A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia
-
Upload
giovani-domingos -
Category
Documents
-
view
264 -
download
12
description
Transcript of A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia
Conselho Editorial da Série Filosofia
(Editor) Agemir BavarescoCláudio Gonçalves de Almeida
Draiton Gonzaga de SouzaEduardo Luft
Ernildo Jacob SteinFelipe Müller
Nythamar H. F. de Oliveira JuniorReinholdo Aloysio Ullmann
Ricardo Timm de SouzaRoberto Hofmeister Pich
Thadeu WeberUrbano Zilles
ChancelerDom Dadeus Grings
ReitorJoaquim Clotet
Vice-ReitorEvilázio Teixeira
Conselho Editorial
Ana Maria Lisboa de MelloArmando Luiz BortoliniBettina Steren dos SantosEduardo Campos PellandaElaine Turk FariaÉrico João HammesGilberto Keller de Andrade Helenita Rosa FrancoJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy – Presidente Jurandir Malerba Lauro Kopper FilhoLuciano KlöcknerMarília Costa Morosini Nuncia Maria S. de ConstantinoRenato Tetelbom Stein Ruth Maria Chittó Gauer
EDIPUCRSJerônimo Carlos Santos Braga – DiretorJorge Campos da Costa – Editor-Chefe
Série
Filosofia 41
Porto Alegre, 2012
Edmund Husserl
Introdução e tradução de Urbano Zilles
Quarta edição
© 1996 EDIPUCRS
1ª edição: 1996; 2ª edição: 2002; 3ª edição: 2008; 4ª edição: 2012
CAPA Giovani DomingosREVISÃO DE TEXTO Patrícia AragãoEDITORAÇÃO ELETRÔNICA Giovani Domingos e Jardson CorrêaPROJETO GRÁFICO Giovani Domingos e Jardson CorrêaIMPRESSÃO E ACABAMENTO
Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.
EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS
Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – BrasilFone/fax: (51) 3320 3711e-mail: [email protected] - www.pucrs.br/edipucrs.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
H972c Husserl, EdmundA crise da humanidade europeia e a filosofia / Edmund Husserl; introd. e trad. de Urbano Zilles. – 4. ed. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012.
96 p. – (Série Filosofia ; 41)
ISBN 978-85-397-0151-3
1. Filosofia. 2. Fenomenologia. 3. Filosofia Alemã. 4. Filósofos Alemães. I. Zilles, Urbano. II. Título. III. Série.
CDD 193
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................7
A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA COMO MÉTODO RADICAL ...11
1 DadosbiográficoseobradeHusserl .......................................................12
2 Oquecaracterizaafenomenologiahusserliana? ..................................15
3 Comochegaràsubjetividadetranscendental? ......................................18
3.1Ausênciadepressupostos ..................................................................19
3.2 Caráter a priori ..................................................................................20
3.3Evidênciaapodítica ............................................................................22
4 Aintencionalidadedaconsciência ..........................................................25
5 Redução ou epoqué ...................................................................................32
6 Aintersubjetividadetranscendental ......................................................34
7 Emqueconsisteométodofenomenológico? ...........................................36
8 Acrisedahumanidadeeuropeiaeafenomenologia .............................38
8.1Novaperspectivafenomenológica .....................................................41
8.2Lebensweltou“mundodavida” ........................................................44
8.3 A teleologia .........................................................................................50
8.4Aperspectivafilosófica ......................................................................52
9 Deuscomotélosdouniverso ...................................................................55
Conclusão .....................................................................................................57
Referências ...................................................................................................58
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA
E A FILOSOFIA ...........................................................................................61
7
INTRODUÇÃO
Etimologicamenteapalavrafenomenologia significa“ciên-cia”ou“teoria”dosfenômenos.
Otermofenomenologia, apartirdeseuétimo,tambémfoiusa-doemcontextonãofilosófico.OfilósofopositivistaErnstMach(1838-1916), predecessor do “Círculo de Viena”, postulou uma“fenomenologia física geral”. No século XX Pierre Teilhard deChardin(1881-1955)designadefenomenologia oestudodeumadialéticadanaturezacentradanohomem(Le phénomène humain), estabelecendoemtornodeleumaordemcoerenteentreosdiver-soselementosdouniverso.
Nafilosofia,antesdeHusserl,Lambertutilizouapalavra,noséculoXVIII,naquartapartedoNeuesOrganon(1764),queinti-tulou“fenomenologiaouteoriadaaparênciailusóriaasuasvarie-dades”,parafundamentarosaberempírico.NumacartaaMarcusHertz (25-2-1772),EmmanuelKantanunciaseupropósitodees-creverumaobrasobreoslimitesdarazãoedasensibilidade.Pre-tendia escrever uma “fenomenologia geral” como propedêutica àmetafísica,mostrandooslimitesentreomundosensíveleomundointeligível, propósito que realiza na “estética transcendental” daCríticadarazãopura(1781).
G.W. F. Hegel (1770-1831), na sua obraFenomenologia do espírito (1807), define a fenomenologia como “o saber da ex-periência que faz a consciência”.Mas hoje o sentido vigente é oelaboradoporE.HusserldesdeasLogische Untersuchungen (1900-1901)etrabalhosposteriores.Designafenômeno tudo que in-tencionalmente estápresenteà consciência, sendopara estaumasignificação.Oconjuntodassignificaçõeschamade“mun-do”.Portanto,afenomenologiahusserlianadeveserdistinguidadofenomenismo.
ComoHusserlchegouàfenomenologia?
8
URBANO ZILLES
Buscando na filosofia o fundamento para a matemática e alógica, nas Investigações Lógicas primeiro refuta o psicologis-mo. Desenvolve a fenomenologia como ciência fundamentadora,baseando-se na análise reflexa do conteúdo do ato de pen-sarenquantomanifestaarealidade(fenômeno).Paraencontrarofundamento,segundoele,éprecisocolocar-seacimadameraex-periência prática e despir-se de todos os preconceitos, orien-tando-seapenasporumaevidência apodítica, ouseja,destituídadetodaapossibilidadedoseucontraditório.Paraissodistingueaatitude transcendental da atitude natural. Estaúltimaéaque-laemqueespontaneamentevivemos,acreditandonaexistênciadomundoexterior.Característicadaatividadefilosóficaéaatitude transcendental na qual é evidente omundo enquanto consciente(transcendental).
A influência da fenomenologia de Husserl sobre pensadoresposterioresémarcante.Masseuinfluxoextrapolaocampodafi-losofiaestendendo-seaocampodaética,dapsicologia,dasociolo-gia,dodireito,etc.Entretantorestaumaspectofundamentalnãoesclarecido.Trata-sedofenômenoou“objetointencional”.Nãoexigiráesteneleimplicadastantoarealidadeexistencialdosujeitocognoscentecomoarealidadeexterior?
NestesentidoparecequeHusserldeuumpassoimportan-teemsuasúltimasobrasque,depoisde1930,giramemtornoda “crise dasciênciaseuropeiaseda fenomenologiatranscen-dental”.Nessafasecríticaoobjetivismo ou apretensãodeque“averdadedomundoapenasseencontranaquiloqueéenunciávelnosistemadeproposiçõesdaciênciaobjetiva”.NaKrisis Hus-serl indaga o porquê do fracasso das ciências, perguntando pelaorigemdessacrise,redescrevendoatrajetóriadarazãoocidentaleconstataqueasciênciasseafastaram,pelamatematizaçãodomundodavida,substituindo-opelanaturezaidealizada.Elabo-raumaontologiadomundodavidanoqualtentasuperaroantago-nismoentreoobjetivo-naturalistaeosubjetivo-transcendental
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
9
dopensamentomoderno.Enraízatantoaexplicaçãodasciênciasnaturaiscomoacompreensãodossaberesculturais,lutandocon-traaabsolutizaçãodoparadigmacientífico,queempobreceospro-blemashumanos.
Julgandoqueessafase,naobradeHusserl,éfecundaequeseustextosdessafaseaindanãoforamtraduzidosparaoportu-guês,sendonossosestudantesmuitasvezesprivadosdoacessoaosmesmos,nestetrabalho,depoisdeumaintroduçãogeralàfeno-menologiahusserliana,anexamosatraduçãodotextodesuapales-traproferidaem1935noKulturbund deVienanaversãomaisbrevecomofoipublicadaparPaulRicoeuremediçãobilíngue,em1977.Otextoalemão,noqualnosbaseamos,éoapresentadopeloDr.StephanStrasserdoArquivoHusserldeLovaina.
Foramascategoriasdomundo da vida e de horizonte que,ree-laboradas,aoqueparece,constituemaraizdafenomenologiadoDasein emM.Heidegger,nafenomenologiadapercepçãodeM.Merleau-Ponty,nopensamentodeH.G.Gadamer,J.HabermaseK.O.AppelenahermenêuticadeP.Ricoeur.Dessamaneirajul-gamoscontribuirparaquenossosestudantestenhamacessoaoquehádemaisricoevivonosvárioscaminhosdafilosofiacontemporânea.
Porto Alegre, 15 de março de 1996.
Urbano Zilles
11
A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA COMO MÉTODO RADICAL
Em 1938 faleceu Edmund Husserl (1859-1938), pai domovimentofenomenológicocontemporâneo.Afenomenologiahus-serlianaé,emprimeirolugar,umaatitude ou postura filosóficae, em segundo, ummovimento de ideias commétodo próprio,visandosempreorigorradicaldoconhecimento.
EdmundHusserlfoi,semdúvida,umdosfilósofosmaisfecun-dosdenossoséculo.Estafecundidademede-seporumaduplarazão.Primeiropelasuagigantescaproduçãofilosóficaepelaqua-lidadedegrandenúmerodepensadoresquetevecomodiscípulos.Emsegundolugar,destacou-secomoocriadordafenomenologia,sendoreconhecidocomoumdosgrandesclássicosdopensamentoocidental.
Husserl procurou descrever acuradamente o mundo comoaparece na consciência, em todos os seus aspectos, buscando in-saciavelmenterigorabsoluto,apaixonadopelaideiacartesianadafundamentaçãoradicaldafilosofiae,comela,detodasasciências.Perseguiuumarenovaçãoradicaldafilosofia,noseuconjunto.
URBANO ZILLES
12
URBANO ZILLES
1 DADOS BIOGRÁFICOS E OBRA DE HUSSERL
EdmundHusserlnasceuem1859emProsnitz (Moravia),defamília judia,mas indiferenteno campo religioso.Noperíodode1868-1876estudouemVienaeOlmutz.De1876-1878estudouMa-temática,FísicaeAstronomianaUniversidadedeLeipzig.Nope-ríodo de 1878-1881 prosseguiu seus estudos naUniversidadedeBerlim.Durante 1881 estudou naUniversidade deViena,períodonoqualtambémsededicouaoNovoTestamento.Em1883doutorou-seemVienacomateseSobre o cálculo das varia-ções. Aseguir, foinomeadoprofessorauxiliardeWeierstrass,emBerlim,tendoquesuspendersuasatividadespormotivosdesaúde.
Depoisderealizadooserviçomilitar,dedicou-seà leituradeAristóteleseàFenomenologia do Espírito deHegel.Noperíodode1884-1886frequentoucursosdeF.Brentano,emViena.Em1886batizou-senaIgrejaLuterana.Durante1886-1887,porreco-mendaçõesdeBrentano,preparousualivre-docênciacomC.Stum-pf,emHalle.
Noperíodode 1887a 1901 foi professornaUniversidadedeHalle,anosdodescobrimentodafenomenologia(Investigações ló-gicas). Em1901foinomeadoprofessornaUniversidadedeGottin-gen.Nesteperíodoamadureceuaelaboraçãodafenomenolo-gia (Ideias relativas a uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica). Em1916 foinomeadoprofessoremFreiburg,funçãoqueexerceuaté1929.Em1935fezsuapalestrasobre“afilosofianacrisedahumanidadeeuropeia”emViena;emno-vembrodomesmoanofalounaUniversidadedePragasobre“acrisedasciênciaseuropeiaseafenomenologia”.Morreuem27 de abril de 1938.
Os intérpretes costumam distinguir três etapas no pensa-mentodeHusserl,relacionadasatrêsdassuasprincipaisobras.Fala-se do Husserl das Investigações lógicas caracterizadasporum
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
13
logicismoessencialista;dasIdeias comooidealismotranscenden-tal;daCrise comovitalismohistoricista.
Em1938,comaameaçadestruidoradonazismo,ofranciscanoHermannLeo vanBreda transportou clandestinamente cercade40.000páginasdemanuscritosestenografados(emsuamaiorianataquigrafiadeGabelsberg)einéditosdeHusserlparaaUniversi-dadeCatólica de Lovaina (Bélgica), onde foi fundado oArquivo--Husserl,quepublicasuasobrasnacoleçãochamadaHusserliana eestudossobreafenomenologianacoleçãoPhaenomenologica. Atéfinsde1992forampublicadasasseguintesobrasnaHusserliana pelaeditoraMartinusNijhoff,Haia(Holanda)eemDordrecht:
1. Meditações cartesianas e Conferências de Paris;
2. A ideia da fenomenologia;
3. Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica I;
4. Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura II (1913);
5. Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura III;
6. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental;
7. Filosofia primeira I (1923-1924);
8. Filosofia primeira II (1923-1924);
9. Psicologia fenomenológica (1925);
10. Por uma fenomenologia da consciência do tempo ima-nente (1893-1917);
11. Análise de uma síntese passiva (1918-1926);
14
URBANO ZILLES
12. Filosofia da aritmética (1890-1901);
13. Sobre a fenomenologia da intersubjetividade I (textos de 1905-1920);
14. Sobre a fenomenologia da intersubjetividade II (1921-1928);
15. Sobre a fenomenologia da intersubjetividade III (1929-1935);
16. Coisa e espaço (1907);
17. Lógica formal e transcendental;
18. Investigações lógicas I;
19. Investigações lógicas II;
20. Investigações lógicas (volume complementar);
21. Estudos sobre aritmética e geometria (1886-1901);
22. Ensaios e recensões (1890-1910);
23. Fantasia, consciência imaginativa e recordação (1898-1925);
24. Introdução à lógica e à teoria do conhecimento (1906-1907);
25. Ensaios e conferências (1911-1921);
26. Lições sobre teoria da significação (1908);
27. Ensaios e conferências (1922-1937);
28. Lições sobre ética e teoria dos valores (1908-1914);
29. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (volume complementar) (1934-1937).
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
15
Husserlnuncafoinemseráumfilósofopopular.Suaobraédemuidifícilinterpretação.Entretantosuaatitudeeseumétodofenomenológicoimpuseram-seemamplasesferasdoconhecimen-to.Exerceu influêncianão só sobre as filosofias da existência(Heidegger, Sartre), mas também sobre o neotomismo e sobreafilosofiaemgeral,sobreodireito,asciênciasdalinguagem,comosobreaestática,asociologiaeapsicologia.Suacontribui-çãomaisimportanteconsistenaelaboraçãorigorosaesistemá-ticadométodo fenomenológico enadescriçãorigorosadaatitude fenomenológica.
2 O QUE CARACTERIZA A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA?
Apalavra“fenômeno”éantiganahistóriadafilosofiaoci-dental.Apalavra“fenomenologia”agrupaaspalavras“fenômeno”e“logos”,significandoetimologicamenteoestudoouaessênciado fenômeno.Por fenômeno,no sentido originário emaisamplo,entende-setudooqueaparece,quesemanifestaouserevela.Origi-nariamenteapalavra“fenômeno”refere-seaoqueexisteexterior-mente,ouseja,fenômenosfísicos.Primeiroosgregosusaramotermoparaamanifestaçãodosernumaíntimaunidadeentreosereoaparecer.Comotempopassouaentender-seporfenôme-no aaparênciaenganosa,opostaarealidade.AssimPlatãousao termoparadesignar omundo sensível, emoposição aomundointeligível.Nestaperspectiva,Protágorasjáafirmaquepodemosconheceroqueaparece,ofenômeno,masnãooqueestáatrásdele,oqueseoculta.EmborataldissociaçãoentreaparênciaesernãotenhasidoaceitaporAristóteles,nemporTomásdeAqui-no,passouavigorarnafilosofiamoderna,sobretudonofenome-nismodeD.Hume,paraquemofenômeno,únicoobjetodenossoconhecimento,estáseparadodacoisaemsi.
I.Kantcanonizoutalseparaçãoentreofenômeno e a coisa em si sem,todavia,indicarcomoéa“coisaemsi”queproduzofenôme-no.Esteéoqueaparececomoobjetodenossaexperiênciaemopo-
16
URBANO ZILLES
siçãoàcoisaemsi(noúmenon). AssimafenomenologiadeKantconcebeosercomoolimitedapretensãodofenômeno,permanecen-doopróprioserforadoalcancedarazãopura.Distinguindoentre“objetosdaexperiência”(fenômenos)e“coisasemsi”,transcenden-tes à experiência e incognoscíveis, contudoadmiteumpostuladometafísico,fazendocoincidirocampo-limitedoconhecimentocomoslimitesdaexperiêncianotempoenoespaço.Comopostuladoda“coisaemsi”quermostrarumarealidadeindependentedenossamente.Hegel,emsuaFenomenologia do Espírito, reabsorveofenô-menonoconhecimentosistemáticodoser.
ParecequefoiJ.H.Lambertquemusoupelaprimeiravezotermo“fenomenologia”emseuNovo Organon (1764)paradesignarateoriadailusãosobsuasdiferentesformas.Kantusaotermo“phaenonzenologiageneralis”numacartaaMarcusHertz (1772)paradesignaradisciplinapropedêuticaque,segundoele,deveprecederametafísica.ComHegel,atravésdaFenomenologia do Espírito (1807)otermoentroudefinitivamentenatradiçãofilo-sófica,tornando-sedeusocorrente.
KanteHegel, todavia,concebemdemaneiradiferenteasre-lações entre o fenômeno e o ser ou o absoluto. Como, paraHegel,é cognoscíveloabsoluto,estepodeserqualificadocomoEspíritoeafenomenologiaé,então,umafilosofiadoabsolutooudoEspírito.Cabeàfilosofiamostrarcomoesteestápresenteemcadamomentodaexperiênciahumana,sejaelareligiosa,estética,jurídica,políticaouprática.
Edmund Husserl considera inaceitável o postulado de queaquiloqueaparecenaexperiênciaatualnãoéaverdadeiracoisa.Deunovosignificadoà fenomenologia,encerrandoo fenômenono campo imanente da consciência.Husserl não nega a rela-ção do fenômeno com omundo exterior,mas prescinde dessarelação.Propõea “voltaàs coisasmesmas”, interessando-se pelopurofenômenotalcomosetornapresenteesemostraaconsciência.Sobesteaspecto,deuumsentidomaissubjetivoà
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
17
palavra fenômeno, elaborando uma fenomenologia que façaelamesmaasvezesdeontologia.Segundoele,ossentidosdoseredofenômenosãoinseparáveis.Afenomenologiahusserlianapre-tendeestudar,pois,nãopuramenteoser,nempuramentearepre-sentaçãoouaparênciadoser,masosertalcomoseapresentanopróprio fenômeno.E fenômenoé tudoaquilodequepodemosterconsciência,dequalquermodoqueseja.Fenomenologia,nosentidohusserliano, será, pois, o estudodos fenômenospuros, ou seja,umafenomenologiapura.
SegundoHusserl,fenomenologianãoésinônimodefenomenis-monosentidodequetudoqueexistesejaapenasumfenômenodaconsciência.Areflexãosobreosfenômenosdaconsciênciaé,entre-tanto, o ponto de partida para examinar os diferentes sentidosousignificadosdoseredoexistenteàluzdasfunçõesdacons-ciência.Atravésdestemétodopretendechegaraum fundamen-to certo e evidente do ser e de suas aparições. A tarefa dafenomenologiaé,pois,estudarasignificaçãodasvivências da consciência.
Husserlcolocou-secomotarefadetodaasuavida,aomenosapartirde1908,afundamentaçãoúltimadafilosofia,decisivaparaofuturo,naformadeumaciênciaderigor.Aparticularida-dedafilosofia,segundoele,estánofatodenãoserumadisciplinaespecífica entre outras, mas abrange “os problemas funda-mentaisemetódicosdetodasasciênciaspositivas”comociênciadosfundamentos.Portanto,arenovaçãodafilosofiatambémsignifica-ráumareorientaçãodetodasasciências.Essas,porsuavez,nãosão simples teorias logicamente estruturadas,mas desembocamemtécnicasepossuemumarelevânciadevidaaomenosindi-retanamedidaemquesãodestinadasacontribuiraobem-estareàfelicidadedohomematravésdamelhoriadaqualidadedevida.
Comofilósofos,segundoHusserl,devemosnosorientarparaomundointerior,quechamadetranscendental enquantochamaomundoexteriordetranscendente. Destemodoosertranscendente
18
URBANO ZILLES
éoserrealouempíricoenquantootranscendentaléoirrealouideal,masnãofictício.Propõe-seexplorarasriquezasdaconsciên-ciatranscendental,pois,segundoele,ofilósofonãoprecisarecorreraomundotranscendente.Cabe-lhebuscaraevidênciaapodíticaouindubitávelnasubjetividadetranscendentalatravésdadescriçãodos fenômenospuros.Sónavolta “àscoisasmesmas”ofilósofoencontraráarealidadedemaneiraplenamenteorigináriaecomevidênciaplena.Portanto,a fenomenologianãosepropõeestu-darpuramenteoser,nempuramentearepresentaçãodoser,masosertalcomoeenquantoseapresentaaconsciênciacomo“fenô-meno”.
A fenomenologia tempor vocação serprima philosophia e,porisso,aradicalidadedopensamentocartesiano.Ocaminhogenuíno da atividade filosófica é a reflexão. Parte do cogito e de suas cogitata, do eu, dasvivênciasdoego. Porissoométodofeno-menológico consiste no acesso ao campo da consciência parasubmetê-loàanálise.Ego cogito cogitatum é oesquemadoâmbitoda análise fenomenológica. Como todo cogitare se orienta paraalgo – intentio – na fenomenologia fala-sedeanálise intencionalcomoseumétodoprópriodeinvestigação.
3 COMO CHEGAR À SUBJETIVIDADE TRANSCENDENTAL?
Já nas investigações lógicas (Tomo 2, 1ª parte) Husserldizia: “Significações quenão fossemvivificadas senãopor in-tuições longínquas e imprecisas, inautênticas – se é que istoaconteceatravésdeintuiçõesquaisquer–nãonospuderamsatis-fazer.Nósqueremosvoltaràscoisasmesmas”.SegundoHusserl,odiscursofilosóficosempredevemantercontatocomaintuição. Do contrário redunda em conversa vazia.O retorno à intui-çãoorigináriaéafontedeverdadeiroconhecimento.Porissonãoconvémqueaimpulsãofilosóficapartadasfilosofiasfeitas,dasopiniõesdegrandespensadores,masdascoisasedosproblemas,tendoumpontodepartidaimediato.
