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A  crise  de  1929  foi  uma  depressão  generalizada  da  produção  em  quase  todo  o  mundo  industrializado.  A  cada  dia  se  multiplicavam  as  demissões  em  massa  e  os  pedidos  de  falência.O   crash   da   Bolsa   de   Nova   York   causou   um   racha   jamais   visto   no   mercado  Einanceiro.  A  comunidade   internacional  entrou  em  choque  ao  ver  os  Estados  Unidos,  bastião  de  solidez  e  conEiabilidade,  literalmente  quebrar.Esta  obra  retoma  a  história  da  Grande  Depressão,  suas  causas,  seus  efeitos  e  analisa   os   mecanismos   econômicos   que   estiveram   em   jogo   nesse   episódio  traumático  do  capitalismo  contemporâneo.  Mostra  também  como  cada  época  relê  essa  crise  e  quais  lições  foram  tiradas  dela.

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INTRODUÇÃO“Nem todosmorriam,mas estavam todos contaminados.” Poderíamos

aplicaràcrisede1929esteversodeLaFontaine.Comoapeste,defato,aGrandeCrisedosanos1930foiumflagelocegoegeneralizado:rarossãoospaísesougrupossociaispoupados,eosmaisfechadosmuitasvezesforamos mais atingidos. O desastre não partira dos Estados Unidos, o novogigante industrial do mundo da época, gigante cujas perspectivas dedesenvolvimentopareciamilimitadas?Odesmoronamentodosnegóciosfoiprimeiroumaquestãodenúmeroseespecialistas;ocrashdaBolsadeNovaYork(emoutubrode1929)foiacompanhadodelongepelograndepúblico,apesardossuicídiosdeespeculadoresarruinados,atirando-sepelasjanelasdos prédios de Manhattan, terem aparecido nas capas dos jornais.Enquantosemultiplicavamasfalênciasedemissões,opânicomonetárioefinanceiroeasbancarrotasestatais,oprimeiroplanodacenaeraocupadoporperitosgovernamentaiseencontrosdiplomáticos.Noentanto,poucoapouco outra realidade foi se impondo: a de uma monstruosa desordemmaterial e humana. Locomotivas brasileiras consumiam o café que nãomais podia ser vendido nem mesmo a preços irrisórios, estoques seacumulavam,empresasfechavamsuasportas;milhõesdepessoasseviamsem emprego, portanto sem recursos e sem dignidade, na maioria dasvezes semproteção social, incapazes de pagar seus aluguéis, reduzidas àespera das distribuições gratuitas de alimentos e agasalhos, levadas aodespejo,àmendicidade,àrevolta.

Essa penúria absurda explica sem dúvida o fato de ainda termos poresseperíodoverdadeiraobsessão, conscienteou inconsciente,nomínimoigualàinspiradapelaeventualidadedeumnovoconflitoarmadomundial.“Ela” poderia recomeçar? Esse pequeno livro não tem a intenção deresponderaessapergunta.Elepretende,naverdade,especificaresse“ela”erevercomatençãoasconvulsõesdocapitalismonoséculoXX.

Nos últimos anos, essa tarefa se tornou, em certo sentido,mais fácil:comopassardo tempo,os trabalhosespecializadossemultiplicaram,eoacúmulo de testemunhos e de análises no calor do momento é agoraacompanhado por numerosos estudos histórico-econômicos fartamentedocumentados.Égrandea tentaçãodeexaminarosacontecimentosà luzdas contribuições recentes, que muitas vezes corrigem algum aspecto eapresentam em uma nudez objetiva e numérica o caso de 1929. Essa

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decantação,indispensável,éapenasumaprimeiraetapaparaoautordestetrabalho;primeiro,porqueelanãopermiteresolveracontrovérsiasobreascausasda catástrofe, controvérsiaquecontinuavivaaindahoje; segundo,porqueadiscussãoassimexpostaseriacurtademais.Eladeixariadeladooutras dimensões de irrefutável importância. A crise de 1929 temelementos e significações políticas, sociais, psicológicas e culturais... Portrás do New Deal de Roosevelt, da trágica ascensão do nazismo e dasFrentesPopulares,sóparaficarmosnapolítica,existeaafirmaçãodequeumcerto tipodecapitalismo faliuedequeumabarreira inadmissível foitransposta. O abalo foi não sómaterial,mas também espiritual; sob esseponto de vista, as contribuições dos testemunhos de época continuamsendo essenciais, principalmente em suas manifestações literárias eartísticas: relatos, fotos, filmes... Somente depois dessa exploração serápossível fazer com propriedade a pergunta sobre as causas e ainterpretação da Grande Depressão e iniciar uma confrontação com ascertezaseincertezasdoséculoXXI.

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CAPÍTULOI

OSNÚMEROSDACRISE

Acrisede1929consistiu,acimadetudo,numaquedageneralizadadaproduçãoemquasetodoomundoindustrializado(comexceçãodaURSSedo Japão). Convémprimeiro entendê-la a partir desse aspecto, utilizandopara isso os grandes indicadores da atividade econômica, que são osíndices de produção e de trocas comerciais, bem como as taxas dedesemprego. Esses referenciais básicos serão o tema deste primeirocapítulo.

I.Umaformidávelretraçãodaprodução:1929-1933Um exame prévio, simbólico, se faz necessário. A baixa da produção

industrialsemanifestaranosEstadosUnidosnodecorrerdoanode1929.MasodesencadeamentooficialdaGrandeDepressãoaconteceuem24deoutubro de 1929, com a queda repentina das cotações da Bolsa deNovaYork,aofimdeumaexpressivaascensãoiniciadaem1927,aceleradaduasvezesemarcadapordoispatamares,em junho-julhode1928eemabril-junho de 1929. Podemos seguir as oscilações das cotações no gráfico aseguir,quemostraaduplicaçãodeumíndicesintéticoentre1926e1929,depois a queda inexorável, a um terço do nível de 1926, em 1932. Ascotações se recuperam depois de 1935, para recuarem novamente em1937-1938, quando surgem novas dificuldades econômicas próprias dosEstadosUnidos.

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Figura1–CotaçãodasaçõesnaBolsadeNovaYorkentre1926e1938.Índice“StandardStatistics”

(base:1926=100)Ossinaisquantitativosdaquedaduranteooutonode1929sãobastante

conhecidos: depois de um máximo em 19 de setembro, as cotaçõescomeçamadesmoronarem3deoutubro,eabaixaseaceleradepoisdodia14.Aquinta-feira24deoutubroficariaconhecidanosanaisbolsistascomoaQuinta-FeiraNegra:cercade13milhõesdeaçõestrocamdemãosnessedia,enquantoovolumeusualdetransaçõesnãopassavade4milhões.Maso pânico dura apenas o turno da manhã, pois intervenções maciças debanqueiros se passando por compradores fazem subir as cotações. Opânicosetorna irremediávelnaterça-feira29deoutubro–aTerça-FeiraNegra – quando cerca de 16milhões de ações são vendidas: a baixa dascotações é tão grandeque anula deuma só vez as rápidas elevaçõesdosdozeúltimosmeses.

Aevoluçãodos trêsanosentre1929e1932, apesardenão-originadaem rupturas de 24 horas como esta, seria igualmente catastrófica.EnquantoorestodomundoperdiaseuinteresseporWallStreet,aBolsadeNovaYorkselimitavaarefletiraquedadosnegóciosedaprodução,comoemquasetodososdemaismercadosfinanceiros.

Paraquantificarasvariaçõesdaprodução,oindicadormaisutilizadonoentre-guerraséo índicedovolumedaprodução industrial,queserefere,suprimindooefeitodospreços,àatividadedasminas,daconstruçãoedaenergia, de um lado, e das indústrias manufatureiras de outro (bens deconsumoebensdeprodução).

A seguir (Tabela 1), vemos essas oscilações nos países regularmenteestudados na época, isto é, quase todos os países europeus, América doNorte,URSSeJapão.Namaiorpartedoscasos,omáximoobservadoantes

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dacriseéencontradoem1929(queéoano-baseaqui);aAlemanhaéumaexceçãodignadenota,poisseuíndicechegaa102em1927,passapor99em 1928 e volta a 100 em 1929. Os números falam por si: em 1932, aatividadeindustrialnosEstadosUnidoséde54,ouseja,reduzidaàmetadeouquaseissoemrelaçãoa1929;éde53naAlemanha,61naÁustria,63naPolônia,64naTchecoslováquia...Algunspaísessesaemmelhor:aURSS,empleno processo de industrialização pesada, está fora do mundo e é umsímbolo do dinamismo socialista da época; o Japão a segue após levedeclínio. Os casos daGrécia e daNova Zelândia são relativamente poucosignificativos,dadoofracopapeldaindústrianessespaíses.AFrança,porsua vez, acusa um leve atraso e só “chega ao fundo” em 1935, como osPaísesBaixos,emboramenosafetados.

Tabela1–Oscilaçãodaproduçãoindustrialemdiferentespaíses(1929=100)País/Ano 1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938África:Uniãosul-africana107 100 124 144 167

América:Canadá 85 71 58 60 73 81 90 100 90EstadosUnidos 81 68 54 64 66 76 88 92 72Chile 101 78 87 96 105 120 124 132 137México 106 134 141 147 Ásia:Japão 95 92 98 113 128 142 151 171 73Europa:Alemanha 88 72 58 65 83 95 106 116 124Áustria 85 70 61 63 70 80 86 103 Bélgica 89 81 69 72 73 82 87 96 80Bulgária 148 143 155 Dinamarca 108 100 91 105 117 125 130 136 135Espanha 99 93 88 84 85 87 Estônia 99 91 78 82 96 106 120 139 145Finlândia 91 80 83 96 117 125 139 156 156França 100 89 77 83 78 76 80 83 79Grécia 103 107 101 110 125 141 139 151 165Hungria 95 87 82 88 99 107 118 130 126Irlanda 102 143 146 Itália 92 78 67 74 80 94 87 100 98Letônia 109 89 82 112 130 137 143 161 175Noruega 101 78 93 94 98 108 118 130 127PaísesBaixos 102 96 84 91 93 90 91 103 104Polônia 88 77 63 69 77 83 93 109 118Romênia 97 102 89 103 124 122 130 132 132ReinoUnido 92 84 83 88 99 106 116 124 116Suécia 102 96 89 91 110 123 135 149 146Tchecoslováquia 89 81 64 60 67 70 80 96 URSS 131 161 183 198 238 193 382 424 477Oceania:NovaZelândia 106 104 109 113 112 121 129 126

Mundo(semaURSS) 86 75 64 72 78 86 96 104 93

Mundo(comaURSS) 89 79 70 78 86 96 111 119 112

A recuperação depois de 1932-1933 se dá de maneira dispersa.Enquantoalgumas indústrias são logo recolocadas sobreos trilhos, comoas da Europa setentrional, do Japão e dos raros países periféricosapresentados na tabela, algumas continuam desaceleradas, como emprimeiro lugar nos Estados Unidos, no Canadá, nos grandes paísesindustriais comoaAlemanha, apesardamobilizaçãonazista, naFrança enas demais nações européias (Tchecoslováquia e Polônia). A situação da

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Grã-Bretanhaéintermediária.Amelhora não está livre de recaídas: a crise de 1937-1938, evidente

principalmentenosEstadosUnidos (queda violentado índicede92para72),enfatizaafragilidadedasituaçãoeconômicacapitalistanofimdosanos1930.Canadá,Bélgica, França, Itália,NoruegaeReinoUnido sãoalgumasdasnaçõesnitidamenteafetadas.

Apartirde1938-1939,osproblemasmudamde foconummundoemrearmamento que começa a solicitar o potencial industrial e mobiliza amão-de-obracommedidascadavezmaisautoritárias.

Éprecisodestacar,alémdaamplitudedasvariaçõesglobais,aextremadiversidadedasevoluçõesdesuascomponentes.Apareceaquiapenasumamédiaanualnacional,queapaga tantoasvariaçõesmêsamêsquantooscasosextremosdecertasproduções.Oíndicedaproduçãodeautomóveis,porexemplo,aindade100em1929,em1932éde26naAlemanha,26nosEstadosUnidos e23noCanadá.Háuma claraoposição entreosbensdeprodução (máquinas, ferro e aço, cimento etc.) e os bens de consumo(têxteis, alimentação etc.). Os últimos quase sempre resistem melhor acrises. Em1932, por exemplo, o índice americano dos bensde produçãoestava em 27,3, e o dos bens de consumo, em 76. Os números alemãescorrespondenteseram34e79.

Essas medições feitas na época são completadas por cálculosposteriores: primeiro do Produto Interno Bruto (PIB), que acrescenta àindústriaasproduçõesdaagriculturaedosserviços.Olugardaagriculturavariadepaísapaís,masaatividadedosetorseguesuasprópriasevoluçõesconjunturais:umacolheitaéboaouruimdependendodameteorologiaedatécnica de cultura, não do estado dos negócios. Já o setor terciário –serviços, comércio, etc. – é caracterizado por certa inércia. Assim, asestimativas feitas hoje em dia sobre o PIB revelam oscilações menosacentuadasdoqueasdaproduçãoindustrial(verFigura2).

Adotamosaquiabasede1913=100paraenfatizarumfenômenoquenão aparece nas estatísticas que têm como base 1929 = 100: a enormedisparidade de crescimento durante os anos 1920. Dessa forma,compreenderemosmelhor,porexemplo,emquesentidoaGrã-Bretanhaéumcasoparticular:ofracorecuodesuaproduçãoindustrial(quechegaaummínimode83 em1932) sucede aomarasmogeneralizadode1920 a1930. O contrário acontece com a França: dinamismo de 1920 a 1930,marasmodepoisdisso.

O mínimo americano aparece agora em 1933 e corresponde a umaqueda de 30% em relação a 1929. A retração alemã é de apenas 16%.

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Quasetodososvelhospaíseseuropeuspartemdeumnívelmuitobaixonoiníciodosanos1920:asdestruiçõesdaPrimeiraGuerrapesammuitosobresuaseconomias,contrastandocomodinamismosuecoejaponês.

Figura2–VolumedoPIBdealgunspaísesentre1921e1939(base:1913=100)

Asdificuldadesde1937-1938nãopassamdeuma fase intermediária,

exceto para os Estados Unidos. A rápida ascensão das potências do Eixo(Alemanha, Itália eÁustria) épatentedesdeessadata:percebemosnissotambémaeconomiadeguerra.

Outrosnúmerosprecisamserexaminados:osdosinvestimentos.Tabela2–Investimentosemalgunspaíses

de1925a1938(em%doPIB)

Alemanha França Itália Suécia ReinoUnido Canadá Estados

Unidos1925 13,7 15,2 18,9 11,4 9,1 19,31926 13,6 15,2 19,2 11,8 8,4 15,7 19,21927 14,6 14,7 17,5 11,6 8,7 17,4 18,81928 14,5 17,5 16,7 12,4 8,9 19,2 18,41929 12,7 18,3 17,2 12,7 8,8 21,9 17,61930 11,8 20,8 17,6 13,4 8,9 20,1 15,91931 8,9 19,1 15,8 14,3 8,5 17,1 13,01932 7,5 16,4 13,3 12,1 7,3 11,6 9,31933 8,7 15,7 14,4 11,0 7,2 9,1 8,81934 12,3 14,6 15,6 13,8 8,6 10,1 10,51935 15,1 14,7 17,1 16,2 9,1 11,4 11,31936 16,1 15,3 18,5 16,5 9,9 12,3 14,51937 17,0 15,6 16,9 18,7 10,6 15,4 14,81938 13,4 15,9 18,9 11,5 14,3 14,0

Fontes:MADDISON.EconomicGrowthintheWest.London:Allen&Unwin,1964;Carré,Dubois,Malinvaud,Lacroissanefrançaise,LeSeuil,1972,paraosnúmerosfranceses.

EssassãoasavaliaçõesanuaisdealgunspaísesemporcentagemdoPIB(Tabela2).Nãoconvémcompararosníveisnaçãopornação:elespodemrefletirdiferençasnãosónoesforçodeprodução,mastambémnaspráticas

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contábeis.LembremosasbaixasjáconstatadasdoPIB;asporcentagens,embaixa entre 1930 e 1932, demonstram a que ponto as despesas queasseguravamofuturoforamsacrificadas.Trata-sedetaxasbrutas:ouseja,quecomportamarenovaçãodasinstalaçõesdeterioradas.

Levando-se em conta o envelhecimento natural dos equipamentos,podemos supor que inúmeros países se contentaram em substituir, nemsempre completamente, as máquinas descartadas. Três curvas sãoespetaculares:EstadosUnidos,CanadáeAlemanha.Podemosdeduzir,emsentido inverso, certa manutenção das despesas de consumo (sujeitas àevolução das importações e exportações e das movimentações deestoques).

II.Quedageraldospreços,marasmoedesmantelamentodocomérciomundial

Osdadosqueacabamosdeapresentarsãodevolume,ouseja,oefeitodasaltasebaixasdepreçoséneutralizadonahoradocálculo.Porém,osnúmerosobservadosdiretamentesãodevaloretambémvariamemfunçãodos preços. Estes últimos baixam no mundo inteiro, em geral depois de1925-1926. O próximo gráfico (Figura 3) demonstra isso nos preços dovarejo,istoé,nospreçosaoconsumidor(base100em1914).Ofenômeno,apesar das aparências, é de amplitude similar em todos os paísesapresentados:entre1929e1932,ospreçosbaixaram17%noJapão,18,6%nos Estados Unidos, 12% na França (a baixa se prolongaria até 1935,chegando a 29%), 21%na Itália e na Alemanha, 14%naGrã-Bretanha eapenas2%naÁustria.AdiferençaobservadaentreFrançaeItália,deumlado (países aos quais poderíamos acrescentar Bélgica e Finlândia, porexemplo), e as demais nações, do outro, se deve ao considerável surtoinflacionário que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e que não foiestancado.Oscasosalemãoeaustríacodevemserconsideradosàparte:ahiperinflaçãode1922-1923queatingiuosdoispaíseslevouaAlemanhaaumíndicede14.602em1922para15.437bilhõesem1923...Éporissoqueseusíndicessóaparecemapartirde1924,comnovasmoedas,corrigidosàbase100porintermédiodepreçoscomlastroemouro.

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Figura3–Índicedospreçosaoconsumidoremalgunspaísesde1921a1939(base:1914=100)

Fonte: MADDISON, 1981, op. cit.). Devido à hiperinflação de 1921-1923, os índices alemães eaustríacoscomeçam1924corrigidosnabasepelascotaçõesdoouro.

Resultados mais contrastantes ainda aparecem no exame dasestatísticasdospreçosdoatacado–tantoemmomentosdealtaquantodebaixa –, pois estes, referindo-se a mercadorias acima da rede dedistribuição aos consumidores, não incorporam os impostos fixos e logorefletem as flutuações das cotações de matérias-primas, que baixarammuito,justamentedepoisde1925-1926.

Algunsvaloresaproximados:entre1929e1933,ospreçosdeatacadodefinidos em moeda nacional baixaram 32% na Grã-Bretanha, 34% naAlemanha,37%naItália,38%naFrançae42%nosEstadosUnidos.

Conseqüentemente, os números observados na produção e osrendimentos são muitas vezes mais extraordinários do que os dadoscorrigidosdasoscilaçõesdepreços,poisnosanos1929-1933duasbaixasse superpõeme se reforçam;no casodaprodução, ocorre ada atividade“real”eadovalornominaldosprodutos.Ovaloraproximadodaretraçãopassafacilmentede30%a50%:oPNB1dosEstadosUnidos,porexemplo,emdólarcorrente, éavaliadoem104,4bilhõespara1929.Em1933,nãopassade56bilhões.

Em alguns países, a crise se manifesta, portanto, numa diminuição àmetade dos grandes indicadores nominais da produção e da receitanacional.

A transformação do comércio internacional é mais surpreendenteainda:embilhõesdedólares-ouro,aretraçãodasimportaçõesde75países,calculadapelaLigadasNações,vaideummáximode3,04bilhõesemabril

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de1929aummínimode0,944bilhãoemfevereirode1933,ouseja,umabaixa de 69%. Uma ilustração eficaz e famosa da inexorabilidade dofenômeno é o diagrama em espiral estabelecido em 1933 pelo InstitutoAustríaco de Pesquisas sobre a Conjuntura e retomado pela Liga dasNações(Figura4).Quandosuprimidooefeitodabaixadospreços,aqueda,ao invésdeserdedois terços,nãopassade25%.Essenúmeroglobaldevolume não é suficiente, no entanto, para caracterizar a evolução dastrocas.A análisedequatropequenosgráficos estabelecidospelaLigadasNaçõespermiteespecificaralgunspontosessenciais(verFiguras5e6).Oprimeirocontrapõe,nomundointeiro,trêsíndicesdebase100em1929:odovolumedecomérciomundial,odaproduçãoindustrialeodaproduçãode base, isto é, a produção agrícola e as matérias-primas, brutas ousemimanufaturadas.Acomparaçãodessestrêsíndiceslevaasituaraquedadas trocasmundiais entre a fortíssima retração industrial e a resistênciadasproduçõesdebase: oquenãoémuito surpreendente,namedidaemqueessesdoistiposdeproduçãosãoalvodetransaçõesinternacionais.

1929 1930 1931 1932 1933I 2,9977 2,7389 1,8389 1,2060 0,9924II 2,6303 2,4546 1,7005 1,1867 0,9440III 2,8148 2,5639 1,8891 1,2304 1,0569IV 3,0391 2,4499 1,7964 1,2128 V 2,9676 2,4470 1,7643 1,1505 VI 2,7910 2,3257 1,7323 1,1447 VII 2,8139 2,1895 1,6796 0,9937 VIII 2,8185 2,1377 1,5859 1,0046 IX 2,7739 2,1648 1,5721 1,0296 X 2,9668 2,3008 1,5563 1,0904 XI 2,8888 2,0513 1,4700 1,0933 XII 2,7939 2,0959 1,4269 1,1212

Figura4–Aespiraldaretraçãodocomérciomundialdejaneirode1929amarçode1933.Valoresmensaisembilhõesdedólares-ourodasimportaçõesde75países.

Fonte:LigadasNações.

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Figura5–Variaçãoanualdaproduçãomundialedocomérciomundial

Figura6–VariaçãoanualdastrocascomerciaisedaproduçãonaEuropa,naAméricadoNorteenorestodomundo(comexceçãodaURSS)

Depois de 1932, a viva recuperação da indústria e a retomada dosprodutos de base se opõem ao longo marasmo das trocas comerciais,tardiamente reativadas em 1936. A recaída de 1937-1938 é comum aostrês índices, mas em 1938 uma forte recuperação industrial – que nãoaparecenográfico–éconcomitanteaumaestagnaçãocomercial.

Essaevolução ficamais claraquandoretornamosaosmesmos índicesfazendoumadistinçãodetrêsgrandeszonas–aEuropa(50%docomérciomundial),aAméricadoNorte(18%)eorestodomundo(paísesnovosoucoloniais)–aoladodemaisdoisíndicesparaastrocasemvolume,umparaasexportações,outroparaasimportações.Defato,constatamossituaçõesmuitodiferentesnostrêsgrupos.NaEuropa,oníveldastrocasexterioresficaestagnadoaumnível20%inferioraode1929.NaAméricadoNorte,asoscilações,bastanteacentuadas,estãocalcadasnasdaproduçãoindustrial,queacusaumabaixaprofundaenãovoltaaopatamarde1929.Norestodomundo,umarápidasubidaindustrialelevadecertaformaasexportaçõesacimadonível100jáapartirde1934.

