A CONTRIBUIÇÃO DA OKTOBERFEST

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PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL MESTRADO E DOUTORADO REA DE CONCENTRAO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Danbia Cremonese Sehn

A CONTRIBUIO DA OKTOBERFEST PARA O DISCURSO IDENTITRIO GERMNICO DE SANTA CRUZ DO SUL

Santa Cruz do Sul, abril de 2009.

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Danbia Cremonese Sehn

A CONTRIBUIO DA OKTOBERFEST PARA O DISCURSO IDENTITRIO GERMNICO DE SANTA CRUZ DO SUL

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Desenvolvimento Regional Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul, para obteno do ttulo de Mestre em Desenvolvimento Regional. Orientador: Prof. Dr. Mozart Linhares da Silva Co-orientadora: Prof. Dr. ngela Cristina Trevisan Felippi

Santa Cruz do Sul, abril de 2009.

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Chiara, minha irm.

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AGRADECIMENTOS

Ao longo da realizao deste trabalho, inmeras pessoas colaboraram de maneira efetiva para torn-lo realidade. Gostaria de manifestar meus especiais agradecimentos ao meu orientador Mozart Linhares da Silva e a co-orientadora ngela Felippi pelo incentivo, pela troca de idias e pela indispensvel colaborao. Ao CNPq, por me proporcionar a bolsa de estudos. A todos os colegas de curso, em especial Mara Garske, Mrcia Correa, Scheila Bartmann, Esmerahdson Pinho da Silva, Ronaldo Sergio da Silva, Iran Pas e Wilson Weschenfelder pela amizade e encorajamento na realizao deste trabalho. Aos professores e s secretrias do Mestrado em Desenvolvimento Regional. minha famlia, meus pais Ornlio e Ivete Sehn, e irms, Chiara e Eliana Cremonese Sehn pelo incentivo e fora. s amigas de Cachoeira do Sul, Ftima Vargas, Sandra Ritter, Rosana e Beatriz de Souza, Liane Almeida e Berenice Xavier. Aos entrevistados, em especial a Silvani Frantz, Maria Luiza Schuster, Pedro Thessing e Nestor Raschen pela colaborao na realizao desta pesquisa. Ao meu noivo Marcelo Pereira Melatti, pela compreenso, incentivo e confiana. Por fim, um agradecimento especial a Deus por todas as graas que, por meio dele, consigo alcanar.

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... eu busco uma cano em que a minha me se reconhea, e minha filha se reconhea... Ceclia Meirelles

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a contribuio do evento de conotao germnica, Oktoberfest, no processo de construo do discurso identidrio germnico do municpio de Santa Cruz do Sul, localizado na regio central do Rio Grande do Sul. A anlise se divide em trs captulos, sendo que, no primeiro, apresentamos uma historizao sobre a colonizao alem no Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul e na cidade de Santa Cruz do Sul, bem como a ocupao dos imigrantes neste ncleo colonial, seu desenvolvimento e suas primeiras manifestaes culturais. No segundo, apresentamos uma teorizao sobre festas, principalmente as tnicas, e analisamos o quanto estas contribuem para a expresso da identidade cultural e construo da imagem de uma comunidade. Problematizamos a forma como um determinado grupo poltico da comunidade de Santa Cruz do Sul, bem como a imprensa local legitimaram os discursos identidrios por meio das duas principais festas realizadas no municpio, a Festa Nacional do Fumo, FENAF, e a Oktoberfest. No terceiro captulo, trazemos os resultados do trabalho de campo da pesquisa, ou seja, atravs da descrio sobre a elaborao e realizao da Oktoberfest de 2008, realizada por meio da observao e de entrevistas semi-estruturadas aplicadas junto aos organizadores da edio mencionada, conseguimos demonstrar a afirmao identidria de um determinado grupo. Esta anlise importante para compreender a trajetria do movimento de reivindicao da identidade teuto-brasileira, sua constituio e negociao enquanto uma estratgia visando a manuteno da distintividade e, tambm, como um smbolo de classificao social, apontando para as representaes de natureza tnica e cultural que interagem no contexto da Oktoberfest.

Palavras-chave: Oktoberfest, Santa Cruz do Sul, identidade alem.

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ABSTRACT

This study aims at analyzing the contribution of this festivity with German connotation called Oktoberfest to the process of creating the discourse of German identity in the municipality of Santa Cruz do Sul situated in the central region of the state of Rio Grande do Sul. The study is divided in three parts. In the first, a historical analysis is made about the German colonization policy in Brazil, in the state of Rio Grande do Sul and in Santa Cruz do Sul as well as the work those immigrants did on their first colonial nucleus, their growth and their first cultural manifestations. In the second chapter a theory is introduced about celebrations, especially the ethnic ones, together with the amount of contribution those have brought to a cultural identity expression and the building up of the community complexion. A discussion is made about the way by which a specific political group of the community, as well as the local press have given legitimacy to those identity assertions, using the two main series of festivities in the municipality, namely the FENAF (National Tobacco Festivity) and the Oktoberfest. In the third part we bring in the results of the field investigation research on how the Oktoberfest of 2008 was brought about. We used direct observation and semistructured questionnaires with the organizers of that years event. It was possible to perceive this identity assertion with some of them. This analysis is important to understand the underlying process of this movement viewing the maintenance of this German-Brazilian identity claim, its constitution and negotiation as a strategy to keep this distinctiveness and, also, as a symbol of social classification, thus showing the ethnical and cultural representations which interact in the Oktoberfest context.

Key words: Oktoberfest, Santa Cruz do Sul, German identity.