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
19
SegundoHusserl,quandoumfatosenosapresentaàconsci-ência,juntamentecomelecaptamosumaessência(Wesen, ei-dos). Se,porexemplo,ouvimosdiferentessons,nelesreconhecemosalgodecomum,umaessência comum. Nofato,portanto,captamossempreumaessência.Asessênciassãoasmaneirascaracterísticasdoaparecerdosfenômenos.Nãosãoresultadosdeumaabstraçãooucomparaçãodeváriosfatos.Parapodercompararváriosfa-tossingulares, jáépreciso tercaptadoumaessência, ou seja,umaspecto pelo qual eles são semelhantes.O conhecimentodasessênciaséintuição, umaintuiçãodiferentedaquelaquenospermitecaptarfatossingulares.Asessênciassãoconceitos,istoé,objetosideaisquenospermitemdistinguireclassificarosfatos.
Afenomenologiapretendeserciênciadasessênciasenãodosfatos.Éciênciadeexperiência,quedescreveosuniversaisqueaconsciênciaintuiquandoselheapresentamosfenômenos.Ases-sênciasnãoexistemapenasnointeriordomundoperceptivo.Re-cordaçõesedesejostambémtêmasuaessência,apresentando-sedemodotípicoàconsciência.Assimasproposiçõeslógicasemate-máticassãojuízosuniversaisenecessáriosporquesãorelativosen-treessências.Pelareferênciaàsessênciasideais,afenomenologiapossibilitaoqueHusserlchamaas“ontologiasregionais”.Regiõessão anatureza, a sociedade, amoral e a religião.Estudar essasontologiasregionaisentãosignificacaptaredescreverasessênciasoumodalidades típicas comque os fenômenos sociais,morais oureligiososaparecemàconsciência.Husserlcontrapõeaessasonto-logiasregionaisaontologiaformaloualógica.
Parafundamentarumafilosofiacomociênciaderigor,SegundoHusserl,exigem-setrêscondições:a)ausência de pressupostos; b) caráter a priori; c)evidência apodítica.
3.1 AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS
Husserltentafilosofarapartirdosproblemasdavivênciadaconsciência,prescindindodomundoexterioroudoqueoutros
20
URBANO ZILLES
grandes pensadores já disseram, pois teorias podem ser nãosó uma ajuda, mas também um obstáculo para chegar “àscoisasmesmas”(fenômenos). Afenomenologiadeveserciênciadosfundamentos e das raízes, ou seja, uma ciência radical, umaciência dos fundamentos originários: “Não é das filoso-fiasquedevepartiroimpulsodeinvestigação,mas,sim,dascoi-sasedosproblemas”(A filosofia como ciência de rigor, p.72).EmAs ideias I escreveque“emnossasafirmaçõesfundamentaisnadapressuporemos,nemsequeroconceitodeFilosofia,eassimqueremos ir fazendo adiante.A epoqué filosófica, que nos pro-pusemospraticar,deveconsistir,formulando-oexpressamente,emnosabstermosporcompletodejulgaracercadasdoutrinasdequalquerfilosofiaanterioreemlevaracabotodasasnossasdescriçõesnoâmbitodestaabstenção”(§18).
Husserl constatouquenos congressos encontram-se os fi-lósofos,masnãoasfilosofias. Incansavelmente tentasubmeterafilosofiaaumarevoluçãocartesianaparalibertá-ladetodoopre-conceitopossívelefazerdelaumaciênciaverdadeiramenteautôno-maeradicalatravésdométodofenomenológico.Aúnicafontedoconhecimento,paraofenomenólogo,éaevidência quecaracterizaosdadosimanentesdaconsciência.
3.2 CARÁTER A PRIORI
Hádoiscamposdeexperiênciaouconhecimentoevidente:aex-periênciaouevidênciaempírica–intuição de fatos individuais –,queservedebaseparaasciênciasempíricasoudosfatos,eaevi-dênciaintelectual–intuição eidética – queservedebaseparaasciênciaseidéticas.Comoaintuiçãoempíricadoindividualéumdar-sedoobjetoindividualoriginariamente,tambémaintuiçãoeidéticaéumdar-sedoeidos ouessência–objetouniversal.
Para tornar a filosofia ciência de rigor, ela não se deve fun-damentar em dados empíricos, ou seja, nos fatos,mas num
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
21
a priori universal.Husserl parte de idealidadesporque só essassãoválidas, independentemente da contingência dos fatos,paraconstituíremaprioridaderadicalparatodasasciências.Par-te das “coisas mesmas” (não dos fatos) como se apresentamem sua pureza a consciência. Segundo ele, a consciência, aoser estudadaemsuaestrutura imanente,mostra-se comoalgoqueultrapassaoplanoempíricoeemergecomocondiçãoa priori depossibilidadedopróprioconhecimento,ouseja,comoconsciên-cia transcendental. Cabe, então, à fenomenologia descrever aestrutura do fenômeno como fluxo imanente de vivências queconstituema consciência (estrutura constituinte).Enquantoa consciência transcendental constituiassignificaçõeséa priori depossibilidadesdeconhecimento.Nestaperspectiva,alógicatemcaráternormativoa priori enãodeveserconfundidacomopsico-logismo,poisaempiriaéincapazdefornecerascondiçõesdaapo-dicidade,condiçõesqueseencontramnumaregiãoa priori da puraidealidadedecaráteruniversal,necessárioenormativoquefundamentatodooverdadeiroconhecimento.Assimafenomenolo-giatorna-seelamesmaoa priori dasciências.
Opostuladoda fenomenologiaéqueo fenômeno sejaaomesmotempologos. Osentidodofenômenolheéimanenteepodeserpercebido.Emoutraspalavras,todofenômenotemumaessência,quenãosereduzaofato.Aintuiçãodaessênciadistin-gue-sedapercepçãodo fato,poiséavisãodosentido idealqueatribuímosaofatomaterialmentepercebidoquenospermiteiden-tificá-lo.Se,porexemplo,umacriançatrabalharsemcompasso,diráqueaformavagamenteoval,quedesenhouemseucaderno,éumcírculo.Aessênciapersistecomopurapossibilidade,comonecessidadequeseopõeaofato.Porissohátantasessênciasquan-tassignificaçõesnossoespíritoécapazdeproduzir.Asessênciasconstituemumaespéciedearmadurainteligíveldoser,tendosuaestruturaesuasleispróprias.Elassãoosentidoa priori no qual deve entrar todo omundo real ou possível. Assim pode-se obter
22
URBANO ZILLES
umacompreensãoa priori doser,independentementeWdaexpe-riênciaefetivaporquea intuiçãodeessênciaséa intuiçãodepossibilidadespuras.
Veremosque,nafasecaracterizadapelacrise, Husserl desen-volveafenomenologianãoapartirdoa priori eidético,nemformal--kantiano,masapartirdeuma priori concretomaterialoriginaria-mentevividoequenosédadopreviamenteatodaintervenção.Éo Lebensumwelt ou Lebenswelt enquantoconjuntoestruturaldaexperiênciaimediataefundamentoorigináriodosentido.
Emsíntese,a fenomenologianãopoderárecorreraqualquerresultadocientíficocomoumdadodisponível.NestesentidoHus-serl criticaKant por partir do fato das ciências positivas paradepoisformularaperguntapelapossibilidadedoconhecimento.Eparanãopressuporaquiloqueestáemquestãoretoma,contraKant, o espírito mais radical do cartesianismo, eliminando orecursoaqualquersaberjádado.EHusserlvaimaislonge,criti-candoDescartesporestabelecerumacontinuidadeentreodiscursofilosóficoeodiscursocientíficonaconcepçãodeumafilosofiaquedeveprocedermore geométrico. Paraquesejapreservadaaautono-miadafenomenologiafrenteàsciênciaséprecisoterconsciênciadequenãofaladosmesmosobjetossobreosquaisfalaaciência,nãoutilizaráseusresultadosnemseumétodo.
3.3 EVIDÊNCIA APODÍTICA
Emgeral entende-se por evidência um saber certo e indu-bitável.Entre osantigos, a evidência costuma ser consideradacomoumfatoobjetivo,comoomanifestar-sedeumobjetoqual-quercomotal.Significaoaparecimentodoqueéverdadeiramen-teeéporissotãomanifestoqueexcluiapossibilidadededúvidae,portanto,deerro.Aevidênciaéumcritériodeverdadeedecerteza.
Descartesafirma“nãoaceitarnuncaalgumacoisacomoverda-deiraanãoserqueelasereconheçaevidentementecomotal,isto
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
23
é,evitardiligentementeaprecipitaçãoeaprevenção;enãocom-preendernosprópriosjuízossenãooqueseapresentatãoclara e distintamente aopróprioespírito,quenãosetenhanenhumaoca-siãodepô-loemdúvida”(Discurso do Método,2ªparte).Descartesreduzaevidênciaàclareza e distinção deideias,vinculando-aàintuição.Paraele,evidênciaéaquilo“queeuperceboclaraedis-tintamente”.
Husserl trata muitas vezes da evidência. Nas investigações descreve-acomo“preenchimentodaintenção”(II,§39).Devolveu--lheocaráterobjetivoenquantodesignaomanifestar-sedeum“objeto”comotalàconsciência.Afirmaqueaevidênciasurgequandoháumaequaçãocompletaentreopensadoeo imediata-mentedado.
Husserladvertequeaevidêncianãopodeserconsiderada“umavozmísticaquenosgritadeummundomelhor:aquiestáaverdade”.Nas Investigações lógicas diz quehá evidência semprequehajaadequaçãocompletaentreointencionadoeodado,quandosedêumpreenchimento da intenção, i.é,aintençãorecebaaabsolutaplenitudedoconteúdo,aplenitudedopróprioobjeto.Estaevidêncianãoésimplesmenteadapercepção.Refe-re-seaalgoimediatamentedado,anterioratodaateoria,cons-truçãoouhipótese,situadoaoníveldavivênciafenomenológica.
Afenomenologiatorna-se“filosofiaprimeira”pelaautor--reflexãoradicale,porisso,universal.Naatitudeplenamen-te reflexa,ofilósofoobservaraas“coisas”nasuapurezaoriginale imediata, deixando-se orientar exclusivamente por elas.Nestaatitudedeevidenciaçãopoderádescreveroimediatamentedadoàconsciência:“Ofundamentalénãopassarporaltoqueaevi-dênciaéestaconsciênciaqueefetivamentevê,queapreende(o seu objeto) direta e adequadamente, que evidêncianadamaissignificaqueoadequadodar-seemsimesmo”(A ideia de fenomeno-logia, p.88).Poucomaisadianteconclui:“Comoempregodocon-ceitodeevidência,podemosagoradizertambém,porqueatemos,
24
URBANO ZILLES
queelanãoimplicaenigmaalgum;portanto,tambémnãooenigmadatranscendência;valeparanóscomoalgode inquestionáveldequenosépermitidodispor.Nãomenostemosevidência douni-versal;objectalidades e estados de coisas universais surgem--nos em autoapresentação e estão dados nomesmosentido,portanto,inquestionavelmente;eestãoautodadosadequadamentenosentidomaisrigoroso”(ibidem, p.90).
Paraconstruir,pois,umafilosofiacomociênciaderigorsópos-soadmitircomoválidosjuízoshauridosdaevidênciaapodítica.Talsópossoobtermediantevivênciasdaconsciênciaemqueascoisassemeapresentamporsimesmas.NasMeditações cartesianas esta-belececomoprimeiroprincípio:“Tomando,comofilósofo,meupontode partida, tenhopara ofimpresumidouma ciência verdadeira.Porisso,eunãopoderiaevidentementenemternemadmitircomoválido juízo algum, se eu não os tomar na evidência, isto é, emex-periênciasondeascoisaseosfatosemquestãomesãopresentes,elesmesmos”(§5º).
Semaevidência,segundoHusserl,nãopodemosfalardefun-damentação radical. Para isso não satisfaz qualquer evidência.Exige-seumaevidênciaapodítica,ouseja,comausênciatotaldedúvida.Ocaminhopara chegaraeste fundamento radicaldafilosofiaedaciênciaé,segundoHusserl,afenomenologiacomométododeevidenciação.
Parachegaraofenômenopuro,Husserlsuspendeojuízoemre-laçãoàexistênciadomundoexterior(transcendente).Descreveapenasomundocomoseapresentanaconsciência,ouseja,redu-zidoàconsciência.Talsuspensãooucolocaçãoentreparênteseschamouepoqué. Portanto,nãoduvidadaexistênciadomundoexterior,massimplesmenteopõe“entreparênteses”ouoidealizaouoreduzaofenômeno:aredução fenomenológica. Nofenômeno,porsuavez,procedeasucessivasreduçõesembuscadaessência:a redução eidética. Assimentendeafenomenologiacomoanálisedescritivadasvivênciasdaconsciênciadepuradasdeseusele-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
25
mentosempíricosparadescobrireapreenderasessênciasdi-retamentenaintuição.
Oefeitodaepoqué éareduçãoàesferatranscendental:asvi-vênciaspuras,aconsciênciapuracomseuscorrelatospuroseseueupuro.Odadoimediatoresultantedareduçãotranscendentaléavivênciapura,cujoselementosnoéticoenoemáticosãoobjetodaanálise intencional fenomenológica.Alcançadaaesferatranscen-dental,pelaepoqué, comodadodeevidênciaapodítica,o fenome-nólogoprocederáemsuatarefaespecífica,queconsistenaanálisedessaesferaedaquiloquenelaefetivamentesedá.
OidealismofenomenológicodeHusserlnãonegaaexistên-ciadomundoreal.Querdeixarclaroqueomundoésempreconteúdodemeusaber,conteúdodeexperiência,conteúdodemeupensar,emsíntese,conteúdodeminhaconsciência.Nestepontoaatitudefenomenológicasedistinguedaatitudenatural.
4 A INTENCIONALIDADE DA CONSCIÊNCIA
Aconsciência,segundoHusserl,éintencionalidade,ouseja,sóexistecomoconsciênciade algo. Aanálisedaconsciênciaabrangeadescriçãodetodososmodospossíveiscomoalguma“coisa”idealourealédadaimediatamenteàconsciência.Nessesentidotornou--secélebreolemahusserlianoda“voltaàscoisasmesmas”(Zu den Sachen selbst!). Entendepor“coisa”(Sache) nãoobjetosfísicos,masofenômenocomooimediatamentedadoàconsciência,istoé,comoseapresentaoumanifestaàconsciência.Trata-sedeprescindirdoempírico,depreconceitosepressupostos,dosingularedoaciden-tal,parachegaràsessênciasdadas,asquaissãooobjetointeligíveldofenômeno,captadonumavisãoimediatadaintuição.
Afenomenologiahusserlianaparte,pois,davivênciaime-diata da consciência: “Toda a vivência intelectiva e toda avivênciaemgeral,aoserlevadaacabo,podefazer-seobjetodeumpuroverecaptare,nestever,éumdadoabsoluto.Estádada
26
URBANO ZILLES
comoumente,comoumisto-aqui(Dies-da), decujaexistêncianãotemsentidoalgumduvidar”(A ideia da fenomenologia, p.55-56).
A fenomenologia propõe partir de uma situação sempressu-postosparaesclarecerascondiçõesdasquaisdependenossoconhe-cimento.Nasciênciasempíricasfazemostodotipodepressuposi-ções.O físico, p. ex., pressupõe a validade damatemática; omatemáticopressupõeavalidadedalógica,etc.Afenomenologianãopretendefazerpressuposiçõesquetenhamqueserjustifica-dasemoutrocampo.
Galileupossibilitouoconhecimentodomundoobjetivo,empre-gandoummétodoquesetornouomodeloderacionalidadenostem-posmodernos.Mas,segundoHusserl,aobjetivaçãodanatureza,obtidaporGalileu,não conduzao serdas coisase,assim,aobjetividades ideais. A natureza idealizada passou a substi-tuiranaturezapré-científica.Amatematizaçãodanaturezavio-lentouosernatural.DeacordocomHusserl,asciênciaspositivassãoingênuasenquantopré-fenomenológicascomoavidacotidianaéingênua.Viverconsisteemcomprometer-secomummundoquenosdáaexperiênciaatravésdopensar.Masviverétambémagirevalorar.Enquantotodaaciênciaé,decertaforma,umaciênciadosernomundo,“doserperdidonomundo”,sóafenomenolo-gia,atravésdaanáliseradicaldaintencionalidade,poderáseraciênciadasciências,justamentepor“perderomundo”atravésda redução fenomenológica para encontrá-lo pela análise daintencionalidadedaconsciência.Para issoéprecisopassardeuma atitude ingênua a uma atitude transcendental na qual aconsciênciaconstituiomundocomofenômenopuro.
NoséculoXIXhouveumaredescobertadadoutrinaclássicadaintencionalidadeporBrentano,HusserleM.Scheler.Esteconceito da escolásticamedieval, tanto da árabe comoda latina,baseia-senumaobservaçãodeAristótelesno livrodaMetafísica. Aodescreveroqueéumarelação,Aristótelesexemplificoucomo
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
27
saber.Todaideia,inclusiveamaissimples,começaporserumarelação entre um objeto enquanto tal e enquantonosso objeto.Masosabertemcomocaracterísticaqueumdeseuselementos,oobjeto,nãonecessariamentetemqueserreal;aideiaenquantonossa ideia,ouseja,porpartedosujeito.
Husserldesenvolveométododemostraçãodasestruturasim-plícitasdaexperiência,definindooconceitodeintencionalidadecomo:a)consciênciadealgo;b)consciênciadesimesmo.Apar-tirdeDescartesexplica-seoconhecimentocomorelaçãoentreduascoisas:acoisaqueestánaconsciência(ideia)eaqueestáfora.Aprimeiraéarepresentaçãodasegunda.Ora,Husserlaban-donaaideiaderepresentação,distinguindo,naconsciência,oatoqueconhece(noese), queaoconfigurarosdadososdotadesentido,eacoisaconhecida(noema). O“objeto”(noema) éintencional,ouseja, estápresentenaconsciênciasemserpartedela.Éesta“coisa”queinteressaàfenomenologia.
Husserl, em Ideias I, expõe um exemplo: “Nosso olhar,suponhamos,volta-secomumsentimentodeprazerparaumamacieira em flornum jardim...” (§88).Naatitude comumounatural,talpercepçãoconsisteemcolocarprimeiroaexistênciadamacieiranojardim,depoisemrelaçãoaessamacieirarealamacieirarepresentadanaconsciênciacorrespondenteàreal.Comoconsequênciahaveriaduasmacieiras:umanojardimeoutranaconsciência.ParaHusserl,ascoisasnãoacontecemassim.Recorrendoàanáliseintencional,nãopartimosdamaciei-ra em si, porquedelanada sabemos, nemdamacieira repre-sentada,porquetambémdelanadasabemos.Éprecisopartirdas“coisasmesmas”,istoé,damacieira-enquanto-percebida, ouseja,doatodepercepçãodamacieiranojardim,poisessaéavivênciaoriginária.Atravésdaepoqué sóatendemosapercepçãocomovivência,prescindindodesuasrelaçõesreais.Aúnica“coisa”quepermaneceéapercepçãoeopercebido,ovistoapartirdeumpontodevistaeidéticona“puraimanência”daconsciência
28
URBANO ZILLES
deminhasvivências.Avivênciadepercepção,fenomenologicamen-tereduzida,tambémépercepçãoda“macieiraemflor”,vivênciaquenelaconservatodososmatizescomqueapareciarealmente.Assima“macieiraemflor”,comoobjetodeminhavivênciadepercepção,éocorrelatointencionaldavivência,seuconteúdonoemático,re-sultante da noese, do ato de consciência, peloqual se reduzàunidadedesentidoamultiplicidadededadosdasensação(hylé). Enquanto a noese e a hylé sãoelementosdaprópriavivência,onoemaéseucorrelatointencionaloucomponenteintencional.
Aradicalidadeeauniversalidadedosaberfenomenológicosi-tua-se, pois, no plano da consciência, da subjetividade trans-cendental.Dadaabipolaridade imamente/intencionaldetodaavivência,distinguem-sedoismodoscorrelativosdainvestigaçãofenomenológica,emborade fatonãohajaseparaçãorealentreosmesmos:a)um,orientadoparaapura subjetividade (fenome-nologianoética)eb)outro,orientadoparaaquiloquepertenceàconstituição da objetividade para a subjetividade (fenomenologianoemática).
ParaHusserl,umacoisaéaindubitávelexistênciarealdomundo e outra coisa é compreender e fundamentar essa exis-tência.Omundoexistepara nós comoprodutointencional.Aúnicatarefaéfunçãodafenomenologiahusserlianaésalvarosentido destemundo,osentidoemqueestemundovaleparaqualquerho-memcomorealmenteexiste.Afenomenologiaé,pois,umatomadaradical da consciência do que é o homem em si mesmo. Des-temodo, o sentidodo oráculodélfico “conhece-tea timesmo”significa, antes de tudo, a penetração do homemdentro de simesmo.Talpenetraçãosóépossívelenquantoecapazdetercons-ciênciadealgo.NestesentidoconcluiasMeditações cartesianas comaideiadeS.Agostinho:“Noli foras ire, in te redi, in interiore hominis habitat veritas”.
Apartirdeumpontodevistaobjetivo,poder-se-iaperguntar seHusserlnãoreduzoseràprópriaconsciência,abrindo-seesta,
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
29
pelaintencionalidade,nãoaooutrocomoeraentendidaaintencio-nalidadenafilosofiamedieval,mas só a simesma.Neste casoa fenomenologia, no fundo, não passaria de autoconhecimento (Selbstauslegung), separandooserintencionaldoreal.Ouvolta, demaneirasutil,àideiadequeoconhecimentoérepresentação?
A intencionalidade husserliana corresponde à correlação consciência-mundo,sujeito-objeto,maisorigináriaqueosujeito ouoobjeto,poisessessósedefinemnessacorrelação.Aintencio-nalidadefenomenológicaévisada de consciência e produção de um sentido quepermiteperceberosfenômenoshumanosemseuteorvivido.