Apenasapontando,porenquanto,odinamismodospaísesperiféricos,

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precisamos destacar dois pontos. O primeiro é que o restabelecimentoindustrial europeu se dá sem um restabelecimento apreciável das trocascomerciais: amáquina econômica volta a funcionar depois de 1932,masnãoenvolveocomérciomundial;éantesoefeitoderecuperaçõesnacionaisseguidas de bloqueios alfandegários que examinaremos mais adiante. Osegundopontoéumpoucomaisdelicado.Oafastamentoconstanteentreosíndicesdeexportaçõesedeimportações,emtodososcasos,éfavorávelaos dois primeiros grupos – pois mostra uma menor redução dasimportações – e muito desfavorável ao último, para o qual o índice dasexportaçõesestámuitoacimaaodasimportações.Aexplicaçãoparaessasdistorçõesdeve serbuscadaprimeironaevoluçãocomparadadospreçosdos produtos exportados ou importados, o que chamamos de termos detroca.Podemosoporaestabilidadedospreçosindustriais(asexportaçõesda Europa e da América do Norte se referemmassivamente a produtosmanufaturados;asexportaçõesdaperiferiadizemrespeitoacimadetudoamatérias-primas)àquedadospreçosdasproduçõesdebase.Semdúvida,asoscilaçõesdecapitaiseosacordosentreospaísestiveramseupapel.Asrelações comerciais entre colônias e metrópoles resultavam, em largamedida,dedecisõesadministrativasepolíticas.

Sejacomofor,oquedestacamosaquiéadefasagempronunciadaentretrocas externas e produção, principalmente naEuropadepois de 1932, oque confirma o aumento do isolacionismo em favor dos paísesindustrializados;noterreno internacional,nãose“jogamaiso jogo”.Umadas palavras-chave dos anos 1930 foi autarquia; apesar de os esforçosnessadireçãodefinitivamentenãoteremvingado,ei-laaquidecifrada.

III.OdesempregoFoi com afobação que os responsáveis políticos, administrativos ou

sindicaisestabeleceramemediramoavançododesemprego.Osnúmerosque apresentamos para alguns países industrializados são todosreavaliações. Eles se referem à porcentagem total de desempregados napopulaçãoativa(emidadedetrabalharedesejosadefazê-lo;verFigura7).Se antes se falava em taxas superiores a 30%, é porque estas eramreferentesouasituaçõeslocaisenãonacionais(talcidadeoutalregião),oua ramos produtivos específicos (o exemplo fundamental é o da mão-de-obraindustrial).Masessastaxascorrigidasnãominimizamasdificuldadesde1929a1933.

Primeiro,porqueumataxaglobal queultrapasse15%éenorme,nummundoondeapopulaçãoativaruralcontinuaconsiderávelenãoregistra

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desemprego – mas bastante miséria – e onde a proteção social é quasesempre inexistente. O número absoluto de desempregados nos EstadosUnidosteriaseaproximadode11-12milhõesemmarçode1933paraumapopulaçãototalde126milhões.

Segundo,porqueasavaliaçõesforamfeitassobreumabaseincompleta:a tendência natural da época era definir o desempregado como a pessoaqueperderaseuemprego(definiçãoemretrospecto,decertaforma),oquelevavaaumavisão restritivaqueexcluíada contagemdodesempregoosjovenscandidatosaprimeiroemprego, sem falardasmulheres.Portanto,foramexcluídosdapopulaçãoativa,econseqüentementedacontagemdedesempregados,ostrabalhadorespotenciaisqueenfrentavamdificuldadesdeemprego.

Figura7–Taxadedesempregoemalgunspaísesde1920a1938em%dapopulaçãoativa.Fonte:MADDISON,1981,op.cit.

Osnúmerosapresentadosaquisãoavaliaçõesmínimas.Ocasofrancêséquasecaricaturalsobessepontodevista:osdadossão

incertose,dequalquerforma,muitobaixos.Entreosdoisrecenseamentosde 1931 e 1936, levando-se em conta as variações da imigração e dademografia,onúmerodeempregosoferecidosnaeconomiabaixoumaisde1milhão,enquantoonúmerodedesempregadossóaumentouem500mil!Uma explicação verossímil é que inúmeros jovens trabalhadores sememprego ou, pelo contrário, com mais de 55 anos, foram excluídos dacontagemdapopulaçãoativa–e,portanto,dodesemprego.Ahipótesedeuma “volta ao lar” feminina maciça parece, por outro lado, menosfundamentada. Dois elementos teriam conjugado seus efeitos paraminimizar a avaliação do desemprego francês: a uma economia menosnitidamente industrializada do que nos outros grandes países do entre-

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guerrasteriamrespondidopráticasestatísticasrestritivas.O que surpreende no aumento do desemprego no período de 1929-

1932,alémdesuaamplitude,équeelenãoéseguidoporumanovaquedasimétrica,comexceçãodaAlemanha.NosEstadosUnidos,principalmente,a onda leva tudo o que vê pela frente e não acaba de todo: omínimo de1936continuanonívelde10%dapopulaçãoativa,oqueestánamesmaordem de grandeza que omáximo da crise de 1921! O mundo dos anos1930 vive a manutenção de grandes taxas de desemprego: o tristeprivilégioinglêsdosanos1920segeneraliza.

As médias nacionais compensam as grandes disparidades. Há umageografia do desemprego. Bastará um exemplo aqui, o da Grã-Bretanha,cujo norte, de longa data industrializado (Manchester, Newcastle...), émuitomaisatingidodoqueosul,predominantementerural.

UmexemplodasdiferençasporprofissãoéencontradonosnúmerosdeW.Woytinski,sindicalistaalemãoeperitodaOrganizaçãoInternacionaldoTrabalho:emjunhode1932,segundoasavaliaçõesdossindicatosalemães,47% de seus associados estavam desempregados no setor metalúrgico,77%doscarpinteiros,50%dosvidraceiros,33%dosquímicos2...

Uma última série de considerações se faz necessária: da reduçãoautoritáriadehoras,comabaixacorrespondênciadesalários,àsuspensãotemporária, o desemprego parcial foi inevitável para inúmerostrabalhadores. Essa realidade multiforme é quase impossível dequantificar. Um vestígio eloqüente, no entanto, pode ser encontrado naconfrontação de dois índices: o dos ganhos horários e o dos ganhossemanais.Nocasoamericano,porexemplo,na indústria,de1929a1933,os primeiros baixaram 20%, e os segundos, 45%, o que enfatiza tanto aredução da duração média do trabalho quanto seu impacto sobre osoperários: mais que uma partilha do trabalho, como diz a terminologiaatual,setratavadeumapartilhadodesemprego.Eadiminuiçãodotempode trabalho constatada no período precede ironicamente a civilização dolazerquealgunspreviamnassociedadesindustriaisdesenvolvidas.

1.OProdutoNacionalBrutodiferedoProdutoInternoBruto,poislevaemcontaasreceitaslíquidasdos rendimentos dos fatores de produção provenientes do exterior (rendimentos de fatores deproduçãoprovenientesdorestodomundomenososrendimentosdefatoresdeproduçãopagosaorestodomundo).Essesindicadoresestãomuitasvezesbastantepróximosumdooutro.(N.A.)

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2.WOYTINSKI,W.Lesconséquencessocialesdelacrise.Genève:OIT,1936,p.155.(N.A.)

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CAPÍTULOII

ENCADEAMENTOS

I.Ainstabilidadecapitalistadoentre-guerrasÉ preciso evitar o ponto de vista retrospectivo que consistiria em

“escurecer” o período inteiro à sombra de uma fatalidade sinistra:sobretudono início,muitaspessoasviamnareviravoltadaconjunturade1929 um fenômeno normal e no crash da Bolsa e nas falências, umfenômenomoral.

Aquedade1928-1929nadatinhadeexcepcional,oumelhor,respeitavaa cronologia familiar das importantes crises que haviam acontecido aolongodoséculoXIX,maisoumenosacadaoitooudezanos.Nocaso,acrisede1920-1921,marcadaporum importante recuodaprodução industrialemtodosospaísesdesenvolvidos(baixade32%nosEstadosUnidosentremarçode1920ejulhode1921),precederaade1929.

Damesmaforma,amultiplicidadedeexperiênciasanterioresmostravaque as Bolsas de Valores podiam às vezes amplificar esperanças outemores.

Assim, durante a crise de 1921, para ficarmos nela, dois colapsos daBolsa haviam acontecido: no Japão e nos Estados Unidos. Porém, oindicadoressencialdasreviravoltasconjunturaiseraoíndicedospreçosdeatacado,sendoquesuabaixaassinalavaaiminênciadadesaceleração,esuaalta,asperspectivasderecuperação.Odesempregopareciaacontrapartidainevitável da retração, e as intervenções estatais visavam a acompanharessasevoluçõesconsideradasnaturais.3

Estaera, emresumo,aexperiênciadospaíses capitalistasemmatériade flutuações econômicas.Os acontecimentos que se seguirama 1929 seafastaramenormementedesseesquema.

1.AespeculaçãodaBolsa

Ocrash deWall Street, apesar de seu caráter espetacular, não surgecomoumainovaçãodemoníacaouumraioanunciandoodilúvionumcéuazul.AmaioriadasBolsaseuropéiasevoluíamembaixadesde1928.Terá

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sido a especulação a orgia muitas vezes denunciada posteriormente?Alguns destacaram, para estigmatizá-la, a prática dos call loans, quepermitia especular-se sobre ações pagando apenas 10%. Omecanismo ésimples:ocompradorcobre10%dopreçodaaçãoetomaumempréstimode 90% com o agente de câmbio; este último obtém a quantia junto aosbancos,tomandoempréstimosdedinheirodiariamente(oncallem inglês,reports em francês). Suponhamos uma ação que valha 100; o compradoradianta 10 e o corretor 90, emprestados por um banco. Se as cotaçõessubirem,digamos,até110,épossívelrevendersuaaçãocomumganhode10,divididoentreocorretoreseucliente.Depoistudorecomeça...

Essa técnica de compra “à margem” foi bastante utilizada em 1928-1929, e os empréstimos aosbrokers, isto é, aos corretores, evoluíram demaneirarápida:de4bilhõesdedólaresem31dedezembrode1927para7bilhõesem30dejunhode1929e8,5bilhõesem4deoutubrode1929,oprimeirodia dequeda, para voltar a cair aonível de4 bilhões em31dedezembrode1929.

A amplitude da especulação não deixa dúvidas. Ela exercia uma fortepressãosobreosistemafinanceirointernacional,demaneiraconsiderávelemLondres,atraindoparaNovaYorkoscapitaisestrangeirosqueserviampara comprar diretamente ações ou financiar as sociedades deinvestimentoouoscallloans; podemos compararos8bilhõesdedólaresaototaldamassamonetáriaamericanaem1929,estimadaem46bilhõesdedólares,maselaemnadaconstituiumanovidadenoplano técnico:ascompras“àmargem”jáhaviamsidopraticadasemgrandeescalanaFrança,porexemplo,emLyon,duranteoboomespeculativoquelevaraaocrashdaUnião Geral em janeiro de 1882. As estimativas retrospectivas de 1934autorizamaespecularquede1,5milhãodepessoasquepossuíamtítulosna Bolsa de Nova York, cerca de 600 mil praticavam as compras “àmargem” em 1929. É evidente que se trata de um número considerável,masnãopermitedizerqueaespeculaçãoamericana foium fenômenodemassageneralizado.

A queda das cotações iniciada em 3 de outubro de 1929 arruinou,portanto, inúmeros especuladores e colocou em dificuldades inúmerosbancos, pois omecanismodecall loans só funciona sob uma condição: éprecisoqueascotaçõessubam.De início,obomandamentodosnegóciospermite antecipar grandes dividendos e, por isso, estimula as trocas deações,cujospreçossobem;depois,omercadoperdedevistaosdividendosà medida que a evolução das cotações permite a obtenção de ganhosatravés de compras e revendas. Foi esse o caso em 1929, quando as

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tentativas das autoridadesmonetárias de encarecer o crédito elevando ataxadedesconto–política tradicionalemcasodeestimulaçãodocréditooudosnegócios–nãopuderaminterromperomovimento.Houveumaaltade6a9%nataxadedescontodoFederalReserveBankdeNovaYork4emagosto de 1929. O efeito global dessa alta foi ambíguo: ela deveriarestringirocréditonosEstadosUnidos,mastambémreforçaraatraçãodecapitais estrangeiros. O mercado continuou com seu dinamismo. Odesmoronamento era inevitável. Como muitas vezes foi observado, aeuforia característica do boom especulativo é em si reveladora de umaescaladaefêmera,poisacontrapartidarealdasações–usinas,máquinas,estoques de mercadorias – era negligenciada. O desvio dos fundos e daatençãoficaàmercêdeumsintomacatalisadoreaparentementeanódino;basta que alguns grandes acionistas comecem a vender e se retirem domercado, por qualquer pretexto que seja, para imobilizar a alta. A baixaatraiabaixa,ecadaumtentasalvarsuapartecomvendasqueprecipitamodesmoronamento e, portanto, a perda de tudo. Em 1929, o pretexto daderrocadanova-iorquinafoiafalênciafraudulenta,em20desetembro,emLondres,deumempresárioqueviviadeexpedientes,ClarenceHatry,equeconstituíraumimpériocontrolandoacessóriosfotográficos,caça-níqueisediversassociedadesfinanceiras.

Ummitoprecisaserdesvendado:ossuicídiosdeWallStreet.Osjornaislondrinos parecem ter sido os primeiros a evocar a famosa imagem decapitalistasarruinadosdespencandodasjanelasdosprédiosdeManhattanno colapsoquedeixava à flor dapele os nervosdos especuladores e doscorretores obrigados a trabalhar à noite para operar as transações. Oeconomista americano J.K. Galbraith deitou por terra essa lenda,constatando que ela não tem base estatística que a comprove. Houvesuicídios, semdúvida,em1929,masemmédiamenosdoqueduranteosanos entre 1930 e 1933. Em seu livro La crise économique de 1929 (verbibliografia),elesugereaseguinteatmosfera:“Dizia-sequeosempregadosdehotelemNovaYorkperguntavamaosclientessedesejavamumquartoparadormirouparapular.Doishomenssaltaram,demãosdadas,deumandardoRitz–tinhamumacontaconjunta”(p.151).Éprovávelquealgunsgestos espetaculares de desespero tenham ido ao encontro de umaexpectativa coletiva de justiça; os anos 1930 viram o florescimento nosEstados Unidos de inquéritos parlamentares sobre as práticas da Bolsa,livros de denúncia, condenações de bodes expiatórios e legislaçõesrestritivas,porexemplo,aoscallloans.

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2.Tensõesedesordensinternacionais

Se tomamos distância dos acontecimentos da Bolsa – algo que a

cronologia convida a fazer, já que a produção industrial declinava nosEstados Unidos desde o verão de 1929 –, somos levados a enfatizar ainstabilidadeglobaldoentre-guerras.Nenhumamediçãopermiteverificardiretamenteessaafirmação.Noentanto,amaiorpartedosdadossobreosritmos conjunturais mundiais desde o século XIX revelam desvios maisfortes de 1918 a 1939 do que durante outros períodos. Além disso, asevoluções da produção ou das trocas, em alta ou em baixa, sãonotavelmentediscordantes entre ospaíses, enquantooperíodode1870-1913,porexemplo,apresentaumsincronizaçãomuitomaior.

Essainstabilidadeeessadesuniãosedesenvolveramapartirdofimdoprimeiro conflito mundial. Duas modalidades essenciais convidam a umbreveexame:sistemamonetárioefinanceirointernacionalfrágil;tensõesesaturaçõeseminúmerosmercados.

O problema monetário era o seguinte em 1918: depois de anos decursosforçados,decontroledecapitaisedepenúriasinflacionistas,comovoltar à liberdadede comércio?Omecanismo internacionalquevigoravaantesde1914eraodopadrão-ouro.Esteligavaasdiferentesmoedasentresi através de seu peso em ouro definido de forma fixa; asmoedas eramportantoconvertíveisemouro,eometal,quecirculavaapúblico,podiaserimportadoeexportadolivremente.AConferênciaInternacionaldeGênova,em1922,sancionaumsistemadiferente,odopadrãodecâmbio-ouro(goldexchange standard), estabelecido pouco a pouco a partir de 1918. Asnecessidades de reconstrução e retomada do comércio internacionallevaram a uma conservação da referência em ouro; porém, devido à suararidadeeàsuadistribuiçãodesigual,aumareferênciaemsegundograu:amoedadecadapaísnãomaisficavadiretamenteligadaaoouro,masaumamoedafundamental,definidaeconvertívelemouro.Oscréditosempaísesdemoeda“central”,comosedizia,asreservascambiais,substituemoouroemquasetodosospaíses.Houveduasmoedascentrais,alibraesterlinaeodólar, que alargam a base das trocas internacionais. O ouro, em si, nãocirculamaiseadquireumpapeldereservanacionalao ladodasreservascambiais. Podemosperceber a vulnerabilidadedesse sistemabipolar queconfirma o enfraquecimento britânico e a ascensão ainda hesitante dosEstados Unidos: a regulação internacional depende do controle e da

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coordenaçãodedoiscentrosedaconfiançadosdemaispaíses.O sistema também foi iniciado em meio a uma grande confusão: as

vicissitudesdasinflaçõesdopós-guerra(edashiperinflaçõesnaAlemanha,naÁustria,naHungriaenaPolôniade1922a1926)levaramaredefiniçõesdasmoedaseuropéiasemrelaçãoaoouro,ouumasemrelaçãoàsoutras,totalmenteheterogêneasesegundoumcalendáriodiscordante.

Esse patchwork monetário foi acompanhado, nos anos 1920, deimportantes tensões financeiras que encontraram apenas soluçõesprovisóriasedecurtíssimoprazo.Defato,aliquidaçãodaguerraimplicouduas séries de compensações, seguindo modalidades complexas. De umlado,oreembolsodasdívidasdeguerra;deoutro,adelicadaquestãodasreparações que a Alemanha deveria pagar por ter perdido o conflito. Osdois fatores estão interligados: primeiro, porque acaba se estabelecendouma cadeia, com os pagamentos alemães servindo para regular oucompensar as dívidas entre os aliados; segundo porque outrosempréstimos são necessários para o financiamento dos pagamentosalemães – que logicamente viriam dos Estados Unidos, promovidos acredores em última instância do mundo europeu. Daí a simultaneidade,durante os anos 1920, do progressivo escalonamento das indenizaçõesalemãs(PlanoDawes,de1924;PlanoYoung,de1929)edeumasériedeacordos que reduziram massivamente as dívidas entre os aliados. AConferênciadeLausanne,em1932,anulariareparaçõesedívidasdeguerranoaugedacrise.

Nemtudofoipago,bempelocontrário(dos132bilhõesdemarcos-ouroexigidos dos alemães, por exemplo, 22,5 bilhões foram efetivamenterestituídos),masoquechamaaatençãoaquiéa fraquezadaposiçãodasnações devedoras: uma maciça dívida de longo prazo pesa sobre suaseconomias,eelassãoobrigadasarecorrercadavezmaisacapitaisdecurtoprazoparaequilibrarosistema.Naausênciadeumaorganizaçãofinanceirainternacional(oBancodeCompensaçõesInternacionaisdatade1930),asnações estão sujeitas à boa vontade bancária, em especial a americana.Essas contribuições privadas são voláteis, e seu término pode levar abancarrotaspurasesimples.Foiconstruída,portanto,umaestruturamuitovulnerável. Apesar de o problema dominante ter sido o das dívidas deguerra,aanálisepodeserestendidaparalevaremconta,aomesmotempo,adimensãomonetária e a dimensão financeira.As reservas cambiais sãocréditos de curto prazo e dependem do grau de confiança que lhes éatribuído:obom funcionamentodas trocas internacionais comoum tododependia da manutenção de uma confiança que facilmente poderia

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desaparecer.Asituaçãodosgrandesmercadosinternacionaisdematérias-primas,de

produtos agrícolas e industriais também era tensa e precária durante osanos1920.Defato,aoacelerarodeclíniodaporçãoeuropéiadaproduçãomundial, a Grande Guerra praticamente interrompeu as exportações dosbeligerantes – em1913, a Inglaterra, aAlemanhae aFrançaexportavamjuntas60%dosbensmanufaturadosdomundo.Conseqüentemente, todoum processo de desenvolvimento das contribuições americanas ejaponesas, entre outras, foi iniciado para prover os antigos clientes daEuropa.Essasubstituiçãoaindaocasionouumperíododeavançoagrícolade países novos. As metrópoles européias se descobriram com gravesproblemasdeescoamentoecomindústriasdebasebastanteenvelhecidasquando,porvoltade1925,terminaramsuasreconstruções.Astensõessereforçaram mutuamente. As dificuldades da recuperação industrialeuropéiatêmcomoconseqüênciaumafracademandadematérias-primas,cujaexportaçãopermitiaaospaísespouco industrializadospagaremsuascompras de produtos manufaturados: tudo dependia da continuação daexpansão industrial mundial e do equilíbrio dessas balanças depagamentos periféricos – aqui encontramos a estrutura do créditointernacional.Daías fortestentaçõesprotecionistas:noâmbito industrial,paraospaísesnovosquevoltamasedepararcomaconcorrênciaeuropéia;no âmbito agrícola, para os países europeus que reconstituem seupotencial. O período do pós-guerra é um momento de reorientaçõescomerciais e de aumento das proteções alfandegárias. Se os anos 1930vêemosurgimentodeummundopoucoapoucoprotegidoporsistemasdetaxas e cotas, não podemos esquecer que durante os anos 1920 já seassistira a um autêntico aumento dos reflexos protecionistas. Enfim, asaturaçãoagrícolanãodeixadúvidas:depoisdosanos“dourados”de1914a1920,paraospaísesqueescapamdoconflitomundial,aampliaçãodassuperfícies cultivadas coexiste com importantes progressos técnicos.Quandoademandanãoéequivalente,ospreçosbaixameosestoquesseacumulam.Éocasodotrigoedoaçúcar,cujaproduçãocrescemuitoentre1926 e 1930, enquanto os preços baixam. Fala-se numa verdadeiradepressão agrícola durante os anos 1920, resultante de uma acentuadaquedadospreçosagrícolasemrelaçãoaodosprodutos industriais,oqueimplicagrandesdificuldadesfinanceirasparaoscamponesesendividadoseumempobrecimentoprogressivodetodososprodutores,tantonospaísesricosquantonasnaçõesperiféricas.

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II.Dadeflaçãoàdepressão

1.Umprocessocumulativodebaixadospreçosedaatividade

Essasevoluçõesdesfavoráveisnãodevemfazeresqueceroindiscutível

eexcitantedinamismodos“anosloucos”.Falaremboomentre1925e1929seria excessivo; no entanto, a expansão é marcante em quase todos ospaíses do mundo capitalista. Houve algumas recessões (em 1926, naAlemanha e na Grã-Bretanha; em 1927, nos Estados Unidos), mas estaslogoforamreabsorvidas.Ocasoamericanoérepresentativodeumanovaera;aproduçãoanualdeautomóveispassade1,9milhãodeveículosem1919para5,6milhõesem1929,eaexpansãodopetróleo,daborrachaedorádioétãointensaquanto.Aberturadenovaspossibilidadesdeconsumo,boomdaconstrução:somenteaagriculturacontinua,emtodoomundo,àmargemdaprosperidade.

Esse quadro apresenta umpoucomais de nuanças nos demais paísesindustriais. A Bélgica e a França se beneficiam de um forte crescimento,masessenãoéocasodaGrã-Bretanha,acometidaporumaelevadataxadedesemprego crônico, e da Europa em geral. O resto do mundo conhecedesempenhosbastantedesiguais,atémesmoestagnações.AAustrália,porexemplo, depoisde1927, e o Japão entre1922e1924, depois em1925-1926.

O que torna a derrocada cíclica de 1929 tão original é o fato de elaacontecer num contexto de baixa internacional dos preços, iniciada em1925-1926namaiorpartedospaíses.Deflacionistaemseusantecedentes,a crise dos anos 1930 é gravemente deflacionista em seu andamento, seentendemos deflação no sentido amplo de retração dos indicadoresnominaisdeumaeconomia:restriçõesmonetáriasefinanceiras,baixasdospreços e dos rendimentos, recuo da própria atividade industrial. Apesardas distorções e de alguns patamares globais, a quedamexe o suficientecom seus contemporâneos para justificar a frase de Schumpeter, muitasvezescitada:“Aspessoassentiamochãofaltarsobseuspés”.

Essa deflação generalizada parece bastante específica na história docapitalismo.Podemos,defato,confrontá-laporumladoàsbaixasviolentaserápidasdospreços;em1921,porexemplo,odesnivelamentototallheécomparável,massóduraumanoesucedeaumarápidainflação.Poroutrolado,adeflaçãoseopõeàstendênciasmaislongaseirregularesdebaixana

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Europa e nos Estados Unidos em certos períodos do século XIX, como ointervalo1870-1895:umatendênciageraldescendenteserevelaraatravésdeflutuaçõessecundáriasdegrandeamplitude.