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LISTA DE ILUSTRAES

1 - Braso Municipal de Santa Cruz do Sul ................................................................................. 33 2 - Monumento do imigrante alemo .......................................................................................... 33 3 - Cartaz de divulgao da 1 Oktoberfest .................................................................................. 55 4 - Soberanas da 1 Oktoberfest .................................................................................................. 55 5 - Vila Tpica na dcada de oitenta e nos dias de hoje ............................................................... 61 6 - Charges da Oktoberfest de 1995 ............................................................................................. 63 7 - Cartaz de divulgao da 23 Oktoberfest ................................................................................ 69 8 - Panfleto informativo da 24 Oktoberfest ................................................................................ 79 9 - Site da 24 Oktoberfest ........................................................................................................... 80 10 - Janine Alves de Paiva recebendo a faixa de Naiara Pommerehn ......................................... 85 11 - Bandeirolas para decorao da cidade ................................................................................. 90 12 - Vitrine da loja Spengler ........................................................................................................ 92 13 - Prtico do Parque da Oktoberfest ......................................................................................... 92 14 - Espao Cultural da 24 Oktoberfest ...................................................................................... 101 15 - Smbolos da festa em forma de monumentos ...................................................................... 109 16 - Jogo de Lanceiros ................................................................................................................. 111 17 - Primeiro carro alegrico do desfile ...................................................................................... 115 18 - Presena das crianas no desfile da 24 Oktoberfest ............................................................ 116 19 - Bicicleta Zig Zag Zug .......................................................................................................... 117 20 - Representao dos imigrantes alemes com objetos da cultura alem ................................ 119 21 - Grupo tnico Madre Paulina ................................................................................................ 120 22 - Missa em Lngua Alem ...................................................................................................... 127 23 - Gastronomia germnica ....................................................................................................... 128

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LISTA DE TABELAS

1 - Histrico das Associaes e Entidades que promoveram desde a criao ............................. 66 2 - Histrico das Feiras que acompanharam a Oktoberfest ......................................................... 66 3 - Histrico dos presidentes da festa desde a criao ................................................................. 67 4 - Pblico alvo da Oktoberfest de 2007 ..................................................................................... 68 5 - Relao de soberanas da festa ................................................................................................ 82

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SUMRIO

INTRODUO ......................................................................................................................... 11

CAPTULO 1- HISTORIOGRAFIA REGIONAL E AS REPRESENTAES DE IDENTIDADE INFLUENCIADAS PELO PROCESSO IMIGRATRIO ......................... 14 1.1 Imigrao alem para o Rio Grande do Sul ........................................................................... 17 1.2 Santa Cruz do Sul: a ocupao do ncleo colonial e desenvolvimento do municpio .......... 18 1.3 O imaginrio e a identidade tnica em Santa Cruz do Sul .................................................... 25 1.4 Representaes do germanismo em Santa Cruz do Sul .......................................................... 31

CAPTULO 2 - AS FESTAS TNICAS E A OKTOBERFEST DE SANTA CRUZ DO SUL ............................................................................................................................................. 40 2.1 De Festa Nacional do Fumo para Oktoberfest ....................................................................... 44 2.2 A histria da Oktoberfest de Santa Cruz do Sul .................................................................... 52

CAPTULO 3 - A OKTOBERFEST DE 2008 E O DISCURSO IDENTITRIO GERMNICO ............................................................................................................................ 71 3.1 A estrutura metodolgica ...................................................................................................... 71 3.2 Os preparativos para a festa: a elaborao da Oktoberfest de 2008 ....................................... 74 3.2.1 A escolha da rainha da festa ............................................................................................... 80 3.2.2 A divulgao da 24 Oktoberfest ........................................................................................ 85 3.2.3 Os demais preparativos da festa ......................................................................................... 86 3.3 A realizao da 24 Oktoberfest e 4 Oktoberfeira ................................................................ 96 3.3.1 A abertura oficial da festa ................................................................................................... 97 3.3.2 O tema Tradies Germnicas e o Espao Cultural ........................................................... 99

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3.3.3 Os bonecos como representao da famlia alem ............................................................. 107 3.3.4 Os jogos germnicos ........................................................................................................... 109 3.3.5 Os desfiles de carros alegricos........................................................................................... 111 3.3.6 As msicas, as danas folclricas, os trajes tpicos, a religiosidade e a gastronomia ........ 122 3.3.7 Os demais acontecimentos da Oktoberfest de 2008 ........................................................... 128 3.3.8 A cerimnia de encerramento ............................................................................................. 130

CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................... 132

REFERNCIAS ........................................................................................................................ 135

ANEXOS .................................................................................................................................... 145 ANEXO A Comisso da 24 Oktoberfest ................................................................................. 146

ANEXO B - Mapa com o layout do Parque, organizado para a 24 edio da Oktoberfest ........ 148 ANEXO C Cartaz enviado a agncias de viagens .................................................................... 149

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INTRODUO

A temtica do desenvolvimento regional compreende mltiplas questes que implicam o entendimento das dimenses sociais, polticas, econmicas e culturais, entre outras. As relaes entre cultura e desenvolvimento, e mais, a forma como a cultura se torna um elemento importante nas estratgias desenvolvimentistas, se apresentam, no global, como condio de legitimao das esferas regional e local. Diante deste quadro, os fenmenos de representao cultural, ou seja, de construo identitria, passaram a ser um importante campo de anlise para o entendimento das relaes de sociabilidade.

Entre as manifestaes culturais norteadas pelo fenmeno identitrio destacam-se as festas tnicas que, no caso do Sul do Brasil, possuem importante significado na definio das fronteiras identitrias regionais, com seus signos de diferena e legitimao comunitrias.

A Oktoberfest de Santa Cruz do Sul, criada no ano de 1984, tem como fator estruturante de sua criao um forte apelo para exaltar as tradies germnicas, numa tentativa esperanosa de recuperar os costumes da cultura alem, julgados, negligenciados e ameaados desde os tempos da chamada Campanha de Nacionalizao, quando as zonas de imigrao e colonizao foram cerceadas em suas manifestaes culturais. Assim, inmeros atrativos/elementos so criados e inseridos na festa com o propsito de atrair pessoas e ritualizar costumes julgados fortalecedores da identidade tnica da regio.

Nesta direo, este trabalho tem como objetivo analisar como ocorre o processo de construo da Oktoberfest de Santa Cruz do Sul1, e qual a influncia dos elementos inseridos

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Santa Cruz do Sul o plo de desenvolvimento na regio do Vale do Rio Pardo e cidade fortemente caracterizada pelo germanismo. Tem a indstria do fumo como a principal sustentadora da economia local, apesar da grande diversificao agrcola j existente. Est situada a 155 km de Porto Alegre, na encosta inferior do Nordeste do Estado, tem os municpios de Venncio Aires, Sinimbu, Vale do Sol, Vera Cruz, Passo do

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na festa para a promoo do discurso da identidade alem do municpio, uma vez que esse caracterizado pelo predomnio desta narrativa identitria germnica. Este trabalho prope descrever e analisar o processo de organizao do produto Oktoberfest, desde a elaborao at a realizao da edio de 2008.