Husserldefiniuafenomenologiacomoateoriadosfenôme-nospuros,dosfenômenosdaconsciênciapura.Masoqueentendepor“consciência”?Dá,sobretudo,trêssentidos:a)aconsci-ênciacomoconjuntodetodasasvivências,ouseja,aconsci-ênciacomounidade;b)aconsciênciacomopercepçãointernadasvivências psíquicas, ou seja, o ser consciente; c) a consciênciacomovivênciaintencional.OúltimoéomaisimportanteeHus-serldedicou-lhelongocapítulojánasInvestigações lógicas. Para ele,aconsciênciaé“umacorrentedeexperiênciasvividas”,numrioheraclitiano,quesecolheasimesma.Porissoointeressamaisapercepçãoimanente,queéadocogito cartesiano,cujoobjetivosãoasexperiênciasvividas(recordar,imaginar,desejar,etc.),ouseja,o cogitatum, poistaisexperiênciassãodadasdiretamenteàcons-ciência,umavezque“apercepçãodaexperiênciavividaéavisãodiretadealgumacoisaquesedáouquepodedar-senapercepçãocomoabsoluta enãomaiscomoidentidadedasaparênciasqueaesfumam”(Ideias I,§44).
Enfim,aestruturadaconsciênciacomointencionalidadeéumadasgrandesdescobertasdeHusserl.Dizerque“aconsciênciaéintencional” significa: “toda a consciência é consciência de algo”.Portanto,aconsciêncianãoéumasubstância(alma),masumaatividadeconstituídaporatos (percepção, imaginação,volição,
30
URBANO ZILLES
paixão,etc.)comosquaisvisaalgo.Husserlvale-sedanoçãodeintencionalidadeparaesclareceranaturezadasexperiênciasvi-vidasdaconsciência.Aintencionalidadeédenaturezalógico-trans-cendental,significandoumapossibilidadequedefineomododeserdaconsciênciacomoumtranscender, comoodirigir-seàoutracoisaquenãoéopróprioatodeconsciência.
Distingueduasespéciesdeintencionalidade:a)umaintencio-nalidade temática, queéosaberdoobjetoesaberdestesabersobreobjeto;b)umaintencionalidade operante, queéavisadadoobjetoemato,aindanãorefletida.Aprimeiratentaalcançarasegunda,que a precede, semnunca consegui-lo.O saber conscientesóse exerce sobre este fundo de irreflexão nessa dimensão de vidaquejáésentidoporqueévisadadeobjeto,massentidoaindanãoformulado.
Eoqueéavivência(Erlebnis) daconsciência?Etudoqueen-contramos na consciência. As vivências intencionais orientamouimpulsionamosujeitoparaseuobjeto.Aintencionalidade“nadamaissignificaqueestaparticularidadequetemacons-ciênciadeserconsciênciadealgo,detrazer,emsuaqualidadede cogito, seu cogitatum emsimesmo”(Meditações cartesianas, §14).A intencionalidade“representaumacaracterísticaessen-cialdaesferadasexperiênciasvividasporquantotodasasexpe-riênciastêm,deumaformaoudeoutra,intencionalidade...Aintencionalidadeéaquiloquecaracterizaaconsciênciaemsentidograveeconcordanteemindicaracorrentedaexperiênciavividacomocorrentedeconsciênciaecomounidadedeconsci-ência”(Ideias § 84).
Por um lado, intencionalidade significa que a consciência sóexistecomoconsciênciadealgo.Poroutro,oobjetosópodeserdefi-nidoemsuarelaçãocomaconsciênciaporsersempreobjeto-para--um-sujeito.O “objeto” só tem sentido parauma consciênciaqueovisa.Assimasessênciasnãoexistemforadoatodeconsciên-cia.Nessesentido,afenomenologiahusserlianabuscaadescrição
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
31
dosatosintencionaisdaconsciênciaedosobjetosporelavisados,ouseja,pelaanálisenoético-noemática.
Seaconsciênciaéintencionalidade,sópodeseranalisadaemtermosdesentido.Eaquisentidoé,emprimeiro lugar,ossenti-dos;depoisdireção;enfim,significação.Aconsciêncianãoécoisa,maséaquiloquedásentidoàscoisas.Osentidonãoseconstataàmaneiradeumacoisa,masseinterpreta.Éaconsciênciain-tencionalquefazomundoaparecercomofenômeno,comosigni-ficação,pelofatodeserumcogitatum intencionadopelosujeito.
Podemos dizer que a filosofia grega, como a antiga emedie-val,voltam-separaosprincípiosobjetivosdomundo,numaidea-ção essencialmente eidética. Tais princípios eram concebidoscomoessênciassubsistentesemsieporsi.Ocristianismointroduzaconsciênciacomoinstânciafundamentale,afilosofiamoderna,refugiou-sereflexivamentenelae,apartirdela,vêomundoeseusprincípiosobjetivos.Husserlreassumeatensãoentreaeidé-ticadafilosofiaantigaeaconsciênciacristãnosentidofilosóficomedieval,numaatitudedeequilíbrio.Nafenomenologiaeidéticaassume a filosofia eidética antiga emedieval e, na fenomeno-logia transcendental, assume o idealismomoderno, ou seja, amoderna filosofia da consciência.Assim, a partir deHusserl,renascem, por um lado, o movimento da filosofia dos objetosideaisedosvaloresdafilosofiaantigaemedievale,poroutro,afilosofiadaexistênciadocristianismoedafilosofiamoderna.
A fenomenologiadeHusserlnãopretendeserummétodoousistemafilosóficodefinitivamenteestruturado.ComHeidegger,seualuno,podemosdizerque“compreenderafenomenologiaécaptarsuaspossibilidades”.Porissofecundoueaindafecundanovos domínios do conhecimento humano. A fenomenologiadescreveaessênciadohomemcomoquestãodesentido,comoserpresente,capazdeintegrarciênciaefilosofianomundocon-cretodavida,semdesconhecerqueatomadadeconsciênciacríticadarealidadeépressupostodesuatransformaçãohistórica.
32
URBANO ZILLES
5 REDUÇÃO OU EPOQUÉ
A intencionalidade conduz à redução, ou seja, à colocaçãoentreparêntesesdarealidadecomoaconcebeosensocomum.Husserlchamaaconcepçãodosensocomumdeatitude natural à qualopõeaatitude fenomenológica, segundoaqualomundoénadamaisdoqueoqueeleéparaaconsciência,ouseja,fenô-meno.Nãoéqueofilósofoduvidedascoisasexistentes,masaspõeentreparêntesesnãoasutilizando como fundamentode suafilosofia.Parafazerdafilosofiaumaciênciaderigordeveráfunda-mentar-seemalgoqueéindubitavelmenteevidente.Oproblemada epoqué não é a existência domundo,mas seu significado.Assim, ao contrário deDescartes, a relação fenomenológica deHusserldeixaoego cogito cogitatum, poisaúnica coisaqueéabsolutamenteevidenteéocogito comseuscogitata.
A fenomenologiapropõe-se como tarefaanalisarasvivênciasintencionaisdaconsciênciaparaaíperceberosentidodosfenôme-nos. O próprio da estrutura noético-noemática ou intencionaldaconsciênciaéfazer-medescobrir,naconsciênciaounosujeitoesomenteaí,umobjeto(fenômeno).Nocitadoexemplodamaciei-ra,amacieirarealpermanecenojardim,poisnãoétransplantadaparaosujeito.Naverdadeamacieirapercebidasóexisteenquantopercebida.
Naatitudenatural,aconsciênciaingênuavêoobjetocomoex-teriorereal.Naatitudefenomenológicaoobjetoéconstituídonaconsciência.Eafenomenologiatorna-seoestudodaconstitui-çãodomundona consciência.Constituir significa remontarpelaintuiçãoatéaorigem,naconsciência,dosentidodetudoqueéorigemabsoluta.Nãosóomundoéconstituído,recebeseusenti-donaconsciênciaounosujeito,masoprópriosujeitoseconstituipelareflexãosobresuaprópriavidairrefletida.Areduçãofeno-menológicafaz,assim,omundoaparecercomofenômeno.Emboraagênesedeseusentidosejaperceptívelnavivênciadaconsci-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
33
ência,nemtudoestáditosobreosentidodessavivência.Nafasedafenomenologiatranscendental,quevaidesdeIdeias diretrizes (1913)eculminanasMeditações cartesianas (1929),Husserlcolo-caoacentosobreosujeitoaoqualéprecisoligaraconsciêncianaqualseconstituitodoosentido.Avivênciadaconsciênciaéoúnico irredutível.Mas esta vivência é vividaporumsujeitoaoqualsereferemosobjetosdomundorealouidealedeondeadquiremsignificações.Estesujeitoconstitui-secontinuamenteeafenomenologiatorna-se“exegesedesipróprio”(Selbstaus-legung), ciênciadoeuouegologia. Essesujeitoéoeu transcen-dental, nãooeuempírico.
Paraalcançarasessênciaséprecisopurificaro fenômenodetudoquenãoéessencial,ouseja,éprecisoreduzir(reduçãoeidé-tica). A essência se definirá, segundo Husserl, pela análisemental comouma “consciência da impossibilidade”, ou seja,como aquilo que é impossível à consciência pensar de outromodo. Identifica-seeste invarianteatravésdasdiferenças,defi-nindoa essênciados objetos dessa espécie, ou seja, definindoaquilosemoqueseriaimpensável.EsteprocessoHusserlchamoude variação eidética. Aessênciaé,pois,osentidoidealdo“objeto”produzidopelaatividadedaconsciência.
Parachegaràfenomenologiatranscendentalpura,Husserlin-troduzaredução e a epoqué.Assimcolocaentreparêntesesaexis-tênciadomundo,nãoparaduvidardesuaexistência,massuspen-derapenasojuízoemrelaçãoaestaexistência.Aessasuspensãodejuízodesignou-acomotermoepoqué, jáusadopeloscéticospirônicos gregos para significar a suspensão ou abstençãodequalquer assentimento por não reconhecerem razões suficientesparaeliminaraincerteza.Husserlintroduzaepoqué comoinstru-mentodedepuraçãoparachegaraumradicalismoreflexonapro-curadasevidênciasapodíticas.Portanto,nãopretendeduvidardaexistênciadomundo,nemsuprimi-la.Quer,istosim,encararomundoapenassoboaspectodefenômeno,ouseja,comoseapre-
34
URBANO ZILLES
sentaàconsciência.Éareduçãoàconsciência.Comoaepoqué jásignificaredução, osdoistermossãoempregados,geralmente,pelopróprioHusserlcomoequivalentes.
Ofilósofodevebuscaraevidênciaapodítica:“Seaapreensãoreflexiva se dirige para aminha vivência, apreendo alguma coi-saemsimesmadecaráterabsoluto,cujaexistêncianãopode,emprincípio, sernegada;ouseja,é inteiramente impossívelverqueessacoisanãoé.Muitoemborasejaumaficçãoaquiloqueseapre-senta,aprópriaapresentação,aconsciênciaquefinge,nãopodeserfictícia”(IdeiasI,§46).Portanto,parachegaràevidênciaapodíticaéprecisocolocar“entreparênteses”tudoquemeéexterior:outraspessoaseopróprioDeus.Devemospartirdomundoreduzidoàsvivênciasdaconsciência.Adecisãodepraticaraepoqué resulta de umatolivre,inteiramentedependentedavontade.
Naconsciência,muitasvezes,asvivênciasseapresentamnasingularidadeconcreta.Refletindosobreessesfenômenossingula-res,possosujeitá-losaumasériedevariaçõesarbitráriasembuscadoinvarianteoudaessência.Destaformapraticoareduçãoei-dética.Surge,então,umfenômenonovo,umaessênciapurificada.
Seeuquiseratingiroterrenofirmedasevidênciasapodíticasdevoiralémdareduçãoeidética.Tereiquepôr“entreparênteses”aprópriaexistênciadoeuedosseusatos.Sóassimalcançareioeuabsoluto,oeutranscendentalecomeleoâmbitodaexperiênciagenuinamentefilosófica.Estaéareduçãotranscendental.Atravésdelachegamosaocontatoimediatocomas“coisas”quesenosapresentamnasuaevi-dênciaoriginárianaconsciência.Agoranãopossuímossimplesmenteomundo,masapenasaconsciênciadomundo.Ofilósofodeveráredu-zirsuaatençãoparaessenovomundoda“consciênciapura”.
6 A INTERSUBJETIVIDADE TRANSCENDENTAL
Setudooqueeupossoentendercomoverdadeirosernãoéoutracoisaqueumacontecimentointencionaldeminhaprópria
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
35
vidacognoscente,paraHusserl,issonãosignificaqueapercepçãosejaoúnicomododeconhecerarealidade.Existeoutromodoválidodeexperiência:aexperiênciamediata, ouseja,atravésdocorpoanimadoquetenhodooutro.AissochamadeEinfühlung. Oque seme apresenta através do corpo animado (Leib) é outra subjetividadequeéirredutívelameropolointencionaldaminhasubjetividade.Dessarte,oidealismotranscendentalsitua-senoplanodaintersubjetividadetranscendental.Assimareduçãofeno-menológicaconduzaduasestruturasuniversaisdavidareciproca-mentefundadas:aminhavidaeadooutro.
Husserldistingueentreminhaesferaorigináriaouprimordiale uma esfera primordial alheia, assunto que desenvolve na 5ªMeditaçãocartesianaeemmuitosoutrostextos.DizHusserlqueeusouparamim,etodooutroeuoéparamim,sujeitodesuapri-mordialidadeedasintracepções(Einfiihlungen) por elemotivadas.
EmboraHusserldistingaavidaimanentedopróprioeu,nelaencontra-seimplícitaaimanentevidados“outros”,semconfun-dir-secomaprópriaesferaprimordial.Háumarecíprocaaper-cepçãointersubjetivado“euedeseuoposto”(sein Gegenüber). O opostodoeutemqueseroutroeu.Aoego sópodeopor-se,propria-mente,umalter ego. Naexperiênciadomeuprópriocorporadicaaexperiênciaquetenhodecorposalheiose,porsuamediação,te-nhoexperiênciadasubjetividadealheia,deumasegundavidatranscendentaldistintadaminha.
Asíntesedacoexistênciamonadológicadetodososeu emre-cíprocaautoapercepçãoé,porsuavez,umasíntesequeconstituianatureza(omundo)comumparatodos.Eu,comomônadamodal-menteoriginária,tenhocomoválidomeuhorizontedeautoestra-nhamentos,deoutrasmônadas,constituídoeunelecomomônadasingular de um “nós”, como universo de equivalentesmônadasexistentes,queseimplicamrecíprocavalidadeesegundoumtotalsentidoontológico.Este“nós”éaintersubjetividadetranscendentalnaqualseconstituiomundocomvalidade“objetiva”paratodos.
36
URBANO ZILLES
Existe, assim, com fundamento na experiência transcendental,umapluralidadedeseresquesão“emsieparasi”equeparamimsósedãonomodode“outro”,comoalteridade.
Nas Meditações cartesianas Husserlafirma,no§56,aiden-tidadeentreintersubjetividadeecomunidadedemônadas.Par-tindodemimmesmocomomônadaoriginal(Urmonade), chegoaoutrosenquantosujeitospsicofísicos.Masnumacompenetra-çãointelectualdohorizonteoriginaldooutro,descubroqueapercepçãodenossoscorposeavivênciadaalteridadeérecípro-ca.Apartirdestavivênciadehomogêneaalteridaderecíprocaseconstituiacomunidadehumana,apercebendo-me,simultane-amente,deminhaprópriahumanidade.
Acomunidadehumananãoéfechada,masestáabertaàcomu-nidadeuniversalcósmica.Estaintersubjetividadetranscendentaloucomunidadeuniversaldemônadasapresentaasseguintesca-racterísticas: a) Constitui-se puramente emmim, no ego que medita;b)constitui-separamimapartirdeminhapuraintencio-nalidade; c)mas é tal que, ao constituir-se em cadamodifica-ção de outros, éamesma,apenasnummodosubjetivodediferenteapresentação;d) constitui-se,porsuavez,comoportadoraneces-sariamentedomesmomundoobjetivo;e)épropriedadeessencialdestemundotranscendentalconstituídoemmim,pornecessidadeeidética,adesertambémummundohumano;f)estáconstituídacommaioroumenorperfeiçãonainterioridadepsíquicadecadaumdoshomensemvivênciasintencionais,emsistemaspotenciaisdaintencionalidade;g)estesistemapotencialdaintencionalidadeimplicaumhorizonteindefinidamenteaberto.
7 EM QUE CONSISTE O MÉTODO FENOMENOLÓGICO?
Afenomenologiaconsistenatentativadedescreverofun-damentodafilosofianaconsciêncianaqualareflexãoemerge
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
37
davidairrefletidadocomeçoaofim.Podemosresumirosse-guintesaspectosdafenomenologiahusserliana:
a)éummétodo derivadodeumaatitude, quepresumeserabsolutamente sem pressupostos, tendo como objetivoproporcionar ao conhecimento filosófico as bases sólidasdeumaciênciaderigor,comevidênciaapodítica;
b) analisa dados inerentes à consciência enãoespeculaso-brecosmovisões,istoé,funda-senaessênciadosfenôme-nosenasubjetividadetranscendental,poisasessênciassóexistemnaconsciência;
c)édescritivo, conduzindoaresultadosespecíficosecumu-lativos,comonocasodeinvestigaçõescientíficas;nãofazinferênciasnemconduzateoriasmetafísicas;
d)como conhecimento fundado nas essências é um saberabsolutamentenecessário,emoposiçãoaoconhecimentofundadonaexperiênciaempíricadosfatoscontingentes;
e)conduzàcertezae,porconseguinte,éumadisciplinaa priori;
f)éumaatividadecientíficanomelhorsentidodapalavra,semser,aomesmo tempo,esmagadapelaspressuposi-çõesdaciênciaesofrersuaslimitações.Buscaaraizdetodaaatividadefilosóficaecientífica.
Husserldistingueciênciasdaatitude natural eciênciasdaati-tude fenomenológica. Oobjetodafenomenologiaéaconsciênciamesmacomoresíduodaepoqué praticada,aconsciênciapuranosentidoeidéticotranscendentalenãopsicológico,poisapsico-logia,comociênciadosfatos,tambémficaentreparênteses.Asciênciasdaatitudenaturaloudogmáticapartemdeumaobjetivi-
38
URBANO ZILLES
dadedada,semquestioná-la.Afenomenologiapartedoquestiona-mentodequalquerobjetividadedadaeareduzàmeravivênciaemquesedá,paratorná-laobjetodeanálise.Porissoafenomenologiaéaciênciacríticafundamentalesitua-senoplanodaevidênciaapodítica.Oobjetoprópriodafenomenologianãoé,diretamente,ocampodasessências,masdaessênciadavidadaconsciência.
Husserl busca um fundamento sólido para a filosofia e a ci-ência,umaciênciadoradical.Tentaestabeleceruma filosofia pri-meira, criandoumaciênciafundamentaldasubjetividadepura.Aconsciênciaatuanteéestefundamentoprimeirodetodaaobjetivi-dade.Talfilosofiaprimeiraéafenomenologiacomo“aciênciades-critivaeidéticadaconsciênciapuratranscendental”ou“doutrinapuradescritivadas essênciasdas estruturas imanentesda cons-ciência”. A filosofia tornar-se-á ciência de rigor quando nos fizertomar consciênciadequeas construções teóricasdo espíritonãopodemrestringir-seàdescriçãoobjetivistadosfatosindividuaisesubsistentesemsimesmo.Comociênciarigorosa,exigirádenósumaposturafenomenológicaquenosconduziráàsraízesúltimasdetodasascoisas.Éverdadeque,nafasedacrise,Husserlbuscaestefundamento,dealgumaforma,nomundodavida(Lebenswelt).
8 A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FENOMENOLOGIA
OpensamentodeHusserlpassouporlongaeprofundaevo-lução.NoperíododeHalle (1887-1901)escreveuasInvestiga-ções; noperíododeGoettingen(1901-1916)elaborousuafenome-nologiapuraeproduziuasIdeias; maistarde,emFriburgo,naFlorestaNegra(1916-1928),produziuafenomenologiacomonovotranscendentalismo ou idealismo caracterizadonasMeditações cartesianas. Nosúltimosanos,jáaposentadonauniversidade,refletiusobreacrisedasciênciascomoexpressõesdacrisedacul-turacontemporânea.
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
39
Noperíodode1934-1937,Husserldedicou-seao temada“Crisedas ciênciaseuropeiasea fenomenologia transcendental”.Nesseperíodoabordaproblemasque,aseuver,conduziramàcri-se.Persegueaorigemdessacriseatéamodernamatematizaçãodasciênciasparaabordaradivisãoourupturasurgidaentreoobjetivismofisicalistaeosubjetivismotranscendental.EstudaahistóriadafilosofiamodernadesdeDescartes,Locke,Berkeley,HumeatéKant.Propõe-seasuperaresseabismoatravésdafeno-menologia,buscandoofundamentodosentido,ocultoàsciências.Nesseperíodoelaborouotextosobre“Acrisedahumanidadeeu-ropeiaeafilosofia”, indicandooacessoouocaminhoàfenome-nologiatranscendentalapartirdomundodavidaedapsicologia.
Otextoapresentadooriginou-sedeumaconferênciaqueHusserlfeznodia7demaiode1935noKulturbund deViena.Essa conferênciaHusserl pronunciounuma situação determi-nada.Em1928 foi aposentado (emeritiert), ou seja, foi dispen-sado de sua atividade de ensino nauniversidade.Em1930 re-conheceuqueM.Heidegger, seuex-alunoe sucessornacátedra,assumiraposição diferente da sua. Em 1933, os nazistas che-garamaopoder,naAlemanha,eaícomeçouaascensãodeumirracionalismoqueprovocouumacrisepolíticaecultural.Comissoenfrentouumproblemapessoalportersanguehebreu.Masnão deixou de fazer uma análise profunda dessa nova situação,detectandooperigoqueameaçavaahumanidadeeuropeia,estahumanidadequeesquecerasuatradiçãoespiritualvindadesdeaantiguidadegrega,emboraestivesseproibidodemanifestar--sepublicamenteemseuprópriopaís.Husserlresponsabilizouosfilósofoseoscientistaspelacriseporteremdeixadodeserviràrazão.Segundoele,oséculodaciênciadesviou-sedarazão.
NaoportunidadequelhefoidadaemViena,Husserlevocaaherançaculturalqueconstituiabasecomumdacivilizaçãooci-dental.Posiciona-secontraodesvioracionalistae,aomesmotem-po,contracertoirracionalismo,expondosuaprópriaconcepção.
40
URBANO ZILLES
Opõe-seaoracionalismoingênuodosséculosXVIIeXVIIIcomsua concepção das tarefas infinitas da razãohumana; e ao obje-tivismo reinante nas ciências positivas, de modo especial napsicologia objetivista, pela consciência científica do espíritoenquantoespírito.Suaspalavrasecoamcomoumaprofissãodefé:“e,portanto,asideiassãomaisfortesquetodasasforçasempí-ricas”(HusserlianaVI,p.335).StefanStrasser,profundoco-nhecedordafenomenologiadeHusserl,noprefácioqueescreveuàediçãofrancesa(bilíngue:alemãoefrancês)chamaestetextode“ummanifestonoverdadeirosentidodapalavra”(E.Husserl.La crise de l’humanité européenne et la philosophi. Paris,Au-bierMontaigne,1987,p.5).Poder-se-iachamaressetextotambémde“testamentopolítico”deHusserl.
