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Tradução:Denise Bottmann

Nelson Mandela e Mandla Langa

A cor da liberdadeOs anos de presidência

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Título original:Dare Not Linger: (The Presidential Years)

Tradução autorizada por Blackwell and Ruth Limited, produtores e criadores do projeto deste livro405 IronBank, 50 Karangahape Road, Auckland 00, Nova Zelândiawww.blackwellandruth.com

Copyright do texto © 207, Nelson R. Mandela e The Nelson Mandela FoundationCopyright do prefácio © 207, Graça MachelCopyright do conceito e design original © 207, Blackwell and Ruth LimitedDesign original de Cameron Gibb

Copyright da edição brasileira © 208: Jorge Zahar Editor Ltda.rua Marquês de S. Vicente 99 ‒ o | 2245-04 Rio de Janeiro, rjtel (2) 2529-4750 | fax (2) [email protected] | www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não autorizada desta publicação, no todoou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.60/98)

Proibida a venda em Portugal

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

A edição original deste livro contou com o apoio da Industrial Development Corporation

Preparação: Diogo Henriques | Revisão: Eduardo Monteiro, Carolina M. LeocadioCapa: adaptada da arte de Rodrigo Corral Imagem da capa: © Jillian Edelstein/Camera Press London

cip-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Mandela, Nelson, 98-203M239c A cor da liberdade: os anos de presidência/Nelson Mandela, Mandla Langa;

tradução Denise Bottmann. – .ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 208.il.

Tradução de: Dare not to linger: the presidencial yearsInclui índiceAnexosisbn 978-85-378-770-4

. Mandela, Nelson, 98-203 . 2. Prisioneiros políticos – África do Sul – Bio-grafia. 3. Presidentes – África do Sul – Biografia. 4. África do Sul – Política e governo – séc.XX. i. Langa, Mandla. ii. Bottmann, Denise. iii. Título.

cdd: 920.9365458-49788 cdu: 929:343.30

Leandra Felix da Cruz – Bibliotecária – CRB-7/635

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A verdade é que ainda não somos livres; alcançamos ape-nas a liberdade de sermos livres, o direito de não sermos oprimidos. Demos não o passo final de nossa jornada, mas o primeiro numa estrada mais longa e ainda mais difícil. Pois ser livre não é apenas se desvencilhar dos grilhões, mas viver de uma maneira que respeite e fortaleça a liber-dade dos outros. O verdadeiro teste de nossa dedicação à liberdade está apenas começando. Percorri aquela longa estrada para a liberdade. Tentei não vacilar; pisei em falso durante o caminho. Mas desco-bri o segredo de que, após escalar uma grande montanha, constatamos apenas que há muitas outras montanhas a es-calar. Tirei agora um momento para descansar, para fitar rapidamente a visão gloriosa que me cerca, para olhar para trás e ver a distância que percorri. Mas só posso descansar por um momento, pois com a liberdade vêm responsabi-lidades, e não posso me demorar, pois minha longa cami-nhada ainda não terminou.

Nelson Mandela, Longa caminhada até a liberdade

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Prólogo

Fazia três meses que estávamos casados, Madiba e eu, quando ele se sentou para redigir o primeiro capítulo do texto que pretendia escrever como continuação de sua autobiografia, Longa caminhada até a liberdade.

Ele decidiu escrever esse livro movido pelo senso de dever para com sua organização política e a luta mais ampla pela libertação na África Austral. E foi movido pelo senso de dever para com os sul-africanos e os cidadãos do mundo que começou a obra que agora se tornou A cor da liberdade.

Madiba queria contar a história de seus anos como o primeiro presi-dente de uma África do Sul democrática, refletir sobre as questões que ocuparam a si e a seu governo e examinar os princípios e as estratégias que eles procuraram aplicar ao lidar com os inúmeros desafios que se apre-sentavam à nova democracia. Mais do que tudo, ele queria escrever sobre a implantação das bases para um sistema democrático na África do Sul.