Esta pesquisa enfoca a contribuio do evento Oktoberfest para o discurso da identidade alem de Santa Cruz do Sul. Esta questo importante porque implica a crtica da viso essencialista da identidade cultural tendente a naturalizar a cultura e os comportamentos sociais, no caso, com desdobramentos em posturas ufanistas e folclorizadas da identidade tnica. Trata-se de problematizar o processo de construo identitria a partir de uma festa tnica e questionar os elementos apontados como essencialmente tnicos da regio lanando mo de uma perspectiva desconstrutivista que visa descentrar as identidades de uma postura naturalizada

Para analisar o problema apontado, esta dissertao foi estruturada em trs captulos. No primeiro, apresentamos uma reviso da historiografia regional, demonstrando como ocorreu o processo de colonizao alem no Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul e no ncleo colonial instalado na Fundao de Santa Cruz, bem como as principais aes que promoveram o desenvolvimento deste ncleo. Ainda, abordamos algumas representaes do germanismo que norteiam a organizao do imaginrio e da memria social no municpio.

No segundo, apresentamos uma reviso terica sobre festas, principalmente as tnicas, e analisamos o quanto essas contribuem para a expresso da identidade cultural e constituio da imagem de uma comunidade. Problematizamos a forma como um determinado grupo poltico da comunidade de Santa Cruz do Sul, bem como a imprensa local legitimaram os discursos identitrios por meio das duas principais festas realizadas no municpio, a Festa Nacional do Fumo, FENAF, e a Oktoberfest. Ambas as festas, sempre tiveram o objetivo de divulgar o municpio e fortalecer nesta divulgao a imagem de etnicidade alem. Desde a FENAF, realizada em trs edies nas dcadas de 60 e 70, os valores da cultura alem vinham sendo ressaltados e, depois com a Oktoberfest, ainda mais evidenciados. Recorremos aoSobrado, Rio Pardo e Boqueiro do Leo que fazem divisa. A cidade est localizada numa rea levemente ondulada ao Sul, vales, morros e elevaes maiores, originadas dos primeiros contrafortes da Serra Geral. Apresenta altitude mdia de 122m do nvel do mar e clima subtropical temperado. As principais vias de acesso so atravs da RS 240 e BR 471 e sua populao est estimada em 115.857 habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica do ano de 2007 (http://www.ibge.gov.br).

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principal jornal da cidade de Santa Cruz do Sul, a Gazeta do Sul, para levantar informaes sobre a festa, j que este um dos veculos que acompanha e divulga a Oktoberfest desde a sua criao. O mesmo veculo cooperador da festa, pois atua colocando a cultura alem em evidncia e a identidade dos santa-cruzenses atrelados a esta etnicidade. Desta maneira, este meio de comunicao contribui para a criao do imaginrio social sobre a festa no municpio.

No terceiro, trazemos os resultados do trabalho de campo da pesquisa, resultados estes que mostram o quanto a 24 Oktoberfest, de 2008, atravs de sua organizao, intenta legitimar e construir discursos que visam fortalecer a identidade tnica do municpio. Ainda por meio de observao e de entrevistas semi-estruturadas aplicadas junto aos organizadores da edio mencionada, conseguimos observar as negociaes e prticas que so articuladas atravs de discursos e negociaes que, somadas, evidenciam a contribuio da festa para a manuteno da identidade hegemnica do municpio.

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CAPTULO 1

HISTORIOGRAFIA REGIONAL E AS REPRESENTAES DE IDENTIDADE INFLUENCIADAS PELO PROCESSO IMIGRATRIO

Nenhum Brasil existe. E acaso existiro brasileiros?2 Carlos Drummond de Andrade

Este primeiro captulo apresenta uma reviso da historiografia de Santa Cruz do Sul, a partir do processo de colonizao do municpio. Algumas iniciativas e representaes comeam a ganhar espao no contexto de constituio de comunidade e contribuem para a construo de um discurso legitimador da identidade alem no municpio.

Em princpios do sculo XIX inicia a histria da emigrao dos alemes para o Brasil. Uma anlise breve da situao da Alemanha neste sculo, nos permite entender as principais razes do deslocamento populacional dos alemes, num contexto em que, no Brasil, se estruturava uma poltica de ocupao de territrios escassamente povoados, sobretudo nas regies de fronteira como a meridional. O contexto da Alemanha, no incio do sculo XIX3, foi marcado por fortes repercusses sociais relacionadas a sucessivos conflitos blicos, revolues polticas e econmicas entre 1830 a 1870. Sem condies de promover o prprio desenvolvimento, a Alemanha, que no existia como unidade nacional, estava dividida entre reinados, principados

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Versos finais do poema Hino Nacional, publicado no livro Brejo das almas, de 1934 e tambm citado por Mirian Santos na tese Bendito o fruto: Festa da Uva e identidade entre os descendentes de imigrantes italianos de Caxias do Sul RS.3

Sobre o contexto econmico e social da Alemanha no sculo XIX, ver: (CUNHA, 1991, p. 18-40).

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e ducados, todos independentes entre si e unidos apenas pelo idioma. A revoluo agrcola e demogrfica que iniciara neste sculo, impulsionou o desenvolvimento industrial e a urbanizao acelerada, abolindo as estruturas agrcolas ainda prximas dos modelos feudais. Esta reforma levou o empobrecimento de milhares de camponeses que no foram absorvidos pelo setor industrial, e a cada colheita ruim, a fome forava os alemes a emigrarem, sendo esta uma das grandes causas do processo emigratrio. (WILLEMS APUD LANDO E BARROS, 1980, p. 14).

O processo de unificao do Estado alemo estava em andamento atravs das polticas aduaneiras de livre circulao de homens e capitais entre todas as unidades independentes, a fim de promover a integrao econmica e comercial dentro da Confederao do Reno. Este mercado comum contribuiu para o desenvolvimento industrial da Alemanha, mas, com a unificao liderada por Bismark em 1871, a industrializao se intensificou, absorvendo parte da mo-de-obra, mas tambm ocasionou a runa de artesos e trabalhadores da indstria domstica, que no resistiram concorrncia das grandes empresas.