Em sua dimensão objetiva, o processo coloca em jogo uma série dereações em cadeia, como num “efeito dominó”: o desmantelamento daconjuntura industrial induzumaretraçãodastrocas internacionaiseumafraca demanda por matérias-primas, cujos preços baixam. Os paísesprodutores dessas matérias-primas reduzem suas compras de bensmanufaturados,depoissevêem levadosàbancarrotaouàdesvalorizaçãocombinada ao controle das trocas, pois as dívidas contraídas não podemmaisserhonradas.Damesmaforma,ospaísesindustriaissãoatacadosporprodutos cada vez mais baratos e só conseguem se proteger através debarreiras alfandegárias e desvalorizações. O mecanismo é reforçado pordesequilíbriosdepreços resultantesdeumacapacidadede resistência àsbaixasdesiguaisdosmercados.Defato,diantedadiminuiçãodademanda,os produtores que podem reduzir rapidamente suas quantidadesconseguemmanterascotações,enquantoaquelesquenãotêmpodersobreessas quantidades sofrem o desmoronar das cotações – e muitas vezestentamproduziraindamais!Noprimeirocaso,temosprodutosindustriaise“cartelizados”,istoé,controladosporacordosquereagrupamosgrandesprodutores;nosegundo,osprodutosagrícolaseosprodutosdebase,eosmercadosregidosporumaforteconcorrência.Apartirdeentão,aretraçãodas quantidades do primeiro grupo induz a uma fraca demanda deprodutos de base e, portanto, à baixa de preços do segundo, o quecomprometeos rendimentosdosprodutoresdebase, compradores finaisdosprodutosindustriais...Ocírculosefecha.

Essesencadeamentosinternacionaistêmumacontraparteinternanumcírculoviciosobastanteconhecido:asdemissõesrestringemomercadodasempresas em dificuldades; o desemprego como solução (para umaempresa)àdesaceleraçãodosnegóciosacentuaasdificuldadeseocasionamaisdemissões.

Mas a dimensão subjetiva não é menos importante. No pessimismoambiente, se verificam primeiro reflexos restritivos, como, por exemplo,limitar as compras aomínimo necessário, não investir, aguardar; depois,acontecem verdadeiros pânicos. Os dos anos 1930 foram monetários ebancários e culminaram numa crise financeira internacional (1931) e nadestruiçãodopadrãodecâmbio-ouro.

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2.Recuperaçõesobscurasetímidas

Apesar de tudo, seria errôneo atribuir ao processo de retração umaonipotênciaquesóseriaquebradaemdefinitivoporiniciativasestataisdeestimulaçãoeconômica.Umsimplesolharnocalendáriodasrecuperaçõesentre1932e1933obrigariaadescartaressavisão.Omínimodaproduçãoindustrial é atingidonaAlemanha emagostode 1932, e em setembro asmedidasdesesperadasdeVonPapen5sãotomadas;nosEstadosUnidos,aprodução industrial sobe 16% entre 1932 e 1933, apesar de metade dacapacidade de produção continuar inutilizada. Esses dois exemplos, aosquais podemos acrescentar a recuperação paradoxal de 1935 na FrançasegundoA.Sauvy,quevêaproduçãovoltaracresceraomesmotempoemque são assinados os famosos e deflacionistas “decretos Laval”, bastamparamostrar que as ações governamentais podem favorecer ou entravarreviravoltasconjunturaisquelhessãoexternas.

Em toda economia de mercado existem forças de refreamento quedesaceleramoprocessoderetração,capazes,aoladodeoutras,deinvertera conjuntura. Ao lado das primeiras, encontramos mecanismos que aospoucos levam certos agentes econômicos a retomar uma atividade maisestável. Num primeiro momento, à medida que os preços e a atividadebaixam,osdetentoresdedinheirolíquidovêemseupatrimôniocresceremvalor, seu poder de compra se fortalecer, e o entesouramento se tornarmenos interessante. A seguir, as falências e as liquidações de empresasoferecemàquelesqueaindatinhammeiosaocasiãodecomprasvantajosas,aumpreçoàsvezesirrisório,deequipamentosembomestado.Ofracassode umpossibilita, portanto, a rentabilidade de outros. Essesmecanismossão controversos, mas basta constatar que as baixas de preços e deatividadesemprefazembeneficiáriosque,aqualquermomento,setornamcapazesde“reiniciaramáquina”.

A inversão da conjuntura é preparada dessa maneira. Em termostécnicos, podemos dizer que a produção se torna cada vezmais elástica,istoé,capazdereagiraestímulos,como,porexemplo,aumaretomadadademanda.De fato, esta não poderia deixar de recomeçar: as despesas deconsumo são parcialmente irrefreáveis, e os agentes econômicos sãoobrigados pouco a pouco a utilizar suas reservas (poupança). Damesmaforma, nos níveis reduzidos da produção, uma certa necessidade derenovação dos equipamentos e das instalações acaba se fazendo sentir.Podemosversurgir,aomesmotempo,oportunidadesdeescoamentoeuma

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recuperação da rentabilidade, suscetíveis de pôr em marcha, após umperíododepausa,umoutroprocessoauto-alimentado:avoltadaexpansão.

Esses mecanismos não deram muito certo em 1932-1933. Asrecuperações foramefêmeras,não trouxerammelhoras e, namaioriadasvezes,passaramdespercebidaspelopúblico.A crise, longede seorientarem direção a uma reabsorção generalizada e cumulativa, isola aseconomias desunidas que recomeçam sobre bases precárias. Em 1937-1938, umnovo recuoviolentoda atividade coloca a economia americanauma última vez em primeiro plano; a produção industrial cai 30%,enquantoodesempregocrescedemaneiraespetacular.

III.Acrisefinanceiraamericana:1929-1933DiversosautorestentaramquantificarosefeitosdaderrocadadeWall

Street. Dois desses efeitos são claros: a baixa de valor do patrimônio e,portanto,dopoderdecompraparaosespeculadoresarruinados,oqueserefletenumenfraquecimentodademanda;eoesgotamentodiretodeumafonte de financiamento para as empresas. Nenhum desses efeitos parecesuficienteparaexplicararetraçãogeraldaeconomiaamericana.

Aatividadeindustrialenfraqueceapartirdoverãode1929.Oaugedaproduçãoautomotivaforaatingidonomêsdemarço,com622milveículos;em setembro, o nível já não passava de 416 mil: podemos então nosconcentrar nos bens de consumo duráveis, dos quais o automóvel é osímbolo.Umadasinovaçõesdos“anosloucos”fora,nosEstadosUnidos,ocréditoaoconsumo.Em1927,15%dasvendasaosconsumidoressefazema crédito – 85%dosmóveis, 80%dos fonógrafos, 75%dasmáquinas delavar...sãocompradosacrédito.Sãoessesosprodutosemprimeiroplanona crise: em1930, a queda do consumopessoal é de 6%, sendode 20%para os bens duráveis compagamento adiado; ela atingirá os 50% entre1929e1933.Ocrescimentodosestoquesaolongodetodooanode1929permiteveraquiumcomponenteimportantedaquedadademanda.

Ligadasaessedeclínio,existemdificuldadesagrícolasespecificamenteamericanas:apesardeamão-de-obradocamporepresentarapenas20%dapopulaçãoativanumanaçãoamplamenteurbanizada, as condiçõesdeexploração da terra haviam se tornado cada vezmais difíceis durante osanos 1920. É a famosa questão da “tesoura de preços”: os preços dascolheitasedogado,quedeterminam(comasquantidadesemcirculação)as receitas camponesas, não permitem um benefício normal, uma vezsubtraídososcustos pagospeloprodutor. Separtirmosdeumabase100em1910-1914(médiadosquatroanos),veremosqueospreçosevoluem

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demaneira favorávelemrelaçãoaoscustosaté1919(fortedemandadosanosdeguerra).Arelaçãoentreosdoisíndicesmostraumasuperioridadedos ganhos sobre os custos que chega a 20% em 1917, depois umadesvantagem entre 5 e 20% até 1929: a crise agrava profundamente asituação, sendo que a diferença entre os dois chega a 40% entre 1932 e1933.De1929a1933,orendimentolíquidodosprodutorescaiem70%.

Outro componente do desmantelamento é a evolução da construção,tradicionalmente constituída de altos e baixos. Um verdadeiro boomacontecera nos Estados Unidos na primeira metade dos anos 1920,culminando em 1926 e permanecendo no topo desde então. O valor dasconstruções novas era de 12 bilhões de dólares em 1926 e apenas 10,8bilhõesem1929,oqueaindarepresentavaumnúmeroconsiderável,poisem1929oníveleramaisdoqueodobrodeantesde1914.Havia,portanto,umasaturaçãocíclicanaconstrução.

Esses três elementos – reticência dos consumidores em relação aosbens duráveis, dificuldades agrícolas e recuoda construção – levaramosempresários a tomar decisões rápidas e de alcance inédito: refazer porbaixosuasprevisões,depoisseusprojetosecontratações.Daíademissãoou redução de carga horária de operários e empregados e a baixa doinvestimento bruto, em 1933, para 10% de seu nível em 1929. Asindústriasmaisatingidasforamaquelasquehaviamsidoasmaisvigorosasduranteosanos1920:construçãoeinfra-estruturadeconsumoeprodução(baixas respectivas de 85%, 50% e 75% de suas produções).Retrospectivamente,podemosapenasenfatizaraviolênciadessasreações.Elas convidam a uma análise atenta sobre a evolução do crédito e asconvulsõesbancáriasdoperíodo.Havia29milbancosnosEstadosUnidosem 1921, e apenas 12 mil em fins de março de 1933, resultado de umpânico nacional que levara o novo presidente, Roosevelt, a fechartemporariamente todosos estabelecimentosbancários (bankholiday).Naverdade,houvetrêsviolentascrisessucessivas.

Em junho de 1929, os 250 bancos mais importantes, ou seja, 1% dototal,detêm juntosmaisdametadedosrecursos.Essa forteconcentraçãotemcomocontraparteumamiríadedepequenosestabelecimentos;maisde80% dos bancos ficam nas cidades de no máximo 10 mil habitantes. Oconjunto,bastanteheterogêneo,ésubmetidoaumalegislaçãodesigual–osbancos locais, submetidosauma legislação local,precisamenfrentarsuasdificuldadessozinhos.E justamentesurgemdificuldades.Elassãodedoistipos:porumlado,nospequenosestabelecimentosagrícolas,osdepósitossereduzemàmedidaquecresce,maisoumenos,dependendodaregião,a

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misériacamponesa;poroutrolado,preponderante,odeclíniodaatividadeeabaixadostítulosnãosãocompensadosporumabaixadoscontratosemgeral, fechados a taxas fixas. Os bancos, portanto, revisam seuscontracheques,restringemseusinvestimentos,exigemnovasgarantiasetc.,a fimde restaurar sua liquidez comprometidapelabaixade seusbens.Areação do público se manifesta em entesouramento, levantamentoacelerado de fundos, corrida em direção à liquidez. Com isso,estabelecimentos sadios se vêem comprometidos, e o círculo vicioso daperdadeconfiançaedabancarrotaécriado.Seusefeitossereforçamcomapropagaçãodepressõesestrangeiras.

Houve um aumento gradual dos temores, que primeiro atacaram ospequenosestabelecimentos, depoisosbancos filiados aoFederalReserveSystem,maisimportantes,eporfimosistemacomoumtodo.Opânicode1933foi,aosolhosdosobservadoresdaLigadasNações,“aderrocadamaisdramática da confiança jamais vista em qualquer país emmuitos anos”.Essa observação, sem sombra de dúvida justificada, traz à mente umaimportantesutileza:nemaprópriaprosperidadeestavalivredasfalências,pois 5 mil bancos haviam fechado suas portas em oito anos, de 1921 a1929, ou seja, num ritmo médio de 50 por mês. É preciso enfatizar aespecificidade dos problemas americanos – a facilidade com que erapossível criar um banco, mesmo minúsculo, levara a uma grandeindisciplinanaárea.Adepressãoamericanaconsistiu,acimadetudo,numestrangulamentodocrédito(creditcrunch)edaconfiança.

Tudoconvergeparaaprimaverade1933,aestagnaçãonomaisbaixonível de atividade e a catástrofe bancária global. Nesse furacão, asiniciativasdopresidenteHoover forammuitasvezescriticadasporsereminsuficientes.Seuinsucessonãodeixadúvidas.

No âmbito monetário, os Estados Unidos, bem como a Grã-Bretanha,além da manipulação da taxa de desconto (o preço do dinheiro a curtoprazo), praticavam outra técnica de intervenção que teria grandeinfluência:asoperaçõesdeopenmarket,queconsistememobancocentralinjetar dinheiro no circuito comprando títulos ou, ao contrário,“bombeando”liquidezaovendê-los.Aoinvésdeagircomoúltimainstânciae sobre umpreço (a taxa de desconto), oopen market permite agir comcontinuidade, a taxas variáveis, sobre uma quantidade fundamental, a“moeda central”, pois dependendo de suas facilidades de recursos osbancos podem alargar ou não suas operações de crédito e suas criaçõesmonetárias.Surgidonosanos1920,ele forautilizadonosEstadosUnidosnosdoissentidos:restritivoquandoasautoridadesqueriamneutralizaro

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efeito expansivo de uma chegadade ouro (a “esterilização” do ouro), ou,inversamente,nosentidoexpansivo,comcertosucesso.

As intervenções públicas começam em 1929 com inegável ativismo:injeções monetárias pelo open market aliviam as dificuldades bancáriasdecorrentesdocrashdaBolsa.H.Hooveranunciareduçõesdeimpostos(depoucoalcance)afimdemanteropoderdecompra.Oorçamentofederalécolocado em ligeiro déficit, o que tem um efeito contracíclico, e asdeclarações tranqüilizadoras se multiplicam. Muitos autores enfatizam aclara melhora conjuntural da primavera de 1930 nos Estados Unidos:desaceleração da baixa dos preços, recuperação da atividade financeiranacionaleempréstimosinternacionais...Atréguanãoduraria.

Àmedidaqueotempopassaequea“esquina”emqueaprosperidadedeveria ser encontrada continua distante, os responsáveis públicosafirmamanecessidadedeumarigorosadisciplinaorçamentária,enquantoastaxasextremamentebaixasdomercadomonetário(1a2%)convencemasautoridadesdequeé inútil injetardinheironumsistemabancárioquenãooestádemandando,atéqueemsetembrode1931aspressõessobreodólarimpõemrestrições.Assim,oopenmarketé,namaiorpartedotempo,colocado em suspenso, enquanto a massa monetária é fortementecontraída:entreagostode1929eagostode1933,aquedaédeumterço.

O alcance da catástrofe leva, a partir de 1931, a outras medidas:primeirosauxíliosaosdesempregados,por intermédiodesubvençõesaosEstadoslocais,anúnciodapolíticadegrandesações,redesdeempréstimosdeurgência, comprasdeprodutosagrícolas...Énoâmbitobancárioqueaaçãoémelhororganizada.Depoisdofracasso,nofimde1931,daNationalCredit Corporation, reagrupamento de grandes estabelecimentos queconcediam crédito aos pequenos bancos, Hoover cria, em fevereiro de1932, a Reconstruction Finance Corporation, de capital inteiramentegovernamental, destinada a conceder adiantamentos a sociedadesfinanceiras em dificuldades, e flexibiliza a legislação bancária através doGlass-SteagallActde27defevereirode1932.EssesesforçosculminamnoEmergencyReliefActde julhode1932,queRooseveltretomaráem1933numpaíscomosnervosàflordapeleemuitoempobrecido.

IV.OsgrandeseixosdepropagaçãointernacionalCadapaís reagedemaneiradiferente à crise, e o caso americanonão

passadeumcasoparticular,apesarde fundamental.Masadepressão,decaráterinternacional,logosetornamundial.

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1.Acrisefinanceirainternacionalde1931

Asreversõesdoscapitaisacurtoprazo,poucoounadacontroladasao

longodesseperíodo, resultantesdasdisparidadesobjetivasdas situaçõesno mundo, tanto quanto das antecipações de seus detentores,sucessivamente penalizaram e favoreceram diversos países. Inúmerosautores atribuemao esgotamentodos empréstimos americanos em favorda Alemanha, durante o ano de 1928, a primeira retração da atividadeindustrial,anunciadoradodesastrenessepaísfundamentalmentedevedorà época. Os capitais americanos teriam retornado à sua nação de origempara participar do impulso da Bolsa, asfixiando osmercados financeirosalemães.Primeirareversãonoiníciode1930:aretomadadaexportaçãodecapitais americanos volta a favorecer a Alemanha. No entanto, àmedidaqueseconfirmamasdificuldadespolíticasresultantesdaascensãonazista(primeiro sucesso eleitoral do NSDAP6 em setembro de 1930) e que serevela a precariedade bancária germânica, enquanto aGrã-Bretanha e osEstadosUnidosenfrentamumasituaçãoagravada,éaFrançaqueaparececomorefúgio.Depoisde1933,astendênciasreformadorasdoNewDealdeRoosevelt, e depois da Frente Popular na França, reconduzem a Londrescapitaisflutuantes,quevoltarãoparaaFrançadepoisde1938edoretornoaopoderdeumaequipeliberal...

Esses movimentos oscilatórios chegam ao auge durante a crisefinanceira internacionalde1931,que resultanadestruiçãodopadrãodecâmbio-ouro. Três países ficaram sucessivamente no olho do furacão:Áustria, Alemanha e Inglaterra. Emmaio de 1931, um gigantesco bancoaustríaco,oKreditAnstalt,criadoem1929(quegeria70%dosdepósitosdopaís, nas antípodas do caso americano), precisa recorrer a uma ajudapúblicainternacional,poisestáenvolvidonumasériedecomprasdeaçõesedeempréstimos,saldadoscomenormesperdas.Équandoteminícioumaondadesaquesmassivos,metadeaustríacos,metadeestrangeiros,queemtrêsdiasolevamafecharasportas.Apartirdeentão,asituaçãoemVienadepende de empréstimos internacionais a curto prazo, não-isentos depressõespolíticas (aFrança tentadissuadiraÁustriade levara caboseuprojetodeuniãoalfandegáriacomaAlemanha).Dissodecorreaquedadogoverno austríaco e, ao mesmo tempo, um verdadeiro assalto a bancoshúngaros,tchecos,romenos,polonesesealemães.

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Em junho, a pressão aumenta na Alemanha, e se configuram osdispositivosquedetonarãoacriseemjulho.Defato,em17dejunho,umaempresa têxtil, a Nord Wolle, pede falência; ela havia comprado umimportanteestoquede lã (prevendoumasubidadascotações)graças aosadiantamentosdeumgrandebanco,oDarmstadterundNationalBank (oDanat). A explosão do início de julho vê a falência do Danat. Todos osbancosfechamsuasportasem13dejulhode1931,parareabrirsomentenodia 16, com congelamentodos créditos estrangeiros e constituição deum grupamento interbancário que tornaria os estabelecimentosinterdependentes uns dos outros. Em 1º de agosto, a taxa de descontoatinge15%(oqueéconsiderável),eocontroledastrocassegeneralizaemtodosospaísesdaEuropaCentraleOriental.

ÉnessemomentoqueadesconfiançasevoltaparaaInglaterra.Apesarde seus esforços emempréstimos internacionais àÁustria e àAlemanha,suamoedacontinuafraca,consideradasupervalorizadahámuitotempo,eseu estoque de ouro é restrito em relação aos dos Estados Unidos e daFrança. Ummovimento generalizado de venda de libras esterlinas faz ogovernotrabalhistacairnodia24deagosto.OgovernodaUniãoNacionalqueosubstituianunciarestriçõesorçamentárias,masnãoconseguesustaro movimento: pelo contrário, inúmeras objeções arruínam o anúncio dedisciplinaorçamentária comumanúnciode indisciplina social. Em21desetembrode1931, aGrã-Bretanhasuspendeseuspagamentosemouroedeixaa libraesterlina flutuar,dizemqueporseismeses.Adecisão levaratrês dias para ser tomada. No dia seguinte, diversos bancos centraiscomeçam a converter dólares em ouro... No entanto, a pressão sobre odólarnãolevaráaumaderrocadaamericana:elareforçaráaprudênciadasautoridadesmonetárias além-Atlântico, levando-as a aumentar a taxa dedesconto, o que comprometerá a recuperação de Nova York. Adesvalorizaçãododólaraconteceráem1933,massemqueestaresultedeumafortepressãoespeculativa.

2.Trocasexternasereaçõesestatais

Diantedosdesequilíbriosdastrocasexternasedaseventuaisofensivasmonetárias, a deflação em sentido estrito consiste em restringir amultiplicação dos meios circulantes com rigorosas economiasorçamentárias,reduçõesautoritáriasdepreçosoudesaláriosecontroledocrédito.Espera-secomissopressionaroníveldospreçosinternosdopaíse

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assimrestaurarsuacompetitividade:émelhorvenderaoexterior, resistiraos produtos estrangeiros, atrair capitais. Essa posição foi defendidasucessivamentepeloJapão,apartirde1929,pelaNovaZelândia,pelaGrã-Bretanha, como vimos, pela Alemanha e pela Austrália em 1931. Osesforços franceses mais significativos datam de 1935 e são, portanto,bastantetardios.

Essesesforçospassampormedidasespetaculares:reduçãode10%,oumais, de todos os salários, suspensão de certos pagamentos... A respostasocial é notória e violenta. Já falamos nas turbulências britânicas; houveverdadeiras revoltas na Austrália, em Sidney e em Perth, e na NovaZelândia em 1932. Além desses riscos, que não são poucos, a múltiplarigidezdaseconomiaslimita,namaiorpartedoscasos,osefeitosdabaixa.

Apartirdeentão,adesvalorizaçãoaparececomoumaalternativaeficaze relativamente indolor: baixar a paridade de sua moeda em relação àsdemais–sejadeixando-aflutuar,istoé,deixandoascotaçõesdespencarem(nahipótesedeamoedasofrertensões),sejamodificandoseupadrão-ouro– é, acima de tudo, evitar uma proteção potencialmente custosa emreservas demetal precioso e reservas cambiais e é substituir a deflaçãointerna por medidas a princípio capazes de estabilizar ou sustentar ospreçoseaatividadedopaís;asexportaçõessãoestimuladaspelabaixadeseuvaloremmoedaestrangeira,enquantoasimportaçõessãoencarecidas.Podehaverinflação,pelomenosporcertotempo.

Na conjunturadosprimeiros anosda crise, dois traços característicosexpressam as desvalorizações. Em primeiro lugar, inúmeras foramforçadas;quandoumavivaespeculaçãoesgotaasreservasdeumpaís,estaéaúnicasaída.Contudo,umasimplesevoluçãodocomércioexteriorpodelevaraelaemnaçõesvulneráveis.Evocamosadecisãoinglesade1931,quecorresponde ao primeiro caso. O segundo não é menos importante. Sãoexemplodele49paísesexportadoresdeprodutosprimários,classificadospelaporcentagem,àsvezesassombrosa,dabaixadesuasexportaçõesemvalorde1928-1929a1932-1933(verTabela3).Seacrescentarmosaessaretração nominal a interrupção do fluxo de empréstimos internacionais(antecipando uma insolubilidade futura), entenderemos que semelhanteasfixiasódeixacomosaídaumadesvalorizaçãoacompanhadadecontroledastrocasedeumalimitaçãodraconianadasimportações.

Em seguida, cada decisão nacional significa a transferência eeventualmente a acentuação das pressões deflacionistas sobre outrospaíses,jáqueterãomaisdificuldadeaindaemvendereprecisarãoresistiraos produtos estrangeiros subitamente transformados em negóciosmais

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interessantes. A desvalorização, sob essa perspectiva, tem mais sucessoquandoacontececedoeévigorosa–pelomenosnospaísesquenãoestãoem bancarrota. Existe um aspecto de guerra econômica na “cascata” dedepreciaçõesmonetárias.