Durante cerca de quatro anos, esse projeto teve grande presença em sua vida e na daqueles que lhe eram próximos. Ele escrevia meticulosa-mente, com caneta-tinteiro ou esferográfica, aguardava os comentários de seus companheiros de confiança, então reescrevia várias vezes, até sentir que poderia passar para o capítulo ou a seção seguinte. Cada etapa vinha marcada pelo compromisso com a consulta. Agradeço em especial ao pro-fessor Jakes Gerwel e a Zelda la Grange, assistente pessoal de Madiba, que lhe deram o máximo de incentivo e apoiaram o projeto de várias formas durante esse período.

As exigências que o mundo lhe fazia, distrações de várias espécies e a idade avançada dificultaram o projeto. Seu ímpeto diminuiu e, por fim, o

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manuscrito ficou parado. Nos anos finais de vida, ele falava muitas vezes sobre isso – aflito com o trabalho iniciado, mas não concluído.

Este livro representa um esforço coletivo para concluir o projeto de Madiba. Apresenta a história que ele queria partilhar com o mundo. Com-pletada e narrada pelo escritor sul-africano Mandla Langa, com os dez capítulos originais de Madiba elegantemente entremeados com suas ou-tras anotações e reflexões desse período, a história traz sua voz ressoando claramente do começo ao fim.

Mandla fez um trabalho excepcional escutando Madiba e respondendo à sua voz numa narrativa. Joel Netshitenzhe e Tony Trew, assessores de confiança e integrantes da equipe de Madiba durante os anos de presidên-cia, forneceram pesquisas e análises abrangentes e ricamente entrelaçadas, bem como uma formulação preliminar do texto, e a Fundação Nelson Mandela abrigou institucionalmente nossa empreitada. Agradeço a todos eles, e a nossos parceiros de publicação, por nos permitirem concretizar o sonho de Madiba.

Meu desejo é que todos os leitores se sintam instigados pela história de Madiba e se inspirem a trabalhar por soluções sustentáveis para os múl-tiplos problemas complexos do mundo. Na epígrafe do livro, extraída da passagem final de Longa caminhada, Madiba diz que chegou ao topo de uma grande montanha e parou para descansar brevemente antes de retomar sua longa caminhada. Possamos todos nós encontrar um local de descanso, mas nunca demorarmos demais na jornada a que fomos chamados.

Graça Machel

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Nota ao leitor

Uma proporção significativa das palavras neste livro provém dos escritos do próprio Nelson Mandela, abrangendo o texto de suas memórias inaca-badas sobre os anos na presidência, anotações pessoais e discursos feitos no Congresso, em comícios públicos ou no cenário internacional em sua condição de respeitado defensor dos direitos humanos.

As memórias inacabadas, Os anos de presidência, consistem em dez capítulos em rascunho, a maioria deles com várias versões, além de notas para capítulos adicionais. A sequência dos capítulos, nessas versões, nem sempre fica clara a partir do material documental. O texto para este livro foi extraído dessas versões e do conjunto das anotações.

Na tentativa de preservar a integridade histórica da escrita de Mandela, fizemos pouquíssimas intervenções editoriais no texto extraído, afora a padronização nos casos de citações, o uso do itálico nos títulos de livros e jornais, a ocasional inserção de uma vírgula por questão de sentido e a eventual correção dos raros nomes que aparecem com grafia errada. As interpolações editoriais em que se fornecem informações adicionais ao leitor aparecem entre colchetes. Preservamos o estilo característico de Mandela no uso de maiúsculas em títulos profissionais e também algumas variações, como o eventual uso da caixa-alta em termos como “Negros” e “Brancos”. O material citado de entrevistas em que Mandela falava sem recorrer a notas foi padronizado para manter a coerência com o estilo editorial da narrativa.