Assim, as lutas para a unificao nacional da Alemanha e o crescimento do capitalismo industrial, desde meados do sculo XIX, contriburam para o excedente de mo de obra que se tornariam bem vindas na Amrica pela crnica carncia da mesma. Desta forma, os excludos e marginalizados da Europa encontraram na emigrao uma alternativa para superar as crises econmicas, no mesmo contexto em que, os estados-nao europeus, se livrariam de um excedente populacional que se apresentava como problema social. As polticas de distenso social criadas pelo Estado da Alemanha para amenizar problemas internos, serviram como estmulo para a emigrao que tem o ano de 1824, como marco das primeiras correntes imigratrias para o Brasil4, atravs da atrao de famlias alems para a parte sul, mais precisamente para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran.

J o Estado brasileiro, nas primeiras dcadas do sculo XIX, visava ocupao de suas terras devolutas, sobretudo no Sul do pas. O Governo Imperial e Provincial do incio ao processo de ocupao, atravs da implantao de um projeto com objetivos polticos e militares. Estes objetivos se traduziam principalmente em assegurar a posio brasileira e

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At ento o povoamento brasileiro se realizara atravs da vinda espontnea de colonos brancos, (em sua maioria portugueses), da importao de escravos e incorporao de indgenas. (LANDO E BARROS, 1980, p. 9).

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proteger as fronteiras contra possveis ataques espanhis.5 Agenciadores brasileiros ficaram incumbidos de fazer a propaganda imigrantista e organizar o deslocamento da populao para o Sul do Brasil.

Buscavam-se colonos que formassem ncleos de produo agrcola em regime de pequena propriedade para diversificar a estrutura produtiva brasileira e abastecer o mercado interno com produtos alimentcios. Dessa forma, tambm se resolveria o problema das importaes, diminuindo o seu volume e formando assim, grupos dominadores da poltica e economia local. (PESAVENTO, 1980, p. 156-160). A estes colonizadores era oferecido, inicialmente, passagem paga, concesso de cidadania, concesso de lotes de terra, iseno de impostos por alguns anos e liberdade de culto. Caio Prado Junior (1970) traz duas atividades distintas como os principais fatores para a elaborao das iniciativas imigratriasuma, de iniciativa oficial, cujo objetivo era ocupar e povoar zonas at ento desocupadas e distintas, na maior parte das vezes, da rea de influncia do latifndio; a outra, de iniciativa particular, estimulada pelo governo, visava obteno de braos livres para a grande lavoura, em substituio ao brao escravo. (PRADO, 1970, p. 19).

A colonizao, alm de ser um processo de ocupao estratgica e geopoltica, tambm foi planejada como um processo de substituio do trabalho escravo pelo trabalho livre, e do negro escravo pelo branco europeu, em um processo de colonizao baseado na pequena propriedade. Nesta perspectiva, Santos (2004, p. 39) salienta que a escravido era vista como uma forma arcaica de produo, que no se coadunava com a modernidade, enquanto a colonizao era vista como um processo civilizatrio6. Esta poltica influenciou a busca inicial por alemes, considerados etnia desejvel, para ocupar as terras devolutas do sul do Brasil pela sua ndole e sua capacidade como agricultores e artfices 7. Ainda sobre a poltica imigratria brasileira, Fernando Henrique Cardoso afirma que,

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Este perodo da colonizao foi chamado de colonizao agro-militar (LANDO E BARROS, 1982, p. 43).

Segundo Piccolo (1998, p.464) O estabelecimento do ncleo colonial de So Leopoldo pelo Governo Geral em 1824 foi o marco inicial do processo colonizatrio com imigrantes no-lusos no Rio Grande do Sul (...). Com a colonizao estrangeira, incentivada pelos governos de D. Joo VI e de D. Pedro I, objetivava-se entre outros: a difuso da pequena propriedade e do trabalho livre (em contraposio grande propriedade escravista); a ocupao de espaos ( povoamento associado defesa); o desenvolvimento da agricultura.7

Visconde de Abrantes, 1846 em misso especial do governo brasileiro em Berlim, sugere medidas para atrair imigrantes de nacionalidade alem. (MAIO E SANTOS, 1996, p. 45).

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no se desejava, portanto, resolver apenas o problema da escassez de mo-de-obra; ansiava-se pela renovao das prticas de trabalho; esperava-se a libertao do esprito criador no trabalho, milagre que s o imigrante, isto , o brao estrangeiro, livre, proprietrio, e no peado pelas velhas formas de produo ou por qualquer liame contratual limitativo, poderia realizar. (LANDO, A M.; BARROS, 1980. p.43).

Desta forma a colonizao alem no Sul do Brasil deu origem formao de um novo tipo de campesinato no pas que, por sua vez gerou a construo de ncleos urbanos e de um pequeno mercado regional. No Rio Grande do Sul, as cidades de So Leopoldo, Igrejinha, Teutnia e Santa Cruz do Sul so exemplos destes ncleos urbanos procedentes da colonizao alem.

1.1. Imigrao alem no Rio Grande do Sul

Na provncia do Rio Grande do Sul, a primeira fase de colonizao tem como marco o ano de 1824, data da chegada dos primeiros imigrantes alemes ao Sul do Brasil, uma leva de 38 imigrantes que foram instalados na antiga Feitoria Real do Linho Cnhamo, onde foi fundada a colnia de So Leopoldo junto ao Rio dos Sinos. Alm dessa, outras duas colnias so fundadas em 1826: Trs Forquilhas (Osrio) e So Pedro de Alcntara (Torres), ambas localizadas no nordeste do territrio gacho, prximas ao litoral. (CUNHA, 1991, 54-64).

O processo de colonizao foi interrompido com a lei de oramento de 15 de dezembro de 1830, que proibia despesas com a imigrao. Em funo disso, muitos imigrantes, recm chegados Colnia no receberam o que lhes havia sido prometido, gerando forte descontentamento e contribuindo para a construo de um imaginrio que narra as dificuldades iniciais dos imigrantes, como ser mais bem explorado adiante. A Revoluo Farroupilha que ocorreu entre 1835 e 1845 tambm contribuiu para a interrupo do movimento imigratrio, que s foi reiniciado, e com maior intensidade, a partir do fim do conflito.