Tabela3–Baixadasexportaçõesde49países,de1928-1929a1932-1933,emporcentagens

%debaixa País

Maisde80%

Chile

De75a80% China

De70a75% Bolívia,Cuba,Malásia,Peru,Salvador

De65a70%

Argentina,Canadá,Ceilão,ÍndiasNeerlandesas[atualIndonésia],Estônia,Guatemala,Índia,Irlanda,Letônia,México,Sião,Espanha

De60a65%

Brasil,RepúblicaDominicana,Egito,Grécia,Haiti,Hungria,PaísesBaixos,Nicarágua,Nigéria,Polônia,Iugoslávia

De55a60% Dinamarca,Equador,Honduras,NovaZelândia

De50a55% Austrália,Bulgária,Colômbia,CostaRica,Finlândia,Panamá,Paraguai

De45a50% Noruega,Pérsia,Portugal,Romênia

De30a45% Lituânia,Filipinas,Turquia,Venezuela

Fonte: TRIANTIS, S.G.Cyclical Changes in TradeBalances of Countries Exporting Primary Products,1927-1933.(Toronto,1967).

Asduasopções,deflaçãooudesvalorização,convergemportantonumarestrição indireta das trocas internacionais, com cada país tentandocomprar menos para vender mais. A terceira opção é evidentemente arestrição direta, o protecionismo com suas diferentes possibilidades: osdireitos alfandegários parciais ou gerais, as cotas ou contingências, e asinterdiçõespurasesimples.Umalógicadeproteção,edepoisderepresália,concentrou essas diversas linhas de ação num encadeamento destruidor,isolandopoucoapoucoospaísesem“zonas”.

Apartirde1930,aLigadasNaçõesantevêoperigo:numaconferênciaalfandegária no mês de fevereiro, trinta países europeus haviam secomprometidoanãoromperoslaçoscomerciaisqueosuniam.Noentanto,as pressões restritivas acabam triunfando a partir do mês de junho nosEstadosUnidos,paísdetradiçãoprotecionista,ondeatarifaHawley-Smootprevêumaumentode40%dosdireitossobreotrigo,oalgodão,acarneeosprodutosindustrializados.De1930a1933,semultiplicamastentativasdedeflação,asdesvalorizaçõesemcadeiaeasmedidasprotecionistas,numambiente de impotência internacional, enquanto um verdadeiro balédiplomático tem início entre os poderosos de então, sem resultadostangíveis.AconferênciamonetáriamundialdeLondres(emjunhode1933)freia esse processo; última tentativa de entendimento internacional –reunindo setenta Estados num momento em que os Estados Unidos

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acabavamdeabandonaraconvertibilidadedodólar(emmarçode1933)edavam início às reformas de Roosevelt –, ela acaba em fracasso. Orepresentante americano, Cordell Hull, se aproxima inicialmente daspropostasdeestabilizaçãocombinada.Porém,umaquedaemWallStreetdemonstra a inquietude dosmeios financeiros, pouco desejosos de ver odólarnovamentesustentadoemparidadefixa,eRooseveltrejeitaporfimqualqueracordointernacional.

Eisobalançodasdesvalorizaçõesde1929a1933(verTabela4).Tabela4–Evoluçãodapolíticamonetária:1929-1933.

Abandonodopadrão-ouroDatadadepreciaçãoemrelaçãoaoouro

Ano Mês País Suspensãooficialdopadrão-ouro

Instituiçãooficialdocontroledastrocas

1929 abril Uruguai dezembrode1929 7desetembrode1931novembro Argentina dezembrode1929 10deoutubrode1931novembro Paraguai1 agostode1932dezembro Brasil 18demaiode1931

1930 março Austrália 17dedezembrode1929

abril NovaZelândia

1ºdejaneirode1932

setembro Venezuela1931 agosto México 25dejulhode1931

setembro ReinoUnido

21desetembrode1931

setembro Dinamarca 29desetembrode1931 18denovembrode1931

setembro Canadá 19deoutubrode1931

setembro Egito 23desetembrode1931

setembro Bolívia 25desetembrode1931 3deoutubrode1931

setembro Índia 21desetembrode1931

setembro Irlanda 26desetembrode1931

setembro Malásiabritânica

21desetembrode1931

setembro Noruega 29desetembrode1931

setembro Suécia 29desetembrode1931

outubro Áustria 5deabrilde1933 9deoutubrode1931

outubro Finlândia 12deoutubrode1931

outubro Portugal 31dedezembrode1921 21deoutubrode1932

outubro Salvador 8deoutubrode1931

dezembro Japão13dedezembrode

1931 1ºdejulhode1932

1932 janeiro Colômbia 21desetembrode1931 21desetembrode1931

janeiro CostaRica 16dejaneirode1932janeiro Nicarágua 13desetembrode1931março Pérsia2abril Chile 20deabrilde1932 30dejulhode1931abril Grécia 26deabrilde1932 28desetembrode1931maio Peru 18demaiode1932junho Sião 11demaiode1932julho Iugoslávia 7deoutubrode1931

1933 janeiro ÁfricadoSul

28dedezembrode1932

Estados

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abril Unidos 6demarçode1933 6demarçode1933

abril Guatemalaabril Honduras3

abril Panamá3

abril Filipinas3junho Estônia 28dejunhode1933 18denovembrode1931

1OParaguaitemcomopadrãodecâmbioopesoargentino.2APérsiaabandonaopadrão-prataemmarçode1932.3Odólarfuncionavacomopadrãonessestrêspaíses.

Fonte:LigadasNações.

O desmembramento do sistemamonetário internacional foi geral em

1935-1936, enquanto o “Bloco-Ouro”, que reagrupava algumas moedasfiéis à paridade anterior a 1929 – as da França, da Bélgica, dos PaísesBaixos,deLuxemburgo,da ItáliaedaSuíça–, sedesintegrouaospoucos.Essescampeõesdamoeda forteeramoudepequeníssimospaísesoudasnações vítimas de forte inflação depois de 1918, cuja paridade-ouromonetária fora estabelecida antes de 1929 sobre uma base depreciada.Favorecidos no comércio internacional por volta dessa data, esses paísespassaram por uma alta relativa na seqüência, o que explica suasreviravoltastardias.

Houve então, monetariamente falando, quatro grupos de países: obloco-dólar, que reunia em torno dos Estados Unidos diversos países daAmérica e as Filipinas; o bloco-esterlino, em torno da Grã-Bretanha; e obloco-ouro, até 1936; por fim, o conjunto dos países que instauraramsistemasdecâmbiosmúltiplos.

As medidas alfandegárias foram tomadas em ordem dispersa eprogressiva; em geral, as barreiras começam com um aumento deimpostos, depois medidas mais autoritárias são tomadas, sobretudo porpaísesquenãosofremdesvalorização,enquantosemultiplicamosacordosmútuos.

Apesardenenhumpaísterescapadodessalógica,aAlemanhanazista,nocomércioexteriordirigidopeloEstadodepoisde1934,alevouatermoutilizandosistematicamenteoclearingeodumping.

Esses dois termos, por estranho que pareça em inglês, designam, porum lado, um sistema de compensação dos fluxos de importação eexportaçãoporpaís,oqueimpõeseuequilíbrioconstante.Trata-sedeumaquase-permutareguladaporumaagêncianacionaldetrocas,quecrialaçosdedependência ligandooescoamentodeumprodutoàcompradeoutro.Por outro lado, a prática do dumping consiste, além de variadas

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manipulaçõesmonetárias,emvenderabaixodopreçodecusto,sendoqueos exportadores recebem a diferença de uma caixa de compensaçãoalimentadaporcontribuiçõesprovenientesdoconjuntodaeconomia.

Nessa evolução aparentemente irresistível, dois movimentos desuspensão precisam ser mencionados à guisa de conclusão. Uma tréguaalfandegáriaparcial e isolada se tornapossívelparaosEstadosUnidos, apartir de 1934, com uma lei, o Reciprocal Trade Agreements Act, queautorizaopresidentea reduziros impostosàmetade, assinandoacordosprivadoscomalgunsparceiroscomerciais.Entre1934e1945,osEstadosUnidos fazemacordoscom29nações.Poroutro lado,paraevitarapartirdeentãosériesdedesvalorizaçõesdesordenadas,aFrança,aGrã-BretanhaeosEstadosUnidosassinam,em25desetembrode1936,umadeclaraçãocomumafirmandosuaintençãodecoordenarsuaspolíticasmonetárias.

Essas duas iniciativas – uma no âmbito comercial e outra no âmbitofinanceiro – não conseguem, é claro,mudar o curso das coisas. Em todocaso,elastentam.

Um dado bem simples demonstra o alcance da desintegração docomércio mundial induzida pela desordem do início dos anos 1930: emdezembrode1932,opreçodotrigonaItáliaeraduasvezesmenoselevadoemMilãodoqueemBerlimouParisetrêsvezesmaiselevadodoqueemLondres nas paridades em vigor. O traço dominante de um mercadomundial para um produto fundamental – a tendência à unificação dascotações, levandoemcontaos custosde transporte–haviadesaparecidonaépoca.

Essa espetacular desigualdade não era, evidentemente, o objetivobuscadopelosresponsáveisdasprimeirasmedidasprotecionistasde1929-1930.Aspolíticasseguidasduranteocolapsoeramemgrandeparteações-reflexas–entendamoscomissonãodecisõescegas,masreaçõesdifíceisdeevitar,cadavezmaisinevitáveisàmedidaqueacatástrofesetornavamaisgrave. Certamargemdemanobra ainda existe em1929, o quepermite aalguns países tentarem ações contracíclicas, que compreendem, porexemplo,déficitsorçamentários(EstadosUnidos,Austrália...),mastambémrestriçõesmonetáriasquedemonstramgestõessadiasdosfundosestatais.Essasaçõesnãopoderãosercogitadasmaisadiante,pelomenosenquantoa derrocada dos negócios não parece excepcional, pois o déficit aumentasozinho com a redução das receitas fiscais, e acentuá-lo pareceria umaprovademágestão,coisanão-indicadaquandonãosequerumaumentodadesconfiança.OpesodoEstadonaeconomiano fimdosanos1920nãoétãograndequepossaautorizarumaaçãorápidaedemaioralcancediante

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dasreviravoltasdaconjuntura.Damesmaforma,ospaísesquesofremcomo baixo nível das cotações não podem fazer nada isoladamente para sesustentaremepreservaremsuabalançadepagamentos:fariamcomissoojogo da concorrência e comprometeriam seus escoamentos, tal comoexperimentado,porexemplo,pelosbrasileiroscomocaféeosamericanoscom o algodão. Em outras palavras, na falta de um verdadeiro concertomundial,delicadonasdiferençasdeevoluçãoeinteresses,cadapaísquasesempre se protegeu da maneira que pôde, tomando dia a dia medidasparciais. Essa característica essencial da maior parte das políticaseconômicas entre 1929 e 1932-1933 (e às vezes até mais tarde) – adimensão reflexa e preservativa – se opõe à espetacular mutaçãogradualmenteconstatada:aascensão,duranteacrise,donacionalismo,dointervencionismoestatal edeprojetosque somamà luta frontal contraacriseumavontadederegeneraçãosocial.

3.Sobreascriseseconômicas,consultarGILLES,Philippe,Histoiresdescrisesetcycleséconomiques.Paris:A.Colin,2004.(N.A.)4.UmadasdozedivisõesregionaisdoBancoCentralamericano.(N.E.)5.Franz JosephHermannMichaelMariavonPapen(1879-1969),políticoalemão, foichancelerdaRepública de Weimar em 1932 e ocupou cargos políticos durante o nazismo, sendo mais tardeabsolvidonoJulgamentodeNuremberg.(N.E.)6.NSDAP:NationalsozialistischeDeutscheArbeiterpartei, o PartidoNacional SocialistaAlemãodosTrabalhadores,maisconhecidocomoPartidoNazista.(N.T.)

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CAPÍTULOIII

UMADESESTABILIZAÇÃOGERALDOMUNDOOCIDENTAL

I.Guerra,crise,guerraAcrisede1929estádelimitadaporduasguerrasmundiais.Elaanulaas

conseqüências financeiras da primeira, mas abre caminho para ospreparativosdasegunda.Asiniciativasmilitarescomeçamem1934comoavanço japonês na China, continuam em 1935 com o domínio da Itáliafascista sobre a Etiópia, depois com o desencadeamento da guerra naEspanhaem1936.O“egoísmosagrado”eonacionalismocaracterizamtodaa primeira metade do século XX; as iniciativas coloniais japonesas eitalianas são apenas uma imitação, com cinqüenta anos de atraso, doimperialismo inglês e francês. O autoritarismo e o antiparlamentarismoculminamnasditadurasfascistasenazistas,bemcomonaURSSleninistaestalinista. A chegada ao poder de Mussolini data de junho de 1921. OprimeiroimpulsosignificativodoPartidoNacionalSocialistadeHitlerdatade setembro de 1930, quando das eleições antecipadas convocadas pelochancelerBrüning:osnazistaspassamde12a107deputadosnoReichstag.Muitasvezesseatribuiuàcrisede1929achegadadeHitleraopoderem1933, e é verdade que os encadeamentos de 1930 justificam aaproximação: é graças ao imenso déficit de um sistema de seguro-desempregocriadoem1927,previstopara800milpessoaseconfrontadocom2milhõesdedesempregadosem1930,queossocialistashaviamsidoafastados da coligação no poder em março. A vontade de restriçãoorçamentária saíra vitoriosa; o argumento tradicional faz do partidonazista a última esperança dos desempregados entre 1930 e 1933, aomesmotempoemqueéevocadoumfinanciamentoocultopelopatronato.Noentanto,osfatosparecemmal-estabelecidos.Ohomemdopatronatoem1932eraVonPapen,eo financiamentopelograndecapitalerareservadoessencialmente a ele; no partido hitlerista, os desempregados seencontraramao ladodeumaclassemédiadesorientadaedeumexércitohesitante–gruposdeinteressesepreocupaçõesdiferentes,seduzidosporuma ideologia anticapitalista ambígua, preocupada com o reerguimentonacional e obcecada pela humilhação de 1914-1918. Na verdade, aascensãodonazismoéumcomponentedacrisede1929,bemmaisdoque

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uma conseqüência, e suas origens devem ser procuradas para além dasconvulsões de 1929-1932 – que foram mais profundas e violentas nosEstadosUnidos,porexemplo.

RadicalmentediferenteéasituaçãodaURSS.Realidademalconhecida,ela surge ao longode todooperíodo comoumdesafiopermanente, umaalternativaevidenteàsdesordenscapitalistas.Se,duranteosanos1920,osperitos do Komintern7 anunciam a cada mudança de conjuntura aderrocadadosistemacapitalista,arealidadedosanos1930lhesdárazãono plano econômico. Contudo, a espera da revolução mundial é logofrustrada e cede lugar a uma reviravolta estratégica espetacular. Àestratégia classe contra classe defendida depois de 1920 – que fazia dasocial-democracia o principal inimigo, ainda mais perigoso porque maispróximo dos trabalhadores – sucede depois de 1934, em resposta àescalada fascistaeànovasituaçãocriadapelacrise,aestratégia frentistaque visava a incentivar as coligações burguesas, das quais as FrentesPopularesespanholaefrancesasãoaexpressãomaisconhecida.

Essas sãoas linhasgeraisdodramáticopanode fundosobreoqualacrisesedesenrola.Éimpossívelomiti-lasquandosedesejaestabelecerseuimpacto no mundo e prestar contas das diversas políticas que tentaramsuperá-la.

II.DesempregoedesordenssociaisPesquisas diretas junto aos desempregados foram feitas em vários

países. Duas se tornaram clássicas. Uma é a de Edgar Whight Bakke,pesquisador americano que estudou durante seis meses, em 1931, umapopulaçãode3mildesempregadosemGreenwich,bairrodeLondres:elemorouno local, acompanhouosoperários emseusdeslocamentos, etc.Oresultadofoipublicadoem1933comotítuloTheUnemployedMan.Aoutra,realizadaporumaequipedaUniversidadedeViena(Áustria),dirigidaporPaul F. Lazarsfeld, Marie Jahoda e Hans Zeisel, acompanha durante oinvernode1931-1932avidadeumaaldeiade1.500pessoas,Marienthal,que está submetida a um desemprego quase geral e recebe uma ajudaínfimadecapital.Aequipesediferenciaemdoisaspectos:pelaminúciadasobservações e por sua atividade de ajuda e animação – distribuição deroupas,gestãodeumaclínicagratuita...OrelatórioépublicadocomotítuloDieArbeitlosenvonMarienthal[OsdesempregadosdeMarienthal].Depoisde1932,investigaçõesdessetiposedifundemnaEuropa,eem1933Bakkee Lazarsfeld vão para os Estados Unidos. O primeiro estuda por longo

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tempo o desemprego emNewHaven, que resultará em seu famoso livroCitizenswithoutWork (1940); o segundo, contratado pela administraçãoRoosevelt, amplia o campo de pesquisa interrogando 10 mil jovens emNewark e participa de uma publicação em 13 volumes sobre os efeitossociaisdaDepressão,sobaégidedoSocialScienceResearchCouncil.

Nessas pesquisas, a situação material das populações sem emprego,quase sempre sem proteção social efetiva (inclusive sem proteção emabsoluto, como nos EstadosUnidos), aparece como catastrófica,mas nãotanto quanto seu abatimento moral. Elas registram poucos efeitosespetacularessobreasaúde:asdeficiênciasalimentaressãoevidentes,masseus efeitos só são percebidos amédio prazo e não aparecemmuito. Ospesquisadores constatam o desaparecimento quase total do consumo decarne, o uso generalizado das farinhas e uma tendência a transferir umapartecrescentedodinheirodisponívelparaprodutosnão-essenciaiscomoo café preto, considerado um luxo indispensável. A falta de proteínas nodia-a-dia tem como contraparte várias despesas específicas. Na Grã-Bretanha, o chá e os bombons; na França, o vinho e o café. Osdesempregadosdedicamtambémumapartesignificativadeseusfundosàsapostas e ao cinema. Uma esfera orçamentária, no entanto, é claramentesacrificada,ovestuário.

Uma mudança de estado de espírito se manifesta em toda parte àmedida que a provação se prolonga: em alguns meses, o desempregadopassa da procura febril ao desânimo e depois à apatia, abatimento finaldaquele queperdeu todo o amor-próprio e evita os contatos sociais comhumilhação profunda e ansiosa. Essa evolução não é seguida no mesmoritmo por todas as famílias, e uma minoria, muitas vezes detentora derendimentossuperioresàmédia,continuaalutar.

Apesardenãoaparecerempesquisasdessetipo,overdadeirodesastrematerialdosmaisvulneráveispodeserdeduzidodealgunsindicadores:29pessoasmortasdefomeemNovaYorkem1933(110nosEstadosUnidosem 1934); aumento dos casos de escorbuto, raquitismo e pelagra. Aomesmo tempo, se assiste àmultiplicação dos despejos, apesar de algunsproprietárioslevarememcontaasdificuldadesdomomentoerenunciaremaseusaluguéisparamanteroslocatários.Resultadissoumsurgimentodemoradias improvisadas, casebres amontoados em terrenos baldios; essesagrupamentos miseráveis de despejados sem abrigo recebem um nomeespecial dependendo do país: humpies na Austrália, hoover-villes nosEstados Unidos (em homenagem ao presidente Hoover), bidonvilles naFrança.

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Mas são os textos literários que melhor testemunham as vidasdestroçadasouodeterioramentodavidadospáriasdaprosperidade.Loveon the Dole [Amor no seguro desemprego], do inglêsWalter Greenwood(1933), e a trilogia do americano James Farrell –YoungLonigan (1932),TheYoungManhood of Studs Lonigan (1934) e JudgementDay (1935) [OjovemLonigan,AadolescênciadeStudsLoniganeOdiado julgamento]–dedicada a um jovem do submundo de Chicago, ilustram o desempregocrônico e a vida estropiada. Por outro lado,Karl et le XXe siecle [Karl e oséculo XX], do austríaco Rudolf Brunngraber, e Et maintenant, monbonhomme? [E agora, rapaz?], do alemão Hans Fallada (1932), relatamtrajetórias exemplares de trabalhadores oprimidos pela exclusão dasociedade, que acabam tentando roubar sem sucesso, antes deencontraremumdestinoautodestrutivo(osuicídioparaKarl).

É preciso, portanto, equilibrar a balança e considerar que àsdificuldades materiais quase sempre graves se soma a ausência deperspectivanumacrisequenãotemfim.

Setentarmos,demaneiramaisglobal, fazerumbalançodosmodosdevidaporclassesocialduranteacrise,umaúnicacertezaaparecerá–eelaéparadoxal:opoderdecompradecertascategoriasaumenta!RetomaremosaquialgunsresultadoscomparativosestabelecidosporE.H.PhelpsBrowneM.H. Browne na obraA Century of Pay (1963) (ver Figura 8). Esses doispesquisadores ingleses consideraram cinco países – Alemanha, EstadosUnidos, França, Grã-Bretanha e Suécia – e construíram duas séries deíndices para permitir uma comparação entre eles: o índice do saláriosemanal operário convertido em libras esterlinas na taxa de câmbio emvigoremjaneirode1931eoíndicedosalário“real”,istoé,corrigidodaaltaou da baixa do custo de vida em cada país. Essa base de comparação éduplamente arbitrária: primeiro, porque uma taxa de câmbio reflete ascondições de trocas internacionais somente de alguns bens (e osmovimentos de capitais) e não explica muito bem as eventuaisdiscordâncias entre o custo relativo de bens e serviços fora do comércioexterioreimportantesnoconsumocotidiano;segundo,porque,apósnovemeses,alibraperderiarapidamente30%deseuvalor.Eventuaiscorreçõesaproximariam verossimilmente a França da Grã-Bretanha, por exemplo,sem no entanto modificar a hierarquia observada. O primeiro índice,nominal, acusa baixas nítidas durante os anos 1930. O segundo,apresentadonográfico,mostraqueemtrêspaíses–Grã-Bretanha,SuéciaeFrança–acriseesuasseqüelassemanifestamnumanítidaalta,apesardevariantesegundoopoderdecompra.Asevoluçõesalemãseamericanasse

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manifestam numa queda bastante modesta. Essas variações se explicamevidentemente pela deflação e pela baixa do custo de vida, que quasesemprefoimaisrápidadoqueadossaláriosnominais.

Figura8–Índicesdossaláriossemanaisreaisemcincopaísesde1920a1940.Base:ReinoUnido,média1925-1929=100

Fonte:PhelpsBrowneBrowne,op.cit.

OparadoxoseinvertenaFrançadostemposdaFrentePopular.Asaltas

desalárioentãoobtidasnãocompensamaondadeinflaçãoconcomitante.Estamos diante de um dos fenômenosmais desconcertantes da crise: naconfusão, o poder de compra de certas categorias – não o dosdesempregados!–pôdeaumentar,nãodemaneirasistemática,masgraçasamovimentosdesiguaisdepreçoserendimentos.Aresistênciaàbaixadossalários e rendimentos nominais é um fenômeno bem-conhecido, queaparecedesdeoiníciodoséculoXX,egaranteemcasodequedaacentuadados preços um aumento do poder de compra, pouco marcante, mastotalmentereal.

É provável que uma atitude patronal tenha favorecido esses ganhossalariais:aqueconsisteemdispensarrapidamente,aoinvésdeconservarcom diminuição das remunerações, trabalhadores que logo farãoreivindicações.A forteresistênciadosrendimentossalariaiséconfirmada

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por uma queda no consumo relativamente fraca, às vezes refreada emcertos países; depois por um recuo no fim das contas moderado doentesouramento (25% nos Estados Unidos). Fica claro portanto que osassalariados viveram a crise demaneiramuito distinta, às vezes oposta,dependendodasituaçãodeseusempregos:osdesempregadosamericanos,não-protegidos, num extremo; os funcionários franceses, por exemplo(apesar de preocupados com uma eventual perda autoritária deprivilégios),nooutro.Nesselequeinternacional,osprópriostrabalhadoresempregados viram sua sorte diferir: os trabalhadores manuais, quasesemprepagosportarefaouporperíodosbreves,sofremcomacrisemuitomaisdoqueosempregadospagospormês.