ParaHusserl,aexistênciadacriseéumfatodoqualsedevetomarconsciência.Estacriserefere-seàsciênciaseuropeiaseaohomemeuropeu;refere-seàEuropacomomaneiraespiritualdeser,ouseja,aEuropacomoentecultural:“Emsentidoespiritual,aEuropaenglobamanifestamenteosdomíniosingleses,osEUA,etc.Trata-seaquideumaunidadedevida,deumaação,deumacriaçãodeordemespiritual,incluindotodososobjetivos,osinteresses,aspreocupaçõeseosesforçoscomasinstituiçõeseasorganizações.Nelasatuamosindivíduosdentrodassocieda-desmúltiplasdediferentescomplexidades,emfamílias,raças,nações,nasquais todosparecemestar interioreespiritualmentevinculadosunsaosoutrose,comodisse,naunidadedeumaestru-tura espiritual”.Husserlnão compartilhaa resignaçãonemopessimismodoexistencialismo,naépoca,poiscrênopoderdara-zãohumanaetentaumdiagnósticodascausasdessacriseparasódepoisreceitaroremédio.Constata:háumaherançadahis-tóriaqueéoobjetivismocientífico;umesquecimentotrágico:oLe-benswelt ouomundodavida;afenomenologiapoderáencami-nharparaumasoluçãoousuperaçãodessacrise:
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
41
“Nesta conferência quero tentar suscitar um novo interesse para o tão frequentemente tratado tema da crise europeia, desenvolvendo a ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanida-de europeia. Ao expor a função essencial que, neste sentido, tem a exercer a filosofia e suas ramificações, que são nossas ciências, a crise europeia também ganhará uma nova elucidação” (Husser-liana VI, p. 314).
ConfusõesespirituaisepolíticasnasprimeirasdécadasdoséculoXXhaviamdespertado,nocontinenteeuropeu,aconsci-ênciadeumacrise,queHusserlcompartilhoucommuitoscontem-porâneos.Demaneiramaisacuradaqueoutros,viuaameaçaàculturaeuropeiacondicionadapelacrisedafilosofia.Estaúltima,paraele, consistiaessencialmentenaameaçadacientificidadedafilosofia.Depoisde1910nãofaltamponderaçõesnessesentidoemseusescritos.Estedadoé importanteparaentenderaobratardiacaracterizadacomo“crisedasciênciaseuropeias”.
8.1 NOVA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA
NaobrafenomenológicadeHusserlsalientamosdoisaspectosdiversosapartirde1913.ComeçacomasIdeias (1913),obraquefoicaracterizadadeidealismotranscendental.Estaetapaesten-de-seatéasMeditações cartesianas (1931).Emgrandeslinhas,po-de-sedizerque,nestaetapa,contraaanálisefenomenológicasobreosujeitocomosuportedoatodeconsciênciaeinstânciaconstituintedosentidodomundo.Sobcertoaspectoatésepodedizerqueafe-nomenologiaassumeaformadeegologia. O ego transcendentalagecomosuportedasvivênciasdaconsciência.
Posteriormente,nofinaldesuavida,nafasecaracterizadapelacrise (1930-1938),buscaumnovoacessoàfenomenologiaatravésdahistória.Depoisde1920,Husserlpreocupa-secomocomeçodafenomenologia.Pelaprimeiravezposiciona-se,explicitamente,naquestãodahistóriaetematizaahistoricidadedafilosofia.Nacon-ferênciadeViena(1935)játrabalhacomdeterminadoconceito
42
URBANO ZILLES
dehistória.Concebe-acomotranscenderdaatitudenatural,quepermanecenossimplesdados,paradesenvolverumateoriafilo-sófica,que,emsuanovaperspectiva,significaumacertaepoqué dointeresseoriginário,paracaptaroenteemsuaglobalidade.Comessareivindicaçãodatotalidade,segundoointérpreteWal-terBiemel,emergeaideiadeinfinito,queédecisivaparaahu-manidadeocidental(Husserliana, VI,p.XVIII).Essanovapers-pectivanãosignificaumrompimentocomafaseanterior,masumenriquecimentodeseuprogramafenomenológicopelapers-pectivadahistóriaedavida.NestasegundafaseHusserlpre-ocupa-secomasevidênciaspré-lógicas,comomundodosvalores,comosentidodaexistênciapessoalecoletiva, etc. Entretanto,comonaprimeirafase,continuaembuscadeumsaberapodíticoeuniversaledeseusfundamentos.
Husserldenunciaacrisedacivilizaçãodonossotempo,inter-pretando-a como uma crise das ciências europeias. Situa essacrisenãonosfundamentosteoréticos,masnofracassodasciên-ciasnacompreensãodohomem.Aorigemdacriseéaconvicçãodeque“averdadedomundoapenasseencontranoqueéenunciávelnosistemadeproposiçõesdaciênciaobjetiva”,ouseja,noobje-tivismo.Estepõedeladoasquestõesdecisivasparaumaautênticahumanidade.Comissoaciênciaperdeimportânciaparaavidaeomundo.
Emacrise, Husserlelaboraumareconstruçãodatradiçãofilo-sóficanaperspectivafenomenológicatomandoateleologia darazãohistórico-crítica como ponto de referência. Não se preocupacom detalhes de erudição histórico-crítica. Coloca a questão:qualacaracterísticaessencial,ouseja,oeidos, doeuropeu,dessaformaespiritualdeser?Traçaumesquemanamedidaemqueinte-ressaàfenomenologiaparamostraraideia-fimouotélos-intrínseco quepresideaatividadefilosóficanoOcidenteatravésdosséculos.
Omododeserpróprio,estemodoespiritualdeserrealizou--se,pelaprimeiravez,naGrécia,entreosséculosVII-VIa.C.com
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
43
oaparecimentodeumanovaatitudediantedomundo.Dessaati-tude emergiramnovas formas do espírito, que constituíram umsistemaculturalnovo,asaber,afilosofiacomoaentenderamosantigosgregos:“comociênciauniversal,ciênciadouniverso,ciên-ciadaunidadetotaldetodoente”.Foiointeressepelatotalidade,pelo universal que produziu o desenvolvimento das diferentesciênciasparticulares,ramificando-sea“filosofia,aciênciauna,emmúltiplasciênciasparticulares”.Centrasuareflexãosobreosseguintesmomentos:ofundamentoorigináriodofilosofarnaGrécia antiga como forma de saber universal eúnico sobreatotalidade do ser; reabilitação durante o Renascimento do idealoriginário,modificadoagorapelorecursoàmatemáticacomoins-trumentoformalizante;voltadeDescartesedoempirismoinglêsparaaconsciência,emboracomaambivalênciadaracionalida-dematemática;giroradicaldeKantparaasubjetividadecomofundamento da ciência, sem todavia conseguir realizar umafilo-sofiatranscendental.EssesmomentosdahistóriadopensamentosãodestacadosporHusserlcomotentativasprecursorasdafeno-menologia,mas insuficientes.Afenomenologia, enfim,assumeaideia origináriadafilosofia como realizaçãoconsequentedeumsaber fundamental,apodítico e transcendental.Até certo ponto,Husserlaplicaaepoqué àsfilosofiasdopassadoenquantosiste-masqueignoraramoLebenswelt comolugardaexperiênciaabso-luta.
Aquestãofundamental,quecoloca,éaseguinte:Comoodesen-volvimentogigantescodasciênciasmodernaspodeconduziraumacrisedasciênciasque,simultaneamente,representaumacrisedahumanidadeeuropeia?Constataqueotelos, queemergiudafiloso-fiagregaparaahumanidadeeuropeia,dequererserumahumani-dadeapartirdarazãofilosófica,foiperdidocomodesenvolvimentodasciências.Estudaporqueasciênciasfracassaram.
ParaHusserl,acrisedasciênciasmanifestaacrisedahuma-nidadecomoprojetoracional.Oprojetodohomemeuropeu,cons-
44
URBANO ZILLES
tituídonaantigaGrécia,traçouumprojetopolíticoracionalparaconfigurar a vida humana a partir da razão. AGuerra de 1914mostrouofracassocomopossibilidadeinerenteàculturamoderna.Suasanálisesvãodesdeaconsideraçãodacriseepistemológicadopsicologismo até a crise generalizada das ciências europeias quesignificouumacriseantropológica.Parasuperaressacriseépre-cisorestaurarafénoprojetoteórico,práticoepolíticooriginário,corrigindooserrosimplícitosnaepistemologia.Destaformaafe-nomenologiarecuperaráumaconcepçãodohomemquetemcomocentroosujeitoracional, fundadonãonos fatos,masnarazão.Ohomemnãoéummerofatomundano,masolugardarazãoedaverdade,asubjetividadetranscendental.Arazãonãoécausadapelascircunstânciasdomundo,maséoqueéporsimesma.
8.2 LEBENSWELT OU “MUNDO DA VIDA”
Afasedacrise deHusserlcaracteriza-sepeloconceitodoLe-benswelt (mundodavida).OpõeoLebenswelt aomundodasciên-cias.Tentafundamentaroúltimonoprimeiro,nomundopré-cien-tífico.Segundoele,aprópriaciênciaemergedealgoanterioraelamesma,docampodasexperiênciaspré-científicasepré-categorias,ouseja,deuma priori concreto,quechamadeLebenswelt ou Le-bensumwelt. Emoutraspalavras,perguntapelascondiçõesa prio-ri depossibilidadedasciênciasaonívelhistóricoeexistencial.
O Lebenswelt é umtemapresentenopensamentodeHusserldesdeocomeço.EmGöttingendenomina-oErfahrungswelt oumun-dodaexperiência.Areconduçãodaciênciaasuaorigemnomundodavida,comoacríticadapsicologiacientífica,exigeaconstituiçãodaciênciadomundo da vida eumapsicologiafenomenológica.Omundodavidaéafontedosentidodosconceitoscientíficos.Sees-sesnãopuderemreferir-seaomesmo,carecemdesentido.
Husserlconsideraomundodavidacomoorigem(Unsprung) efundamento(Baden) dasciênciasobjetivas.Seomundodavida,
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
45
porumlado,eraaorigemdasciênciasobjetivas,poroutro,era--lheclaroquetinhamesquecidoessaorigem.Esteera,paraele,ummomentodacrisedasciências.Consideravaomundodavidacomoumnovopontodepartidanocaminhoparaafenomenologiatranscendental,sobretudoparaasubjetividadetranscendental,da qualbrotam, emúltimaanálise,não sóas ciências objetivas,masoprópriomundodavida.Dessamaneira,na fenomenologiahusserliana,omundodavidaexerceumaduplafunção:a)afunçãodefundamento(Bodenfunktion)emrelaçãoàsciênciaseb)afun-çãodefiocondutor (Leitfadenfunktion) paraoretornoda feno-menologiaasubjetividadeconstitutivadomundo.
OqueHusserlentendeporLebenswelt?Areduçãoaomundodavidaquerdizer“colocarentreparênte-
ses”oqueserefereaele.Entretantoaepoqué nãoéorecursodeumrealistaescrupuloso,masométodoparaoacessoàexperiên-ciatranscendentalporvocaçãorigorosamentefilosófica.Pormundo da vida Husserlnãoentende,pois,omundodenossaatitude natural, naqualtodososnossosinteressesteóricosepráticossãodirigidosaosentesdomundo.Naatitude fenomenológica trata--se de suspendernossa atençãonessehorizonte para ocupar-nosexclusivamentecomoprópriomundodavida,ouseja, comotemlugarparanósapermanenteconsciênciadaexistênciauniversal,dohorizonteuniversaldeobjetosreais,efetivamenteexistentes.Oobjetodainvestigaçãofenomenológicasobreomundonãoétantooserdomundoquantooseusentido.
Ointeresseteóricodaatitudefenomenológicadirige-seexclu-sivamenteaouniversodasubjetividadenoqualsenosdáomundocomoexistente.Aciênciadomundodavidaéaciênciadasubjetivi-dade,aciênciadouniversalcomodapreexistência(Vorgegebenheit) domundocomofundamentodetodaequalquerobjetividade.Con-templaromundoapartirdanossaatitudefenomenológicasigni-ficavê-lopuraeexclusivamentedomodocomoadquiresentidoevalidadeexistencial emnossavidade consciência e em confi-
46
URBANO ZILLES
guraçõessemprenovas.Aciênciadomundodavidatem,pois,por objeto o estudoda vida transcendental e desuaatividadeconstituinte.
Éomundohistórico-culturalconcreto,sedimentadointersub-jetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre osquaisseencontraaimagemdomundoelaboradapelasciências.O Lebenswelt é oâmbitodenossasoriginárias“formaçõesdesentido”,doqualnascemasciências.ParaHusserl,omundodavidaéuma priori dadocomasubjetividadetranscendental.O erro do objetivismo foi esquecê-lo ou desvalorizá-lo comosubjetivo.Asteoriaslógico-matemáticassubstituíramomundoda vida pela natureza idealizada na linguagem dos símbo-los.Cabeàfenomenologiarecuperá-lo,tirá-lodoanonimato,poisohumanopertence,semdúvida,aouniversodosfatosobjetivos;mas,enquantopessoas,enquantoeu, oshomenstêmfins,perse-guemmetas,referem-seàsnormasdatradição,àsnormasdaverdade;normaseternas.
Husserl,nessa fasedesua fenomenologia, colocaa tônicanomundodavida,naexperiênciapuraenoa priori pré-categorial,emboramantenhaosujeitotranscendentalcomoumpolodereferência.Nacrise, vinculaoeu e o Lebenswelt nacorrelaçãocons-ciência-mundo.Comissoconseguenovasperspectivasparaain-tencionalidadeeaintersubjetividade,poisagoraaplicaambososconceitosaomundocomohistóriaecomoteleologia.Emsínte-se,tentarecuperaromundodavidaatravésdeumregressoaomundoqueprecedetodaaconceitualizaçãometafísicaecientífica,aomundopressupostoouLebenswelt.
SegundoHusserl,éprecisorecolocarasubjetividadetranscen-dental no centro da reflexão para recuperar omundo da vida,dasexperiênciaspré-científicasorigináriassobreasquaishistori-camentesãoconstituídasasprópriasciências.Aprópriaraizdasevidênciaslógico-matemáticasencontra-se,pois,nomundodavida.Ouniversodeidealidadedasciênciasmodernasnasceno
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
47
própriomundodavida,poiséconstituídoapartirdasformassensí-veisdascoisasnaexperiênciacotidiana.Pelaimaginação,apartirdelassedesenhamasformasgeométricasideaispuras,quenãosãoasreais,masdecorposidealizados.Erroneamentepassou-seaconsiderartaisidealidadescomoobjetivas.Destaformaidealizou--seanaturezapensando-adeacordocomoparadigmadasidealida-desmatemáticas.Esqueceu-sedequeoprocessodeidealizaçãofei-topelamatematizaçãogalileanadanaturezaé,antesdetudo,produtodasubjetividadepensante.Querelaçãoaindapermaneceentreomundodoqualfalaofísicoeaqueledoqualfalaopoetaoudoqualtodosfalamosnalinguagemcotidiana?
QuandoHusserl seocupada funçãodomundodavidacomofundamentodasciênciasobjetivas,costumarelacionarcomessasaconcepçãogalileanadenatureza.Comestaassociaçãoquermostrarque,desdeGalileu,aciênciaemergentedesconheceoca-rátermetodológicodesuaatividadecomapretensãodecaptarcomseusinstrumentosomundotalcomoénaverdade,pordetrásdovéudenossaexperiênciacotidianasubjetivaerelativa.Talpretensão ontológica, para ele, foi de consequências equivocadastantonoracionalismoclássicocomonoempirismo.
Mundo da vida, nosentidodemundoexperimentadopeloho-mem, significa uma realidade rica, polivalente e complexa, queoprópriohomemconstrói.Mas,aomesmotempo,oLebenswelt é constituídopelaHistória,linguagem,cultura,valores...Quandosefaladeexperiência é ingênuoquererreduzi-laàempiriasensíveldomundofísico.Aexperiência,semdúvida,éumatodaconsciência.Vinculandoaexperiênciaaomundodavida,ouseja,aomundopré--científico,pode-sefalardeexperiênciaestéticaoureligiosa,enfim,deexperiênciadasubjetividade.
Demodoalgumaexperiênciapodeserreduzidaaomundodasciênciasfísico-objetivas.Husserlbusca,pois,aexperiênciaalémdaexperiênciadanaturezadasciênciasobjetivasenquantovinculadaàcategoriadoLebenswelt. AssimoLebenswelt é uma priori das
48
URBANO ZILLES
ciências,cujosresultadospassarãoaintegraromesmo,quetraduzascondiçõesdepossibilidadedeummundocomomundohistórico,comsuastradições,comseupresenteehorizonteabertoaofuturo.Aciêncianãosóemergedomundodavida,mastambémrepercutesobreele,convertendo-oemummundoimpregnadocientificamen-te.Assimpode-sedizerqueaconstituiçãodasciênciasimplicaumaconstituiçãocientíficadomundodavida.
Nafasedacrise, Husserlintegraapolaridadesujeito-obje-tonomundodavida comohorizontede conhecimentoe comosuporte das ciências. Dessa forma toda experiência encontra-secondicionadaedeterminadaporumhorizontepré-dado.Sujei-toeobjetoencontram-seenglobadospelomundoepelahisteria:omundodavida.Esteatuacomofatormediadordoquesedánoobjetoenaconsciência.OLebenswelt nãoéumasomadeobjetos,masomundodosubjetivodoqualemergetodaaatividadehuma-na.Ohomemexercesuafunçãodecriarfatosculturaisnomundodavida.Entreessesfatosestáomundoobjetivodasciênciasedosinstrumentostécnicos.Tambémessessãoprodutohistóricocom finalidades e procedimentos quemudam. A categoria de“horizonte” supõeque cadaexperiência, cadadadoe cadapa-lavraseencontramnumnexoglobaldesentidoprovenientedaintencionalidadesubjetiva.Osdadoseasexperiênciassingularescompartilhamseresentidocomatotalidadenaqualseinserem.Ohorizonte,entretanto,constituiumatotalidadeabertaeviva.
Asciênciasapresentamumavisãodomundonaqualpre-dominamoobjetivismo,aquantificação,a formalização,a tec-nificação,etc.Omundodavida,pelocontrário,apresenta-secomoummundodeexperiênciassubjetivasimediatas,dotadoemsimesmodesentidoefinalidade,pré-dadoparaexplicitaçãocon-ceptual.Entreambos,entreomundodaciênciaeomundodavida,instaura-seumprocessodialéticodemaioroumenordistancia-mento.Omundoexpressonomodelocientífico,interpretadoporuma ideologia ou cosmovisão, permanecemundo,mas é um
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
49
mundomutiladoouparcial.Éumempobrecimentodarealidadericadomundodavidadoqualnãodeixadeserumatoderivado.Osentidodaciêncialegitima-se,emúltimainstância,nomun-do da vida. Só este confere fundamentação axiológica, estruturaintencional e doação originária de sentido à própria ciência.E omundodavidatemumíndicetemporalouhistórico.Omundodavida representa a dimensão interior do sujeito e da história.AcríticadeHusserlaoobjetivismodaciênciagira,pois,emtornodedoisaspectos:a)oesquecimentodosujeitoedeseumundovital;b)aperdadadimensãoética,poisométodoma-temáticoobjetivistarenunciaexplicitamenteatomarposiçãoso-breomundododever-ser.Omundodavidaé,paraHusserl,ummundoquetemohomemcomocentro.Porisso,sóoretornoàsubjetividadetranscendentalpoderárecuperarosentidodohuma-nismoesuperarodesvioobjetivista.Sersujeitotranscendental,noentanto,nãosignificaoutracoisaqueummodoparticulardeexistênciadoprópriosujeitohumanoenquantoessedesenvol-ve,aomáximo,suaspossibilidadesreflexivas.
Omundodavidaconotaoscomponentescotidianosdaexis-tênciapessoalanterioresàatividade científica, significandoa si-tuaçãodosujeitonarelaçãointencionalcomumcontextohistóricosocialqueenvolveosujeitocognoscenteeoobjetoconhecido.Eomundo gerado anonimamente pela colaboração humana quesecristalizaempráxishumanaconvencionada.Esteéomundodoqualascoisaseaspalavrassaemdeencontroimediatoaohomem;é omundo no qual parece, aHusserl, possível restabelecer aconexãoentreciência,éticaevida,poisaciênciaéapenasumamo-dalidadeparticulardecondutaprática, compartilhandoasorien-taçõespré-científicasexistentesnomundodavida.Husserldes-cobrequeoerrodoobjetivismocomeçaondearazãomodernaesqueceomundoordinárioecotidianodoshomens.
Enfim,analisandoomundodavida,afilosofiaconquistahori-zontessemprenovos,pois,detrásdasconcretizaçõesdescobreaati-
50
URBANO ZILLES
vidadeeacriatividadeintencionaldasubjetividade.ParaHusserl,autênticaanálisedeconsciênciaé,pois,hermenêuticadavidadaconsciência.Restamostrarqueafenomenologiaéotelos, ofim,ouseja,omovimentolatenteparaoqualtendeaprópriafundaçãodaculturafilosófica.AcosmovisãodeHusserlestácentradanoconcei-to de teleologia.
8.3 A TELEOLOGIA
QuandoHusserl faladacrisedasciênciasnãoquestionasuacientificidade, em suas aplicações técnicas, nem seus métodos.Questiona, isto sim, opções subjacentes à atividade científi-cacomotaleaoseudesenvolvimento.Atravésdessaanálisepodemostrar que ahistória do pensamentomoderno é umabusca dosentidodavidahumana(teleologia).Acrisedasciênciasé,emúltimaanálise,crisedesentido.QuandoHusserlfaladecrisedasciênciasrefere-se,pois,aoseusignificadoparaavidahumana.Emoutraspalavras,olugardacriseéoprojetodevida,omundoético-políticoporqueomundodaciênciafoiseparadodomundodavidaconcreta.Damesmaforma,atécnicadesinteressa-sedeseusfinsparaconcentrar-senosmeios.Porisso,arazãodacrisedahumanidadeeuropeiaéaperdadeteleologiae,consequentemen-te,dosentidodavida.Caberáàfenomenologiareconciliaromundodaciênciaedatécnicacomomundodavidaapartirdateleologiainerenteaoúltimo.