Por volta de dezembro de 1849 ocorre a segunda fase imigratria, com a vinda de mais famlias alems para o sul do Brasil. O Governo Imperial Brasileiro funda novas colnias de imigrantes no Vale dos Sinos, Jacu e Taquari e este perodo imigratrio seguiu com fora at incio do sculo XX. A colnia de Santa Cruz do Sul foi um emprendimento iniciado em 19 de dezembro de 1849 com a chegada dos primeiros imigrantes. Estes ocuparam os primeiros lotes de terra demarcada em novembro pelo engenheiro civil, Augusto de Vasconcellos Almeida Pereira Cabral. A localizao destes lotes ficou concentrada no primeiro degrau da

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serra, naquela que se chamaria Picada Santa Cruz ou Alt Picade, (Picada Velha), em terras do distrito rio-pardense da Serra do Botucara, entre a margem esquerda do rio Pardo e o arroio Taquari Mirim.

1.2 Santa Cruz do Sul: a ocupao do ncleo colonial e o desenvolvimento do municpio

A colnia de Santa Cruz foi fundada e gerida pela Provncia de So Pedro, sob a presidncia de Francisco Jos de Souza Soares de Andra (Baro de Caapava), que coordenou a distribuio dos lotes de terra, em 160.00 braas8 quadradas, conforme j vinha sendo distribudo os lotes da colnia de So Leopoldo. (CUNHA, 1991, p. 97). O ncleo colonial de Santa Cruz do Sul surgiu com uma poltica que objetivava a criao de colnias, com pequenos produtores rurais9. Os imigrantes que colonizaram Santa Cruz do Sul vieram do norte da Alemanha, das provncias que formavam a Confederao Germnica, como o Rheno, a Prssia, a Pomernia, a Turingia, a Saxnia, a Westflia, o Hannover e Oldenburg. Entre eles puderam ser encontrados mdicos, artesos, mas principalmente agricultores de heterogeneidade religiosa, pois vieram catlicos, luteranos, judeus, maons, anabatistas, etc. (NEUMANN, 2006, p. 52).

Diversas leis foram criadas para organizar o sistema de assentamento dos imigrantes, principalmente quanto demarcao dos lotes, distribuio destes para homens casados e a proibio de mo de obra escrava. A lei n 229 autorizava a concesso de terras para os imigrantes casados ou vivos com filhos10, mas tinha como principal propsito a tentativa de evitar o isolamento dos imigrantes. Alguns autores que fazem a narrativa deste perodo, afirmam que a vida de um colono solteiro seria muito difcil porque perderia muito tempo com trabalhos caseiros e se sentiria sozinho aps a jornada de trabalho. (MARTIN, 1979, p. 126).

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Cada braa equivalente a 2,2m

Os pequenos produtores rurais poderiam constituir uma agricultura voltada para o mercado interno, ocupao provincial, e a formao de uma classe de proprietrios no ligados poltica e ideologicamente aos interesses dos grandes estancieiros. (VOGT, 1997, p.54).10

Rio Grande do Sul. ndice das leis promulgadas pela Assemblia Legislativa de So Pedro do Rio Grande do Sul desde o ano de 1835 at o de 1851.

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Esta lei forava a realizao de casamentos arranjados pois, para o Brasil era interessante que as pessoas se adaptassem nova terra e constitussem os ncleos coloniais. A mo de obra familiar foi inserida diretamente nas atividades das colnias, j que os imigrantes deveriam tirar sustento dos lotes que lhes tinham sido concedidos e no podiam, ao menos em tese, se valer da mo de obra escrava. Mas tais leis nem sempre eram levadas srio. Alguns autores, como Witt, (1996) e Cunha (1991) afirmam que o momento era de muita anarquia, pois havia ocupaes e demarcaes ilegais, (WITT, 1996, p. 37) feitas por imigrantes mais velhos e distribuio de terras efetuadas para solteiros (CUNHA, 1991, p. 125-130). Ainda a impossibilidade de controlar os fluxos (i)migratrios contribua para as desordens das colnias.

Estes imigrantes foram nomeados de colonos por tornarem-se proprietrios de um fragmento de terra denominada colnia. Sobre este aspecto, Seyferth (1993 p. 60) afirma que a categoria colono usada como sinnimo de agricultor de origem europia, e sua gnese remonta ao processo histrico de colonizao. Ainda, para a autora, tal categoria foi construda, historicamente como uma identidade coletiva com mltiplas dimenses sociais e tnicas. (SEYFERTH, 1993 p. 60). O desenvolvimento da colnia de Santa Cruz processou-se notavelmente, na medida em que a populao crescia ano a ano, somando, em 1851, 175 habitantes. A colonizao foi intensificada a partir de 1852,11 e em 1853, a colnia de Santa Cruz possua 196 lotes distribudos a 692 habitantes. Estes produziam o feijo, milho, batata, cevada, linho e principalmente o fumo nas terras da regio. Neste ano de 1852 registrada a primeira exportao com o envio, por meio da cidade de Rio Pardo, de 245 sacos de feijo e 160 arrobas de fumo. Esta exportao garantiu aos colonos a aquisio de produtos que eles no produziam na colnia, como o sal, remdios e ferramentas de trabalho. (CUNHA, 1991 p. 100). Assim, a produo agrcola era voltada para os gneros alimentcios e para o plantio do fumo que acabou por caracterizar a cultura local com sua produo e exportao a partir do ano de 1860.

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De 1849 a 1859 Santa Cruz do Sul recebeu 2.723 imigrantes. (KRAUSE, 1991, p.47). Estes dados demonstram o intenso movimento imigratrio para a colnia de Santa Cruz.