Como apoio para o leitor, incluímos um extenso glossário de pessoas, lugares e eventos importantes mencionados no livro na p.385, além de

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uma lista de abreviaturas de organizações, um mapa da África do Sul e uma linha cronológica sucinta do período da vida de Mandela desde sua saída da prisão, em 990, até a posse de seu sucessor, Thabo Mbeki, em 999.

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Prefácio

Para muitos sul-africanos, em 997 o feriado nacional de 6 de dezem-bro foi celebrado mais como um marco fundamental na longa jornada de Nelson Mandela do que por sua dolorosa origem – que comemora a vitória dos Voortrekkers sobre os exércitos amaZulus em 838 e ao mesmo tempo marca a criação do Umkhonto weSizwe (MK – Lança da Nação), o braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA), em 96. Depois de passar por várias denominações, por fim a data recebeu o nome de Dia da Reconciliação, em 994.

Naquela terça-feira à tarde, quando a temperatura na cidade provin-cial de Mafikeng, no noroeste, já passava dos 35 graus, os delegados do CNA reunidos na 50a Conferência Nacional do CNA, somando mais de 3 mil representantes, aguardavam num silêncio fascinado que o presidente Mandela apresentasse seu relatório político. Poucos minutos antes, ele tomara lugar no estrado entre a direção do Comitê Executivo Nacional (CEN), com um discreto sorriso no rosto enquanto ouvia entoarem anima-damente as canções da libertação, que foram acompanhadas por vigorosos aplausos quando ele se dirigiu ao pódio.

Ao contrário do que ocorre com a maioria das pessoas que são altas, Mandela não se apercebia de sua altura, mantendo-se de pé ao ler o rela-tório, numa apresentação em termos simples e diretos. Ele confiava na importância de suas palavras e, portanto, não via razão para utilizar os recursos retóricos tão apreciados por alguns compatriotas. A nova África do Sul, que viera ao mundo nas primeiras eleições democráticas de 994 entre grande júbilo e muitas comemorações, já vinha enfrentando as con-sequências traumáticas de um nascimento difícil.

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Sobre o papel do CNA como partido no poder, Mandela disse:

Durante esses últimos três anos, um princípio básico de nossa condução tem

sido que, apesar das conquistas de nosso povo em estabilizar a implantação

democrática, ainda estamos envolvidos num delicado processo de alimentar

o recém-nascido até chegar à idade adulta.

Se sobre o futuro não pairavam dúvidas, o passado vinha se mostrando imprevisível. Diariamente, as manchetes eram ocupadas por crimes vio-lentos, herança de desigualdades e injustiças anteriores. O desemprego, que o governo tentava enfrentar com políticas de desenvolvimento e ações afirmativas, causava certo descontentamento entre a maioria, o que era ex-plorado pelos partidos políticos de oposição, em especial pelo Partido Na-cional. Este, que era o partido no governo durante o regime de apartheid, retirara-se do Governo de Unidade Nacional (GUN) em 996, declarando sua incapacidade de influir na política governamental.

“Seus membros mais honestos”, disse Mandela sobre os políticos do Partido Nacional, “que ocupavam posições no Executivo e eram movidos pelo desejo de proteger os interesses tanto dos africâneres quanto do resto da população, não apoiaram a decisão de saírem do GUN.”

Quando Mandela falou em dezembro de 997, o clima era de expec-tativa. Os acontecimentos dramáticos do ano anterior na África do Sul, como a expulsão do general Bantu Holomisa do CNA e a formação de um partido político dissidente, o Movimento Democrático Unido, devem ter redespertado o trauma do cisma que dera origem ao Congresso Pan-Afri-canista da Azânia (CPA) em 959. Outrora filho dileto, conhecido por expor claramente suas posições, Holomisa também era tido como responsável pelo surgimento de tendências populistas dentro do CNA, incentivadas igualmente por Winnie Madikizela-Mandela e Peter Mokaba, o veemente presidente da Liga da Juventude do CNA (LJCNA).