Aquestãodosrendimentosdocapitalcontinuaobscura:heterogêneosediscretos, eles são pouco conhecidos. Os rendimentos das empresas (osbenefíciosouoslucros)baixarammuito(de20a80%)emquasetodosospaíses e desmoronaram nos Estados Unidos e na Alemanha, levando aprejuízos,em1931e1932,pelomenosalgumassociedadesindustriais.Asconseqüênciasparaseusproprietáriosforamemgrandeparteamortecidas.Houve certa reduçãode estilos de vidamais luxuosos, sem conseqüênciadiretanoconfortocotidianodosinteressados.Diversasestratégiasfiscaisepatrimoniais permitiram a certos grupos se safarem, comprando ações abaixo preço, por exemplo, ou tirando proveito do desastre imobiliáriovivido pelos desempregados endividados. Por fim, e acima de tudo, épreciso aproximar essas reorientações da espetacular retração dosinvestimentos constatadaem todaparte: os responsáveispelas empresaspodem,segundoosresultados,regularmenteescolher,deumlado,apartereservadaàrenovaçãodasinstalaçõeseàsuaextensão(amortecimentoeautofinanciamento) e, de outro, a parte destinada aos proprietários(benefícios distribuídos). A hipótese parece plausível: é sem dúvidasacrificando os investimentos que os donos dos meios de produçãolimitaramabaixadosrendimentosdocapital.

Enfatizamososuficienteacrisecrônicadaagriculturaparapodermosconcluir que houve grande pobreza no destino do camponês durante acrise. A baixa das cotações e as dificuldades de escoamento podemconduzir os fazendeiros arruinados ao abandono de suas terras (cf. osEstadosUnidos) ou a uma espécie de retraimento com tendência à auto-subsistência; raras sãos as propriedades que puderam se modernizar ereduzirseuscustos.

Diversidadedesituaçõesedemecanismos:acriseteveseusvencedorese perdedores, que variaram segundo os conflitos e as opiniões políticas

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tanto quanto segundo o jogo dos fatores econômicos. A crise se ramificanão apenas porque a distribuição de um produto em baixa é aindamaisconflituosadoqueduranteumaexpansão,mastambémporqueoespectrodo desemprego conduz facilmente a um cada um por si (quantostrabalhadoresaceitaramtemerososa redução impostadeseushoráriosedeseussalários!)eporqueaquedadospreçosedaatividadeconsolidaaprovisóriaprosperidadedeunssobrearuínadosoutros.

As dificuldades econômicas enfraquecem as reivindicações sociais, esomente após a estabilização na depressão omovimento se inverte e sealimenta do descontentamento popular generalizado. O abalo socialresultantedafalênciadaeconomiacapitalistasemanifestoupoucoapouconos grandes países industriais e não resultou em maiores desordensimediatas. Assinalemos, no entanto, a errância ferroviária dos jovensamericanos,inclusivedosmuitojovens,em1931-1932,semelhantesaumahordadevagabundos.Osprimeirosforamestimadosem200mil!Furtandodecidadeemcidades,essesnômadesdaDepressãopreocupamquandoemgrupos.

A entrada no desemprego é um destino vivido primeiroindividualmente.Aoseperderotrabalho,aindanãosesofreuosuficientepara se rebelar; por outro lado, quando se sofreu por longo tempo, seperdeuacapacidadedeprotestardemaneiraorganizada.Asgrandesondasderevoltaoperária,asgrevesdaFrentePopularou,nosEstadosUnidos,doCIO de John Lewis (Congress of Industrial Organization, organizaçãosindical combativa resultante de uma cisão com a AFL, a AmericanFederation of Labor, iniciada em 1935 e legalizada em 1936) datam dosanos1936-1937eseapóiamemtrabalhadoresempregados.

Éútildiferenciarasagitaçõespontuaisqueseopõemaosgovernosemaspectosespecíficoseastentativasdeorganizaçãodosdesempregados.

Na primeira categoria, encontramos as revoltas que respondem amedidas de deflação interna: motins ingleses de setembro de 1931,francesesde1935(nosarsenaisdeBresteToulon),motinsaustralianoseneozelandeses evocados anteriormente... Encontramos também a tristemarcha do “Bônus”, reunindo nos Estados Unidos, em 1932, 11 milveteranos do exército que reclamavam o pagamento imediato deindenizações de guerra: marcha dissipada brutalmente, em Washington,pelo exército regular. A segunda categoria, que reúne os protestos dosdesempregados, ilustra a impossibilidade de uma mobilização constantedessesúltimos,paraalémdaorganizaçãodeassociaçõesporbairroouporregião.Assim,nosEstadosUnidos, aúnica tentativademobilizaçãogeral

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contra o subemprego acontece no dia de 6 demarço de 1930, quando ominúsculo Partido Comunista deW.Z. Forster (7milmembros) organizaumasériedemanifestaçõesnasgrandes cidadesapartirdeumarededeUnemployedCouncils[conselhosdedesempregados],eédesmanteladaporumarepressãoeficaz.

Depois disso se sucedemesporádicasmarchas da fome, sendo amaisfamosaade7demarçode1932emDearborn,pertodeDetroit,queacabanumbanhodesangue:osdesempregadosdacidade(aFordlicenciaratrêsquartos de seus efetivos) se manifestavam contra a redução das ajudaspúblicas e por novas contratações. Em conseqüência de choques muitoviolentosprovocadospelapolícia,seriamcontadosquatromortos.

De maneira bastante sintomática, será uma organização inicialmentedependente de um projeto político – as Unemployed Citizen’s Leagues[associações de cidadãos desempregados], dirigidas por A.J. Muste – queconhecerágrandesucesso,primeiroemOhioenaPensilvânia,melhorandoa assistência e favorecendo os canais de auto-subsistência. Porém, àmedida que as ligas se politizam, elas perdem seu público. Assinalemosainda o sucesso das lutas coletivas contra os despejos, que mobilizambairrosinteiros.

Já destacamos a especificidade da transformação social alemã. Nãoparecequeosdesempregados,presentesemmassanoPartidoComunista,tenhamsido significativamente recrutadospelosnazistas.Por suavez, oscomunistas franceses formam comitês regionais de desempregados. É naGrã-Bretanha,aoqueparece,queaorganizaçãodossem-empregomelhorse desenvolveu: o NUWM (National Unemployed Worker’s Movement)organiza manifestações contra as reduções do dole (os pagamentos dosegurodesemprego)eaindamarchasdafome–aquitambémcomalgunschoques violentos contra uma polícia agressiva –, que despertam muitasimpatia por todo o país. Filiações comunistas o afastam, no entanto, deumacolaboraçãocomossindicatoseoisolamdefinitivamente.

Nenhuma dessas manifestações conseguiu ameaçar com seriedade aordemestabelecida:atémesmoaconquistadopoderporHitlersedeunasurnas.Demaneiragradual,esutiltambém,adesestabilizaçãoassumiaumadimensãoculturalemoral.

III.Dainquietudedosanos1920àurgênciadosanos1930

Seria muita ingenuidade pretender retraçar em algumas páginas aevolução cultural dos anos 1930, e mais ainda pretender isolar a parte

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referenteàcrisede1929.Esta,que foiumadesestabilizaçãoentre tantasoutrasnaglobalizaçãodeconflitosnacionaisedaseconomias industriais,inverteudiretaouindiretamenteootimismoaparenteda“novaera”edos“anosloucos”.Numexamemaisdetalhado,ainquietudedamodernidadejáera perceptível antes de 1914, especialmente na Europa. Contudo, essamistura complexa muda de direção depois de 1929. Apontaremos aquialgumasidéias,limitadasaosEstadosUnidos.

Seriaerrado imaginarumamutaçãoglobaldaculturaamericana.Paraficar só na literatura, Faulkner, que começou a escrever nos anos 1920,continua sua obra sem integrar de maneira visível, num momentoespecífico,oardosnovostempos.Oromancenoirdosanos1930,deformasemelhante,éoeloentreasobrasdeD.HammetteomundosombriodaLeiSeca,porum lado,eamaturidadedeR.Chandlernosanos1940,poroutro. Seara vermelha, de Hammett, data de 1929; O destino bate à suaporta,deJ.Cain,de1934;Àbeiradoabismo,deChandler,de1939.Terceiroe último exemplo, cosmopolita: a “geração perdida” de Hemingway,Fitzgerald, T.N. Wilder, Kay Boyie, Elliot Paul, revelada na boemia deMontparnasse sob o comando de Gertrude Stein, produziria complasticidade durante todo o entre-guerras, combinando inquietude,pesquisaformaledesenraizamento.

Outra transformação complexa, marcada por rupturas externas einclusivecontráriasàsdaproduçãoeconômica:ocinema.Oanode1929éuma data-chave, a da popularização do cinema falado, que abre novoshorizontes às transmissões culturais, estimula uma indústria nacontracorrente das demais, principalmente por sua grande demanda. Orádio não fica à parte desse grande desenvolvimento das comunicações.Umasimplesreflexãodebomsensoésuficienteparaindicaroslimitesdascontribuiçõescinematográficasnasnovascontribuiçõesculturaisdosanos1930: entretenimentos que exigem um financiamento custoso (logocontroladopornegóciosoligopolistas)eoconsentimentodedistribuidores,agrandemaioriadosfilmestentadistrairumpúblicoquedesejavaarejarasidéias.Éporisso,porexemplo,queasrevistasdemusichallalimentamumapartedossonhosameaçados.ÉocasodeGoldDiggers,deMervynLeRoy, com a dançarina Ginger Rogers coberta de dólares; das comédiasligeiras, dos filmes de aventura, de gângster, ou das reconstituiçõeshistóricas,aoladodeumcrescimentodosgrandeshumoristas,maislivresem suas zombarias. Luzes da cidade, de Chaplin, data de 1931, Temposmodernos,de1936,enquantoosIrmãosMarxproduzemregularmente,namesmaépoca,obrascomoOsgêniosdapelota,Odiaboaquatro...

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Porémlogodepoisde1929,nasceumavontadegeraldeexpressãodetestemunhos pessoais, tanto por parte dos intelectuais que semobilizamquantoporpartedoscineastas,fotógrafos...

O apogeu dessas declarações é, indiscutivelmente, Let us Now PraiseFamousMen(1939),deJ.AgeeeW.Evans.Essaobrailustraacooperação,em1936, entreum jovemescritorde27anos, J.Agee, eum fotógrafoderenome,W.Evans.Aintençãooriginaleramostraravidadoscamponesesbrancos miseráveis no Alabama: por isso as descrições minuciosas de J.Ageee as fotosquaseantropométricasdeW.Evans, que compartilharamporseissemanasavidadetrêsfamíliasdeagricultoresrendeiroslevadosàmiséria.Noentanto,textoeimagemsãoconduzidosnumlirismofebrilcomacentoreligiosoeconvergemparaumtelurismoanunciadordeeternidade:o olhar é como uma queimadura, e o retrato, acusação. Estamos nosantípodasdaAméricamanufatureira.Vemosarealidadeindustrialruir, jáque a descrição desses camponeses presos na armadilha do criminosomundo dos negócios leva a uma dolorosa tomada de consciência. Ainfluência do cinema é tão forte quanto discreta: o texto alterna fraseslongasecurtaspontuadaspordois-pontosquemultiplicamasevidênciaseremetem às fotos. Podemos relacionar a essa obra dilacerante o livro Acaminho de Wigan, de George Orwell, resultante de uma série dereportagensepublicadoem1937,umrelatodavidacotidianadosmineirose operários desempregados no norte da Inglaterra. Seu lirismo é menosardente e se prolonga numa meditação política sobre a alienação e osdestinosdeclasse.ComAgeeeOrwell,todooidealismointelectualanglo-saxão vai além das denúncias e investigações para fazer um simplesquestionamentosobresentidoeexistência,noqualseunemoabsurdoeafraternidade.

Paralelamente a esse renascimento lírico, se desenvolve nos EstadosUnidosumaliteraturadecombate.JácitamosJamesT.Farrel,membrodaEscola de Chicago. Ao lado de Richard Wright e Nelson Algren, eledesenvolveumnaturalismodosubmundo,comboadosededeterminismoe simbolismo. Toda uma tradição americana de contestação social e derealismo,quevaideUptonSinclair (The Jungle, 1906) aTheodorDreiser(TheTitan,1914),denunciavaoreversodaprosperidade.Comacatástrofe,elaganhanovoimpulso.Duasobrascélebressedestacam:Ograndecapital,deDosPassos(1936),eAsvinhasdaira,deJohnSteinbeck(1939).

Doprimeiro–quepassará,aolongodesuavida,daextremaesquerdaparaaextremadireita– falaremosdatécnica:asimultaneidade(utilizadadesde1925),queconsiste,atravésdesegmentosparalelosealternados,em

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narraramovimentaçãodeváriosheróis;obalançodosanosloucosatravésdos destinos entrecruzados de um aviador, de umamilitante política, deumaatriz...éconduzidocomvigoreconvergeparaadestruiçãoeconômica,moraloufísicadamaiorpartedospersonagensem1929.Curtasbiografiasdepersonagenspúblicos,recortesdeimprensaeexcertosradiofônicosdãoritmo a essa crônica fragmentada de um sonho pouco a poucodespedaçado. Os anos 1930 ajustam as contas com os anos 1920. JohnSteinbeck, em 1939, já tinha uma obra importante atrás de si e fizera acrônicadeumagrevenospomaresdaCalifórnia(Abatalhaincerta,1936).Sua obra-prima, As vinhas da ira, reconstitui a epopéia de camponesesarruinados e expulsos do Oklahoma tentando conseguir emprego naCalifórniadepoisdeumaterrívelodisséianaestrada.OsucessoestrondosodolivropermitesuaadaptaçãocinematográficaporJohnFord,comHenryFonda.SobreatábularasadesobstruídaporDosPassoseAgee,SteinbeckretomaomitofundadordosEstadosUnidos,amigraçãodecolonosunidospeladesgraçaepelainjustiça,afastandoomalpelosofrimentoquerevelaosverdadeirosvaloreseanecessáriasolidariedade.Aforçadaobraresultadessesimplismoemmovimento,dessareviravoltatotalemoralizadora,eoestilo não poupa cenas genuinamente cinematográficas: travellings,plongées, vistaspanorâmicas.AntesmesmodaadaptaçãodeFord,o livrotinha uma tenaz construção visual, reivindicando com isso a passagem àação imediata, a unidade de um caminho que vai da sobrevivência àorganização.

É no entanto com um filme bem mais antigo que parece ser maisesclarecedorconcluiressabreveexploraçãodadimensãoculturaldacrisenos EstadosUnidos, enfatizando sua complexidade e sua ambigüidade:Opãonosso,deKingVidor(1934),quereconstituiasaventurasdeumjovemcasal.Ohomemestádesempregado,eelesacabamocupandoumafazendaabandonadaereunindoàsuavoltaumapopulaçãodedeserdados,criandoumacomunidadeagráriacomosimbóliconomedeArcádia.Depoisdeumbreve momento de instabilidade com a chegada da loira Sally, quesimbolizaacidadecomseugostopelojazz,peloálcoolepelotabaco,avidaruraléporfimcomprometidapelasecaesalvapelaescavaçãoapicaretadeum canal. Essa fábula bíblica (Vidor é um adepto da Ciência Cristã)transforma o tema bastante conhecido dos perigos da rua e da cidade,característicodosanos1920,numaexaltaçãodaauto-organizaçãoagrícolaem meio a automóveis, mas sem o mínimo material mecanizado: aredenção pelo trabalho se une aqui ao stakhanovismo8 e substitui a

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produtividade pelo esforço. Podemos ver nessa comunidade que adquireindependênciaequesereúneemtornodeumhomem(depoisdehesitarquantoaseusprocessosdetomadadedecisão)tantoosprimórdiosdeumcomunismo primitivo quanto a desconfiança para com o socialismo e ademocracia.Trata-sedeummovimentoderecuo,deretraimentosobresiesobreaterra,reveladordeumasociedadecambaleante.

Em uma palavra, parece que podemos resumir o impacto cultural dacatástrofe econômica num movimento urgente de engajamento etestemunhos; o romance apresenta certa regressão formal em relação àsexperiências revolucionárias internacionais dos anos 1920 (Faulkner,Proust,Döblin, Joyce...),mas impõedespojamentoebrutalidade,edialogacomocinema,afotografiaeainvestigação.Essescaminhoscruzados,àsuamaneira,compõemomapadaconvulsão.

IV.OcapitalismosobvigilânciaTodos os países industriais conhecem, a partir de 1933, um aumento

consideráveldapressãopolíticaesindicaloperária.Asgrevesrecomeçamapartir de 1933.O início de uma recuperação libera a expressão, de certaforma retardada, do medo e da indignação dos operários. Esseressurgimento da combatividade é reforçado mais ainda nos anosseguintespelaaliançacomasclassesmédiasqueperdemaesperançade,agindo isoladamente ou se unindo à direita capitalista, saírem ilesas.Aliança desejada também pelo lado operário quando a estratégiaantifascista (na Europa) implica uniões democráticas. Resulta disso umasegunda onda de pressões à esquerda,mais potente do que a primeira eperceptível tanto nos Estados Unidos quanto na França, que culmina emgrandesgreveseconquistassociais.

Essa revanche do common man, o homem da rua, é intrinsecamenteumamutaçãointelectualesocialquedesqualificaaspessoasnopodernasdemocraciasocidentais.MuitosassinalaramqueobraintrustdopresidenteRoosevelt (sua equipe de governo) nomeava na maioria das vezes, em1933, novatos, quase sempre saídos dos círculos empresariais efinanceiros.

Das conclusões dos comitês de especialistas nos planos sindicais àssugestõesdossimplescidadãos,aspropostasfeitasnaépocaeramdetodosos tipos. Iamdoretornoàvidaruralàcriaçãodeumamoeda“liquefeita”que obrigasse seus detentores a despesas imediatas, como por exemplo,atravésdaemissãodenotasdatadas,válidasporumtempoespecífico.Trêsgrupos predominam. Por ordem cronológica, encontramos primeiro uma

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corrente ardorosa e antiga a favor da estimulação do poder de compra,depois adosdebates em tornodo temadomultiplicadorde empregos e,porfim,adomovimentoplanificador.

A idéia de que a manutenção, ou o desenvolvimento, do consumopopular facilitaria a retomada da economia em crise estava bastantedifundida em 1929, e certas medidas do presidente Hoover nesse anofazempartedessa linhadepensamento.Elaencontrasuaexpressãomaissistemática no Plano WTB, adotado em 1932 pelos sindicatos alemães,derivado do nome de três famosas chefias sindicais:W.Woytinski, FritzTarnoweFritzBaade.Esseplano,cujosfundamentoshaviamsidolançadosem1929,previaaestimulaçãodoconsumoatravésdoinchaçodaliquidezàdisposição da economia. Ao mesmo tempo, o apelo a trabalhos públicoscontracíclicosestavaextremamentedifundidoetotalmentedesprovidodeinovaçõesnaépoca.

A idéia do multiplicador de empregos é simples: numa economiadeprimida,compotencialdeproduçãonão-utilizado,acontrataçãodecertonúmero de trabalhadores suscitaria trabalho a outros, que, por sua vez,provocariam mais empregos... Poderia, portanto, haver um efeitomultiplicador das despesas públicas sobre a atividade. Essa idéia,sistematizadaporKeynes,pareceternascidoem1931,aomesmotemponaGrã-Bretanha (Kahn),naAlemanha(R.Friedlander-PrechtleH.Dräger)enumaversãosimplificadanosEstadosUnidos(pelomagnatada imprensaW.R.Hearst).Elaproduzdebatescontraditóriosem1931-1932,poisseusadversáriosressaltamquea iniciativaestatal levantadinheirodos fundosnecessários às iniciativas privadas e endivida perigosamente as finançaspúblicas.

Por fim, a corrente planificadora que, a exemplo do socialista belgaHenrideMan,reuniunaFrançaenaBélgicadiversosmilitantespolíticosesindicais(dentreosquaisGeorgesLefranceAndréPhilip)numprogramade economia mista, de reformas profundas abrangendo um controlepúblicosobreocréditoetc.,espéciede terceiraviaàesquerdaentreumasocial-democracia presa ao parlamentarismo e um comunismo queprometeumarevoluçãodotipotudoounada.Umverdadeiromodismoseapossa,entre1933e1936,dapalavra“plano”.

Esses três conjuntos de propostas, amplamente internacionais,mostram que o momento era de intervencionismo – ou, mais ainda, deativismoestatal.Tratava-sederegularosmercados,demanterospreços,de multiplicar os acordos profissionais limitando horários ou, casonecessário, produções para reabsorver os estoques e o desemprego, de

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criar instituições centralizadas capazes de sustentar uma economia“concertada”: grandes projetos, nem sempre coerentes entre si,decorrentesnamaioriadasvezesdeumaaçãopragmáticapontoporponto,que levaram a um conjunto demedidasmultiformes, ao passo que eramabandonadosadisciplinadeflacionistaeosprincípiosliberais.Osobjetivosbuscados em quase todos os países industriais têm uma dimensãoreformadora e estão unidos em torno de uma vontade de regeneraçãosocialnacional;aeficiênciaeconômicapassaaosegundoplano.“Sacrifica-seaprodutividade”,pararetomarumaexpressãodeentão,porqueaapostaépolíticaesocialantesdesereconômicanosentidoestrito.

1.Asconversõesbritânicas

Vítima de consideráveis dificuldades durante os anos 1920, comodissemos, o Reino Unido é o primeiro a admitir a intervenção direta doEstado e o protecionismo, indo contra toda a tradição manchesterianaliberal. A primeira conversão é a da política monetária: a uma moedaflutuante, geradaporumFundode Igualização, correspondeumapolíticadedinheirobaratoopostaàqueprevaleceraentre1919e1931.Aoabrigode pressões externas, os mercados internos agrícolas são reorganizadospor preços garantidos e por serviços de venda geridos pelos produtores,sob o controle do Estado. Em 1930, o Coal Mines Act já tentavaregulamentaraquestãodocarvão,reduzindoajornadadetrabalhodeoitoparasetehorasemeiaecriandoumacomissãocomplenospoderesparafixaraproduçãoeospreços,responsávelpororganizarfusõesemelhoriastécnicas. Da mesma forma, sob a tutela do Estado, um comitê dereorganizaçãodaindústriasiderúrgicareuniu2milempresasem1932naBritishIron&Steel.

A evolução internacional foi amplamente favorável: com entradas deouroedecapitais(paraumpaíscomumanotáveltradiçãodeexportaçãodecapitais),ecombinaçãodos“termosdetroca”,ospreçosdasexportaçõescontinuamsuperioresaosdasimportações.OcomércioexternoéempartereorientadoaoImpério,aindaqueinúmerosacordosbilateraisgarantissemoescoamentodealgunsprodutosbritânicos emcontrapartidaa comprasespecíficas. Essas medidas econômicas conduziriam o país a um lentoreerguimento, perceptível a partir de 1932-1933, sem rupturas sociaisespetaculares,aindadeEstado-providência,masacompanhadodemedidasantecipatórias do Welfare State: se a gestão do seguro desemprego

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conduzira em 1931 o governo da União Nacional de R. MacDonald adiminuirem10%osralospagamentosdesubsídiodesemprego(dole),essamedidaésuprimidaem1934,eaprevidênciasocialdesenvolveosistemade pensão e aposentadorias criado em 1925. Há portanto um “piso” naretraçãodoconsumo,tantoqueumasériedemedidastomadasentre1930e 1935 estimularam amplamente a construção de moradias individuaispadronizadas, levando a um verdadeiro boom do mercado imobiliário,duplicandonosanos1930onúmerodecasasnovasconstruídasnosanos1920.Apartirde1937,ageneralizaçãododescansoremuneradopermiteaaberturadecolôniasdefériasàbeira-mareodesenvolvimentodolazerdemassa. Em oposição ao mito “negro” de uma Inglaterra miserável, essedinamismodoconsumoécaracterísticodarecuperaçãoinglesa.