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Conforme a narrativa de historiadores12 da regio de Santa Cruz do Sul, os imigrantes tiveram vrias dificuldades iniciais, sendo uma delas relacionada adaptao devido desorganizao da administrao pblica da Provncia, e pela localizao dos lotes em meio a florestas, obrigando-os a utilizarem-se das prticas culturais de desmatamento e produo13. Outras dificuldades referem-se falta de estradas, ao choque cultural com a lngua e com os hbitos do local, falta de ambientes para cultos de catlicos e evanglicos, s dificuldades com a educao dos filhos por falta de escolas e professores, as condies climticas e s novas tcnicas agrcolas e de pecuria. Estes aspectos aparecem narrados como agravantes adaptao dos europeus no Sul do Brasil, o que faz supor que a realidade encontrada talvez diferisse da realidade esperada ou imaginada pelos alemes14. Naquele perodo, as autoridades alems viviam um momento de tenses provocadas pelo processo revolucionrio. Desta forma, at 1890 no assistiram seus emigrados e este aspecto pode ter contribudo para a criao de um sentimento de abandono por parte dos alemes que emigraram.

Radnz (2007, p. 121) complementa que a relao Europa/Brasil meridional estava estabelecida atravs de quatro momentos,Em primeiro, descaso quase generalizado com os emigrantes estabelecidos no Brasil, (...) em segundo, um interesse manifesto por parte da elite comercial da Alemanha pelos colonos no perodo que antecede a unificao emigrante como potencial consumidor, (...) em terceiro, um descaso oficial quase geral refletindo a pstuma bismarkiana, (...) e por fim, do fim do sculo XIX at a Primeira Grande Guerra, a necessidade de serem gerados os mercados consumidores colonos almmar passam a ser considerados potenciais consumidores.

Isso demonstra que a Alemanha assiste seus emigrados somente no momento que lhe oportuno, quando as potncias industrializadas estavam carentes de mercados consumidores. Neste momento, o governo deseja manter viva a chama da germanidade, e fornece auxlio s escolas, imprensa e s comunidades religiosas que utilizavam o alemo como meio de

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(KIPPER, 1967 e 1979; VOGT, 1997; MORAES, 1981; AZAMBUJA, 2002).

Estas prticas de derrubar o mato, atear fogo, esperar que secasse construir a choupana, semear e plantar as primeiras lavouras para esperar pela primeira safra j eram utilizadas pelos caboclos e ndios que ocupavam as terras antes dos imigrantes. Dessa forma, possvel subetender que muitos ensinamentos dos caboclos e ndios foram transmitidos ao novo colono.14

Como o Brasil possua muito interesse em atrair alemes e os agenciadores recebiam o pagamento por indivduo aliciado, talvez o discurso para a atrao do imigrante tambm fosse argumentado de forma utpica pelas autoridades brasileiras atravs de seus agentes na Alemanha. Ainda com o passar dos anos, os agenciadores encontravam dificuldades para recrutar alemes e com isso suas atenes ficaram voltadas para a Itlia. (SEYFERTH, 1996).

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comunicao. At metade do sculo XIX, a criao de escolas e comunidades ocorria por iniciativa dos prprios colonos que conforme Radnz, (2007) passaram a construir sua identidade colonial ressignificando suas tradies sob forma de uma negociao entre o antes e o agora. (RADNZ, 2007, p. 125).

Todo processo imigratrio provoca mudanas, tanto para o pas que recebe os imigrantes, quanto para aqueles que emigram, pois a ocupao e organizao de um territrio no ocorrem de forma instantnea, mas num processo de trocas. Corra (2002, p. 23-28), afirma que a histria local precisa passar por uma reviso crtica frente aos novos paradigmas, pois a tendncia hiper valorizao resulta em vises romnticas de acentuado herosmo. Sobre a imigrao e os imigrantes, criou-se uma srie de mitos. O imigrante herico, trabalhador, econmico e realizador da economia gacha a imagem que o grupo criou sobre seus feitos. (Giron, 1980, p.66). Dessa forma, a imigrao narrada at os dias atuais como uma conquista civilizatria dos colonos, que transformaram a selva em ambiente civilizado, sem considerar que a realidade da qual vieram, tambm apresentava um quadro de dificuldades e sofrimento. Assim, comum encontrarmos descendentes de alemes que se percebem com uma demonstrao de superioridade tnica, desconsiderando, muitas vezes, a participao do luso-brasileiro para o desenvolvimento do Estado e do pas. (SEYFERTH, 1994).

Em 30 de novembro de 1854, promulgada a lei que estabelece a venda de terras devolutas e, no mais, a distribuio gratuita das terras do Rio Grande do Sul. Neste mesmo ano, o presidente da Provncia, Joo Lins Vieira Cansanso de Sinimbu, visita a colnia de Santa Cruz, e reconhece a necessidade de um lugar para prtica de culto religioso, j que a igreja mais prxima estava localizada na cidade de Rio Pardo. Neste mesmo momento, o presidente ordena que o Tenente da Armada, Francisco Cndido de Castro Menezes, demarque as picadas de Santa Cruz e Rio Pardinho para a povoao, com reserva de terras para logradouros pblicos e chcaras. Em maro de 1855, a demarcao se transforma num pequeno centro administrativo e comercial de toda a colnia de Santa Cruz, e as atividades econmicas, administrativas e sociais da colnia comeam a ser incrementadas. (MARTIN, 1979 p. 102).

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Com o desenvolvimento social e econmico da colnia, em 1859, esta passa condio de freguesia e, em 1878, instalada a Cmara Municipal que contribui para a autonomia poltico-administrativa. Inicia, neste momento, uma importante fase do desenvolvimento da colnia, caracterizada pelo aumento de exportaes agrcolas, lideradas pelo tabaco. (VOGT, 2001, p. 54).

Ronaldo Wink (2002), em seu estudo sobre a urbanizao e o desenvolvimento de Santa Cruz do Sul aponta que,

de 1881 em diante a especializao fumageira consolidou-se definitivamente, trazendo o progresso econmico ao municpio e viabilizando a sua integrao aos grandes mercados consumidores da poca. Alm disso, proporcionou a implantao de equipamentos e servios em seu ncleo urbano, gerando condies necessrias futuras instalaes do parque industrial. (WINK, 2002, p. 70).

Houve, com isso, um incremento da fumicultura que se destacava como produto diferenciado das outras regies, e apresentava boas condies de competitividade no mercado. Os mritos da qualidade do fumo so tanto dos colonos, quanto da ao dos comerciantes que orientavam os agricultores, do plantio at a colheita e, depois comercializavam com grandes atacadistas de Porto Alegre. (VOGT, 1997, p. 92-100). Neste contexto, Noronha (2006, p. 61) destaca que os comerciantes detinham o controle das principais vias de acesso por onde a produo do fumo escoava, atuavam como banqueiros e monopolizavam as informaes do preo do tabaco. Para este autor, estes comerciantes vo se constituir como o principal grupo de poder poltico do municpio de Santa Cruz do Sul.