O humanismo ocidental caracteriza-se, desde sua origem,pelapresençadeumaideiafilosóficaedeumaintencionalidadete-leológica.Masomundocientíficocontemporâneoéumdesviodestateleologia,umdesviodoidealdafilosofiacomotarefainfinita.A consciência da crise é uma oportunidade para superar a in-genuidadedaciênciamoderna,fundamentando-anomundodavidaenasintencionalidadesqueaorientam.
ParaHusserl,aracionalidadefenomenológicaestávinculadaàhistóriaeàteleologia.Aspossibilidadesqueateleologiaofe-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
51
recenãosãopossibilidadesdo“seremsi”,maspossibilidadesdaliberdade.Acondição temporale teleológicadomundodavidapode se expressar coma palavra intencionalidade. A subjeti-vidaderealiza-senamedidaemquesetranscendeasimesmaporopçõesdaliberdade.
Refletir sobre a história, paraHusserl, equivale ameditarsobreseusentido.Destamaneiraafilosofiahusserlianadahistóriasustenta-sepelaideiadefinalidadeoutélos. E o télos ouofim,queorientaahistóriadahumanidadeeuropeia,consistenarealizaçãodarazãomedianteaelaboraçãodeumafilosofiaconcebida comosaberfundamental,unoeuniversal:“otélos espiritualdahuma-nidadeeuropeia,noqualestácompreendidootélos particulardasnaçõessingularesedoshomensindividuais,situa-senuminfi-nito,eumaideiainfinita,paraaqualtende,porassimdizer,ovir-a-serespiritualglobal”(Husserliana VI,p.320-321).
Pormeiodaanálisedahistória,Husserlquerdeixarmani-festoosentidoqueorientaosacontecimentosfilosóficosecien-tíficos damodernidade. Para consegui-lo, precisa retornar aomundo da vida e redescobrir o télos subjacente aomesmo, otélos esquecido pela ciência e pela técnicamodernas. A recu-peraçãodosentidodaciênciapassaporumretornoàestruturateleológica domundo da vida.A teleologia coincide com a es-truturatendencialeintencionaldetodooser.Terteleologiaequivaleaestarorientadoparaaautorrealizaçãodesimesmo,paraaverdadedesimesmo,paraaprópriaevidência.Assimateleologiaexpressaodinamismodascoisasenquantotendemàperfeiçãonumprogressoinfinito.Arealidademanifestaumaintencionalidade universal, significando uma teleologia uni-versal:“Creioquenóssentimosqueànossahumanidadeeuro-peiaestáinataumaentelequia quedominatodasasmudançasdeformaseuropeiaselheconfereosentidodeumaevoluçãoemdireçãoaumaformadevidaedeserparaumpoloeterno”(Hus-serliana VI,p.320).
52
URBANO ZILLES
HusserlperguntapelaEuropa:oqueéEuropa?Enquantonãoéummarcogeográfico,masumespaçohumano,ummododevida,umapossibilidadehumana,surgeapergunta:oqueéohomemeuropeu?EoprojetodehumanidadeesboçadonaantigaGrécia,doqualaEuropasesenteherdeira,apenasumigualaoutros?
Husserlcentrasuasreflexõesnoprojeto Europa, vinculadoaocomeçodafenomenologiae,aomesmotempo,apresentaafeno-menologiacomootélos ecumprimentodaintençãofilosófica.EstáconvencidodequeaEuropaéumprojetoderacionalidadeuniver-sal, da qual europeus tomaram consciência reflexa. Europa éumprojetodeconfigurar-seapartirdarazão,apartirdoexercícioracionallivredecomunidade,expressoemsuafilosofia.Estare-presentaumanovaetapanahistóriadahumanidade,umaetapanecessária para continuar o desenvolvimento humano.A etapadaracionalidadeautoconscientesupõeumaracionalidadeimplícitaemetapasanteriores.Osfilósofosdevemcolocar-seaserviçodosfinsdafilosofia,ouseja,aserviçodeumanovahumanidade.
8.4 A PERSPECTIVA FILOSÓFICA
Acriseatualtemcomocausaprincipaloobjetivismo científi-coreinante,poisesteesqueceuomundodavidaeasubjetividadetranscendental.Asciênciasreduziram-seapuroconhecimentodosfatos,reduzindoosabereohomemamerascoisas.Porisso“oob-jetivismooua interpretaçãopsicofísicadomundo,apesardesuaevidênciaaparente,nãopassadeumaunilateralidadeingênua”.Épreciso,segundoHusserl,superara ingenuidadedoracionalismoobjetivista para recuperar um racionalismo autêntico, “capaz decompreenderosproblemasdoespírito”.Ora,aexperiênciadomun-dodavidaocorreaníveispré-científicos.Aciência,aocontrário,procededeummundojáconstituído,pré-dado.
Husserlquerrecuperarestaesferapré-científicadavidaecriarconsciênciadequeosaberéapenasumadimensãoparcialdomun-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
53
dodavida.Esteémuitomaisamploemuitomaisricoqueomundodaciência.Afundamentaçãodasciênciasremete,pois,aumcam-podeevidênciasprimeirasasquaisconstituemomundodavida.Destaformaasciênciasmanifestam-secomomerasconstruçõesdeoutras evidênciasmais originárias, ou seja, as evidências doLe-benswelt. Comissoosabercientíficodefine-secomomeroprocessode idealização da realidade concreta, cuja consciência se verificanomundodavida.Acriseconsiste,pois,nofatodeareduçãoob-jetivistadosaberterdesvinculadoaatividadecientíficadomundoconcretodohomem.Aciênciaassimformalizadanadatemadizeraohomemsobresuasnecessidadesvitais,perdendoosujeitocomosuportedeexperiênciaspessoaisedasintencionalidadesquemoti-vamosatoshumanos.
ParaHusserl,asuperaçãodacrise aconteceráquandoafiloso-fiaseinteressardenovopelohomemesuascriaçõesculturais,pelasociedadeeseussistemasdevalores.Seráprecisoqueafilo-sofiasedistanciedoformalismocientíficoeseaproximedomundodavida,ouseja,dosproblemasconcernentesàexistênciahumana.Amatematizaçãoeformalizaçãodaciênciamoderna,segundoele,produzemefeitosdesconcertantesnas“humanidades”enafilo-sofia.Aspretensõesdeummétodoúnico,deumalinguagemunifi-cadaeunívocaconduzemaumareduçãofisicomatemáticadoser,da racionalidade e da verdade.Aplica-se uma física ao psíquico,submetendo-aaumprocessodeobjetivaçãoeidealização,queper-deasdimensõessubjetivasdavidaespiritual.Areduçãodopsíqui-coaofísicoimplicaumatotaldependênciadoprimeiroemrelaçãoaosegundo.Comissoaliena-seomundodosujeitonomundodoobjeto.Opsicólogoconverte-seemfísicodaalma(psique).
Husserlquerrecuperarainstânciatranscendentalparasu-peraracrisedasciênciasedacivilizaçãomoderna.Paratantoé preciso desenvolver um saber que interprete a realidade comoautoexegesedoeu(Selbstauslegung) apartirdasvivênciasori-gináriasdosujeito,deseuLebenswelt. Sóreconhecendoarazão
54
URBANO ZILLES
ealiberdadecomoatributosdasubjetividadepoderáselibertarohomemdeprocessosobjetivantesqueesquecemomundodavidaconcreta.
Serhomemé,naconcepçãohusserliana,umprocessocons-tante in fieri, sempreperfectível,commaioroumenoraproxima-çãodeumideal.Esteprocessoéregidopeloeidos dohumano,ouseja,pelarazão.Serhomemé,antesdetudo,possibilidade,poistodohomemencontra-seorientadopelaracionalidade.Tomarconsciênciadessaorientaçãoparaarazãoconstituioutroproces-sohistórico.Nateoriacomonaprática,ohomemdesenvolvesuaorientaçãoteleológicatomandoconsciênciadesuaenteléquiaracional.Emqualquersituaçãoohomemtranscendeoplanodosfatosaoexerceracríticadosmesmoseformularnovosprojetosquelhepermitamsuperá-los.
Aculturaocidental,desdeopensamentogrego,realiza-sesobrea teleologia.O sentidodahistória coincide coma reali-zaçãodarazão,eissosignifica:“Arazãoéoespecíficodohomem,enquantoessência,queplasmasuavidaematividadesehábitospessoais”.Avidaéumvir-a-sercontínuo,penetradoporumain-tencionalidadeadesenvolver-se.Nãoéométodonemouniversodeidealidadesqueconferemsentidoàsciênciasmodernas,masomundodavidaenquantosuportedetodaatividadeteóricaepráti-ca.Omundodavidadosujeitoéolugarquedásentidoefinalidadeao agir e ser.
Husserlconstataacrisecomoumfatopré-históricoebuscanahistóriasuascausasesoluções.Nissoestáumanovaperspec-tivadafenomenologia.Oego transcendentalagoraaparececomorazãohistórica.Husserlenfrentaahistórianastrêsdimensõesconstituintesdatemporalidade:a)opresenteenquantositua-çãodecrise;b)opassadofilosóficoecientíficoenquantogêne-sedopresente;c)ofuturoenquantotélos queorientaráasuperaçãodacrisemediantearecuperaçãodeumaracionalidadeuniversal.
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
55
Ospensadores,inseridosnumatradiçãomovidapelaideia--fim,compartilhamaracionalidadeteleológica,quepresideoacontecerhistóricoecontribuemparaarealizaçãodotélos paraaqualahistóriaseencaminha.Otélos encontra-senopresentecomo“intendido”e“antecipado”.
Osprojetosfilosóficosencarnamumaintencionalidadelegadapelatradiçãoeassumidapelospensadores.Areflexãosobreopas-sadoajudaaesclareceroqueosfilósofoseafilosofiaintencionamoupretendem.Cadafilósofonutre-sedahistória.Ameditaçãohis-tóricadeHusserl permitedescobrir que tiposde racionalidade esentidopresidemoacontecereuropeu.Paraisso,todavia,preci-satranscenderameranarraçãodefatoshistóricosparapenetrarnosentidointernodosmesmos,nateleologiainternaqueosorien-ta.Opensadorrecorreàhistórianãocomoingênuocompiladordedadosoucríticodedocumentos,mascomoleitordeumpassadosegundoaperspectivadeumpresenteconstituídoporseuprópriomundoespiritual.Ofilósofobuscaaverdade interiorqueescapaaopositivismohistoricista:“Pelofatodeconceberideias,ohomemtorna-seumhomemnovo,que,vivendonafinitude,seorientaparaopolodoinfinito”.
9 DEUS COMO TÉLOS DO UNIVERSO
SegundoHusserl,ateleologiaconduznecessariamenteparaahumanidadeverdadeiraeautênticanapráxishumanadofu-turo.Agarantiaparatalrealizaçãoencontra-se,noseuprincí-pio,emDeus.AfirmaHusserlque,seohomeméumserracional,o é somente namedida em que toda sua humanidade e hu-manidaderacional,orientadadeummodolatenteparaarazãoouabertamente orientada para a enteléquia que orienta o processohumanoconscientementeparaofuturo.
Na prática e na teoria, o homem desenvolve sua orientaçãoteleológica, tomando consciência de sua enteléquia racional.
56
URBANO ZILLES
Deuséofundamentoúltimodateleologia.HusserlpensaDeuscomoumconceito-limite.Inclusiveparaoateu,dizemIdeias I, a ideiadeDeuséumconceito-limite.Mas,a teleologia tam-bémtemsuas condiçõesdepossibilidade.Por issoa reduçãotranscendentaldevedaropassoparaoabsoluto incondicio-nado.
Nalógicaformaletranscendental,HusserlsehaviareferidoaDeuscomoLeistung, resultadodaatividadeconstituintedacons-ciência,que,adverteele,nãosignifica“queeuinventeouproduzaasuprematranscendência”.TambémoAldir ego transcendente,nãosendoprodutodaconsciência.ÉestecaráterdetranscendênciaquefazHusserlfalardaideiadeDeuscomoconceito-limite.
EntretantoDeusé,paraHusserl,nãoapenasumconceito-limitenemapenasumidealreguladordarazão,masa“subs-tânciaabsoluta”quesedánofimdareduçãotranscendental.SituaotemadeDeusnumpianoclaramenteontológico,real.Dizque“Deusfalaemnós,falanaevidênciadenossasdeci-sões,que,atravésdetodaafinitamundanidade,apontamparaainfinitude”.Estaminhaorientaçãoaoinfinitoémeucritério,segundoHusserl,demoralidade,avozdeminhaconsciência,avozdeDeus.TodososcaminhosretosconduzemaDeus.Eoscami-nhosorientadosaoinfinitosãoretosemeconduzemaDeusemsolidariedadecomosoutros“eus”.
AfilosofiahusserlianadescobreDeus comooprincípio teleo-lógicodaracionalidadedocursopráticodahistóriahumana.Nes-tesentidoafirmaque“a filosofia fenomenológicacomoideiaquejaznoinfinitoénaturalmenteteologia”. Assimafenomenologiacientíficaéseu“caminhoa-religiosoàreligião”,seu “caminhoa--teu para Deus”. O problema de Deus pertence ao domíniodacosmovisãodeHusserl.Secomo filósofocalaarespeito,in-teriormentedeleseocupapelofatodeexperimentaraDeuscomoopoderdoamorqueoperatantoemsuaexistênciapuramente
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
57
pessoalquantonodestinodahumanidade,amorque,atraves-sandotodaacontrariedade,convertetudoemúltimainstância,emalgobometodacontrariedadeembênção.
CONCLUSÃO
Husserl não só diagnostica a crise,mas apresenta a fe-nomenologia como método para superá-la. Com ela preten-deretornardomundoartificialeabstratodoobjetivismocientíficoaomundodavida, buscandoo saber fundamentalno campodasexperiências pré-científicas e originárias. Pretende restituiro sentidooriginárioàs ciênciasapartirda “função fundante”do“mundodavida”,queéoproblemaanterioreuniversalparatodasasciências.Afenomenologiapropõe-seserummétodonoqualtodoo conhecimento se constrói em referência à subjetividade.Destaformaafenomenologiaentende-senafunçãode“filosofiaprimei-ra”,paradigmadetodoosaber,quetendosentidoemsimes-ma o confere às demais ciências. Tematiza a subjetividadetranscendentalenquantoorigemeraizdetodaaintencionalidadeesentido,poisaciênciaéumprodutohumanoquepartedeumaintuição pertencente ao mundo da vida, fundamento últimodasciências.
Afenomenologiaassume,pois,atarefadeumfilosofarra-dicalcomonovocomeçoabsoluto:
“O maior perigo que ameaça a Europa é o cansaço. Lutemos contra este perigo como bons europeus com aquela valentia que não se rende nem ante uma luta infinita. Então ressuscitará do incêndio destruidor da incredulidade, do fogo no qual se consome toda a esperança na missão humana do Ocidente, das cinzas do enorme cansaço, a fênix de uma nova interioridade de vida e de espiritua-lização, como garantia de um futuro humano grande e duradouro, pois só o espírito é imortal”.
58
URBANO ZILLES
REFERÊNCIAS
CAPALBO,Creusaeoutros.Fenomenologia e hermenêutica. Rio de Janeiro:ÂmbitoCultural,1983.DARTIGUES,Andre.Oqueéafenomenologia?RiodeJaneiro:El-dorado,1973.FINK,Eugen.De la phénoménologie. Paris:Minuit,1974.FRAGATA,Júlio.A fenomenologia de Husserl como fundamenlo da filosofia. Braga:LivrariaCruzi/Fac.deFilosofia,1985.GÓMES-HERAS,JoséM.G.El apriori del mundo de la vida. Bar-celona:Anthropos,1989.GOMEZ-ROMERO, Isidro.Husserl y la crisis de la razón. 2. ed. Madri:Cincel,1991.HUSSERL,Edmund.Die Krisis der europäischen Wissenschafien und die transzendentale Phänomenologie. Haia:MartinusNijhoff,1976(Husserliana.v.6).______. La crise de I ‘humanité européene et la philosophic. 2. ed. Paris:Aubier,1987._______. Ideas relativas a una fenotnenologia pura y una filosofia fenomenologica. 3.ed.México:FondodeCulturaEconomica,1986._______. Meditações cartesianas. Porto:Rés,s.d._______. A Ideia da Fenomenologia. Lisboa:Edições70,1986._______. Conferências de Paris. Lisboa:Edições70,1992._______. A filosofia como ciência de rigor. Coimbra:Atlântida,1965.LERNER,RosemaryR.P.de(Ed.).El pensantiento de Husserl en la reflexión filosófica contemporânea. Lima:InstituteRiva-Agüero,1993.LANDGREBE,Ludwig.El comma de la fenomenologia. Buenos Aires:Sudamerica,1968.LAUER,Q.La phénoménologie de Husserl. Paris:P.U.F.,1955.LÉVINAS,Emmanuel.En découvrant I ‘existence avec Husserl et Heidegger. Paris:Vrin,1974.LYOTARD, Jean-Francois.A fenomenologia. Lisboa: Edições 70,s.d.
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
59
RIBEIRODEMOURA,CarlosA.Crítica da razão na fenomenolo-gia. SãoPaulo:EDUSP,1989.SANMARTIN,Javier.La fenomenologia de Husserl como utopia de la razón. Barcelona:Anthropos,1987.STROKER,Elisabeth.Husserls transzendentale Phänomenologie. Frankfurt:VittorioKlostermann,1987.
61
EDMUND HUSSERL
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA*1
*O textoA crise da humanidade europeia e a filosofia temdiversas versões.NoArquivoHusserldeLovainahádoistextosdatilografadosdeE.Fink.NaHusserlianaVI(p.314-348)foipublicadaaversãoa),queaémaisamplaqueab).Nóstraduzimosotextob),publicadona edição bilíngue (alemão e francês) por PaulRicoeur sob o títuloLa crise de l’humanité européenne et la philosophia (Paris:Aubier,1987,2.ed.).
62
URBANO ZILLES
INesta conferência quero ousar a tentativa de suscitar um
novointeresseparaotãofrequentementetratadotemadacriseeuropeia,desenvolvendoaideiahistórico-filosófica(ouosentidote-leológico)dahumanidadeeuropeia.Aoexporafunçãoessencialque,nestesentido,temaexercerafilosofiaesuasramificações,quesãonossasciências,acriseeuropeiatambémganharáumanovaelucidação.
Partamosdealgobemconhecido,dadiferençaentreame-dicina científico-natural e a chamada “medicinanaturalista”.Enquantoestaseoriginanavidacomumdopovo,daempiriae tradição ingênuas,amedicinacientífico-naturalnascedoapro-veitamentodeconhecimentosdeciênciaspuramenteteóricas,dasciênciasdocorpohumano,emprimeirolugardaanatomiaedafisiologia.Masestas,porsuavez,baseiam-senasciênciasfunda-mentais,universalmenteexplicatórias,danaturezaemgeral,nafísicaenaquímica.
Voltemos agoranosso olhar da corporeidadehumanapara aespiritualidadehumana,paraaschamadasciênciasdoespírito.Nelasointeresseteóricodirige-seexclusivamenteaoshomenscomopessoaseparasuavidaeagirpessoais.Vidapessoaléumviveremcomunidade,comoeuenós,dentrodeumhorizontecomu-nitário.Eprecisamenteemcomunidadesdediferentesestrutu-ras,simplesoucomplexas,taiscomofamília,naçãoesupernação.Apalavravida aquinãotemsentidoumavidacujaatividadepos-suifins,quecriaformasespirituais:vidacriadoradecultura,emsentidomaisamplo,numaunidadehistórica.Tudoissoétemadasdiversas ciências do espírito. Evidentemente há diferença en-treprosperarvigorosamenteedegenerar,ou,comotambémsepoderiadizer,entresaúdeedoença,tambémparaascomunida-des,ospovos,osestados.Surge,pois,semdificuldade,apergunta:
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
63
Comoseexplicaque,nesteplano,nuncasechegouaumamedi-cina científica, a umamedicina dasnações e das comunidadessupranacionais?Asnaçõeseuropeiasestãoenfermas.Diz-sequeaprópriaEuropaestáemumacrise.Nãofaltamoscurandeiros.Estamossubmersosnumverdadeirodilúviodepropostasingênuaseexaltadasdereforma.Masporqueaquiasciênciasdoespírito,tão ricamente desenvolvidas, não prestam o serviço que asciênciasdanaturezacumpremexcelentementeemsuaesfera?
Aqueles que estão familiarizados como espírito das ciênciasmodernaspoderãorespondersemdificuldade:agrandezadasciênciasdanaturezaconsisteemelasnãoseconformaremcomumaempiriasensívelporque,paraelas,todaadescriçãodana-tureza só éumapassagemmetódicapara a explicação exata,emúltimo lugar, físico-químico.Osmesmosopinamqueasciên-cias“meramentedescritivas”nosprendemàsfinitudesdomundocircundanteterreno.Masaciênciadanaturezamatemático-exataabrange,comseumétodo,asinfinitudesemsuasefetividades(in ihrer Wirklichkeiten) e possibilidades reais (und realen Mögli-chkeiten). Entendeo sensivelmentedado comomero fenôme-nosubjetivamenterelativoeensinaainvestigaroselementoseasleisdamesmanaturezasuprassubjetiva(anatureza“objetiva”)comaproximação sistemáticanaquiloque temdeabsolutamenteuniversal.Aomesmotempoensinaaexplicartodasasconcreçõessensivelmentedadas,sejamhomens,sejamanimais“ou”corposce-lestesapartirdoexistente,emúltimainstância,asaber,anteci-pando,apartirdosrespectivos fenômenosfaticamentedados,asfuturaspossibilidadeseprobabilidades,emumaextensãoecomumaprecisãoqueexcedetodaaempiriasensivelmentedetermi-nada.Oresultadododesenvolvimentodasciênciasexatastemsidoumaverdadeirarevoluçãonadominaçãotécnicadanatureza.