2.OsdoisNewDealdeF.D.Roosevelt

Muito mais espetacular e tumultuada foi a política seguida por F.D.Roosevelt.Aofimde1932,chegaaopoderumhomempragmático,poucopreocupadocomcoerênciadoutrinária,quecriticaopresidenteHooverporsua inação e exige grandes economias orçamentárias dentro da puratradiçãodeflacionista.Ainspiraçãodonovopresidentevinhadedoislados.Emprimeirolugar,eleeraherdeirodeumacorrenteprogressistafavorávelàsintervençõesfederais.Emsegundo,elesetornaraointérpretediretodavontadederenovaçãoencontradapaísafora.AseuslogandeNewDeal,onovo acordo (uma redistribuição das cartas do jogo econômico e social),responde sua famosa frase segundo a qual “a única coisa a temer é oprópriomedo”.Resultadissoumaintensaatividadereformista,inauguradanos febris cem dias que se seguem à sua chegada ao poder: reformasbancárias aumentando o controle federal, impondo a separação entrebancos de depósitos e de negócios, concedendo novas garantias aosdepositantes e reforçando o papel de banqueiro do Estado; reformas naBolsa de Valores fiscalizando as transações de bens móveis;“reabastecimentodotanque”emmatériamonetáriaefinanceira,atravésdainjeção de capitais frescos no circuito econômico, flexibilizando ascondiçõesdecriaçãomonetáriaecriaçãodegrandesprojetosamplamentefinanciadosporempréstimos.Flutuaçãododólar,atravésdasuspensãodastransações sobre o ouro, depois depreciação do dólar através de umapolítica de compra de ouro em cotações crescentes. Essa tática, que forautilizadaao fimdaGuerradeSecessão, temcomoobjetivoa recuperação

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dos preços internos; ela tem a vantagem de não traumatizar a opiniãopúblicacomumadesvalorizaçãodeclarada.Quandoodólaréestabilizado,em31dejaneirode1934,eleperdera41%deseuvalor,masosestoquesdeouroestataishaviamcrescidoconsideravelmente,emmassaeemvalor,tranqüilizandoassimopúblico.CriaçãodaCivilWorkAdministrationedaFederal Emergency Administration, dois órgãos respectivamenteencarregados de organizar empregos públicos (4 milhões dedesempregadoscontratadosemmeadosdejaneirode1934)ededistribuirfundos de ajuda (20 milhões de beneficiários no inverno de 1934).RetomadadoprojetodeplanejamentohidráuliconoTennesseequeHooveriniciara: a criação da Tennessee Valley Authority se torna o símbolo donovo regime. Tratava-se de uma economia “concertada”, de colaboraçãoentre o Estado federal, os Estados locais, os fazendeiros ribeirinhos e osusuáriosdacorrenteelétrica.EnquadramentodaatividadeindustrialpeloNIRA(NationalIndustrialRecoveryAct),dejunhode1933,eumasériedemedidas complementares materializadas num conjunto de códigosespecíficos por indústria. Maciçamente apoiadas por certas facçõessindicais, essas regulamentações impostas a muito custo ao mundo dosnegóciospreviamumareduçãodasemanadetrabalhopara35horas,umsalário mínimo garantido, a liberdade sindical completa e o direito deassociação para os trabalhadores, bem como inúmeros acordos deautolimitaçãodaproduçãoedacartelizaçãodosmercados.OAgriculturalAdjustmentActseencarregadacriseagrícola, juntocomoutrascláusulasque concedem novos créditos aos fazendeiros, assim como subsídios àlimitação da produção, facilitando as redistribuições de terras e amodernização,apesardenãoconhecerumsucessoimediato.

Essa simples enumeração evidencia o alcance do intervencionismorooseveltiano, que se chocou com a resistência feroz da Suprema Corte,responsável pela constituição; em 27 de maio de 1935, os nove juízesinamovíveis invalidaram unanimemente todas as medidas tomadas noquadro do New Deal, considerando-as como contrárias à constituiçãoamericana. Com isso, seguiram-se batalhas processuais e outras leis –particularmenteaLeiWagner,queretomavaoNIRA,eoSocialSecurityActde agosto de 1935, que rompia com uma tradição secular estabelecendoumaproteção social obrigatória senão generalizada – que também foramanuladas. Reeleito em 1936, no entanto, Roosevelt ganha com amplamaioria e consegue a passividade da Suprema Corte. Começa então umsegundoNewDeal,tendocomopanodefundoumacrescentetensãosocial:as cláusulas legais que sancionam os direitos dos trabalhadores são

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retomadasepoucoapoucoimpostasemmeioaconflitosviolentos,emquesedistinguemosindicalistaJohnLewisesuaorganização,aCIO(CongressofIndustrialOrganization).

Oresultadoéimensoecontroverso.Rooseveltcontinuasendoafigura-guiados anos1930. Semquerer, ele transformao capitalismoamericanoem1933-1935eseapóiacadavezmaisnomeiooperárioem1936-1938.NuncaconvencidoporKeynes,comquemseencontroudiversasvezes,elecombateu com força a política de déficit orçamentário até 1938: suasambiçõesreformistasprocediamdeoutrosprincípios;algunssublinharamque estes se opunham a boa parte do sonho americano, conduzindo àmediaçãofederalautoritárianasrelaçõesprivadas.

3.Aseconomiasmilitares(Alemanha,Itália,Japão)

Os elementos comuns aos três países são a cartelização industrialsubmetidaaomundomilitar;abuscadecididadeauto-suficiência,ouantesdeautarquia,numaperspectivaexpansionista;ocentralismobancárioeasmanipulaçõesmonetárias (noExtremoOriente, adepreciaçãosistemáticado yen; na Europa, os controles das trocas e depois a criação de canaisparalelosparaacirculaçãonacionaleinternacional)eocontrolerigorosodasimportaçõesedasexportações.

Enquantoaexpansãojaponesaavançasemmodificaçãodoestatutodostrabalhadores, o mesmo não acontece na Alemanha e na Itália: aocorporativismodossindicatositalianosrespondemasmedidasalemãsquesuprimem, em 10 de maio de 1933, todas as organizações operárias epatronaisecriamaFrentedoTrabalho,emquetodososparticipantesdavida econômica são enquadrados. Não podemos deixar de sublinhar osucesso aparente, a curto emédio prazo, dessasmedidas autoritárias outotalitárias:aAlemanharapidamentereabsorveseuimensodesemprego,oJapão vê sua indústria de bens de infra-estrutura, bastante incentivada,chegaràsalturas,enquantoaItáliaapresentaresultadosmaisvariados–amoeda é levada à desvalorização em 1936 e cada vez mais o país sesubmeteaseualiadogermânico.

4.Dobloco-ouroàsFrentesPopulares

Dissemos que certo número de países europeus havia ficado preso,

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durante a derrocadamonetária, àmanutenção da paridade-ouro de suasmoedas.Nessegrupo,estavamFrança,Itália,PaísesBaixos,Bélgica,Suíçaealgumas nações da Europa do Leste. Esses países pagaram caro por talapegoduranteosanosde1933a1936,poisasdesvalorizaçõessucessivasda libraesterlinaedodólardemaneira intensaerepentinaencareceramseus preços nas trocas mundiais – como recusam a desvalorização, sãoobrigados a abater seus preços e rendimentos limitando as despesaspúblicaseprocedendoabaixasmaisoumenosautoritárias,numapolíticadedeflaçãointerna.Àmedidaqueotempopassa,asqueixassemultiplicamemmeioaomarasmocircundante;umpânicofinanceiroemmarçode1935impõeadesvalorizaçãoàBélgica.

Asituaçãofrancesanãoeramuitomelhor,eosacessosdedesconfiançaemrelaçãoao franco levamaumúltimoesforçodeflacionistadogovernoLaval,quereduzautoritariamente10%dospagamentosdoEstado–dentreos quais os ordenados dos funcionários – e inúmeros preços. A inversãopolítica da Frente Popular – precedida pela Frente Popular espanhola –podesercaracterizadapelaidéiadeestimulaçãodopoderdecompraeumintervencionismobastantemoderado.NãofizeraLéonBlumumadistinçãoentre o exercício e a conquista do poder? Segundo seu ponto de vista, omomento não era de socialismo, e a coligação da Frente Popular teve,portanto, um balanço muito original: poucas nacionalizações, acordoscontratuais centralizados – os acordos Matignon que previam aumentosgeraisdesalários(10a15%)–eumaleifamosa,de22dejunhode1936,quereduziaasemanadetrabalhode48para40horas,semdiminuiçãodesalário.Astentativasdemanutençãodasreceitasagrícolas,porintermédiodeumOfficeNationalInterprofessionnelduBlé9,sãomaisclássicas.

As 40 horas são a típicamedida histórica e controvertida: simbólica,apoiada na importância do trabalho em meio-turno na França, a leiintroduzumagranderigidez.Defato,as35horasprevistaspeloNewDealsão negociáveis, moduláveis em certa medida segundo os “códigos” esetores.Materializandoa conquistadeumanovadignidade, indissociáveldodireitoaolazeredasprimeirasfériasremuneradas,otextofrancêstemumaspectoantiprodutivo;porsuauniformidade,elepodelevarempresasdinâmicas, em regiões pouco afetadas pelo desemprego, a limitar suasproduções;éportantogeradordeáreasdedesaceleração.Essaconstataçãonãoautorizaemnenhumainstânciaoraciocíniosegundooqualas40horasteriam paralisado a economia francesa, e muito menos a observaçãodesdenhosa(muitocomum)sobrea“semanadequatroquintas-feiras”que

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teriaautorizadoapreguiçaoperária.OcertoéquearecuperaçãodaFrentePopularnãoavançaetemclarasconseqüênciasinflacionistas,confirmadasporduasdesvalorizaçõessucessivas.

Ao lado dessas importantes experiências que transformaramvisivelmenteosgrandespaísesindustrializados,outrasnaçõesconduzirampolíticasreformistasmuitasvezesousadaseexitosas.Foiocasodospaísesnórdicos, principalmente da Suécia, que logo reorientaram suas trocasexternas e desenvolveram um aparato industrial de alto rendimento. Achegada ao poder dos social-democratas em 1933 torna possível umverdadeiro laboratóriodepolíticaseconômicasesociaisque fascinariaosgrandes países ocidentais por décadas. Com um sindicalismo potente ereconhecido, não-isento de graves confrontações, e uma políticaorçamentária explicitamente anticíclica a partir de 1937 (obra de DagHammarskjold),osocialismosuecoéforjadoduranteacrise.

As transformações contrastantes da Austrália e da Nova Zelândiamerecem uma menção: em 1931, os trabalhistas perdem o poder naAustrália;em1935,chegamaelenaNovaZelândia.Até1935,assoluçõesdeflacionistas, às vezes violentas, prevalecem, mas depois dessa data ostrabalhistas neozelandeses instauram uma política de verdadeira sínteseda Frente Popular, do New Deal e das reformas britânicas. Diante daAustrália, que continua fundamental e agressivamente liberal (não semsucesso,nofimdascontas),elesimpõemem1936asemanade5diasede40horas,reativamaconstruçãocivileaconcentraçãoindustrial,garantemum nível de vida mínimo aos fazendeiros. Seus esforços culminam numdispositivo de previdência social baseado na simples noção deresponsabilidadecoletivadiantedesituaçõesdeindigênciaounecessidade(1938).

Muitasvezesseatribuiuasaídadacriseaocrescimentodasdespesasmilitares. Duas observações precisam ser feitas sobre esse ponto. Aprimeiradizrespeitoaoaspectotardiodesserearmamento,quemesmonaAlemanha só é realmente significativo em 1937-1938. Paradoxo quasesempredesconhecido, o esforçodeguerra alemão só será total em1942,quandoosefeitosdaestratégiadeguerra-relâmpago,quenãoimplicavamumamobilizaçãoduradouradaeconomia,sedissipam.Portanto,osucessoa curto prazo da recuperação nazista (e também japonesa) acontecesobretudodevidoàpresençadeumEstadoautoritárioqueseencarregadofuturoeconômico.Emsegundo lugar, houvenessa emergêncianacional eestatal(menosmarcadanasdemocraciasocidentais)apenasumaprimeiraetapa.Emconseqüênciadosegundoconflitomundial,oimpulsoprodigioso

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dosEstadosUnidosleva-osaumasegundaetapa:umamplorearranjodasrelaçõesinternacionais,que compreende, alémdaprimaziadodólar edoPlanoMarshall (ajudamaciçaàreconstruçãoeuropéia),asdisposiçõesdelivre-comérciodoGATT(AcordoGeralsobreTarifaseComércio,de1948).

V.Onascimentodosubdesenvolvimento?Acriseé,acimadetudo,industrialeocidental.Nãopodemosesquecer,

noentanto,quedoisterçosdomundoem1930,ou1,4bilhãodepessoas,tinhamsuascondiçõesdevidaligadasdiretaouindiretamenteàscotaçõesdas matérias-primas e à margem de autonomia concedida por suasmetrópoles.EssamassadepesodemográficocrescentediantedodeclíniodaEuropaOcidentalestavadividida,em1930,maisoumenosemquatroblocos:40%paraaÁsiadoLestee40%paraaÁsiadoSul,porumlado;8%para aAmérica Latina e 12%para aÁfrica, por outro. Uma consideráveldisparidade caracteriza as situações dos territórios em questão, o quetornaimpossívelumageneralizaçãosobreoimpactodacrise.

Ainstabilidadedoentre-guerrasaquitambéméevidente–lembremos,por exemplo, que a China vive uma guerra civil nos anos 1930 (a LongaMarchadeMaoTsé-tung,quedatade1934-1935,éumepisódiomarcante).Outrasnações aospoucos conquistamsua independência (comoa Índia),coexistindocomEstadospoliticamenteautônomos,zonassobprotetorado,colônias isoladas ou organizadas de várias maneiras, tanto no ImpérioFrancês quanto na Commonwealth britânica que sucede em 1931 aoImpério(EstatutodeWestminster).

Ter uma zona de influência, isto é, de dominação, parecia umanecessidadevitalparaosgrandespaísesindustrializados.Provadissosãoas tentativas neocoloniais da Alemanha, da Itália e do Japão. A realidadeestá, no entanto, longe de ser tão simples, e não fica claro,retrospectivamente,queomundodominadotenharepresentadoumpapeldeamortecedor.

É preciso começar pela crise comercial vivida de maneira intensa eduradourapelosfornecedoresdematérias-primas,queclaramenteprecedeos colapsos ocidentais. A retração assim iniciada – e que faz dos paísesdominadosumdosdesencadeadoresdacrise–serevelatãoduraparaelesquanto para as economias dominantes, à exceção da África. Em termosnominais,oníveldetrocascontinuaem1935omesmode1928,em50%,enquantoéemmédia35%norestodomundo,sendoqueaAméricaLatinaé a mais afetada, com um nível de 31%. Igualmente dura, masfinanceiramenteinsuportávelparaasnaçõespoucodesenvolvidas.

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Umaexceção confirmaa regra: aproduçãodeouroduplicadurante acriseechegaa1.232toneladasem1939,dezvezesmaisdoqueem1875e25%mais do que em... 1974. Os países auríferos sãomuito estimulados,como é o caso da África do Sul, que atravessa a crise sem grandesdificuldades(emboracomumaparalisianomercadodediamantes).

As sombrias perspectivas do setor exportador têm nuançasdependendodoprodutoedopaís:acordosdeautolimitaçãodaproduçãosãoinstauradosnosanos1920(borracha),eaderrocadados“produtosdesobremesa” (café, cacau...) se opõe ao despertar de certas filiais deabastecimentoinduzidopelosesforçosderearmamento.

O jogo dos mecanismos econômicos é, no entanto, retomado pelasreorientaçõespolíticas:todaumagamadearranjosepressões–quevaideacordos impostos ou negociados a regulamentações administrativascoloniais,demercadosreservadosaintervençõesdiretas–comprovaumaintensa atividade ocidental que compreende dois aspectos contrastantes.Porumlado,umrelativoretraimento,como,porexemplo,doscapitais,quedemonstraqueapartirdeentãoomercadointernoémaisimportanteparaas metrópoles; por outro lado, um “recuo imperial” muitas vezesamplificado (para aqueles que acreditam ter os meios para tanto), queconsisteemprivilegiarascolôniasnastrocasexternas,istoé,retomarsuavalorização numa base mais ampla. O caso inglês vê a preeminência doretraimento, enquanto a França inaugura com estrondo a ExposiçãoColonialde1931,ápicesimbólicodesuaatividadeultramarina,eretomaofinanciamento público de trabalhos de infra-estrutura na África.Retrospectivamente, fica claro que o retraimento teve mais futuro, mas,apesar dos inegáveis esforços, o recuo do Império se revelou em grandeparte mítico, repousando numa complementaridade ilusória entreprodutos de base e manufaturados. O recuo do Império foi comercial elimitado;seusresultadoscontinuamambíguos.

Quaseemtodaaperiferiacolonizada,oscolonosbrancospromoveramum impulso industrial local, cuja rápidaexpansãonãodevemascararseuacanhamento. A crise deixa vago um espaço nacional de transformaçãoindustrial, e, se o financiamento se revela difícil, fica claro que os paísesnovosquese lançamnaaventuranãotêmmuitoaperder.Assim,a Índia,apoiando-seemautóctoneseuropeizados,vêumclarocrescimentodesuasatividades manufatureiras – bem como a Argentina e os “domínios”brancos,estandooCanadáàparte.

A evolução da agricultura coloca em causa o destino de todas aspopulações indígenas e também faz surgir uma grande diversidade de

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situações. Duas evoluções parecem características: por um lado, aconservação de mundos agrícolas separados, com tendência a certaautarquia, numa esclerose pré-industrial ou, pelo contrário, com odesenvolvimento de “cistos” modernos sem laços aparentes com asociedadenaqualseinserem;poroutrolado,eaquiacrisetemumpapelindiscutível,tensõeseinfluênciasrecíprocasjustapõemasdesintegraçõeseastentativasreformistas.

UmexemploimportantedessastensõesaparecenorecuodaeconomiadeescambonaÁfricanegraenamonetarizaçãodesetoresantesexcluídosda zona das transações comerciais. A economia de escambo designa aspermutas (bastante praticadas na colonização do século XIX) entreindígenas, que entregam o produto de suas culturas ou de suas caças, esucursais que lhes fornecem diversos artigos manufaturados de baixovalor. Seumecanismo básico parece ter sido fiscal. Diante da queda dosrendimentos decorrente das trocas internacionais, as administraçõescoloniais se remetem à base potencial da produção interna e dosrendimentos indígenas, obrigando esses últimos a um esforço decontribuição monetária e, portanto, a uma monetarização de suasatividades. Decorre disso uma progressiva desagregação das estruturastribais tradicionais e uma transferência de parte das dificuldadeseconômicas para populações incapazes de adaptação: no fim das contas,um quase trabalho forçado e uma grande pauperização dos campos,conformeapontadoporinúmerosobservadores.

Algumas tentativas reformistas, minoritárias, exploram as vias paraumanova integração camponesa, sendo amaisnotável a deCardenasnoMéxico, que organiza nos anos 1930 redistribuições de terras em largaescala (20 milhões de hectares a 1 milhão de famílias) e colidefrontalmentecomopoder latifundiário,conhecendoumsucessoefêmero.O traço comum a todas essas experiências,muitas vezes brutais, está nocrescimento urbano, duplamente estimulado pelo afluxo de massascamponesas miseráveis, desorientadas, e por um embrião de burguesialocalmaisoumenosnacionalista.Defato,aurbanizaçãodoquesetornaráoTerceiroMundotemsuaorigemnosanos1930:ocrescimentoexageradodas cidades se deve em grande parte ao amontoamento de umsubproletariado em favelas (evocamos antes sua multiplicação noOcidente; o fenômeno é semelhante no Magreb e na América Latina),populaçãodecamponesesarruinadoserarosassalariadosquevêemseusganhosnominaisàsvezesreduzidosàmetadeemdoisanos.

Trêsidéiasparecemseimpor:

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– primeiro, a realidade da crise nos países e territórios periféricos épouco discutida e desafia generalizações, tamanha a diversidade desituaçõesereações;

– no entanto, parece possível conceber a hipótese de uma“invisibilidade”parcialdasrepercussõescomerciaisefinanceirassobreasmassas rurais dos países dominados, sem desemprego, mas com umapressãosobreasatividadesruraiseaumentodateiaurbana;

– se, nessas manifestações essenciais, a crise é ocidental, parece terhavidofocosdecriseslatentesespecíficas,duranteosanos1920,nomundoperiférico, focos que a depressão ocidental revela, mas não cria. Asevoluçõesqueaquievocamosfazemdasdificuldadesdasnaçõesindustriaisantesumaceleradordoqueumdesencadeador.Essetambéméocasodosnúcleos de industrialização, da urbanização, do nacionalismo e do recuoconstatado na economia de escambo. Contudo, essa aceleração é semdúvida portadora de rupturas, como a demografia que tende a se tornarexplosivaeasnovasrelaçõesfinanceirasqueseinstauram,comoperadorespreocupados muitas vezes em rentabilidade de curto prazo. As relaçõesentrepopulaçãoesubsistênciaeadependênciafundadanocírculoviciosoajudas/endividamento estão prestes a se tornar os dois principaisproblemasdomundodominado.

Comcerteza,podemosconsiderarcomohipóteseverossímilaconclusãodorelatóriogeraldeumcolóquioorganizadoem1976,“AÁfricaeosanos1930”: “Tudo contribui para fazer do período 1931-1936, graças à crisemundialeàmargemdela,afase-chavedagênese,noseiodoimperialismocontemporâneo, de um fenômeno específico, o subdesenvolvimento doTerceiroMundo”.10

7.Komintern,abreviaturaemrussode InternacionalComunista.Fundadaemmarçode1919,poriniciativa de Lenin e do Partido Comunista russo, a organização tinha como objetivo reunir ospartidos comunistas de diferentes países na luta pela superação do capitalismo a partir de umarevoluçãofeitapeloproletariado.(N.E.)8. Stakhanovismo: doutrina na União Soviética que fazia a apologia do trabalhador esforçado ededicadocomoformadeaumentaraprodutividade.(N.T.)9.Agênciagovernamentalcompodermonopolistaquefixaopreçodotrigoeregulaimportaçõeseexportações.(N.E.)10. Relatório geral de C. Coquery-Vidrovitch,Revue française d’histoire d’outre-mer, 1976, p. 422.(N.A.)

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CAPÍTULOIV

EXPLICAÇÕESEINTERPRETAÇÕES

I.ExplicaraGrandeDepressão:buscadoGraaletestedeRorschach

A crise de 1929 já está longe de nós. Com a distância histórica e osprogressosdoconhecimentoestatísticoeeconômico,somosnaturalmentelevados a pensar que deveríamos cada vez mais entender suas causasprofundas.Masissosóaconteceemparte.Alistadeexperiênciasmaisoumenos comparáveis a ela certamente aumentou, e as informações eanálises de que dispomos hoje em dia não têm similares nas utilizadaspelos seus contemporâneos. Multiplicação e validação de dadosestatísticos, surgimento da macroeconomia como disciplina autônoma,gerações sucessiva de modelos, simulações... Essas contribuições, noentanto, não cessam os debates. Ben Bernanke, economista americanopresidente do Federal Reserve System desde 2006, que antes dedicarainúmeros trabalhos à questão, chegou a falar em 1994 numa “busca doGraal”,pontuadaporavançosporémsemprereiniciada.Defato,cadaépocaprojetanoacontecimentosuasurgênciasesuasvivências.Umdosquemaiscontribuiu recentemente para a discussão, Barry Eichengreen, viu naexplicação de 1929 o Teste de Rorschach da macroeconomia: como asmanchassimétricasqueospsicólogosmostramaseuspacientesa fimdeidentificar suas preocupações, os trabalhos explicativos ilustram asprioridades e tensões de cada época. Todavia, uma lenta progressão éconstatada. Baseados numa releitura apurada e consolidada dosencadeamentos,osdebatesdesteiníciodeséculonãofizeramdesapareceras divergências sobre as causas últimas, mas as reformularam em largaescala.

Simplificando, podemos dizer que a Grande Depressão implica duasanálisesopostas,dependendodaestabilidadeatribuídaounãoaosistemacapitalista.Defato,sepostulamosaestabilidade,entãoosacontecimentos,em seu trágico alcance, impõem a análise dos erros ou encadeamentosacidentais que se combinaram para transformar uma recessão demédioalcance numa catástrofe mundial. Por outro lado, se considerarmos ocapitalismoumsistemainstável,nossatendênciaseráevidenciarojogode

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mecanismos profundos que tornavam inevitáveis se não a totalidade dosacontecimentos,pelomenosafalênciadaordemliberaleorecursoaoquechamamos de “capitalismo sob vigilância”. As múltiplas posiçõesintermediárias podem ser definidas em relação a esses dois extremos eapresentamdiferentesmodalidadesaolongodotempo.