Em 19 de novembro de 1905 inaugurado o ramal ferrovirio at Rio Pardo, e tal acontecimento veio para facilitar os transportes e contribuir para a acelerao do progresso econmico e social do municpio atravs da exportao. Na mesma ocasio, a vila de Santa Cruz foi elevada condio de cidade, por causa do seu notvel crescimento econmico, populacional e urbano. A luz eltrica foi inaugurada em 1906, a rede telefnica urbana em 1907, a Hidrulica Municipal da Gruta e o Hospital Santa Cruz em 1908.15

Neste contexto, o incio do sculo XX remete transformaes no cenrio de Santa Cruz do Sul, com obras rodovirias municipais construdas para dar acesso regio serrana da15

Consulta no site do Municpio de Santa Cruz do Sul. www.pmscs.rs.gov.br.

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cidade, e ao fumo que se manteve em pleno progresso, atraindo o capital internacional para a regio. A instalao de algumas empresas como a The Brazilian Tobacco Corporation (1917), antecessora da Companhia Brasileira de Fumos em Folha (1920) e depois Souza Cruz (1955), foram muito representativas neste contexto econmico. Ainda, a instalao dos bancos Pelotense (1916), Nacional do Comrcio e da Provncia (1917), so eventos de destaque no municpio. (VOGT, 1997, p. 101).

Com a produo fumageira crescendo consideravelmente a partir de 1918, Santa Cruz do Sul tornou-se referncia no Estado pelo seu desenvolvimento econmico. Os produtores rurais, que representavam a base do processo tabagista, foram atrelados s grandes empresas atravs do sistema integrado de produo que determinava a venda da produo de fumo empresa fornecedora de insumos agrcolas e assistncia tcnica. Paralelamente ao crescimento das indstrias fumageiras, outros empreendimentos na rea de alimentao (259 estabelecimentos), transformao de minerais no metlicos (62 estabelecimentos), madeira (72 estabelecimentos), bebidas (30 estabelecimentos) e metalurgia (15 estabelecimentos) tambm foram se destacando at o final dos anos 50. (FONTOURA, 1956, p.21).

Entre 1960 a 1970, as indstrias fumageiras de Santa Cruz do Sul so inseridas no processo de internacionalizao. Este momento representou um novo estgio no desenvolvimento econmico regional e, consequentemente, na estrutura social da comunidade. Santa Cruz do Sul juntamente com Venncio Aires e Vera Cruz ganhou expresso no mercado internacional fumageiro por juntas, abrigarem em termos de produo, compra e beneficiamento industrial do fumo, o maior complexo agroindustrial do gnero no mundo. (SILVEIRA, 2003, p. 127). Como decorrncia deste complexo fumageiro, Santa Cruz do Sul passou a ser chamada de capital nacional do fumo, incorporando o bilionrio circuito de praas comerciais mundiais de fumo. A consolidao deste complexo agroindustrial intensificou o processo de modernizao do territrio municipal e notadamente a cidade apresentou um novo contedo tcnico cientfico, ou seja, uma nova estrutura e organizao que permitisse atender o funcionamento do ramo fumageiro no mbito mundial. (SILVEIRA, 2003, p. 130-132).

Ainda, conforme Rogrio Silveira (2003), dentre os reflexos econmicos e espaciais da atividade agrofumageira na cidade, destaca-se a inter-relao do mercado de trabalho

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safrista com a formao da periferia urbana em Santa Cruz do Sul. Houve, com isso, a entrada de trabalhadores provenientes de outros municpios que foram se instalando nas periferias de Santa Cruz do Sul, ocasionando o intercmbio de pessoas. Com o aumento da mo de obra industrial, necessria para suprir as necessidades das indstrias fumageiras, o Poder Pblico Municipal cria um bairro para os operrios, chamado de Cambom, depois Bom Jesus. O crescente processo de ocupao desorganizado e a expanso dos bairros populares geram forte descontentamento e at mal-estar na comunidade do centro e dos bairros de classe mdia e mdia alta.

Sobre este aspecto Bauman (1998) afirma que a sociedade, ao mesmo tempo em que traa suas fronteiras e configura seus mapas cognitivos, estticos e morais, gera tambm pessoas que no se enquadram dentro dos limites julgados fundamentais para a vida ordeira. Para o autor, todas as sociedades produzem estranhos, mas cada espcie de sociedade produz sua prpria espcie de estranhos e os produz de sua prpria maneira. (BAUMAN, 1998, p. 27).

Wink (2002) ressalta que a trajetria de desenvolvimento de Santa Cruz do Sul pode ser dividida em cinco fases: 1 Fase: Origem (1849 1859); 2 Fase: Freguesia e Vila (1859 1878); 3 Fase: Tabaco (1878 1917); 4 Fase: Industrializao (1917 1965); 5 Fase: Plo Regional (1965 at a atualidade). Para cada fase mencionada, como veremos a seguir, ocorreram transformaes culturais, que contriburam para a construo de um imaginrio identitrio do municpio de Santa Cruz do Sul, que tenta, at os dias de hoje, reforar o discurso da identidade alem no municpio como uma cultura hegemnica.

Esta tentativa de diferenciar Santa Cruz do Sul das demais regies por meio do fortalecimento tnico-cultural uma ao que Hall (2003) denomina subordinada, pois tem influncia de um grupo que faz com que as identidades sejam formadas e transformadas no interior das representaes. A idia de representao na histria da filosofia ocidental est ligada busca de formas de tornar o real presente, de apreend-lo o mais fielmente possvel por meio de sistemas de significao. (SILVA, 2000, p. 90).