Infelizmente émuito diferente, por razões internas, a si-tuaçãometodológicanasciênciasdoespírito.Aordemdoespíritohumanoestábaseadanaphysis humana;todaavidapsíqui-
64
URBANO ZILLES
ca individual humana está fundada na corporeidade, por con-seguinte, também toda a comunidade, nos corpos dos homensindividuais que são membros desta comunidade. Se, pois, sequiser tornar possível, para os fenômenos científico-espirituais,umaexplicaçãorealmenteexatae,emconsequência,umapráxiscientíficatãoabrangentecomonaesferadanatureza,entãooshomensdaciênciadoespíritonãodeveriamsóconsideraroespíri-to,masretornaraosuportematerialeelaborarsuasexplicaçõespormeioda físicaedaquímicaexatas.Mas tal intento fracassa(enadamudaránissonumfuturopróximo)diantedacompli-caçãodanecessáriainvestigaçãopsicofísicaexata,jáemvistadohomemindividualemaisaindacomrespeitoàsgrandescomunida-deshistóricas.Seomundo fosseumedifíciodedoisandaresderealidades–naturezaeespírito–comigualdadededireito,nenhumadependentemetodológicaeobjetivamenteemrelaçãoaoutra,entãoasituaçãoseriadiferente.Massóanaturezapodesertratadacomomundofechadoporsi,sóaciênciadanaturezapode,cominquebrantadaconsequência,abstrairdetodooespiri-tualeinvestigaranaturezapuramentecomonaturezaeelaéosuportecausaldoespírito.Compreende-se,assim,queoespecia-listadasciênciasdoespírito,queseinteressapuramentepeloespiritual como tal,nãoultrapasseumahistóriado espírito;ficapreso às realidades finitas de ordem intuitiva. Cada exem-ploatesta:éimpossívelfazerabstraçãodemaneiracoerentedoelemento corporal, se se quiser cercar teoricamente, demaneiraanálogacomonanatureza,ummundoconcretofechado,ummundopurodoespírito.Porexemplo,umhistoriadornãopodetratardahistóriadaGréciaantigasemconsiderarsuageografiafísica,suaarquitetura,esemconsiderar,outrossim,oaspectomaterialdosedifíciosetc.Tudoissoparececlaro.
Mas, se todo omododepensar, que semanifesta em tal in-terpretação, estivesse baseado empré-juízos funestos e por suasrepercussõesfossecorresponsávelpelaenfermidadeeuropeia?
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
65
Comefeito,estaéaminhaconvicçãoeaindaveremosqueaquihátambémumafonteessencialdacegueiradoscientistasmo-dernosparaapossibilidadedefundamentarumaciênciarigoro-saeuniversaldoespírito(eumaciênciaquenãosóconcorrecomaciênciadanatureza,masatéestáacimadela).
Édointeressedenossoproblema-Europapenetraraquiumpoucomaisedesarraigaraargumentaçãoàprimeiravistaconvin-cente.Ohistoriador,o investigadordoespíritoedaculturadetodaordem,encontra,porcerto,entreseusfenômenosconstante-mentetambémanaturezafísica,emnossoexemplo,anaturezadaGréciaantiga.Masestanaturezanãoéanaturezanosentidocientífico-natural,senãoaquiloqueosantigosgregosconsidera-vamcomonatureza,oquetinhampresentecomoomundocir-cundantedarealidadenatural.Demaneiramaiscompleta,omundocircundantehistóricodosgregosnãoéomundoobjetivo,emnossosentidoatual,massuarepresentaçãodomundo,istoé,suaconcepçãosubjetivadomundo,comtodasasrealidadesparaelesvigentesdestemundo,p.ex.,osdeuses,osdemônios,etc.
Mundocircundante(Umwelt) é umconceitoquetemseulu-gar exclusivamente na esfera espiritual. Que nós vivemos emnossorespectivomundocircundante,aoqualestãodirigidasto-dasasnossaspreocupaçõeseesforços,designaumfatoquesu-cedepuramentenoplanoespiritual.Nossocircum-mundoéumaformação espiritual (ein geistiges Gebilde) em nós e em nossavidahistórica.Paraquemtomaoespíritocomoespírito,nãoen-contraaquinenhumarazãoparaexigiroutraexplicaçãoquenãosejaapuramenteespiritual.Assimpode-seafirmar,demaneirageral:éumabsurdoconsideraranaturezadomundocircundan-tecomoalgoporsialheioaoespíritoeentãoquererfundamen-tar, em consequência, a ciência do espírito sobre a ciência danaturezaefazê-la,assim,pretensamenteexata.
66
URBANO ZILLES
Evidentementeesqueceu-seporcompletodequeaciênciadanatureza (como toda ciência em geral) designa uma atividadehumana(menschliche Leistungen), asaber,adoscientistasquecooperamentresi;sobesteaspecto,pertence,comotodososproces-sosespirituais,aocírculodosfatosquedevemserexplicadospelasciênciasdoespírito.Masnãoéabsurdoenãoconstituiumcírculoquererexplicardeummodocientífico-naturalosucessohistórico“ciênciadanatureza”,recorrendoàprópriaciênciadanaturezaeexplicando através de leis naturais que, como criação espiritual,pertencemelasmesmas,aoproblemaaresolver?
Ofuscadospelonaturalismo(emboraocombatamverbal-mente),oscientistasdoespíritotêmdescuidadocompletamenteaté a colocaçãodoproblemadeuma ciênciapura euniversal doespírito, indagandoporumaciênciaeidética(Wesenslehre) do es-píritopuramente comoespírito,que investigueoselementoseasleisabsolutamenteuniversaisqueregemaespiritualidade,comofimdeobterexplicaçõescientíficasemsentidoabsoluta-menteconclusivo.
Asreflexõesdedicadasatéaquiàfilosofiadoespíritooferecem--nosaperspectivaadequada(rechte Einstellung) paratratarotemadasituaçãoespiritualdaEuropacomoumproblemadeumaciênciapuradoespírito(rein geisteswissenschaftliches Problem), ouseja,primeiroemseuaspectodeumahistóriadoespírito.Comojáfoidito,porantecipação,naspalavrasintrodutórias,estemétododevefazeraparecerumateleologiasingular,inata(angeborene) somenteànossaEuropa,ejustamenteemíntimarelaçãocomaorigemouairrupçãodafilosofiaedesuasramificações,asciências,nosentidodosantigosgregos.Desdejápressentimosquesetratarádeelu-cidarasrazõesmaisprofundasdaorigemdofunestonaturalismoe,finalmente,deverásedescobrirassimosentidoespecíficodacrisequeafetaahumanidadeeuropeia.
Colocamosa seguintequestão: o que caracterizaa estruturaespiritual(gestige Gestalt) daEuropa?PortantonãoaEuropacom-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
67
preendidageográficaoucartograficamentecomosesepretendessedelimitarocírculodoshomensquevivemjuntossobreomesmoterritório como sendo a humanidade europeia. Em sentido es-piritual,aEuropaenglobamanifestamenteosdomíniosingleses,osEE.UU.,etc.Trata-seaquideumaunidadedevida,deumaação,deumacriaçãodeordemespiritual,incluindotodososob-jetivos,osinteresses,aspreocupaçõeseosesforços,asobrasfeitascomuma intenção,as instituiçõeseas organizações.Nelas atu-amosindivíduosdentrodesociedadesmúltiplasdediferentesgrausde complexidade, em famílias, raças,nações, nasquaistodos parecem estar interior e espiritualmente vinculados unsaosoutrose,comodisse,naunidadedeumaestruturaespiritual.
Cadaestruturaespiritual,pornatureza,situa-senoespaçodahistóriauniversal,ouseja,temsuahistória.Seacompanharmos,pois,asrelaçõeshistóricas,partindo,comoénecessário,denósedenossasnações,acontinuidadehistóricanosconduzirásempremais longe, denação emnação, de épocas emépocas.Enfim,naAntiguidade, os romanos remetem-nos aos gregos, aos persaseaosegípcios,etc.Éevidenteque,nestecaminho,nãoháfim.Re-trocedemosaos temposprimitivos (Urzeit) enãopoderíamosdei-xarde considerara obranotável e rica em ideiasdeMenghin(A história universal da idade da pedra). Esteprocedimento(método)fazaparecerahumanidadecomoumaúnicavidadein-divíduos e povos, unida por relações somente espirituais, comumadiversidadedetiposdehumanidadeedecultura,masque,portransiçõesinsensíveis,seprendemunsaosoutros.Écomoummar,noqualoshomenseospovossãoasondasquesefor-mam,setransformamelogodesaparecem,encrespando-seumasdemaneiramaisricaecomplicadaeoutrasdemaneiramaisprimitiva.
Entretanto, num exame posterior mais rigoroso, voltadoparaointerior,percebemosnovasesingularesafinidadesenovasdiferençastípicas.Pormaishostilizadasqueasnaçõeseuropeias
68
URBANO ZILLES
estejamentresi,conservamumpeculiarparentescointeriornoplanoespiritual,queaspenetraatodasetranscendeasdife-rençasnacionais.Écomoumlaçoqueuneirmãosenosdá,nestaesfera,uma consciênciapátria (das Beiwusstsein einer Heimatli-chkeit). Istosaltaaosolhostãologoqueiramospenetrar,porexemplo,nahistóriadaÍndia,comsuamultidãodepovoseforma-çõesculturais.Nesteconjuntoexiste,porsuavez,aunidadedeumparentesco familiar,mas é incompreensivelmente estranho paranós.Porseulado,ospovosdaÍndianossentemcomoestranhosesóasientresicomoprocedentesdeumlugarcomum.Contudoagentenãosepodecontentarcomestadiferençadeessênciarela-tivizada,sobmuitosaspectos—entrecomunidadedeorigem(Hei-matlickeit) erelaçõesdeestranheza(Fremdheit), emborasejaumacategoria fundamental de toda a historicidade. A humanidadehistóricanãosearticulademaneirainvariáveldeacordocomestacategoria.IstosentimosprecisamenteemnossaEuropa.Nelaháalgumacoisasingular,quetambémtodososoutrosgruposdahumanidadepercebemcomoalgoque,prescindindodetodasasconsideraçõesdeutilidade,seconverteparaelesnummotivodemaior oumenor europeização, apesardavontade inquebran-táveldaautoconservaçãoespiritual,enquantonós,senoscom-preendemosretamente,jamais,p.ex.,nosindianizaremos.Creioquenóssentimos(eapesardetodaobscuridade,estesentimentoprovavelmentetemsuarazão)queànossahumanidadeeuropeiaestá inataumaentelequiaquedomina todasasmudançasdeformas europeias e lhe confere o sentido de uma evolução emdireçãoaumpoloeterno.Nãocomoseaquisetratasse deumadasconhecidasfinalidadesqueconferemseucaráteraoreinofísicodosseresorgânicos;ouseja,aquinãosetratadealgocomoumaevoluçãobiológicaque,apartirdeumaformaembrional,con-duz em graus sucessivos, até amaturidade, o envelhecimentoeamorte.Poressência,nãoháumazoologiadospovos.Estesconstituemunidadesdeordemespiritualquenãotêm—esobre-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
69
tudonãoatemasupranaçãoEuropa—nenhumaformamadura,jáalgumavezalcançadaejamaisalcançávelcomo forma.Ahu-manidade psíquica nunca foi acabada e nunca o será.O télos espiritualdahumanidadeeuropeia,noqualestácompreendidootélos particulardasnaçõessingularesedoshomens individuais,situa-senuminfinito,éumaideiainfinita,paraaqualtende,porassimdizer,ovir-a-serespiritualglobal.Àmedidaque,noprópriodesenvolvimento,setornaconscientecomotélos, torna-se tambémmetapráticadavontade(Willensziel), iniciandocomissoumanova formade evolução, colocada sobdireçãodenormaseideiasnormativas.
Tudoissonãopretendeserumainterpretaçãoespeculativadenossahistoricidade,masexpressãodeumpré-sentimentovivo, que emerge numa reflexão imparcial. Este pré-sentimentoserve-nosdeguiaintencional(intentionale Leitung) paradiscer-nir,nahistóriadaEuropa,relaçõessumamentesignificativas,emcujaperseguiçãoopré-sentidosetornacertezacontrolada.Opré-sentimentoé,emtodasasordensdedescoberta,odetector(Wegweiser) afetivo.
Vamosàexplicação.AEuropa(nãodesignaumaondapassa-geira,mas) temumnascimento preciso e um lugar de nasci-mento,naturalmenteespirituais.Encontra-seempessoasindi-viduaiscomomembrosdeumanaçãosingular.AEuropatemumlugardenascimento.Comissonãopensonumterritóriogeográfico,emboratambémtenhatal,masnolugarespiritualdenascimento,emumanação,ouemindivíduosougruposhumanosdestana-ção.TalnaçãoéaGréciaantigadoséculoVIIeVIa.C.Nelasur-geumanova atitude deindivíduosparacomomundocircundante.E,comoconsequência,irrompeumtipototalmentenovodecria-çõesespirituais,querapidamenteassumiuasproporçõesdeumaformaculturalbemdelimitada.Osgregoschamaram-nafilosofia.Corretamentetraduzido,conformeosentidooriginal,estetermoéumoutronomeparaaciênciauniversal,aciênciadatotalidade
70
URBANO ZILLES
domundo,daunidadetotaldetodooexistente.Bemdepressacomeçaointeressepelouniversoecomeleaindagaçãopelodevirqueenglobatodasascoisasepelosernodevir,especifica-sesegun-doasformaseregiõesgeraisdosere,destamaneira,afilosofia,aciênciauna,seramificaemmúltiplasciênciasparticulares.
Nairrupçãodafilosofiatomadanestesentido, incluindonelatodasasciências,porparadoxalquepareça,vejoofenômenoorigi-nal (Urphänomen) quecaracterizaaEuropasoboaspectoespiritu-al.Medianteasexplicaçõesmaisdetalhadas,apesardesuaine-vitávelbrevidade,logoserádissipadaaaparênciadoparadoxo.
Aspalavrasfilosofiae ciênciadesignamumaclasseespecialdecriaçõesculturais(Kulturgebilde). Omovimentohistórico,quetemporestiloaformasupranacional,quechamamosEuropa,tendeparaumaestruturanormativasituadanoinfinito,masquenãosepodeconstataratravésdeumameraobservaçãoconsiderandosomenteaevoluçãodeformassucessivas.Opermanenteestar-dirigidoaumanormaéineren-teàvidaintencionaldepessoassingulares,eapartirdaídenaçõesedesuassociedadesparticularese,finalmente,doorganismodasnaçõesunidasdaEuropa.Semdúvida,nemtodasaspessoasestãodirigidasparaestanorma:naspersonalidadesdeelite(estaorientação)nãoestáplenamentedesenvolvida,masencontra-senumprocessonecessárioeconstantedepropagação.Aomesmotempo,esseprocessosignificaumatransformaçãoprogressivadetodaahumanidadeapartirdafor-maçãodeideias,queadquiremeficáciaemcírculospequenosemuitoreduzidos.Ideias,formassignificativasnascidasempessoassingularescomamaravilhosamaneiranovadeabrigaremsiinfinitudesintencio-nais,nãosãocomoascoisasreaisnoespaço,quenãomudamoprópriohomem,queseinteressaounãoporelas.Pelofatodeconceberideias,ohomemsetornaumhomemnovo,que,vivendonafinitude,seorientaparaopolodoinfinito.Tudoissotornar-se-ácompreensível,quandovoltarmosàsorigenshistóricasdahumanidadeeuropeiaediscernir-mosonovotipodehistoricidadequeadestacasobreofundodahistóriauniversal.
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
71
Paracomeçar,esclareçamosprimeiroanotávelpeculiaridadedafilosofia,ramificadaemciênciassistemáticas,contrastando-ascomou-trasformasculturaisjáexistentesnahumanidadepré-científica,comooartesanato,aagriculturaeocultivodocomércio,etc.Todaselasde-signamclassesdeprodutosculturais,commétodosadequadosparaas-seguraramelhorprodução(Erzeugung). Deresto,essesprodutostêmexistênciatransitórianomundocircundante.Aocontrário,asaquisi-çõescientíficas,depoisdeadquiridoométodoeficazdeproduçãoparaelas,têmummododesereumatemporalidadetotalmentediferentes.Nãoseconsomem,nãoperecem.Umaproduçãoreiteradanãocriacoi-sasidênticas,quandomuitocoisasigualmenteutilizáveis.Umnúmeroqualquerdeoperaçõesdamesmapessoaedeumnúmeroqualquerdepessoasproduzidenticamenteomesmo,idênticosegundoosentidoeavalidade.Pessoasligadasentresiemcompreensãorecíprocaatu-alnãopodemsenãoexperimentaroproduzidoemigualformapelosrespectivoscompanheiroscomoidenticamenteomesmocomaprópriaprodução.Numapalavra:oqueaatividade (Tun) científicaadquire(envirbt) nãoéalgoreal,masideal;mais ainda, oqueassiméadqui-rido,comseuvaloresuaverdade,torna-seamatériaparaapossívelcriaçãodeidealidadesdenívelsuperioreassimpordiante.Dopontodevistateórico,cadadegrauatingidotorna-seumtermopuramenterelativo,umapassagemtransitóriaemdireçãoafinssemprenovosdedegraus,sempremaiselevados,conformeumprocessoprevistoparaoinfinito;essafinalidadeconstituiumatarefainfinitaquesuscitaoes-forçoteóricodaconsciência.Aciênciadesigna,pois,aideiadeumainfi-nitudedetarefas.Acadainstante,umapartelimitadadessastarefaséexecutadae,aomesmotempo,estaconstituiofundodepremissasparaumnovohorizonteinfinitodetarefascomounidadedeumatarefain-finita.Antesdafilosofia,nohorizontehistórico,nenhumaoutraformaculturaléculturacomparáveldeideias,nemconhecetarefasinfinitasetaisidealidades,cujosmétodosdeproduçãopossuemelesmesmosapropriedadeidealdepoderemserrepetidosaoinfinitoesuperamtodasasinfinitudesdepessoasreaisoupossíveis.
72
URBANO ZILLES
Aculturaextracientífica,queaciênciaaindanão tocou,éuma tarefa e uma atividade do homemna finitude.O horizonteabertoeinfinito,noqualvive,nãoestáfechado;osfinsquevisaeasobrasquerealiza,seucomércioesuasmodificações,suamoti-vaçãopessoal,coletiva,nacionalemítica,tudosemovenummundo circundante que pode ser abrangido comum olhar fi-nito. Aí não há tarefas infinitas, nem aquisições ideais cujainfinitudesejaelamesmaocampodeaçãodohomeme lheapresenteascaracterísticasdetalcampodetrabalho.
Aocontrário,asideias,osideaisdetodogênero,entendidosnoespíritoque,pelaprimeiravez,encontrouumsentidonafiloso-fia,carregamtodosemsimesmooinfinito.Paranósaindaexis-tem,foradaesferafilosófico-científica,muitosideaisefinitudesquesóadquiriramocaráterdeinfinitude,detarefasinfinitas,pelatransformaçãodahumanidadeatravésdafilosofia.Acultura,sobaideiadainfinitude,significaumarevoluçãodoconceitodecul-tura,umarevoluçãodetodoomododeserdahumanidadecomocriadoradecultura.Significa,outrossim,umarevoluçãodahisto-ricidade,quedehistóriadahumanidadefinitapassouaserumahumanidadecapazdetarefasinfinitas.Estamudançaprimeiroseproduziunopequenocírculodosfilósofosedaprópriafilosofia.
Aquigostariaderesponderaumaobjeção,quelogosecolo-ca,dequeafilosofia,aciênciadosgregos,nãoéumacriaçãoespe-cíficasua,queelesapenasadifundiramnomundo.Elesmes-mossereferemaossábiosegípcios,babilônios,etc.eefetivamenteaprenderam muito daqueles. Hoje possuímos numerosos traba-lhos sobre a filosofia indiana, chinesa, etc. filosofias que demodoalgumsãosemelhantesàqueladosgregos.Portanto,nãose deve querer suprimir as diferenças de princípio e ignorar omaisessencial.Amaneiradecolocarmetase,consequentemente,osentidodosresultadoséfundamentalmentediferente.Sóafi-losofiagregaconduz,atravésdeumdesenvolvimentopróprio,aumaciênciaemformadeteoriasinfinitas,dentrodaquala
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
73
geometriagrega,durantemilênios,foiumexemploemodelo.Amatemática—aideiado infinito,dastarefas infinitas—é comoumatorrebabilônica,que,apesardeseuinacabamento,permane-ceumatarefacheiadesentido,abertaaoinfinito;esteinfinitotemporcorrelatoohomemnovo,demetasinfinitas.
Masanovahumanidadedemetasinfinitasprimeirosóapa-receemfilósofossingularesnomeiodeumuniversoqueconservasuaformaantiga.Prometeutrazologos divinoaalgunsindivídu-os isolados que levamavante a tarefado espírito quealgumdiailuminaráetransformarátodoouniversohumano.Apelaremosa algummilagre?Naturalmente todo o conhecimentohistóriconovo tem suamotivação e é uma tarefa especial a de esclarecercomoseoriginouaqueletipodehumanidadegreganosséculosVIIeVIa.C.,nocontatocomasnaçõesvizinhasecomasculturasnacionais,comoseproduziuaquelagrandemudançadeatitudequeconduziuaofamosothailincitzein, queosmestresdoprimei-roperíododeapogeudafilosofia,PlatãoeAristóteles,consideramaorigemdafilosofia.
Naverdade,sóentreosgregosrealiza-se,nohomemdafi-nitude,umamudançaradicaldeatitudeparacomomundocir-cundante,atitudenaqualreconhecermosumpurointeressepeloconhecimentoe,porantecipação,designamosuminteressepura-menteteórico.Nãosetratademeracuriosidadedesviadadaseriedadedavida,comsuapreocupaçãoeesforço,quevemaserpurointeressecasualpelopuroesimplesSerepeloSer-assim(So--Sein) dosdadosdomundocircundanteemesmodetodoocircum--mundovital(Lebenslanwelt). Esteinteresseéessencialmenteanálogoaosinteressesprofissionaiseàsatitudesprofissionaisquesuscita.Emrelaçãoatodososoutrosinteresses,temocará-terdeuminteresseabsolutamentenãopráticoequeenvolvetodoouniverso.Ohomemdispõeantecipadamentesobretodaavidavoluntáriafuturaetraça,emconsequência,ohorizontequeconscientementeseráseucampodetrabalho.Apodera-se,
74
URBANO ZILLES
pois,dohomemapaixãoporumconhecimentoquetranscendetodapráxisnaturaldavidacomseusesforçosesuaspreocupaçõesdiárias e transforma o filósofo em espectador desinteressado,emumcontempladordomundo.
Nestaatitude,ohomemcontemplaprimeiroadiversidadedasnações,aprópriaeasoutras,cadaqualcomseumundocircun-dantepróprio,envolvendosuastradições,seusdeuses,seusdemô-nios,suaspotênciasmíticas,considerandocadanaçãoestemundosimplesmenteevidenteereal.Nestesurpreendentecontrastesurgeadiferençaentrearepresentaçãodomundoeomundorealeanovaperguntapelaverdade;nãopelaverdadecotidia-na, vinculada à tradição,mas pela verdade unitária, universal-menteválidaparatodosaquelesquenãomaisestejamofus-cadospelatradição,umaverdadeemsi.Epróprio,pois,daatitudeteóricadofilósofoadecisãoconstanteepredeterminadadecon-sagrartodaasuavidafuturaàtarefadateoria, adarasuavidaumcaráteruniversal,eaconstruir in infinitum conhecimentoteóricosobreconhecimentoteórico.