E havia a questão da sucessão. Mandela já anunciara sua intenção de deixar a presidência do CNA nessa conferência. Numa transmissão pela tevê no domingo, 7 de julho de 996, Mandela confirmou os rumores de

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que não concorreria às eleições em 999. Mantendo a promessa que fizera ao assumir o cargo de primeiro presidente democrático do país, em 994, ele julgava que, embora pudesse cumprir dois mandatos conforme auto-rizava a Constituição, um mandato era suficiente, na medida em que já lançara as bases de um futuro melhor para todos.

Editorialistas e analistas apresentaram a conferência como uma arena em que um reconhecido herói iria passar o bastão. A questão sobre o sucessor, Thabo Mbeki ou Cyril Ramaphosa, já estava decidida. Ambos dispunham de impecáveis credenciais de luta. Ramaphosa se destacara no Fórum Pluripartidário de Negociações da Convenção para uma África do Sul Democrática (Codesa, na sigla em inglês), iniciado em outubro de 99 e encerrado em 993, culminando na adoção da Constituição em 8 de maio de 996. Mbeki era amplamente reconhecido pelo comando dos assuntos do país como vice de Mandela.

Com a intenção de se contrapor às várias críticas de que o grupo de língua isiXhosa dominava o CNA, em 994 Mandela sugerira o nome de Ramaphosa ao tratar da questão da sucessão com os três últimos integran-tes mais antigos do CNA: Walter Sisulu, Thomas Nkobi e Jacob Zuma. Aconselharam-no, porém, a optar por Mbeki. Mbeki veio a ser eleito pre-sidente do CNA em 997, entrando assim na fila para a presidência do país na frente de Ramaphosa.

O drama dos cinco dias da conferência recebeu um tempero adicional com as eleições para os seis cargos mais altos no CNA, em que apenas dois tinham candidatos disputando a vaga. Mbeki foi eleito por unanimidade como presidente do CNA e Jacob Zuma ficou como vice. Winnie Madikizela- Mandela pensara em disputar a vice-presidência contra Zuma, mas não conseguiu reunir apoio suficiente entre os delegados para respaldar sua indicação e foi obrigada a desistir. Muitos achavam que suas simpatias por causas populistas e os comentários ferinos sobre as falhas do governo, que às vezes pareciam provocações contra seu ex-marido, haviam criado indisposição entre os filiados e gerado humilhação para ela. Kgalema Motlanthe, antigo sindicalista e, como Mandela e Jacob Zuma, ex-detento

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da ilha Robben, foi eleito secretário-geral, e Mendi Msimang assumiu como tesoureiro-geral no lugar de Arnold Stofile. Nos dois cargos com disputa entre candidatos, o de presidente nacional e o de vice-secretário- geral, Mosiuoa “Terror” Lekota derrotou seu ex-colega detento da ilha Robben, Steve Tshwete, para o cargo de presidente nacional; Thenjiwe Mtintso venceu Mavivi Myakayaka-Manzini por estreita margem para o cargo de vice-secretário-geral.

No encerramento da conferência, na tarde de 20 de dezembro de 997, Mandela parecia melancólico ao fazer o discurso de despedida. Com as mãos cruzadas diante de si, deixou o roteiro escrito e passou a falar de improviso. Sem citar nomes, recomendou ao novo líder que não se cercasse apenas de pessoas que concordassem cegamente com ele.

Um líder, especialmente com uma responsabilidade tão grande, que foi eleito

sem oposição, seu primeiro dever é acalmar as inquietações de seus colegas

no comando, para que possam discutir livremente, sem medo, dentro das

estruturas internas do movimento.

Depois que os aplausos cessaram, ele discorreu sobre a contradição que se apresentava a um líder que devia unir a organização e, ao mesmo tempo, permitir as divergências internas e a liberdade de expressão.

As pessoas devem inclusive poder criticar o líder sem medo ou favoritismo

somente no caso em que você é capaz de manter os colegas unidos. Há mui-

tos exemplos disso – permitir diferenças de opinião desde que não tragam

descrédito à organização.