Situaremosprimeiroacrisede1929numaperspectivadelongoprazopara depois isolar três gerações sucessivas de contribuições explicativas.Depois dos primeiros debates, no calor do momento, o período deexpansão duradoura e inflacionista que se seguiu à Segunda GuerraMundial conduziu a uma primeira série de reavaliações; esta é depoissuplantada por uma segunda série de trabalhos, dominados pelaspreocupaçõesresultantesdaglobalizaçãoedafinanciarização.

II.Oanode1929nalongahistóriadecrashesecrisesO distanciamento cronológico permite umamelhor compreensão dos

traços únicos da Grande Crise. Estes não são nem o alcance nem aprecipitação da derrocada da Bolsa. Ocrash de Nova York em 1987, porexemplo,foicomparávelaode1929.Contudo,foirapidamentereabsorvidoenãofoiseguidopornenhumcolapsodaatividadeeconômicanosEstadosUnidos.Damesmaforma,aexplosãodaBolhadaNasdaq11,entre2000e2002,provocouum“crashporpatamares”ebaixouascotaçõesdasbolsasocidentais de 50% a 80% sem que a recessão mundial consecutivadegenerasseemrecessãoduradoura.

É antes a década 1929-1939, com o alcance de seus encadeamentosdeflacionistas e as dificuldades de recuperação depois de atingido omínimo,quepareceespecífica.Duascomparaçõespermitemcolocá-laemseu devido lugar. A primeira, por muito tempo negligenciada peloshistoriadores,colocaemcenaaoutraGrandeDepressão12,queocorreunofim do século XIX.Mais de vinte anos demarasmo econômico, pontuadopor falências e crashes na Europa e nos Estados Unidos, não haviamcolocado em questão a existência do padrão-ouro. Seguiram-se ocrescimento rápido dos “anos loucos” e uma primeira globalizaçãofinanceira, num contexto de grande estabilidade das taxas de juros e defortevariaçãocíclicadospreçosedaatividade.Acrisede1929éassimaprimeiraaprovocarumarupturadetrajetóriaemescalamundial.

OsegundopontoaparecenocontrasteentreocapitalismoresultantedaconferênciadeBrettonWoods(1944)eaexpansãoemtodasasdireçõesdocapitalismofinanceiroqueseafirmadepoisdosanos1980.Deumlado,em

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grande parte como reação à Grande Crise, trata-se de um capitalismocontroladoedominadoporumúnicopaís,osEstadosUnidos.Asatividadesdos bancos de depósitos e bancos de negócios são claramente distintas.Umaépocadecrescimentorápidoeconstantepareceiniciar.Opadrãodecâmbio-ouro é na verdade um padrão dólar, que coloca um fim àbipolarizaçãodoentre-guerraseàdisputaentreodólarealibraesterlina.Astaxasdecâmbiofixasestabilizamastrocasinternacionaiseainfluênciados Estados nacionais se afirma, enquanto as pressões inflacionistasconstituemoprincipalmotivodepreocupação.Masesseperíodoébreve.Os desequilíbrios financeiros aliados à expansão das empresasmultinacionaisconduzem,apartirdosanos1970,aoabandonodosistemadeBrettonWoods e a umaumentoda desregulamentação, bem comodaautonomizaçãodosmercadosfinanceirosmundiais.OtodoconvergiuparaoenfraquecimentodoscontrolesexercidospelosEstados-Nação.Resultamdissodiversasaceleraçõesecrisesqueevocamdiretamenteocontextodosanos 1920 e 1930. A crise da dívida na América Latina durante os anos1980, a crise da demanda naÁsia a partir de 1997 e a Bolha daNasdaqentre2000e2002permitemagoraquefalemosglobalmentede“desordensno capitalismo mundial”.13 A Ásia passa para o primeiro plano, com aemergênciadaÍndiaedaChina(estaconheceentre1990e2005umataxadecrescimentomédiade10%).AlongacrisedoJapãoentre1990eoiníciodos anos 2000 faz ressurgir, por sua vez, comportamentos esquecidosdesde os anos 1930, em especial a impotência diante de uma deflaçãoprolongada.Apesardazonadeestabilidadeconstituídapeloeuroapartirde1999,aapatiadosgrandespaíseseuropeuscontrastacomodinamismodos EstadosUnidos.Mais dois traços aproximam as evoluções atuais e oentre-guerras: a passagem progressiva a um contexto deflacionista e oretorno a uma situação monetária multipolar (emergência do euro e doyuan chinês). Espelho da globalização desastrada que conjugainterdependênciaestreitaefragmentação,acrisede1929pareceadquirirsingularatualidadenesteiníciodemilênio.

III.Osprimeirosdebates

1. O excesso de explicações em 1929 diante de uma crise

excepcional

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Duranteosanos1920,haviaumcampointeirodeinvestigaçõessobreociclo econômico. Inúmeros tipos de ciclos eram discriminados, comamplitudesmuitovariadas,quesesuperpunhamunsaosoutrosepareciamcaracterísticos da era industrial: o ciclo de 8-10 anos, chamado Juglar,enquadrado de certa forma por ciclos menores de 2-4 anos, chamadosKitchin, e ciclos maiores de 25-50 anos, chamados Kondratieff. Como asregularidades constatadas, dos preços e da atividade, com altas e baixas,eram muito relativas, essas construções sempre foram controvertidas, etoda uma escola de pensamento via nelas a resultante de fenômenosaleatórios,apesardemuitoshistoriadoressereferiremaelasatéhoje.

Paramencionarapenasasteoriasmaisfamosas,podemosnosreferiraoagrupamentofeitoporG.Haberler14numaapresentaçãosintéticaem1936– portanto, bem no momento em que era publicada a obra maior deKeynes, a Teoria geral do emprego, juro e moeda. Cinco grupos sãoespecificados: as teorias monetárias puras (Hawtrey); as teorias doinvestimento em excesso em suas três versões principais – versãomonetária (Wicksell, Hayek), versão não-monetária (Marx, Tugan-Baranowski,Cassel...),versãodo“princípiodedesaceleração”(Aftalion,J.M.Clark,Kuznetz,Harrod...); as teoriasde subconsumo, cujos ancestrais sãoMalthus e Sismondi e cujos partidários do século XX se centram seja nopoupar excessivo (Hobson, Foster e Catchings), seja num atraso dossalários em relação à produtividade (Lederer); as teorias psicológicas(Keynes antes da Teoria geral, Taussig...); por fim, as teorias queprivilegiamainfluênciadosciclosagrícolas(W.S.JevonseH.S.Jevons,H.L.Moore...).Aindaassim,essaenumeraçãonãolevaemconta,porexemplo,asnuançasinternasdopensamentomarxista.

Essas diversas argumentações muitas vezes são complementares.Contudo,nãodeixavamdeterconcorrentesnosanos1920:umainfluentecorrente de pensamento ortodoxo e liberal era adepta de minimizar oalcanceeinsistirnaeficáciareequilibrantedosmercados.

A confrontação dessas diversas teorias com o acontecimento logo serevelabastantedifícil,poisoalcancedaderrocadacolocavaumasériedeproblemas específicos – as teorias catastróficas que previam essasconvulsões precisavam explicar por que elas haviam ocorrido em 1929,enquanto as teorias que postulavam o retorno de ciclos precisavamexplicar a violência e a generalizaçãodaGrandeDepressão.Nãobastava,portanto,aplicar uma teoria das crises; era preciso adaptar a busca porcausasàescalaeaocalendáriodoabalo.

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Este tinha, além do tamanho, inúmeros traços característicos, sendodois bastante problemáticos. Primeiro, o boom dos anos 1925-1929 nãofora acompanhado por uma alta dos preços e, pelo contrário, a baixaconstatada de 1929 a 1932 havia sido iniciada em 1925-1926. Segundo,haviaumaausênciaderespostasdosagenteseconômicos,tantoduranteafase descendente do ciclo quanto durante sua estabilização a um nívelmuito baixo (a depressão propriamente dita), aos estímulos monetáriosdecorrentesdeumataxadedescontomantidamuitasvezesmuitobaixa(1ou1,5%).

Noentanto,abuscaportraçossimilaresounão-similares logoperdeusuaimportâncianodesastrecoma“polarização”dodebate.

2.AoposiçãoentreL.RobbinseE.Varga

O famoso livro do economista inglês Lionel Robbins, The GreatDepression, 1929-1934, ilustra à perfeição a opção liberal. Ele atribui agravidade da crise sucessivamente à rigidez e às instabilidades do pós-guerra e àspolíticas errôneas seguidaspara seoporemauma liquidaçãojulgada inevitável. A ortodoxia retrospectiva o fez condenar todas astendênciasherdadasdaeconomiadeguerraque impedemo livre jogodeforças do mercado, bem como o aumento dos controles e acordosrelacionados à determinação dos salários (sindicatos, negociaçõescoletivas).Eletambémdágrandeimportânciaàsdesordensdosanos1920,principalmentenoâmbitofinanceiroemonetário,queconheceuinovaçõesperigosas (crédito ao consumo). Porém, a argumentação mais notávelderiva de umaortodoxia prospectiva: Lionel Robbins considera que todaaçãoquevisaaatenuarocursodacrise,afortioritodaação contracíclica,sópodeagravarascoisas.Elecondenatantoodirigismodospreçosedasquantidades quanto os estímulos artificiais da conjuntura. Por isso suavisãoparadoxalecontrovertidadaevoluçãodospreçosentre1926e1929:eleaconsidera...inflacionista,jáqueospreçosbaixaramapenasdeleveoupermaneceram estáveis, principalmente nos Estados Unidos, enquantodeveriamterbaixadocommaiornitidez.Eleatribuiessainérciaaoinchaçomonetáriodecorrentedeumapolíticadeopenmarket permissivodemais.Por outro lado, os esforços de rigor orçamentário depois de 1929 lheparecemlógicosesadios.

Maisradicalmenteainda,umasériedeeconomistas–dentreosquaissedestacaofrancêsJacquesRueff–vêoobstáculoessencialdacriseresultar

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darecusadosassalariadosemaceitarasdiminuiçõesdesalário: segundoeles, essa rigidez perturba todos os mecanismos comerciais que sófuncionameficazmentecomgrandeflexibilidadedepreços, inclusiveodotrabalho.A conclusãodessaposiçãoéo famosoconceitode “desempregovoluntário”: resultante dos progressos sindicais, o desemprego crônicoseriaapenasaconseqüênciaperversa,nomercadodetrabalho,dobloqueiodos reajustes através dos preços (a taxa de salário); seria, portanto,procurado,mesmo se não fosse previsto, pelas organizações e exigênciasoperárias. Por isso as prescrições deflacionistas. À disciplina pública derestrições orçamentárias precisam corresponder baixas de salário,eventualmente autoritárias. A legitimação imediata dessa análise ébastantedifícil.Querossaláriossubamoubaixem,podemossempredizerqueelessubiramdemaisouquenãobaixaramosuficiente.Atesenãotem,portanto,limitesacolocarquantoasuasprescriçõesanti-sociais,oquefazconvergiremdemaneiraarroganteodoutrinárioeoarbitrário.

No extremo oposto, outro texto é fundamental: La crise économique,sociale, politique do economista marxista Eugène Varga, perito doKomintern, também escrito em 1934. Ele distingue duas dimensões nosacontecimentos: há uma crise cíclica “especial”, que ocorre tendo comofundo uma crise generalizada do capitalismo. A primeira é analisadasegundoosprincípiosclássicosdeacumulaçãoexcessivaedetendênciaàqueda da taxa de lucro. A segunda se revela ao mesmo tempo namonopolizaçãoenaglobalizaçãodasrelaçõescapitalistasenaemergênciadosocialismosoviéticoemconstrução.Elemapeianovoselementos: seadepressão crônica agrícola dos anos 1920 temum aspecto arcaico (afetaacimadetudoprodutoresautônomos,enãoempresasdetipocapitalista),ela revela uma desagregação do mundo camponês; simetricamente, aextensãodocréditoedocapitalfinanceiromanifestaamaturidadedeumsistema cada vez mais polarizado, no qual as operações monetárias seajustam perfeitamente às decisões de produção,mas com conseqüênciascadavezmaisinstáveiseviolentas.Nesseponto,eemoutros,aanálisedeVargaseopõeàtesesocial-democratadeHilferding,quecolocavaocapitalfinanceirocomofatorestabilizadornocapitalismoevoluído.

A argumentação se une então paradoxalmente à de Lionel Robbins,porém, numa perspectiva oposta: as tentativas estatais para evitar asruínasbancáriaseregularizaraproduçãolheparecemdotipoaretardareagravaracrise.Éprecisomencionaraquiopessimismoreinanteem1934.Noentanto,Vargadesejaa “maturaçãoaceleradadacriserevolucionária”assinalando – e aqui há uma tomada de posição política – que a

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humanidade entra a partir de 1933 numa “depressão de tipo especial”,visãoestagnacionistamuitasvezespropostanaépocaeaquideacordocomainversãoestratégicaconduzidaporStálin:adiamentodarevoluçãofinalealiança frentista com partidos burgueses. Certa confusão transparece nousodapalavra“especial”,remetendo,nomínimo,aespecificaçõesfuturas.

Essas duas interpretações radicais parecem, retrospectivamente,esmagadaspelasquestõespolíticasdosanos1930.Paraalémdessedilema,encontramosdiversasexplicaçõesparciaisouincompletas–umadasmaisabertas,semdúvidaalguma,éadeF.Simiand15.Comummétodobaseadona observação sistemática, este se recusa a ver a crise de 1929 comoespecífica:elaseriaumadifícilguinadadeumafaseconstantedeexpansãoparaumafaseconstantededepressão;asalternânciasdessasfasesseriamcaracterísticas na História desde o Renascimento. Sem examinar aqui asexplicaçõesderradeirasdessasmovimentações(sociaisemonetárias,paraSimiand),diremosqueesseempirismomoderadoreintroduzumhorizontenodebate, sempostularuma “depressãode tipoespecial”nemrespostasexacerbadasdeumsistemaliberalcorrompido.Mastrata-sedeapenasumquadro de pesquisa pluridisciplinar. Outros autores logo tentaram fazergeneralizações,vendonacrisede1929asuperposiçãodeumaguinadanosmovimentosde longaduração (os ciclosKondratieff), deuma reviravoltanum ciclo decenal (Juglar) e de um ciclo menor (Kitchin). Explicaçãosedutoraàprimeiravista,maspuramenteformal,queenfatizademaneirabelaesimplesdemaisasconcomitânciascronológicas.

IV.Primeirareavaliação:oanode1929àluzdaprosperidadedopós-guerra(1945-1980)

1.Oimpulsokeynesiano

ApublicaçãodaTeoriageral,deKeynes,datade1936.Aolersuaobra,é

impossível não ficar surpreso: não há nenhum esforço sistemático deexplicação de 1929. O curto capítulo 22, intitulado “Notas sobre o cicloeconômico”, com menos de 20 páginas, se propõe simplesmente arelacionar os principais resultados do livro às teorias dos ciclos. Semesquecer as freqüentes e muitas vezes provocativas intervenções deKeynesduranteacrise,comoexperte jornalista,devemosconsiderarquesuacontribuiçãoexplicativaestáemgrandeparte implícitaeconsisteem

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transformaros termosdodebate– épor issoque, seguindoaobradeA.Barrère16,falaremosaquiemimpulsokeynesiano.Paidamacroeconomiamoderna, Keynes concebeu uma teoria econômica em grande parteinstrumentalquerenovaaapresentaçãodasrelaçõeseconômicas,evitandopensarpormercadosparapensarpor funções(investimento,consumo)eporcircuitos.

ElerecusaaLeideSay,postuladapelaeconomiaortodoxa–queafirmaque “toda oferta cria sua própria demanda” e, portanto, que nenhumasuperprodução constante é concebível num sistema de mercadosfuncionandosemperturbação,porquetodaproduçãoprovocaumfluxoderendimentos (salários, lucros) que permite seu escoamento –, não porconstatarasdificuldadescíclicas,masporobservarqueapoupançapodeconstituir uma “fuga” no circuito, pois adia uma despesa e nãonecessariamente é investida. Decorre disso o conceito-chave dokeynesianismo, o do equilíbrio do subemprego, que designa umaconfiguraçãoestáveldospreçosedasquantidadesdeumaeconomia,masqueéacompanhadopelodesemprego.Essa“revoluçãocopérnica”,segundoseu próprio autor, tem a vantagem de continuar a teorizar asinterdependências econômicas em termos de equilíbrio, mostrando aomesmo tempo como elas podem resultar em desequilíbrio contínuo nomercadodetrabalho(desempregocrônico,acimadetudo),oqueconcentraa teoriakeynesiananaprolongadadepressãobritânicadosanos1920ounaconjunturamundialde1932-1936.

A lógica da apresentação em termos de circuitomacroeconômico é arecusa do jogo de interdependências microeconômicas entre agentesindividuais,paraestabeleceraprimaziadosajustesglobaisemtermosdequantidades sobre os ajustes por preço, conforme ilustrado pela famosateoria elementar do multiplicador. Keynes retoma o mecanismoestabelecido por Kahn em 1931; porém, em vez de pensar em ondassucessivasdeempregodesencadeadasporumimpulsoinicial,elepensaemtermosdereceitanacionaledecrescimentodessamesmareceita.

O mecanismo pode funcionar de maneira inversa, e seria essa aexplicação das dificuldades enfrentadas pelo capitalismo moderno. Aspoupançasacumuladasnumasociedadericafavorecemuma“demandadeliquidez”, da moeda por ela mesma, que perturba o financiamento dosinvestimentos e faz prever uma demanda fraca. Quando os empresárioscomparamas rentabilidadesdosprojetosde infra-estrutura comas taxasde jurosqueestãoamplamente ligadas à “preferênciapela liquidez”, eles

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podemeventualmente renunciar a certos investimentos.A sociedade ricaentra então numa depressão cumulativa e crônica, sem perspectiva dereerguimentoalongoprazo.

Oesboçodessestemasmaioresdokeynesianismopermiteentendersuacontribuição: nele há uma síntese de diversas explicações parciais –encontramos o subconsumo, a saturação dos mercados bloqueadora dainstigaçãoparainvestir,ainfluênciaperturbadoradamoeda–,mastrata-sede uma síntese aberta e ativa, que repudia o determinismo e convoca àexperimentaçãosistemática.

AstomadasdeposiçãodeKeynesentre1920e1936contraadeflação,pela desvalorização, pela estimulação do poder de compra e contra opadrão-ouro não tiveramumpodermobilizador imediato, talvez por suainegável dimensão provocativa: o padrão-ouro é uma “relíquia bárbara”(1923);éprecisodenunciar,duranteas tentativasdeflacionistas inglesas,“o estado de histeria e perda de senso de responsabilidade no qual osmembrosdogabineteacabaramsecolocando”(1931);éprecisoestimularogasto,“ouentãovocês,donasdecasacheiasdepatriotismo,cheguemàsruas amanhã desde a primeira hora e visitem essesmaravilhosos saldosqueapublicidadeanunciaemtodaparte.Vocês farãobonsnegócios,poisnunca as coisas estiveram tão em conta, a um ponto que vocês nãopoderiam sonhar... E ofereçam, além do mercado, a alegria de dar maistrabalhoa seus compatriotas,deacrescentarà riquezadopaís colocandoemmarchaatividadesúteis...”(discursoradiofônico,1931).

A Teoria geral traz assim a justificativa a posteriori de uma políticaeconômicaativaesuacanalizaçãoemdireçãoaumapolíticaquantificadade intervenção conjuntural capaz de aproximar boa parte das correntesliberaisedospartidáriosdereformasprofundasdocapitalismo.Oobjetivoestatal passa a ser o pleno emprego, e a tarefa dos poderes públicos ésustentar uma situação constantemente próxima do boom, utilizandosobretudo três meios: primeiro, déficits orçamentários que injetamrecursos no circuito e reanimam diretamente a atividade; segundo, umapolíticadebaixataxadelucro,evitandoasrestriçõesmonetárias;porfim,uma política de redistribuição que privilegie o poder de compra dascamadasmenosfavorecidas,quetêmumaforte“propensãoparaconsumir”e poupam pouco – o que justifica os sacrifícios de proteção aosdesempregadosedeconstruçãodaPrevidênciaSocial.

Pouco importa, nessa perspectiva, o jogo exato das forças queconduziram à crise e sua extensão ao resto do mundo. Com ela,entendemosmelhorarelativadesenvolturadeKeynesapropósitodociclo

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econômico iniciado em 1920. Em grande parte virado para o futuro e aprevisão,oimpulsokeynesianodissolveaomesmotempoodeterminismodominanteem1930-1935eaurgênciadodebatecausal.

2.Oserrosdepolíticamonetária

AexplicaçãodeMiltonFriedmané formuladaemoposiçãodiretaàdeKeyneseseusdiscípulos.EscritacomAnnaSchwartz,suaMonetaryHistoryoftheUnitedStates(1963)contémumextensocapítulo7de129páginas,consideradoalém-Atlânticoumtextofundamentalsobreacrisede1929.17No entanto, a tese já havia sido formulada em 1944-1946, por ClarkWarburton,emalgunsartigosqueaHistóriamonetáriaenaltece.

Evidenciamos a insistência keynesiana sobre uma teorização daeconomiaemtermosdecircuito,justificadapelarigidezdecertospreçosacurto prazo. O monetarismo consiste em defender a opinião contrária,afirmando que a flexibilidade dos preços é suficiente quando não ficaentravada por intervenções públicas e que a análise em termos derendimentos deve ser complementada por uma análise em termos deriqueza, de patrimônio. Essas duas inversões restabelecem o fortepotencialdeestabilidadedosistemaeretomamumaanálisepormercados.Assim, todos os movimentos cumulativos apresentados na descrição dacriseounadescriçãodomultiplicadorsão,segundoessa linha,estudadosdemaneirabastante incompleta:quandoospreçosbaixam,ébomparaocomprador que dispõe de um poder de compra que pode repercutir emoutros setores da economia. O crash da Bolsa, por exemplo, arruína osvendedoresdeaçõeseenriqueceaquelesquecompramaobaixoníveldascotações.Comoatodovendedorcorrespondeumcomprador,umprocessoreequilibrante deveria iniciar a curto prazo. As recessões normalmentedevem ser reabsorvidas com rapidez. Por isso a insistência na políticamonetária:asintervençõesorçamentáriasoudirigistassãoenergicamentecondenadas por essa corrente de pensamento, que insiste na necessáriaregularidade da oferta de moeda, que é da competência dos poderespúblicosecontribuiparaaestabilidadedaexpansão.Trata-se,emgeral,deumaantipolítica,poiselaselimitaaformularumaregra,aestabelecerumabarreira às autoridades monetárias quando estas determinam, por suasintervenções de desconto e de open market, por exemplo, o estoque demoedadeumpaís.

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Conseqüentemente, o diagnóstico monetarista a propósito de 1929 éduro:apolíticaineptadoFederalReserveSystem,istoé,dosresponsáveispelapolíticamonetáriaamericana, transformouumasimplesrecessãoemcatástrofemundial.Essapolíticaconsistiuemnuncasocorrercomeficáciaos bancos americanos – e cada vezmenos àmedida que as dificuldadesaumentavam.De fato,a retraçãodamassamonetárianosEstadosUnidosde1929a1933foideumterço,asfixiandoosbancoseasempresas.Essaredução,únicanahistóriadosEstadosUnidos,é,segundoessesautores,aresultante trágicademecanismoscumulativos ligadosàbaixadospreços,mecanismos que teria sido fácil interromper com uma ação enérgica noopen market e com empréstimos audaciosos aos estabelecimentosfinanceirosemdificuldades.Apolíticamonetáriadosanos1920,que fora“ativa,vigorosa,confianteemsimesma”,éemtudoopostaàde1929-1933,quefoi“passiva,defensiva,hesitante”.