Desse modo nasce em algumas personalidades isoladas,comoTales,etc.umanovahumanidade;sãohomensque,criandoavidafilosófica,afilosofia,são,porprofissãocriadoresdeumaformaculturaldenovogênero.Écompreensívelque,emsegui-da,surjaumacorrespondentenovarelaçãodeconvivênciacomuni-tária.Essasformaçõesideaisdateoria, graçasaumacompreensãoecriaçãorenovadas,deimediatotornam-seobjetodeumamorcomume deumaadoção comum.Conduzem, semmais,aotrabalhoemcomum,àcolaboraçãomútuaatravésdacrítica.Tambémosque estãode fora, osnãofilósofos, voltamse aten-tos a este trabalho insólito. Por sua vez, se o compreendem,convertem-setambémelesemfilósofos;seestãomuitoabsorvidosporsuaprofissão,tomam-seaprendizes.Dessemodoafilosofiasepropagadeduplamaneira,comoumacrescentecomunidadeprofis-sionaldosfilósofosecomoummovimentocomunitáriocrescente
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
75
dedicadoàeducação.Masaquiseoriginaafataldivisãointeriordaunidadedopovoemgentecultaeinculta.Evidentementeestatendênciadepropagaçãonãotemseuslimitesnanaçãopátria.Aocontráriode todasasoutrasobrasculturais,elanãoéummovimento de interesse vinculado ao solo da tradiçãonacional.Tambémosestrangeirosiniciam-senosabereparticipam,emge-ral,dapoderosatransformaçãoculturalqueirradiadafilosofia.Éprecisamenteistoquesedevecaracterizarmelhor.
Dafilosofia,quesepropagasobaformadeinvestigaçãoedeaçãoeducativa,parteumduploefeitoespiritual.Porumlado,omaisessencialdaatitudeteóricadohomemquefilosofaéapecu-liaruniversalidadedaposturacrítica,decididaanãoadmitir,sem questionar, nenhuma opinião aceita, nenhuma tradição,masquestionartodoouniversotradicionalpré-dadoporsuaverdadeemsi,porsuaidealidade.Masissonãoéapenasumanovaposturadeconhecimento.Emvirtudedaexigênciadesubmetertoda a empiria a normas ideais, as da verdade incondicional,aparece,deimediato,umamudançadegrandealcanceemtodaapráxisdaexistênciahumana,portanto,detodaavidacultural.Estajánãosedeveregerpelaingênuaempiriacotidianaepelatradição,maspelaverdadeobjetiva.Dessamaneira,averdadeidealconverte-seemumvalorabsolutoquetrazconsigoumaprá-xis universalmente transformada nomovimento de formaçãocultural e sua constante repercussãona educação dos jovens.Seconsiderarmosmaisatentamenteaíndoledestatransformação,compreenderemosimediatamenteoqueéinevitável:seaideiageraldeverdadeemsiseconverteemnormauniversaldetodasas realidades ede todasas verdades relativas, queaparecemnavidahumana,issoafetatambémtodasasnormastradicio-nais,asdodireito,dabeleza,dafinalidade,dosvaloreshumanosdominantes,valoresdecaráterpessoal.
Surge,assim,umahumanidadeespecialeumaprofissãoespe-cialcomanovacriação(Leistung) deumacultura.Oconhecimen-
76
URBANO ZILLES
tofilosóficodomundooriginanãosóessesresultadosespeciais,masumcomportamentoquerepercutedeimediatoemtodoorestodavidaprática,comtodososseusfinsesuaatividade,ouseja,osfinsdatradiçãohistórica,naqualsomosengendradosedaíadquiremseuvalor.Forma-seumacomunidadenovaeespi-ritual (innige), poderíamosdizer,umacomunidadepuradeinte-ressesideaisentreoshomensquesededicamàfilosofia,unidosnadedicaçãoàsideiasquenãosósãoúteisparatodos,massãoiden-ticamentepatrimôniodetodos.Constitui-se,necessariamente,umacomunidadedetipoespecial,naqualcadaumtrabalhacomooutroepelooutro,exercendoumacríticaconstrutivaembenefíciomútuo,enaqualsecultivamosvalorespuroseincondicionaisdaverdadecomoumbemcomum.Aissoseacrescentaatendênciane-cessáriadatransmissãodessetipodeinteresse,fazendoqueoutroscompreendamo que se quis e obteve e a tendência de incorpo-rarpessoassemprenovas,aindanãofilósofos,nacomunidadedosquefilosofam.Issoprimeiramenteocorredentrodapróprianação.Apropagaçãonãopodeobterêxito,seserestringeàinvestigaçãocientíficaprofissional,masocorreparaalémdocírculodeprofissio-naiscomomovimentodeeducaçãocultural.
Oqueocorreseestemovimentoculturalseestendeacírcu-losdopovocadavezmaisamplose,naturalmente,aosdirigentessuperioresmenosabsorvidoscomapreocupaçãodavida?Éevi-dentequenãoseproduzsimplesmenteumatransformaçãohomo-gêneadavidanoquadrodoEstadonacional,maséprovávelqueoriginegrandestensõesinternas,quelevamestavidaeoconjuntodaculturanacionalaumestadosubversivo.Combater-se-ãoentresiosconservadoressatisfeitoscomatradiçãoeocírculodosfilóso-fosnumalutaque,certamente,setravaránaesferadopoderpolítico.Jánaauroradafilosofiacomeçaaperseguição,odesprezodosfilósofos.E,apesardisso,as ideiassãomais fortesquetodasasforçasempíricas.Deve-selevaremcontatambémqueafilosofiasurgedeumaatitudecríticauniversalcontratudotradicionalmen-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
77
tepreestabelecidoenãoédetidaemsuapropagaçãopelasbar-reirasnacionais.Sóqueacapacidadeparaumaatitudecríticauni-versalque,naverdade,tambémtemseuspressupostos, jádeveestarpresenteaumcertoestadodaculturapré-científica.Dessemodo,asubversãodaculturanacionalpodeestender-se,primeiro,namedidaemqueaciênciauniversal,elamesmaemviasdepro-gresso,setornaumbemcomumparaasnaçõesinicialmenteestra-nhasumasàsoutras,eaunidadedeumacomunidadecientíficaeculturalpenetraamaioriadasnações.
Aindadevemosacrescentaralgoimportantenoqueserefereàatitudedafilosofiaparacomastradições.Devem-seconsiderarduaspossibilidades:ouosvalorestradicionaissãototalmenterejeitadosouseassumeseuconteúdoaumnívelfilosóficoe,assim,recebe-seumaformanovanoespíritodaidealidadefilosófica.Umcasosingularéodareligião.Aquiquerodeixardeladoas“religiõespoliteístas”.Osdeusesnoplural,aspotênciasmíticasdetodaíndole,sãoobjetosdomundocircundantedamesmarealidadequeoanimalouohomem.NanoçãodeDeuséessencialosingular.Vistodoladohumano,im-plicaquesuaqualidadedeseredevalorsejaexperimentadapelohomemcomovínculointeriorabsoluto.Eaquifacilmenteseconfundeesseabsolutocomaqueledaidealidadefilosófica.Noprocessogeraldeidealizaçãoqueprocededafilosofia,Deus,porassimdizer,élogici-zadoeinclusivetorna-seportadordologos absoluto.Estouinclinadoaver,alémdisso,ológicojánofatodequeareligiãoseapoiateologi-camentenaevidênciadafécomoumamaneirasingulareprofundadefundamentaçãodoverdadeiroser.Masosdeusesnacionaisestãoaíinquestionavelmentecomofatosreaisdomundocircundante.An-tesdafilosofianãoseformulamperguntasgnosiológico-críticas,nemquestõesdeevidência.
Agorajádelineamos,noessencial,aindaqueesquematicamen-te,amotivaçãohistórica,quetornacompreensívelcomo,apartirde alguns homens isolados na Grécia, pode se desenvolver umatransformaçãodaexistênciahumanaedetodaasuavidacultural,
78
URBANO ZILLES
primeiroemsuapróprianaçãoedepoisnasnaçõesmaispróximas.Mas,aomesmotempo,tambémsepodevercomopodesurgirumasupranacionalidadedeíndoletotalmentenova.Refiro-me,natural-mente,àestruturaespiritualdaEuropa.Jánãosetratadesimplesjustaposiçãodediferentesnações,quesó influenciamumasàsoutraspelafiliação,pelocomércioounoscamposdebatalha,masumnovoespíritodelivrecríticaedenormasorientadasparatare-fasinfinitas,oriundasdafilosofiaedasciênciasparticularesdeladependentes,governaahumanidadeecriaideaisnovoseinfinitos.Existemtaisparaoshomensindividuaisdentrodesuasnaçõeseparaasprópriasnações.Enfim,existemtambémideaisinfinitosparaasíntesecadavezmaisampladasnações,naqualcadaumadelas,precisamente,por tender,noespíritoda infinitude,aoseupróprioideal,dáomelhordesiàsnaçõesaelaassociadas.Nestedarerecebereleva-seatotalidadesupranacionalcomtodaasuahierarquiadeestruturassociais;oespírito,queahabita,nascedeumatarefainfinita,queelamesmaarticulasuperabundanteemmúltiplos infinitos,permanecendo,única.Nesta sociedadetotal,regidapeloideal,afilosofiaelamesmaconservasuafunçãodirigenteesuapeculiartarefainfinita;afunçãodereflexãolivre,universal, teórica que abrange igualmente todos os ideais e oidealtotal,portantoosistemadetodasasnormas.Afilosofiadeve-ráexercer,constantemente,noseiodahumanidadeeuropeia,suafunçãodiretriz(die archontische) sobretodaahumanidade.
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
79
IIMasagoradevemosprestaratençãoaosmalentendidoseescrú-
pulosquesenutremdaformasugestivadospré-juízosdamodaedesuasfraseologias.
Oqueaquifoiexpostonãoéumatentativamuipoucooportunadereabilitar,emnossotempo,ahonradoracionalismo,doiluminismo(Aufklärerei), dointelectualismoperdidoemteoriasalheiasaomundoreal,comsuasconsequênciasinevitavelmentedesastrosas,damaniadaculturavazia,doesnobismointelectualista?Nãosignificaissoque-rerretomaràquelailusãofataldequeaciênciatornaohomemsábio,dequeéchamadaacriarumahumanidadeautêntica,senhoradeseudestino?Quemaindalevaráasériotaispensamentoshoje?
Talopiniãocertamentetemumgrãozinhodeverdadeesejustifi-caparcialmenteparaafasededesenvolvimentoeuropeudoséculo17aoséculo19.Masnãoatingeosentidoprópriodeminhainterpretação.Parece-mequeeu,opretensoreacionário,soumaisradicalemaisre-volucionárioqueaquelesquehojesemanifestamtãoradicaisemsuaspalavras.
Tambémeuestouconvencidodequeacriseeuropeiasearraigaemumaaberraçãodoracionalismo.Masistonãomeautorizaacrerquea racionalidade como tal éprejudicial ouquena totalidadedaexistênciahumanasópossuaumsignificadosubalterno.Certamen-tearacionalidadenaquelesentidoelevadoeautêntico(esófalamosdeste),nosentidooriginárioquelhederamosgregosequeseconver-teuemidealdoperíodoclássicodafilosofiagrega,necessitavatodaviademuitasreflexõesesclarecedoras,maselaéachamadaadirigir,demodoseguro,odesenvolvimentodahumanidade.Deoutraparte,con-cedemosdebomgrado(enistooidealismoalemãojánosprecedeuhámuito)queaformaevolutivaquetomouaratio comoracionalismodoperíododoiluminismo(Aufklärung) foiumaaberração,emboraumaaberraçãocompreensível.
80
URBANO ZILLES
Razãoéumtítulomuitoamplo.Ohomem,segundoaboaevelha definição, é o ser vivente racional, e neste sentido amplotambémopápuaéumhomemenãoumanimal.Tambémeleper-segueseusfinseprocedereflexivamente,submetendoaspossibi-lidadespráticasàreflexão.Asobraseosmétodos,namedidaemquesedesenvolvem,formamatradiçãoesempredenovopodemsercompreendidosemsuaracionalidade.Mascomoohomem,einclusive o pápua, representa um novo estádio zoológico frenteaoanimal,assimtambémarazãofilosóficarepresentaumnovoestádionahumanidadeeemsuarazão.Masoestádiodaexistên-ciahumanaedasnormasideaisparatarefasinfinitas,oestádiodaexistênciasub specie aeterni, sóépossívelnauniversalidadeabsoluta, precisamente na universalidade compreendida, desdeoprincípio,na ideiadefilosofia.Afilosofiauniversal comtodasasciênciasparticulares,constitui,porcerto,umaspectoparcialdaculturaeuropeia.Mastodaaminhainterpretaçãoimplicaqueestaparteexerce,porassimdizer,opapeldecérebro,decujofun-cionamentonormaldependeaverdadeirasaúdeespiritualdaEu-ropa.Ohumanodahumanidadesuperiorouarazãoexige,pois,umafilosofiaautêntica.
Eaquiresideoperigo.Aodizer“filosofia”devemosdistinguirentreafilosofiacomofatohistóricodeumarespectivaépocaeafilosofiacomoideiadeumatarefainfinita.Afilosofiaefetivaemcada casohistoricamente real é o intento,mais oumenos suce-dido,de realizara ideia condutorada infinitudee, com isso,doconjuntototaldasverdades.Ideaispráticos,intuídoscomopoloseternos,dosquaisninguémsepodeafastaremtodaasuavidasemarrependimento,semtornar-seinfielasimesmoe,comisso,infeliz,demaneiraalgumanameraintuiçãojásãoclarosepreci-sos,masseantecipamnumageneralidadevaga.Suadetermina-çãosomenteemergenoagirconcretoenoêxito,aomenosrelativo,doproceder.Porissocorremoconstanteperigodeserematraiçoa-dosporinterpretaçõesunilateraisquesatisfazemprematuramen-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
81
te;masasançãovememformadecontraçõessubsequentes.Daío contraste entreasgrandespretensõesdos sistemasfilosóficosque,semdúvida,sãoincompatíveisentresi.Aissoseacrescentaanecessidade,etambémoperigo,daespecialização.
Assim,porcerto,podeumaracionalidadeunilateralviraserummal.Istotambémsepodeexpressardeoutraforma:pertenceàessênciadarazãoqueosfilósofossomentepodemcompreendere elaborar sua tarefa infinita primeiramente numa unilaterali-dade absolutamente inevitável.Nisso, emprincípio, nãoháne-nhumabsurdo,nenhumerro;mas,comojádisse,ocaminhoque,paraeles,édiretoenecessário,nãolhespermiteabrangermaisqueumaspectodatarefa,semdeixardever,aprincípio,queatarefainfinitaemseuconjunto,adeconhecerteoricamenteato-talidadedaquiloqueé,aindatemoutrasfaces.Seainsuficiênciaseanunciaemobscuridadesecontradições, istodámotivoparaumareflexãouniversal.Por conseguinte, ofilósofo sempredevetentar assenhorar-se do verdadeiro e pleno sentido da filosofia,datotalidadedeseushorizontesdeinfinitude.Nenhumalinhadeconhecimento,nenhumaverdadeparticulardeveserabsolutizadaeisolada.Sónessaconsciênciasupremadesi,queporsuavezseconverteemumramodatarefainfinita,afilosofiapodecumprirsuafunçãodepromover-seasimesmae,comisso,ahumanidadeautêntica.Mas, que isso seja assim, também pertence à esferadoconhecimentofilosóficonograudesupremareflexãosobresimesmo(höchster Selbstbesinnung). Sóemvirtudedestaconstan-teatividadedereflexão(ständige Reflexivität) umafilosofiaéumconhecimentouniversal.
Eudissequeocaminhodafilosofiapassapelaingenuidade.Esteéocomeçoparacriticaro tãoaltamentecelebrado irracio-nalismoe,aomesmotempo,olugarparadenunciaraingenuida-dedaqueleracionalismoqueéconsideradocomoaracionalidadefilosófica pura e simples,mas que, a rigor, caracteriza a filoso-fiadetodaaIdadeModerna,apartirdoRenascimento,equese
82
URBANO ZILLES
consideraoracionalismoverdadeiro,portanto,universal.Estain-genuidade,inevitávelnocomeço,envolvetodasasciênciase,noinício, tambémasciênciasque, jánaAntiguidade,conseguiramsedesenvolver.Ditomaisexatamente:adenominaçãomaisgeralqueconvémaestaingenuidadeéoobjetivismo, queseconfiguranosdiferentestiposdenaturalismo,nanaturalizaçãodoespírito.Filosofiasantigasemodernaserameseguemsendoingenuamen-teobjetivistas.Mas,parasermaisjusto,deve-seacrescentarqueoidealismoalemão,procedentedeKant,jáseesforçouapaixona-damenteporsuperaraingenuidadepercebida,semquepudessealcançarrealmenteograudereflexividadesuperiordecisivoparaanovaformadafilosofiaedahumanidadeeuropeia.
Só posso apresentar algumas indicações rudes para tornarcompreensíveloquefoidito.Ohomemnatural(digamosodope-ríodopré-filosófico)estávoltadocomtodasassuaspreocupaçõesesuaatividadeparaomundo.Odomínionoqualviveeageéomundocircundante,queseestendeespaço-temporalmenteaoseuredor,noqualelepróprioseinclui.Estacaracterísticapermanecenaatitudeteóricaque,emseuprimeiromomento,nãopodesersenãoadoespectadordesinteressadoemrelaçãoaomundoque,com isso, se despoja de seusmitos. A filosofia vê, nomundo, ouniversodoser,eomundoconverte-senomundoobjetivofrenteàsrepresentaçõesdemundo,quevariamdeacordocomanacio-nalidadeeossujeitosindividuais:averdadeconverte-se,pois,emverdadeobjetiva.Assimafilosofiacomeçacomocosmologia,diri-gida,primeiramente,comoéóbvio,emseuinteresseteórico,paraanaturezacorpóreae,precisamente,porquetudoqueédadonoespaçoenotempotem,pelomenosemsuabase,aformaexisten-cialdacorporeidade.Homenseanimaisnãosãoapenascorpos,mas,naperspectivadeumolharparaomundocircundante,apa-recemcomoalgoqueexistecorporalmente,eporisso,comorea-lidadesintegrantesdaespáciotemporalidadeuniversal.Dessartetodososprocessospsíquicos,osdecadaeu,comooexperimentar,
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
83
pensar, querer, têm certa objetividade.A vida comunitária dasfamílias, dos povos e semelhantes parece então dissolver-se nadosindivíduossingulares,consideradoscomoobjetospsicofísicos;avinculaçãoespiritualpormeiodeumacausalidadepsicofísicaprescindedeumacontinuidadepuramenteespiritual,eemtodaaparteimperaanaturezafísica.
Ocursododesenvolvimentohistóricoédeterminado,compre-cisão,porestaatitudeparacomomundocircundante.Jáoolharmais fugaz às coisas corpóreas, nomundo circundante,mostraqueanatureza éum todohomogêneo, queune todasas coisas,ummundo para si, digamos, cativo da ordem espáciotemporal,homogêneo,dividido emobjetosparticulares, todos iguais entresi como res extensae eque sedeterminamcausalmenteunsaosoutros.Muitorápidodá-seoprimeiropassoparaumadescober-taimportantíssima:éadasuperaçãodafinitudedanaturezajápensadacomoumemsiobjetivo,umafinitudesubsistente,apesardocaráterabertoeindefinidodanatureza.Descobre-seainfinitu-de,primeiroemformadeidealizaçãodagrandeza,damassa,dosnúmeros,dasfiguras,dasretas,dospolos,dassuperfícies,etc.Anatureza,oespaço,otempotornam-seidealmente prolongáveiseidealmentedivisíveisaoinfinito.Daagrimensuranasceageome-tria,daartedosnúmerosaaritmética,damecânicacotidianaamecânicamatemática,etc.Agoraanaturezaeomundointuitivosse transformam, sem que disso se faça uma hipótese explícita,nummundomatemático, omundodas ciênciasmatemáticasdanatureza.Aantiguidadeprogrediuecomsuamatemáticadesco-briu,pelaprimeiravez,ideaisinfinitosetarefasinfinitas.Istosetornaaestrelaqueguiaráasciênciasparatodosostempospos-teriores.
Comorepercutiuoêxitoembriagadordestadescobertadain-finitudefísicasobreodomíniocientíficonaesferaespiritual?Naatitudeparacomomundocircundante,naatitudeconstantemen-teobjetivista,todooespiritualaparececomosuperpostoàcorpo-
84
URBANO ZILLES
reidadefísica.Dessamaneiratendia-separaumaadoçãodomodode pensar científico-natural. Por isso, já no início, encontramosomaterialismoeodeterminismodeDemócrito.Masosespíritosmaiores retrocediamante tais doutrinas, assim comoante todaapsicofísicadeestilomaismoderno.DesdeSócrates,a reflexãotomaportemaohomememsuahumanidadeespecífica,ohomemcomopessoa,ohomemnavidaespiritualcomunitária.Ohomempermanece inserido nomundo objetivo, mas esse já se torna ogrande temaparaPlatãoeAristóteles.Percebe-seaíumacisãonotável,poisohumanopertenceaouniversodosfatosobjetivos;masenquantopessoas,enquanto“eu”,oshomenstêmfins,per-seguemmetas,referem-seàsnormasdatradição,àsnormasdaverdade; normas eternas. Se este desenvolvimento se paralisounaantiguidade,elecontudonãoseextinguiu.
Demosumsaltoà chamada IdadeModerna.Comumentu-siasmoardenteéacolhidaatarefainfinitadeumconhecimentomatemáticodanaturezaedomundoemgeral.Osprogressosgi-gantescos,noconhecimentodanatureza,agoradevemseresten-didosaoconhecimentodoespírito.Arazãodemonstrousuaforçananatureza.“Comoosoléoúnicosolqueiluminaeaquecetodasascoisas,assimtambémarazãoéaúnicarazão”(Descartes).Ométodotambémdeverápenetrarossegredosdoespírito.Oespí-ritoéumarealidadenatural,umobjetonomundoecomotalfun-dadonacorporeidade.Porconseguinte,acompreensãodomundoadotaimediatamenteeemtodososdomíniosaformadeumdu-alismo,mais exatamente de umdualismo psicofísico. Amesmacausalidade, apenasdividida emduas, abrange oúnicomundo;aexplicaçãoracionaltemomesmosentidoemtodaaparte,en-tendendo-sequetodaexplicaçãodoespírito,sedeveserúnicaeterumalcancefilosóficouniversal,hádeconduzirparaoplanofísico.Nãopodehaverumainvestigaçãoexplicativapuraefecha-daemsidoespírito,umapsicologiaouteoriadoespíritovoltadatotalmenteparaointerior,quevádiretamentedesdeoeu,desde
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
85
opsíquicoimediatamentevivido,apsiquedooutro;éprecisoto-marocaminhoexterior,ocaminhodafísicaedaquímica.Todososdiscursosemvogasobreoespíritocoletivo,sobreavontadedopovo, sobre fins ideais, políticos das nações e semelhantes, nãopassamderomantismoemitologia,originadosnumatransposiçãoanalógicadeconceitosquesópossuemsentidopróprionaesferapessoaldoindivíduo.Oserespiritualéfragmentário.Indagando,agora,pelafontedetodasastribulaçõespode-seresponder:esteobjetivismoouestaconcepçãopsicofísicadomundoé,apesardesuaaparenteevidência,umaunilateralidadeingênuaque,comotal,permaneciaincompreendida.Éumabsurdoconferiraoespíri-toumarealidadenatural,comosefosseumanexorealdoscorposepretenderatribuir-lheumserespácio-temporaldentrodanatu-reza.