Como exemplo, Mandela citou um crítico das políticas de Mao Tsé- Tung durante a Revolução Chinesa. O comando chinês “examinou se ele comentara algo fora das estruturas do movimento, que lançasse descrédito ao movimento”. Constatando que não fora este o caso, o crítico foi condu-

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zido ao Comitê Central como presidente da Câmara dos Trabalhadores da China, o movimento sindical.

Deram-lhe “encargos pelos quais tinha de responder”, disse Mandela entre gargalhadas do público, “e ele foi obrigado a falar menos e a ser mais responsável”.

E prosseguiu:

Felizmente, sei que nosso presidente entende a questão. Uma coisa que sei é

que ele, em seu trabalho, tem aceitado críticas com espírito de camaradagem,

e não tenho a menor dúvida de que não … deixará ninguém de fora, porque

sabe que [é importante] você se rodear de pessoas fortes e independentes que,

dentro das estruturas do movimento, podem criticá-lo e melhorar sua pró-

pria contribuição, de forma que, quando você sai a público com sua política,

suas decisões são plenamente seguras e ninguém conseguirá criticá-las de

maneira efetiva. Ninguém nesta organização entende melhor esse princípio

do que meu presidente, o camarada Thabo Mbeki.

Mandela retomou a leitura do discurso, reiterando que a ligação dos lí-deres com “indivíduos poderosos e influentes que têm muito mais recursos do que todos nós juntos” poderia levá-los a esquecer “aqueles que estavam conosco quando estávamos inteiramente sozinhos em tempos difíceis”.

Após outra rodada de aplausos, Mandela passou a justificar a conti-nuidade das relações do CNA com países como Cuba, Líbia e Irã. Isso contrariava os conselhos de governos e chefes de Estado que haviam apoiado o regime de apartheid. Aos convidados estrangeiros presentes no salão, incluindo desde todos os países que eram evitados até o movimento mundial contra o apartheid, Mandela apresentou seus agradecimentos.

“Permitiram-nos vencer. Nossa vitória é a vitória deles.”Perto de encerrar o discurso, Mandela aproveitou para admitir a vulne-

rabilidade e as conquistas da luta. Se houve sucessos importantes, também houve retrocessos.

“Não porque fôssemos infalíveis”, disse ele, afastando-se do discurso escrito.

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Tivemos dificuldades no passado, como qualquer outra organização.

Tínhamos um líder que também foi escolhido por unanimidade, mas aí

fomos presos junto com ele.* Mas ele era rico pelos padrões daquela época

e nós éramos muito pobres. E a polícia política foi até ele com uma cópia

da Lei de Eliminação do Comunismo e disse: “Agora, veja isso, você tem

terras. Aqui está um decreto que diz que, se você for condenado, vai perder

essas propriedades. Seus associados aqui são gente pobre, não têm nada a

perder.” O líder então decidiu ter seus advogados próprios e se recusou a ser

defendido junto com os outros acusados. Então o advogado, conduzindo

a testemunha, falou ao tribunal que havia muitos documentos em que os

acusados estavam exigindo igualdade com os brancos: o que sua testemunha

achava? Qual era sua opinião?

E Mandela continuou, dando uma risadinha ao se lembrar da cena: “O líder disse: ‘Nunca vai existir uma coisa dessas.’ E o advogado falou: ‘Mas você e seus colegas aqui aceitam isso?’” O líder “estava para apontar Walter Sisulu quando o juiz disse: ‘Não, não, não, não, não, fale por si mesmo.’ Mas aquela experiência de ser preso estava sendo demais para ele”. Mandela parou, refletiu e acrescentou: “Agora, mesmo assim, agra-decemos o papel que ele desempenhou antes de sermos presos. Tinha se dado muito bem.”

