modernista trouxe consigo mais indagações do que respostas, mais dúvidas do que certezas, uma vez que procura romper com os paradigmas construídos a partir das idéias iluministas [...]. O pós-modernismo vem, a partir da morte das utopias, tentar retomar essas idéias, porém não com sentimentos de nostalgia nem com intuitos de exaltação. Ao contrário, procura reformular, revisar, subverter e criticar as máximas proferidas pelo Iluminismo (RESTA, 2003, p. 31).
A reflexão sobre a morte das utopias está muito presente na obra. O
personagem questiona-se sobre os muitos recomeços que teve. Por fim, o
encarceiramento nos coloca em dúvida, e agora, existem horizontes? As grades da
prisão limitam os movimentos do personagem Brasil, ele é o “detento 1964”, número
muito significativo quando identificamos tratar-se de um ano, o ano de 1964. Para o
país Brasil, representado nesta epopéia, o ano de 1964 foi de cerceamento da
liberdade de seu povo, suas vozes foram abafadas por um regime totalitarista, seus
horizontes foram demarcados por decisões superiores. As utopias encontram grades
que limitam suas ações. Há uma sensação de desalento, de fim. Vejamos ao final da
obra qual mensagem nos deixa Santa Cruz:
Não posso dizer que a prisão me tirou o tesão de viver ou abateu por demais minha pessoa. Como sempre, aos trancos e barrancos vou marchando. Planos futuros não alimento, mas também não abandonei as esperanças. O tempo foi feito mesmo para passar, e seu escoamento trabalha em meu favor. Qualquer hora deixo de ver o sol nascer quadrado, é só questão de espera, paciência e oportunidade. O importante é que continuo respirando, e não perdi a confiança no meu braço. Como diz o outro, não está morto quem peleia (MEDINA, 1983, p. 299).
32
Como vemos, apesar do sofrimento, da desilusão e das grades, o personagem
ainda tem esperanças. Não tem sonhos, é um momento em que sonhar é difícil, não
consegue vislumbrar o que vem pela frente, mas tem esperanças. Brasil de Santa Cruz
afirma que “não está morto quem peleia”, assim como poderíamos dizer ganharam a
batalha, mas não a guerra. Compreendemos que nós, povo brasileiro, podemos perder
muitas batalhas na busca de uma sociedade mais igualitária, mas nunca desistiremos
da guerra, apesar de não termos claro qual o caminho a ser seguido, estaremos
sempre prontos para recomeçar. Assim conclui Brasil o seu relato, declarando que está
pronto para o que der e vier e que não perdeu a confiança no seu braço, ou seja,
acredita que não lhe falta fôlego para prosseguir na batalha.
Os anos subseqüentes a 1964 não foram anos fáceis, muito pelo contrário, foram
anos de muita repressão. Observamos, no entanto, que quanto mais houve repressão,
mais houve grupos organizados para resistir a essa repressão. A situação de limitação
que o povo viveu serviu justamente para aguçar seu instinto de luta e seu
desprendimento a todos os fatores que poderiam inibir sua ação, mesmo suas vidas
foram colocadas em risco nessa luta.
Regina Zilberman conclui sua introdução dizendo que na obra “emerge a história
de um povo na voz de quem busca sua libertação”. Memorial de Santa Cruz é essa voz
que soa buscando incomodar os ouvidos, retinir dentro das grades da prisão e dos
muros dos palácios.
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4 CONCLUSÃO
Observamos no decorrer deste trabalho que a ideologia permeia as relações
sociais, que não é possível estarmos isentos de qualquer tipo de ideologia, pois toda a
estrutura social está baseada em pressupostos ideológicos. Santaella coloca-nos que
existem muitas verdades ideológicas e que precisamos discernir a mistificação presente
em nossa vivência social.
Analisando as diversas ideologias identificamos a existência de uma ideologia
que se sobrepõe, direcionando dessa forma a grande estrutura social. Por outro lado
identificamos uma ideologia baseada na utopia da possibilidade de uma sociedade
ideal, ou seja, uma ideologia conscientizadora do papel de cada ente social. Os
ensaios de Borges e de Tronca esclarecem esse pensar utópico, evidenciando que o
ideal utopista aponta para além do indivíduo, para uma condição em que a sociedade e
o indivíduo não estão mais em conflito, mas se transformam em diferentes aspectos do
mesmo corpo humano.
Ao buscarmos esclarecer a presença ideológica na obra literária, encontramos
em Santaella e em Schüler posicionamento semelhante. Ambos os autores identificam
na obra literária papel inovador, não podendo restringir-se a preceitos didáticos ou
mesmo ideológicos. No entanto, mesmo não existindo condicionamento ideológico, a
obra literária se vê impregnada ideologicamente. Esse entendimento vem do fato de
que todo e qualquer signo é por natureza ideológico-histórico-social, pois tem seu modo
próprio de dizer a realidade, de uma certa maneira e numa certa medida. Essa
vinculação direta entre signo e ideologia nos faz pensar que toda literatura é signo e,
como signo, está permeada dos aspectos ideológicos presentes nos signos.