Masaquiénecessário,paraonossoproblemadacrise,mos-trar como é possível que a época moderna, durante séculos tãoorgulhosadeseusêxitosteóricosepráticos,tenhacaídoelames-manumacrescente insatisfaçãoequeaindadeveexperimentarsuasituaçãocomosituaçãodepenúria.Emtodasasciênciasseinsinuaessapenúria,emúltimaanálise,comopenúriadométodo.Masnossapenúriaeuropeia,emboranãocompreendida,concerneàgrandenúmerodeciências.
Trata-se de problemas procedentes da ingenuidade, emvirtude da qual a ciência objetivista toma o que ela chama omundoobjetivocomosendoouniversodetodooexistente,semconsiderarqueasubjetividadecriadoradaciêncianãopodeterseulugarlegítimoemnenhumaciênciaobjetiva.Aquelequeéformadonasciênciasnaturaisjulgaevidentequetodososfato-respuramentesubjetivosdevemserexcluídosequeométodocientífico-natural determina, em termos objetivos, o que temsuafiguraçãonosmodossubjetivosdarepresentação.Porissobusca o objetivamente verdadeiro tambémno plano psíquico.Aomesmotempoadmite-se,comisso,queosfatoressubjetivos
86
URBANO ZILLES
excluídospelofísicoserãoinvestigadospelapsicologiaprecisa-mente comoalgopsíquico enaturalmenteporumapsicologiapsicofísica.Masoinvestigadordanaturezanãosedácontadequeofundamentopermanecedeseutrabalhomental,subjeti-vo,eomundocircundante(Lebensumwelt) vital,queconstan-tementeépressupostocomobase,comooterrenodaatividade,sobreoqualsuasperguntaseseusmétodosdepensaradquiremumsentido.Ondesesubmeteàcríticaeàelucidaçãoaenormeaquisiçãometodológica,queconduzdesdeomundocircundante(Lebensumivelt) intuitivoatéas idealizaçõesdamatemáticaea interpretação do mundo como ser objetivo? A revolução deEinsteinconcerneàsfórmulasquetratamdaphysis idealizadae ingenuamente objetivada.Mas nada nos diz sobre como asfórmulas em geral, como a objetivaçãomatemática em geral,adquiremosentidosobreabasedavidaedomundocircundan-teintuitivo;assimEinsteinnãoreformaoespaçoeotempo,nosquaissedesenrolanossavidarealeconcreta(unser lebendiges Leben).
Aciênciamatemáticadanatureza éuma técnicamaravi-lhosa que permite efetuar induções de uma fecundidade, deumaprobabilidade,deumaprecisãoedeumafacilidadedecál-culo,queantessequerseteriapodidosuspeitar.Comocriação(Leistung),é umtriunfodoespíritohumano.Masnaquiloqueconcerneàracionalidadedeseusmétodosedesuasteorias,étotalmenterelativa.Jápressupõeumadisposiçãofundamentalpréviaque,emsimesma,careceporcompletodeumaraciona-lidadeefetiva.Àmedidaqueseesquece,natemáticacientíficadomundocircundanteintuitivo,dofatormeramentesubjetivo,esquece-setambémdoprópriosujeitoatuante,eocientistanãosetornatemadereflexão.(Comissoaracionalidadedasciên-ciasexataspermanece,sobestepontodevista,namesmalinhadaracionalidadequeilustramaspirâmidesegípcias).
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
87
Éverdadeque,desdeKant,possuímosumateoriadoconheci-mentoprópriae,deoutrolado,existeumapsicologiaquequerser,comsuaspretensõesaumaexatidão científico-natural, a ciênciageralefundamentaldoespírito.Masnossaesperançanumaracio-nalidadegenuína,istoé,deumconhecimentogenuíno,aquieemtodaparteédecepcionada.Ospsicólogossequerpercebemque,emsuascolocações,comohomenscriadoresdeciência,nãotêmacessoa simesmos e a seumundo circundante.Não percebem que, deantemão,sepressupõemasimesmosnecessariamentecomosereshumanosvivendoemcomunidadedeseumundocircundanteedesuaépocahistórica,equequeremalcançaraverdadeemsi,válidaparatodos.Porcausadeseuobjetivismo,apsicologianãoconsegueincluiremseu temadereflexãoàalma,ouseja, oeu,queageesofre,emseusentidomaispróprioemaisessencial.Supondoqueelapossaobjetivaretratarindutivamenteavivênciavalorante,avivênciavolitiva,repartidanoscorposvivosseráelacapazdefazeromesmocomosfins,osvaloreseasnormas?Podeelaconverteremtemadereflexãoaprópriarazão,digamoscomo“disposição”?Esquece-setotalmentedequeoobjetivismo,emseucaráterdecria-çãoautênticadoinvestigadorembuscadeverdadeirasnormas,jápressupõeessasnormas,eesteobjetivismo,portanto,nãopodeserderivadodefatosqueaíjásãopensadoscomoverdadesenãocomoficções.
Percebem-se logo as dificuldades aqui subjacentes: o conflitosuscitadopelopsicologismooatesta.Masaindanãoselucrounadacomarejeiçãodeumafundamentaçãopsicológicadasnormas,so-bretudodasnormasquepresidemaverdadeemsi.Torna-secadavezmaispalpável,emgeral,anecessidadedereformartodaapsi-cologiamoderna,masaindanãoseentendequeelatenhafracassa-doporcausadeseuobjetivismo,queelanãotemnenhumacessoàessênciaprópriadoespírito,queéabsurdooisolamentodapsiqueconcebidaobjetivamenteesuainterpretaçãopsicofísicadoser-em--comunidade.Écertoqueotrabalhodapsicologiamodernanãofoi
88
URBANO ZILLES
emvão: temelaboradonumerosas regrasempíricasque tambémpossuemumvalorprático.Maselaétãopoucoumaautênticapsi-cologiacomoaestatísticamoral,comseusconhecimentosnãome-nosvaliosos,éumaciênciamoral.
Emnossotempoanuncia-se,emtodaaparte,aprementene-cessidadedeumacompreensãodoespírito,esetornouquasein-suportávelaconfusãoqueafetaasrelaçõesdemétodoedeconteú-doentreasciênciasdanaturezaeasciênciasdoespírito.Dilthey,umdosmaiorescientistasdoespírito,dedicoutodaaenergiadesuavidaaoesclarecimentodasrelaçõesentreanaturezaeoespí-rito,aoesclarecimentodacontribuiçãodapsicologiadetipopsi-cofísica,aqual,comoeleacreditava,deveriasercompletadaporumapsicologianova,descritivaeanalítica.OsesforçosdeWindel-bandeRickertinfelizmentenãotrouxeramadesejadaevidência.Tambémeles,comotodos,permaneceramvítimasdoobjetivismo.Maisainda,osnovospsicólogosreformadores,quecreemquetodaaculpasereduzaopreconceitodoatomismoreinante,hámuitotempo,equese inaugurouumanovaépocacomapsicologiadatotalidade.Masasituaçãonuncamelhoraráenquantonãoseco-locaremevidênciaaingenuidadedoobjetivismo,surgidodeumaatitudenaturalemrelaçãoaomundocircundanteenãoseesti-verconvencidodaabsurdidadedaconcepçãodualistadomundo,segundoaqualnaturezaeespíritodevemserconsideradoscomorealidadesdesentidohomogêneo,emboraumaedificadasobreaoutrademaneiracausal.Julgo,comtodaaseriedade,quenuncaexistiunemexistiráumaciênciaobjetivaacercadoespírito,umadoutrinaobjetivadaalma,objetivanosentidodeatribuiràsal-mas,àscomunidadespessoais,umainexistência,submetendo-asàsformasespáciotemporais.
O espírito, e só o espírito, é o que existe em si mesmo e para si mesmo, só o espírito é autônomo e pode ser tratado nesta autono-mia, e só nesta, em forma verdadeiramente racional, de um modo verdadeira e radicalmente científico. Quanto à natureza, conside-
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
89
rada na verdade que lhe conferem as ciências naturais, ela só tem uma autonomia aparente, e só aparentemente ofereceumconheci-mentoracionaldesinasciênciasdanatureza.Poisaverdadeiranatureza,nosentidodasciênciasdanatureza,éobradoespíritoqueaexploraepressupõe,porisso,aciênciadoespírito.Oespí-ritoé,poressência,capazdeexerceroconhecimentodesimes-mo,ecomoespíritocientíficoécapazdeexerceroconhecimentocientíficodesi, e isto reiteradamente.Sónopuro conhecimentocientífico-espiritualocientistaescapaàobjeçãodequeseencobreasimesmoemseusaber.Porissoéerrôneo,departedasciênciasdoespírito,lutaremcomasciênciasdanaturezaporumaigual-dadededireitos.Logoqueaquelas reconhecemàs últimasumaobjetividadequesebastaasimesma,elasmesmassucumbemnoobjetivismo.Mas tais comohoje estãodivididas emsuasmúlti-plasdisciplinas,asciênciasdoespíritocarecemdaracionalidadeautêntica,possibilitadaporumacosmovisãoespiritual.Precisa-mente,estafaltageneralizadadeumagenuínaracionalidadeéafontedaobscuridadejáinsuportáveldohomemsobresuaprópriaexistênciaesuastarefasinfinitas.Estasseencontraminsepara-velmenteunidasnumaúnicatarefa:Só quando o espírito deixar a ingênua orientação para o exterior e retornar a si mesmo e perma-necer consigo mesmo e puramente consigo mesmo, poderá bastar--se a si.
Comose chegouaumcomeçodeuma tal reflexão sobre si?Talcomeçoeraimpossívelenquantodominavaosensualismo,oumelhordito,opsicologismodosdados,apsicologiadatábula rasa. SóquandoBrentanopostulouumapsicologiacomociênciadasvi-vênciasintencionaisdeu-seumimpulsoquepoderálevaradiante,emboraopróprioBrentanoaindanãotenhasuperadooobjetivis-mo,nemonaturalismopsicológico.Aelaboraçãodeummétodoefetivoparacompreenderaessênciafundamentaldoespíritoemsuaintencionalidade,e,apartirdaí,construirumateoriaanalíti-cadoespíritoquesedesenvolvedemodocoerenteaoinfinito,con-
90
URBANO ZILLES
duziuafenomenologiatranscendental.Estasuperaoobjetivismonaturalistaetodoobjetivismoemgeraldaúnicamaneirapossí-vel:osujeitofilosofantepartedoseueu,maisprecisamente,eleseconsideraapenascomoexecutor(Vollzieher) de todos os atos do-tadosdevalidade,tornando-seumespectadorpuramenteteórico.Nestaatitudeconsegue-seconstruirumaciênciadoespíritoabso-lutamenteautônoma,nomododeumaconsequentecompreensãodesimesmoecompreensãodomundocomoobradoespírito.Aíoespíritonãoéespíritonanaturezaouaseulado,masapróprianatureza entrana esferado espírito.O eu então jánãomais éumacoisaisoladaaoladodeoutrascoisassimilaresdentrodeummundodadodeantemão;aexterioridadeeajustaposiçãodoseuspessoaiscedelugaraumarelaçãoíntimaentreosseresquesãoumno outroeumpara o outro.
Masnão é possível estender-me sobre este ponto aqui, poisnenhumaconferênciapoderiaexauri-lo.Contudo,esperotermos-tradoqueaquinãose trataderestauraroantigoracionalismo,queeraumnaturalismoabsurdoe incapazdecompreender,emsuma,osproblemasdoespíritoquenos tocammaisdeperto.Aratio dequeagorasetratanãoésenãoacompreensãorealmenteuniversalerealmenteradicaldesidoespírito,naformadeumaciênciauniversalresponsável,naqualseinstauraummodocom-pletamentenovodecientificidade,naqualtemseulugartodasasquestõesdoser,asquestõesdanorma,assimcomoasquestõesdoquesedesignacomoexistência.Eminhaconvicçãoédequeafe-nomenologiaintencionalfez,pelaprimeiravez,oespíritocomoemcampodeexperiênciaeciênciasistemáticas,determinandoassimareorientaçãototaldatarefadoconhecimento.Auniversalidadedoespíritoabsolutoabrangetodoosernumahistoricidadeabso-luta, dentrodaqual se situaanatureza como obrado espírito.Sóafenomenologiaintencional,eprecisamenteatranscendental,trouxeclarezagraçasaseupontodepartidaeaseusmétodos.Sóelapermite compreender, e pelas razõesmaisprofundas, o que
A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA
91
éobjetivismonaturalistae,emparticular,mostraqueapsicolo-gia,condenadadevidoaseunaturalismo,acarecerdaatividadecriadoradoespírito,queéoproblemaradicaleespecíficodavidaespiritual.
92
URBANO ZILLES
IIISintetizemosaideiafundamentaldenossaexposição.A“crise
daexistênciaeuropeia”,tãodiscutidaatualmenteeatestadaeminú-merossintomasdedesintegraçãodavida,nãoéumdestinoobscuro,nãoéumafatalidadeimpenetrável,massetornacompreensívelepenetrávelaoolharsobreofundodateleologia da história europeia queafilosofiaécapazdepôradescoberto.Masestacompreensãodependedepreviamenteseapreenderofenômeno“Europa”emseunúcleoessencial.
Parapoderentenderaanormalidadeda“crise”atualfoineces-sário elaborar o conceito de Europa comoa teleologia histórica de fins de razão infinitos; foinecessáriomostrarcomoo“mundo”euro-peunasceudeideiasdarazão,istoé, doespíritodafilosofia.A«cri-se»entãopodeseresclarecidacomoo fracasso aparente do raciona-lismo. Omotivodofracassodeumaculturaracionalnãoseencontra–comojásedisse–naessênciadopróprioracionalismo,massóemsuaalienação,nofatodesuaabsorçãodentrodo“naturalismo”edo“objetivismo”.
A“crise”daexistênciaeuropeiasótemduassaídas:ouoocasodaEuropanumdistanciamentodeseuprópriosentidoracionaldavida,oafundamentonahostilidadeaoespíritoenabarbárie,ouorenascimentodaEuropaapartirdoespíritodafilosofiamedianteumheroísmodarazãoquetriunfedefinitivamentesobreonatura-lismo.OmaiorperigoqueameaçaaEuropaéocansaço.Lutemoscontraestemaiorperigocomo“bonseuropeus»comaquelavalentiaquenãoserendenemanteuma luta infinita.Entãoressuscitarádoincêndiodestruidordaincredulidade,dofogonoqualseconso-me toda a esperançanamissãohumanadoOcidente, das cinzasdoenormecansaço,aFênixdeumanova interioridadedevidaedeumanovaespiritualidade,comogarantiadeumfuturohumanograndeeduradouro,poisunicamenteoespíritoéimortal.
SÉRIE FILOSOFIAACiênciaeaOrganizaçãodosSaberesnaIdadeMédiaLuis Alberto de Boni
ADoutaIgnorância–NicolaudeCusaReinholdo Aloysio Ullmann
AÉticaMedievalFaceaosDesafiosdaContemporaneidadeLuis Alberto de Boni
AFragilidadedaRazãoEvilázio Francisco Borges Teix
AHermenêuticaFrancesa:PaulRicoeurConstança Marcondes Cesar
AMetafísicadoConceitoAlfredo de Oliveira Moraes
ARecepçãodoPensamentoGreco-RomanoÁrabeeJudaicoRoberto Hofmeister Pich
ATeoriaÉtico-PoliticadeJohnRawlsJosé Nedel
Agostinho:conhecimento,linguagemeéticaRoberto Hofmeister Pich
AlteridadeeÉtica:obracomemorativados100anosdenascimentodeE.LevinasRicardo Timm de Souza
AmoreSexonaGréciaAntigaReinholdo Aloysio Ullmann
CidadaniaeDemocraciaDeliberativaCatherine Audard
Cioran:afilosofiaemchamasRosário Rossano Pecoraro
CrereCompreenderUrbano Zilles
CríticadaReligiãoeSistemaemKantJair Antônio Krassuski
CríticaeTeoriasdaCriseBento Itamar Borges
DaRazãoPráticaAoKantTardioJosé N. Heck
DaRepresentaçãoaoSentidoAloisio Ruedell
De Abelardo a LuteroLuis Alberto de Boni
DireitoeeticidadeWalterJaeschkedoelogioàVerdadeDion da vi Macedo
DoJuízoTeleológicoComoPropedêuticaàTeologiaMoralemKantCarlos Adriano Ferraz
EmNomedaLiberdadeHans-Georg Flickinger
Ensinar-DeixarAprenderJayme Paviani
EntreHistóriaeImaginárioGregorio Piaia
EntreKanteHegelJoãosinho Beckenkamp
EntreSócrateseCristoAlvaro Luiz Montenegro Valls
EpistemologiaAmbientalGeraldo Mario Rohde
EstéticaMínimaJayme Paviani
ÉticaeCompreensãodoOutroRicardo Bins Di Napoli
Éticaeestética:arelaçãoquaseesquecidaNadja Herrmann
ÉticaeÉticasAplicadasaReconfiguraçãodoÂmbitoMoralaJovino Pizzi
SÉRIE FILOSOFIA
93
ÉticaeFelicidade:umestudodoFilebodePlatãoSonia Maria Maciel
ÉticaeFilosofiaPolítica:HegeleoformalismoKantianoThadeu Weber
ÉticaeGenéticaIIBernardo erdtmann
Ética,CriseePerspectivasPergentino S. Pivatto
Ética,DireitoeJustiçaJosé Nedel
ÉticasemDiálogoRicardo Timm de Souza
ExposiçãoSobreaSubstânciadoOrbeRosalie Helena de Souza Pereir
FenomenologiaeCultura:Husserl,LevinaseamotivaçãoéticadopensarMarcelo Fabri
FenomenologiaHojeII:significadoelinguagemNythamar Fernandes de Oliveira
FenomenologiaHojeIII:bioética,biotecnologia,biopolíticaRicardo Timm de Souza
FidesRatioAuctoritas:oesforçodialéticono MonologionManoel Luís Cardoso Vasconcell
FilosofiaeLiteraturaRicardo Timm de Souza
FilosofiaeSociedadePós-ModernaSávio Carlos da sen Scopinho
FilosofiaMedievalLuis Alberto de Boni
FranciscodeVitoriaeosDireitosdosÍndiosAmericanosRafael Ruiz
GlobalizaçãoeHumanismoLatinoArno Dal Ri Junior
GlobalizaçãoeJustiça-GlobalisierungUndGerechtigkeitDraiton Gonzaga de Souza
GlobalizaçãoeJustiçaIIDraiton Gonzaga de Souza
HelenizaçãoeRecriaçãodeSentidosMiguel Spinelli
HistóriadaFilosofiaeTradiçõesCulturaisJosé Maurício de Carvalho
IgrejaePoderSergio R. Strefling
JoaquimdeFiori:trindadeenovaeraNoeli Dutra Rossatto
JustiçaePolíticaDraiton Gonzaga de Souza
JustiçaGlobaleDemocracia:homenagemaJohnRawlsDraiton Gonzaga de Souza
LaPresenciadeLaFilosofíaenLaUniversidadVicente Durán Casas
Leituras de PlatãoLuc Brisson
Levinas:areconstruçãodasubjetividadeMarcelo Luiz Pelizzoli
LiberdadeeLiberalismoWolfgang Kersting
Liberdade Ou IgualdadeMario A. L. Guerreiro
LinguagemeSignificado:oprojetofilosóficodeD.daVidsonMaria Cristina de Távora Spara
MaquiavelJosé Nedel
94
SÉRIE FILOSOFIA
Merleau-Ponty:acercadaexpressãoMarcos José Müller
MundoVividoErnildo Stein
OConhecimentoAbstrativoemDunsScotoCesar Ribas Cezar
OeueaDiferença:HusserleHeideggerMarcelo Luiz Pelizzoli
OHomemeaFilosofiaJosé Maurício de Carvalho
OLivrodasCausasJan Gerard Joseph Ter Reegen
OMundodaConsciênciaLuiz Hebeche
OPensamentoSocialdeSantoAntônioJosé Camargo Rodrigues e Souza
OProblemadoMalnaPolêmicadaAntimaniquéiadeAgostinhoMarcos Roberto Nunes Costa
ORacionaleOMísticoemWittgensteinUrbano Zilles
OsDireitosSociaisBásicosMaria Clara Dias
OsIndíciosdeDeusnoHomemJorge Antonio Torres Machado
OsMercadores,OTemploeaFilosofia:MarxeareligiosidadeMauro Castelo Branco de Moura
OsMovimentosSociaiseOespaçoAutônomodo“Político”Luiz Vicente Vieira
OsSentidosdaJustiçaemAristótelesDenis Coitinho Silveira
OsSentidosInternosemIbnSina(Avicena)Miguel Attie Filho
Plotino:umestudodasenéadasReinholdo Aloysio Ullmann
PráxiseResponsabilidadeWolfdietrich Schmied-Kowarzik
ProblemaseTeoriasdaÉticaContemporâneaJosé Maurício de Carvalho
PropriedadeeDemocraciaLiberalNeiva Afonso Oliveira
RacionalOuSocial?Alberto Oliva
RazõesPluraisRicardo Timm de Souza
ReligiãoeCapitalismoRosalvo Schütz
RicoeureaFormaçãodoSujeitoAbrahão Costa Andrade
Rousseau e RawlsNeiva Afonso Oliveira
Ser-No-MundoeConsciência-De-SiLívio Osvaldo Arenhart
SobreaResponsabilidadeZeljko Loparic
TemasSobreKantÂngelo Vitório Cenci
TeoriadoConhecimentoUrbano Zilles
UniversalismoeDireitosHumanosWolfgang Kersting
SÉRIE FILOSOFIA
95