Sem parar para explicar a ambiguidade da última frase, que despertou grandes risadas – “se dar muito bem” era um reconhecimento aos présti-mos do chefe à organização ou uma alfinetada sugerindo que ele se dera muito bem na vida, com suas riquezas materiais? –, Mandela encerrou o comentário fora do roteiro.

“Estou dizendo isso”, concluiu com um brilho malicioso nos olhos, “porque, se algum dia eu mesmo ceder e disser ‘Fui enganado por esses rapazes’, lembrem apenas que uma vez fui colega de vocês.”

* Mandela se refere ao dr. James Moroka, que denunciou Mandela e outros detidos durante a Campanha de Desafio contra Leis Injustas em 952. Mais tarde, Mandela o perdoou e o convidou para ser padrinho de seu neto.

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Voltando ao roteiro, Mandela disse ter chegado a hora de passar o bastão e prosseguiu:

E pessoalmente apreciarei muito o momento em que meus companheiros

veteranos, que vocês viram aqui, e eu pudermos observar de perto e julgar de

longe. Aproximando-se 999, vou me empenhar como Presidente do Estado

em delegar cada vez mais responsabilidades para assegurar uma transição

tranquila para a nova presidência.

Assim poderei ter oportunidade em meus anos finais de mimar meus netos

e tentar ajudar de várias maneiras todas as crianças sul-africanas, especial-

mente as que foram vítimas infelizes de um sistema negligente. Também terei

mais tempo para continuar os debates com Tyopho, isto é, Walter Sisulu, Tio

Govan (Govan Mbeki) e outros, que os vinte anos de umrabulo [intenso de-

bate político sobre questões educacionais] na Ilha não conseguiram resolver.*

Garanto-lhes … que, à minha modesta maneira, continuarei a serviço da

transformação e do CNA, o único movimento que é capaz de realizar essa

transformação. Como membro comum do CNA, suponho que também terei

muitos privilégios de que estive privado ao longo dos anos: ser o mais crítico

que puder, contestar qualquer sinal de autocracia da Shell House e pressionar

por meus candidatos preferidos desde a seccional para cima.**

Mas, em tom mais sério, quero reiterar que continuarei como membro

disciplinado do CNA; e, em meus meses finais no governo, sempre me guia-

rei pelas políticas do CNA e encontrarei mecanismos que lhes permitam me

dar uns cascudos por qualquer indiscrição …

Nossa geração atravessou um século caracterizado pelo conflito, o mor-

ticínio, o ódio e a intolerância; um século que tentou, mas não conseguiu

resolver inteiramente os problemas de desigualdade entre os ricos e os pobres,

entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos.

Espero que nossos esforços enquanto CNA tenham contribuído e conti-

nuem a contribuir para essa busca de uma ordem mundial justa.

* Tyopho era o nome tribal de Walter Sisulu.** A Shell House foi a sede do CNA de 990 a 997.

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O dia de hoje marca a realização de mais um salto naquela corrida de

revezamento – que ainda continuará por muitas décadas –, quando saímos

para que a competente geração de advogados, especialistas em computação,

economistas, financistas, industriais, médicos, engenheiros e, acima de tudo,

operários e camponeses comuns possa conduzir o CNA ao novo milênio.

Anseio pelo momento em que poderei me levantar com o sol e andar

pelos montes e vales de Qunu com paz e tranquilidade. E confio que assim

certamente será, porque, ao fazer isso e ver o sorriso nos rostos das crianças

refletindo a luz do sol em seus corações, saberei, camarada Thabo e equipe,

que vocês estão no caminho certo, estão conseguindo.

Saberei que o CNA vive – continua a liderar!¹

Os delegados e convidados da conferência se ergueram de uma vez só e começaram a cantar, bater palmas e ondular ao som de várias canções misturadas, até se deterem numa que era, ao mesmo tempo, uma canção de adeus a um filho único e um triste reconhecimento de que a África do Sul, em nenhuma hipótese, voltaria a ser a mesma.

“Nelson Mandela”, dizia a letra, “não há outro igual.”