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Observamos que a obra literária apóia-se em dois pilares, o estético e o
ideológico, e vimos com Eagleton a importância da estética na fundamentação teórico-
ideológica. A observação do mundo sensorial exige atenção redobrada, pois o que
vemos é apenas um ângulo do que a realidade nos apresenta.
Em Lopes encontramos a literatura de dissidência, muitas vezes excluída dos
bancos escolares por seu caráter popular e picaresco. Essa literatura traz um olhar
diferente sobre o mundo, a partir da perspectiva da parcela da população que pouca ou
nenhuma voz possui.
Salientamos neste trabalho as relações construídas por Sinval Medina em sua
obra, Memorial de Santa Cruz. Sinval Medina consegue apontar na história do
personagem Brasil de Santa Cruz a história do povo brasileiro. Essa analogia ao povo
brasileiro traz presente as dúvidas, anseios, frustrações e conquistas desse povo; seus
méritos como povo trabalhador e incansável e seus fracassos, em vista da submissão a
que se vê sujeito em sua história. No decorrer do romance muitas vezes o povo torna-
se algoz do próprio povo, tal o nível de domínio ideológico a que está submetido.
Identificamos presença ideológica na obra quando observamos as ambigüidades
na narrativa. A ambigüidade se verifica entre oprimido e opressor, entre a fuga e a
derrota, entre a vitória e a ausência de méritos. Sinval Medina traz nessa obra um
constrangimento em relação aos fatos narrados, uma sensação de que a história deve
ser diferente. É justamente com esses questionamentos que defronta o leitor com sua
própria realidade, força uma reflexão mais profunda sobre vários aspectos da vida em
sociedade.
Também outros aspectos característicos da vida brasileira são trazidos pelo
autor, como o futebol, por exemplo, o jogo, que num primeiro momento aparece como
entretenimento, transforma-se na grande paixão nacional e, por essa paixão, o povo
pode esquecer tudo, pode esquecer a miséria, pode esquecer a escravidão do trabalho
e a vida sem perspectivas, afinal ganhar o jogo compensa as amarguras do dia-a-dia.
Tecendo de forma dinâmica as aventuras do personagem Brasil, o autor vai
desfiando as agruras e desventuras brasileiras. Por fim temos a prisão, limite da
existência, grades que cerceiam completamente os movimentos do personagem, antes
tão andarilho e aventureiro. Agora enclausurado, ele passa a ser o “detento 1964”.
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Também os movimentos do povo estão cerceados, cassados, limitados pelo regime
militar. Deparamo-nos então com o questionamento: ainda existem horizontes?
A resposta para o questionamento acima nos traz o próprio personagem quando
diz: “Planos futuros não alimento, mas também não abandonei as esperanças”, ou seja,
a situação é de sofrimento, de dúvidas, de incapacidade de ação, de morte das utopias;
no entanto persiste a determinação na luta por um lugar ao sol. Brasil pode estar preso,
seus movimentos podem estar vigiados, mas existe uma luz que ultrapassa as grades
da prisão e que encontra seu olhar.
Sinval Medina coloca-nos frente à desilusão, como forma de trazer à tona nossa
sensibilidade na percepção do mundo a nossa volta. A presença ideológica na obra
direciona para um olhar de baixo, um olhar que enxerga quem normalmente não
aparece.
Concluímos nosso trabalho com a frase de Kothe: “A literatura espelha em si o
horizonte ideológico do qual, ao mesmo tempo, ela é parte”, ou seja, não haverá
literatura isenta ideologicamente; toda obra literária levará consigo uma opção quanto
ao enfoque que conterá.
Memorial de Santa Cruz traz em si a opção pelos dissidentes, aqueles que não
figuram nos anais históricos como heróis; que na realidade simplesmente não figuram;
que não possuem voz própria. A obra traz essa voz ao povo brasileiro, representado
pelo personagem Brasil de Santa Cruz, povo tantas vezes oprimido e esquecido. Ao
analisar a história do povo brasileiro pela perspectiva do próprio povo, traz nova ótica
para as relações sociais existentes.
Ao leitor atento cabe decodificar a mensagem, utilizando-se do paralelo com a
própria realidade e de sua sensibilidade estética e racionalidade ideológica, para
desfazer e refazer o texto literário.
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REFERÊNCIAS
BORGES, Vavy Pacheco. Os anos trinta e as utopias. In: BLAJ, Ilana; MONTEIRO, John M. História & utopias . São Paulo: ANPUH, 1996.
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
LOPES, Cícero Galeno. Literatura e poder. Porto Alegre: UFRGS, 2005.
MEDINA, Sinval. Memorial de Santa Cruz . Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
RESTA, Janandra de Melo. O Revisionismo em A prole do corvo: a outra face da Revolução Farroupilha. 2003. 36 folhas. Graduação em Letras, Unilasalle, Canoas.
SANTAELLA, Lucia. Produção de linguagem e ideologia. São Paulo: Cortez, 1996.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.
TRONCA, Ítalo. A História e as utopias criativas. In: BLAJ, Ilana; MONTEIRO, John M. História & utopias. São Paulo: ANPUH, 1996.
ZILBERMAN, R. Introdução. In: MEDINA, Sinval. Memorial de Santa Cruz . Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.