Por que essa política “inepta”? A explicação de Friedman e Schwartztemdoiscomponentes:certadissoluçãodasresponsabilidadesmonetárias,ligada, por sua vez, àmorte em1928deBenjamin Strong, presidente doFederal Reserve Bank de Nova York que exercia uma influênciadeterminante sobre o Federal Reserve System. Pequena causa, grandesefeitos: amorte de um homemna origem da extensãomundial da crise!Contudo, outros argumentos reforçam essa teoria, retomados pelosmonetaristas Brunner e Meltzer (1968): os responsáveis monetáriosamericanos estavam cientes de praticarem uma política permissiva, dedinheiro fácil,mantendomuito baixa a taxa de desconto, pelomenos atéoutubrode1931.Mesmodepoisdisso,ataxade3,5%pareceriamoderadaemrelaçãoàspressões sofridaspelodólar.Eles se concentram,portanto,nesse indicador e negligenciam a evolução catastrófica do acúmulo demoeda.

Aexistênciadeumapolíticamonetáriarestritivaatéoutubrode1931foi,noentanto,bastantecontroversanosEstadosUnidos:umlivrointeirodo historiador P. Temin foi dedicado a isso18e, por sua vez, foi alvo depolêmicas. O início de sua argumentação restaura o ponto de vistakeynesiano e consiste em dizer que a retração monetária foi provocadapelaretraçãodosrendimentos.

O complemento lógico da posição monetarista é encontrado nacondenaçãodamaiorpartedaspolíticasseguidasparasairdadepressão,emespecialadeF.D.Roosevelt, comexceçãodarestauraçãoedoreforçodasredesbancárias.Assim,quandoFriedmaneSchwartzexaminamoNew

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Deal, eles sugerem que o nível insolitamente baixo dos investimentosprivadosdepoisde1933sedeveacimadetudoàspolíticasseguidaspelonovo presidente, que reduzem os lucros e regulamentam as iniciativasindividuais. Chegamos portanto a um campo minado: o das explicações,monetaristas ou não, sobre o período de 1933-1939. Se uma melhora éconstatada, elapode sedever tantoà confiança recuperadaeà retomadadecorrentedasreformasquantoàpotenteestabilidadedaseconomiasdemercado.Simetricamente,acontinuidadedasdificuldadespodeterorigemtantonos entraves intervencionistasquantona falência liberal causadoradenovasreanimaçõeseinterferências...

HáumimportantedesacordoentreMiltonFriedmaneLionelRobbins,apesardagrandeconcordâncianabase.Esteúltimointerpretavaapolíticamonetáriaamericanade1925a1929emtermosdeinflaçãoeaprovavaasrestrições que se seguiram a ela. Existe entre os dois liberalismos adiferença entre um laisser-faire que admite – ou busca – flutuaçõesnominais(Robbins)eaafirmaçãodeumaestabilidadeaserimpostatantoaníveldepreçosquantonocrescimentodamassamonetária(Friedman).

3.Osincretismoneokeynesiano

Inúmerassãoaspesquisasque,longedefocalizaremexclusivamenteasrestrições monetárias americanas, integram-nas numa perspectiva maisampla, cessando com isso de conceder-lhes a preeminência e dando-lhesumpapel ativo de intensificação da crise. Se adotarmos o ponto de vistainternacional e reexaminarmos os mecanismos concretos observadosdurante os acontecimentos – se nos interessarmos diretamente pelaespecificidadedacrise–,éinevitáveljustapormossituaçõesdísparesenosinterrogarmossobresuasinterações.19Alémdomonismonãomaisconvir,as explicações, diferenciando desencadeamento e intensificação da crise,apóiam-se em disparidades em escala mundial e em constatações dedesequilíbrios não-compensados. O esgotamento dos empréstimosamericanos a partir de 1928 – tanto em relação à Europa devedora(Alemanha) quanto em relação aos países coloniais ou dominados,dependentes desse afluxo de capitais e sobretudo de sua constanterenovação–teriasidoumestopimdacrise,cujaorigemseriaamericanaecuja propagação teria sido rápida porque inúmeros países estavam emsituaçãoprecáriaouentravamemrecessão.

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Ahipóteseconsisteemdistinguirdiversosfocosdecrise,dosquaisumseria o dominante: o desmoronamento interno americano, iniciado antesdocrashdaBolsaereveladoporele,seriacausadoporumacombinaçãodedificuldades de escoamento em mercados importantes (moradia,automóveis) e início de restrições monetárias diante da especulação daBolsa.

A argumentação é feita, portanto, em três níveis: reviravolta cíclicainterna americana, transmissão à economiamundial e paralisia de certonúmerodepaísesvulneráveis.

A explicação é keynesiana quanto ao desencadeamento – por razõesqueaindaprecisamserelucidadas,areviravoltadaconjunturaamericanafoimarcadaporumareduçãoimediatadademanda–einsistenadimensãomonetária de sua intensificação. O enfraquecimento da demanda internaamericana não tem explicações simples para além das dificuldadesconstatadas em alguns mercados. Observa-se que a ausência total deproteção financeira aos desempregados abandonados a si mesmos, àsolidariedade familiar e à caridade privada no início dos acontecimentosexplica bastante bem a intensificação da situação; porém, a análise dodesencadeamentoemsimuitasvezesremetea temasdesubconsumoemduasversõesconvergentes.Podemosatacarosefeitosdeumadistribuiçãocadavezmaisdesigualdariqueza,queenfraqueceopotencialrelativodeconsumo popular; podemos também comparar a evolução daprodutividadeeadossalários,constatarseuafastamentocrescenteafavordos lucros, sublinhar a emergência das grandes empresas e cartéis, queperturba os ajustes nos mercados. Será preciso então explicar de quemaneiraessasevoluções,progressivaspornatureza,chegaramaumlimiarderuptura.

Mas teríamos chegado ao fim da cadeia causal? O historiador PeterFearon atribui a precariedade da posição econômica internacional à“loucura, ignorância e confiança excessiva”, enquanto o economista C.Kindleberger incrimina a “não-simetria” da economiamundial dominadapela potência e pela inexperiência americana. O que todos enfatizam é adimensãodeconcorrênciadeslealdoentre-guerras.

V.Segundareavaliação:oanode1929eanovaglobalizaçãofinanceira(1980-?)

Apartirdosanos1980,oabandonodosistemadeBrettonWoodseoaumentodarevanchedoscredoreslevouanovaspreocupaçõesligadasaosurgimento de um capitalismo financeiro com as mesmas instabilidades

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potenciais de seu predecessor dos anos 1920. Essa mudança radical decontextosechocoucomaevoluçãodaspreocupaçõesedasferramentasdeanálise econômica. A passagem ao primeiro plano dos processos deaquisição e de tratamento da informação, de previsão e de aprendizadorenovam o estudo das condições e dasmodalidades de coordenação dosagentes. Estes se encontram em posições muito diferentes no que dizrespeitoaseuspoderesesuasinformações.Apossibilidadedeequilíbriosmúltiplossetornaumcasonormaldeanálise,sejatratando-sedemercadosfinanceiros,sejademercadosdeprodutosoudotrabalho.Essesequilíbriossão eles mesmos, dependendo dos casos, mais ou menos estáveis erespondemmais oumenos eficazmente aosmúltiplos choques aos quaispodem ser submetidos. A exploração dessa complexidade aproxima umpoucoasdiversascorrentesdaeconomia,poisaestabilidadedosistemasetorna mais uma questão de grau do que de natureza. Contudo, ela nãoelimina as divergências, longe disso. Podemos de fato considerar comonormalebenéficaaascendênciadaglobalizaçãofinanceiraou,emsentidocontrário,acusá-laderiscomaior.Asimplicaçõesdaexplicaçãodacrisede1929sãoduplas.Primeiro,oscontrapesosàs finanças foraminsuficientesouexcessivos?Segundo,comocaracterizaroscanaiseriscosassociadosàsinterdependênciasmonetáriasefinanceiras?

1.Époucooudemais?Opapelda“institucionalizaçãodossalários”

Uma análise francesa original20, elaborada no fim dos anos 1970,interessadanoslimitesencontradospelocapitalismoresultantedeBrettonWoods, na confluência de diversas disciplinas – história, economia esociologia–eemdiversasopçõesteóricasquecombinamneomarxismoeelementos pós-keynesiaos, centrou-se no poder insuficiente dasinstituiçõesquerepresentavamosassalariadosduranteoentre-guerras.

Ela parte de duas oposições simétricas. Primeiro, entre mais-valiaabsolutaemais-valiarelativa–conceitosdeorigemmarxistaquedesignamas duas maneiras capitalistas de administrar o trabalho operário. Aprimeiraconsisteemdisponibilizar sobre-trabalho,prolongandoo tempodajornadadetrabalhoparaalémdoscustoscompensadospelareproduçãooperária. A segunda consiste, através de sacrifícios de produtividade, embaixarovalordaquiloqueénecessárioforneceraooperárioparaeleviver.Com isso, dentro de certos limites, o crescimento da mais-valia é

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compatível com uma melhora das condições da vida operária. Essa“dobradinha”éencontradanaorganizaçãosocialdotrabalho:deumlado,otaylorismo, racionalização do esforço operário com vistas a eliminar osperíodosdeinatividade,oqueequivaleaumprolongamentodotempodetrabalho;deoutro,o “fordismo”,baseadonabuscasistemáticadeganhosde produtividade nos bens de consumo de massa com tendência a umtrabalhocontínuosemi-automatizado(a“cadeia”).Conformeadominantetayloristaoufordista,tambémpodemosfalaremacumulaçãoextensivaouintensiva:aprimeirasedesenvolvepelageneralizaçãodoregimesalarialàscamadas não-assalariadas; a segunda se desenvolve de maneira interna,adaptandoentresiprocessosdeproduçãoedeconsumo.

A passagem de uma dominante à outra teria acontecido nos EstadosUnidos a partir de 1920; na Europa, fundamentalmente depois de 1945.Issocolocaemcausaacrisede1929.Masumasegundaoposiçãoapresentaa originalidade da análise que examinamos aqui e especifica o papel daGrande Depressão tanto quanto seu desencadeamento. Haveria,característicadocapitalismonoséculoXIX,uma“regulaçãoconcorrencial”emoposiçãoà“regulaçãomonopolista”moderna,vigentedesde1945.Ummododeregulaçãoédefinidopeloconjuntode formas institucionaisque,resultantes de uma dada configuração das estruturas econômicas e dasrelaçõessociaisfundamentais,conseguegarantirumaestabilidade,sempreparcial e provisória, do regime de acumulação em vigor. Trata-se de umconjunto de mecanismos, por exemplo, jurídicos e contratuais, quepermitem à sociedade funcionar conforme o grau de acumulação(extensiva ou intensiva) que a caracteriza. Assim, a produção de massatípicadaextraçãodamais-valiarelativasupõeumagrandeestabilidadedosmercados para que a padronização possa agir. Com isso, as convençõescoletivasquedeterminamossaláriosporsetoremfunçãodaprodutividadesão um dos elementos fundamentais da “regulamentação monopolista”,pois garantem que a evolução do poder de compra do operário sejacompatívelcomodesenvolvimentodaacumulação.

A crise de 1929 seria então explicada, em sua violência, pelosprogressos de acumulação intensiva e de inadaptabilidade de umaregulaçãoaindaemgrandeparteconcorrencial:haviaumatensaseparaçãoentre estrutura (econômica) e regulação (social). Os desempenhos daprodutividade industrial durante os anos 1920 foram quase semprebrilhantes. Mesmo levando em conta os reajustes decorrentes de 1914-1918eadesigualdadeentrepaíseseindústrias,ficaclaroquesurgiaumadivergênciaentreaevoluçãodossalários(emprogressãofracaeirregular)

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edaprodutividade.A “institucionalização”dos salários fora incompleta eestava atrasada em relação à História. Sem avançar numa interpretaçãodiretaemtermosdesuperprodução,aanáliseenfatizaadimensãoparcialepotencial e opõe as “pequenas crises” às “grandes crises”. As primeirasseriam características da regulação concorrencial e teriam algo deautomático em suas repetições ao longo do século XIX; em particular, oslimites impostos à criação monetária serviam de “amortecedor” durantecada período de expansão. As segundas, ao contrário, marcariam apassagem aleatória de uma regulação à outra, processo aberto, não-deterministanamedidaemqueestãoemcausa inúmerastransformaçõesem âmbitos muito diferentes uns dos outros. A crise de 1929 teria,portanto,conservadomuitostraçostípicosdascrisesperiódicasdoséculoXIX, mas teria revelado, em sua intensificação e depressão duradoura, aineficiência da “purga” tradicional, pois os mecanismos de retorno àexpansãonãofuncionavammaiseproduziaminclusiveefeitosinversosaosesperados. Por isso a penosa experimentação tateante, que permite ainstauraçãodeexpedientes ambíguos (o recuoprotecionista, a contençãode certasproduções, a retomadapelos armamentos) ede reorganizaçõesqueserevelariammaisduradouras(acentralizaçãodocontrolebancário,aPrevidênciaSocial,asconvençõescoletivas).Maisduradouras,porémnãoeternas:aquestãodopós-fordismomobilizou,nessaperspectiva,inúmerostrabalhos sobre o futuro do capitalismo sacudido pelos choquespetrolíficos.

O fim da regulação concorrencial supõe novas formas deenquadramentodasatividadescomerciaiseimplicaacrispaçãodeunsemrelação a regras de jogo inoperantes diante das iniciativas dirigistas deoutros.Acrisede1929foi,sobessepontodevista,umareviravoltaqueasterapêuticas keynesianas não conseguiriam impedir. Para compensar aqueda conjuntural nos Estados Unidos, teria sido necessário aceitar umdéficit estatal representando 50% do orçamento público! Semelhanteajusteseriaevidentementeimpensável.Oquenãoimpede,poroutrolado,considerarque,porcertotempo,aspropostaskeynesianasforampartedasolução pertinente, construída às apalpadelas e instaurada em 1945 emtornodahegemoniaamericana.

Uma perspectiva inversa, ao que parece estabelecidaindependentemente desses trabalhos, manifesta-se a partir de 1999,principalmentenosEstadosUnidos,mascomumaaplicaçãonaFrança:opoder dos assalariados,mesmo enfraquecido nos anos 1920, era de fatoexcessivodevidoàsvantagensobtidasduranteaPrimeiraGuerraMundial.

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Desde então, um equilíbrio corrompido teria se instalado entre práticascoletivas e centralizadas demais de negociações salariais e empresas detamanhosemprecrescenteedepoderdemonopólioexcessivo–equilíbrioestabelecidoemprejuízodosdesempregados.Essaperspectivapodeentãoexplicar por que o período pós-Segunda Guerra Mundial conheceu umcrescimentorápidocomsindicatosaindamaispoderosos.

2.Choqueseequilíbriosmúltiplos,riscodesistema

Essas explicações absolutamente reaisprecisam,noentanto, levar emconta os ajustes e as propagações monetárias e financeiras. O debateanteriorocorre, sobuma formabemmenos radical, entre autoresque seconcentramemumsegmentode instabilidadeedepropagação,pormaisamploqueseja,eaquelesqueinsistemnadimensãoglobaldainstabilidade.A idéia-chave é, portanto, a de equilíbrios múltiplos: as interações dosdiferentesatorespodemconduziradiversasconfiguraçõesdosmercados,estabelecidos em níveis muito diferentes, que podem se manter mesmoquandonãosãoconvenientesparaacoletividade.

Opontocontinuasendosaberporqueumareviravoltaconjunturalemlinhasgeraisbanallevouaumaderrocadamundial.Umasériedetrabalhosse centraram num culpado fundamental: o regime do padrão-ouro. Adominante do esquema explicativo é keynesiana: tudo começa com umagrandequedadepreçosedaproduçãonosEstadosUnidos,queviveumaquedadademanda.Opadrão-ourotemumduplopapelnatransmissãoenaintensificaçãodarecessão,primeiropelosobstáculosqueimpõetantoaosEstadosUnidosquantoaosdemaispaísese,segundo,pelamentalidadedosresponsáveis pela políticamonetária da época, desejosos de preservar aconfiançaatravésdadeflação.Esses “entravesdourados”, para retomaraexpressão utilizada por Barry Eichengreen21, levaram os governantes arecorrer a diminuições de salário e à redução dos déficits, reforçando asfalências e a desconfiança, o que conduz a medidas ainda maisdeflacionistas. No entanto, os países que conseguiram reimpulsionar aatividade no entre-guerras são aqueles que logo abandonaramo padrão-ouro.

Essa argumentação está baseada implicitamente nos mecanismostradicionais,noquedizrespeitoaodesencadeamentodacrise,esupõeumagrandepassividadedosoperadoresmonetários e financeirosnacionais.É

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por isso que, acima dessa propagação pouco contestada, o debate foiretomado em relação à dimensão financeira interna da Depressão. Ostrabalhos de Ben Bernanke22 e outros permitiram a ênfase no “choquemonetário” que desembocou num estrangulamento do crédito (creditcrunch), primeiro nos Estados Unidos, mas também nos demais paísesdesenvolvidos. A crise bancária coloca em atrito estabelecimentos decrédito fragilizados pela desconfiança de seus próprios credores edepositantes, o que os deixa mais reticentes a conceder empréstimos aempresas igualmente em dificuldades. A assimetria de informação passaentãoparaoprimeiroplano,oque,nocasodosistemabancárioamericanocujo caráter fragmentado analisamos, paralisou a economia.Nemmesmoasempresascomprojetosdeinvestimentosrentáveisestavamemposiçãodeobtercréditos.

Essasexplicaçõesconfirmamaretomadaeareformulaçãodeanálisesfeitas à época. Fechando o círculo no quadromundial atual, que retomaalgunstraçoscruciaisdosanos1920e1930,BarryEichengreensugeriunoiníciodosanos2000vermosaGrandeCrisecomo“umboomdecréditoquedeu errado”. Semelhante enfoque na pré-crise enfatiza a instabilidademonetária e financeirade todoo regimede crescimento. Ela recuperaostrabalhosque,nosanos1980,insistiramsobreaestabilidadeestruturaldaeconomiacapitalistamundial,especialmenteosdeHymanMinsky.23Essacorrente de pensamento é organizada em torno do conceito de riscosistêmico, do qual a crise de 1929 é umexemplo importante.Os pânicosbancários e o estrangulamento do crédito podem conduzir a reações emcadeia(efeitodominó);ouentãoaocorrênciasimultâneadevárioseventosdesestabilizadoresnãopermitequemaisdoqueumgruposeorganizepararesponder a eles. O risco sistêmico é, portanto, “a eventualidade de quesurjam estados econômicos nos quais as respostas racionais dos agentesindividuais aos riscos que eles percebem, longe de conduzirem a umamelhor divisão dos riscos por diversificação, levam à elevação dainsegurança geral”.24 Um triângulo então se esboça na macroeconomiafinanceira entre os riscos decorrentes da volatilidade das cotações daBolsa,dacrisedossistemasdepagamentoedosbloqueiosdocrédito.Seujogosimultâneolevaaorecuodeflacionistaeaocadaumporsi,ouseja,àexplosão.Umaassimetriaparticular,sobessepontodevista,caracterizouos anos 1920 e 1930: o padrão-ouro era de fato regulado peloBanco daInglaterra,instituiçãoenfraquecida,enquantooaumentodopoderdodólarnãoera levadoemconta.Essasituaçãoéreencontradano iníciodosanos

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2000.Um“semipadrão-ouro”coexistecomaemergênciadoeuroedoyuanchinês. Esse policentrismo monetário, aliado a outros desequilíbrios daeconomia mundial, define uma situação tão instável como a do entre-guerras.Agrandediferençaestánacapacidadedeajustepreventivodequeos bancos centrais dispõem nos grandes países. Ele se manifestou, porexemplo, após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, quandoinjeções maciças e imediatas de liquidez permitiram evitar adesorganizaçãodosistemadepagamentosnosEstadosUnidos.Masseráosuficienteparaservirdegarantiacontraqualquereventualidade?

11. A Bolsa Nasdaq, criada em 1971, popularizou-se por negociar ações de empresas de altatecnologia e das chamadas “pontocom”. Em 2001, com a supervalorização dessas ações, a bolhaestourou,ocasionandoofimdeinúmerasoperaçõesvirtuais.(N.E.)12. Para o caso da França, ver: BRETON, Yves; BRODER, Albert e LUTFALLA, Michel, La longuestagnation en France. L’autre Grande Dépression, 1873-1895. Economica, 1997. Para umaapresentaçãomais ampla e uma comparação com o entre-guerras, ver:MARCEL, Bruno e TAÏEB,Jacques,Lesgrandescrises,1873-1929-1973,7.ed.ArmandColin,2005.(N.A.)13.Cf.Désordresdans le capitalismemondial, assinadaporMichelAglietta eLaurenteBerrebi, Ed.OdileJacob,2007.(N.A.)14.Prospéritéetdépression,LigadasNações,1937.(N.A.)15.Lesfluctuationséconomiquesàlonguepériodeetlacrisemondiale.Paris:F.Alcan,1932.(N.A.)16.DELFAUD,P.,Keynesetlekeynésianisme.Paris:PUF,“Quesais-je?”(nº1686).Cf.,poroutrolado,os artigos reunidos em KEYNES, J.M., Essais sur la monnaie et l’économie. Paris: Payot, 1966, eBARRÈRE,A.,Théorieéconomiqueetimpulsionkeynésienne.Paris:Dalloz,1952.(N.A.)17. FRIEDMAN, Milton e SCHWARTZ, Anna,A Monetary History of The United States, 1867-1960.NBER,1963.(N.A.)18.TEMIN,P.,DidMonetaryForcescausetheGreatDepression?Norton,1976.(N.A.)19. É o que fazem, com muita similaridade, o economista C.P. Kindleberger em The World inDepression,1929-1939,PenguinPress,1973,eohistoriadorP.FearonemTheOriginsandNatureoftheGreatSlump,1929-1932,Macmillan,1979.(N.A.)20.AGLIETTA,M.,Régulationetcrisesducapitalisme.Calmann-Lévy,1976,eBOYER,R.,“Lessalairesenlonguepériode”.Économieetstatistique,nº103,1978.(N.A.)21.EICHENGREEN,B.,GoldenFetters.TheGoldStandardandtheGreatDepression,1919-1939.OxfordUniversityPress,1992.(N.A.)22.BERNANKE,B.,EssaysontheGreatDepression.PrincetonUniversityPress,2000.(N.A.)23.MINSKY,H.,Canithappenagain?EssaysonInstabilityandFinance.Sharpe,1982.(N.A.)24.M.Aglietta,Macroéconomiefinancière,t.2,LaDécouverte,2005,p.37.(N.A.)

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CONCLUSÃOViolenta e contrastante emseusdesdobramentos e resultados, a crise

de1929 fez omundoocidental conhecer umdeclínio comparável ao dosdois conflitos mundiais que lhe servem de moldura. Ao longo deacontecimentos convulsivos, foi a democracia ocidental que se viu emperigoequedepoissaiuvitoriosa.Éprecisoenfatizaroalcanceculturalepolítico do desmoronamento: apesar de soluções imediatas terem sidobuscadas no enclausuramento nacionalista e emmedidas antiprodutivas,não podemos conceber o crescimento pós-1945 sem os progressos dapressão popular e da proteção social. As negociações internacionais queresultamnodesarmamentoalfandegáriode1948sãoprópriasdeEstadosprofundamente envolvidos na gestão da conjuntura econômica nacional,poucopreocupadosemdeixarcorrersemcontrolesupostosautomatismosliberais, apesarde teremdesejado liberar as trocas externas.Noentanto,essemundodesfinanceirizadofoiefêmero.Asincertezasatuaislevamcadavez mais a um novo questionamento sobre a Grande Depressão. Umaprofunda marca psicológica restou desse período, mesmo nos paísesrelativamente poupados. Para além dessa dimensão afetiva, seria inútilficar tranqüilo, tanto quanto celebrar a “prosperidade” de 1945 a 1974comouma idade de ouro: o devir dramático do TerceiroMundo duranteesseperíodo,aconstânciadapobrezaedaexclusãoemplenaabundância,as destruições ecológicas muitas vezes irreversíveis precisam serlembradas.Neste iníciodemilênio,umafortecorrente internacional fazapromoção dos bens públicos mundiais, prioritária em escala planetária.Dois são diretamente resultantes da dura lição dos anos 1930: aestabilidade financeira internacional e a necessidade de uma governançadeempresa,ligandoapropriedadeeocontroledasempresas,paraalémdeseusacionários,aoconjuntodeatoresqueasfazemviver.