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1.3 O imaginrio e a identidade tnica em Santa Cruz do Sul

A histria do desenvolvimento do municpio de Santa Cruz do Sul vem tecida, desde o processo imigrantista, em um discurso baseado na etnicidade. Neste sentido, Silva (2007) destaca que esta uma das tnicas da produo das narrativas identitrias da regio, que est sempre aberta a interpretaes, ao jogo poltico e a mitificaes, relacionadas ao ethos do imigrante e a sua epopia civilizatria. (SILVA, 2007, p. 118-119). O Deutschtum, palavra alem que traduz o conceito de germanismo como uma ideologia que se refere conservao das caractersticas culturais, sociais, raciais e dos grupos formados por indivduos de origem germnica, um conceito que se estruturou desde o perodo de formao da sociedade de Santa Cruz do Sul. Essa ideologia, por sua vez, d sustentao poltica e economia e ao engajamento da elite poltica da comunidade, pois fica no centro da geometria de poder das lideranas empresariais e culturais. Desta forma, muitas simbologias foram criadas em torno do pioneiro alemo e da cultura germnica em Santa Cruz do Sul, que passaram a compor uma matriz genealgica representada constantemente como referencial de comunidade, e contornando sobremaneira a participao de outras etnias que tambm participaram e influenciaram o processo de desenvolvimento. Para Silva (2007, p. 121), o imaginrio racial remetido ao sculo XIX e suas alegorias evolucionistas influenciaram o pensamento brasileiro acerca da inferioridade dos negros, mestios e caboclos e em contraponto, as sociedades promoveram a superioridade moral e racial dos teuto-brasileiros num discurso desenvolvimentista. Neste sentido, Skolaude (2008, p. 36) ratifica que necessrio pensar em identidades culturais e em culturas sendo produzidas nas relaes de sociabilidade e poder, atravs do contato poltico, social e pessoal mais intenso com luso-brasileiros, negros e outros grupos culturais.

A concepo da identidade assim alinhavada pela historiografia local, se alicera no essencialismo e no purismo tnico, mas este processo geralmente exclui as minorias que dela fazem parte de fato. Wolff e Flores (1994), salientam que os fatores de identificao tnica dos teuto-brasileiros constituem uma diferenciao e, dessa forma, reforam os preconceitos e esteretipos dos teuto-brasileiros em relao aos luso-brasileiros, talo-brasileiros e viceversa. (WOLFF E FLORES, 1994, p. 212).

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Mas geralmente as temticas relacionadas s imigraes sustentam um discurso naturalizado, que busca sustentar uma identidade, a partir de valores. o que Meyer (2000) demonstra nesta citao,Muitos dos estudos acadmicos, reportagens jornalsticas e artigos comemorativos que se ocupam da temtica da imigrao alem referem-se cultura como um conjunto de crenas, valores, tradies e prticas que os imigrantes alemes trouxeram de sua terra natal a qual corresponderia ao que denominado, a, de sua bagagem cultural. (...) O conjunto desses processos acaba por conferir a cada bagagem pronta um carter que transcende e complexifica a simples noo dela como se fosse um conjunto finito e fixo de coisas, que algum voluntariamente empacotou e transporta para usar da mesma forma em variados lugares; uma complexidade que, na associao usualmente feita entre bagagem e cultura, parece ser negada, tambm, a essa ltima quando ela referida como conjunto de hbitos, crenas, valores e tradies que, como coisas, acumulados, preservamos e transmitimos. Essa noo pode ser problematizada em mais de um sentido, uma vez que o seu uso no s constri as idias de reificao e fixidez da cultura, mas tambm a possibilidade de sua homogeneidade intragrupal, quando deixa de enfatizar os processos de seleo e as relaes de poder que os modulam. (MEYER, 2000, p. 36-37).

Na afirmao que Azambuja (2002) faz sobre a vinda dos imigrantes alemes, observamos esta viso atravs da seguinte afirmao, consigo trouxeram seus valores, seus hbitos, suas crenas, sua lngua, que tiveram papel fundamental na construo desta regio. (...) Essas marcas so observveis tanto nos valores e costumes, bem como na arquitetura. (AZAMBUJA, 2002, p. 11). Assim podemos inferir que a leitura que alguns autores fazem do processo imigratrio, bem como da cultura teuto-brasileira na regio, constituem um discurso ufanista e essencialista da identidade. Cabe ento salientar que as identidades so construes que os grupos sociais fazem, a partir das vivncias e representaes do passado sob influncia do presente e, desta forma, a historicidade e veracidade tornam-se fictcias e distantes. (HALBWACHS, 2004). A identidade , assim, uma construo histrica que ocorre entre pessoas ou grupos em um determinado espao geogrfico, que organizam sua vida com base num conjunto de valores compartilhados. Ainda, as identidades so frutos de construes histricas que mesclam experincias passadas com realidades presentes.

Seyferth (1994, p. 19) acrescenta que algumas publicaes comparam o pioneirismo dos colonos ao papel dos bandeirantes paulistas no povoamento do interior do Pas. A imagem que emerge dessa comparao a do colono pioneiro, com ampla capacidade de trabalho derivado de sua condio tnica, que criou um mundo civilizado cercado pela barbrie cabloca. Sabe-se que alguns hbitos e costumes persistiram no Brasil porque as

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colnias ficaram concentradas em reas restritas e isoladas, s vezes com pouco contato com a sociedade brasileira, o que no quer dizer que no sofreram a interferncia de outros costumes, fornecidos por outras etnias. Os hbitos da cultura alem foram se disseminando no s pela concentrao dos grupos nas colnias, mas tambm pelo sentimento de pertencimento e desejo de preservao da cultura alem. Muitas comunidades alems viviam parte da cultura nacional, com valores, normas, pautas de comportamento mais prximos da Alemanha do que do Brasil, sendo mais fcil um luso-brasileiro aprender hbitos da cultura alem do que um imigrante alemo adquirir os hbitos nacionalistas.

Magalhes (1998, p. 21) afirma que, comparado com outros grupos tnicos de imigrantes, os alemes representaram apenas 9% do total dos emigrados no Brasil, mas se distinguem pela sua concentrao demogrfica em determinados territrios. A imigrao alem acarretou uma concentrao tnica em reas homogneas e compactadas, o que no significa dizer que outras etnias no foram introduzidas nestas reas. Mas como o nmero destes demais grupos era pequeno, muitos consideravam as colnias alems como homogneas. (SEYFERTH, 1996, p. 49).

Muitos autores como Woortmann (1988); Giron (1980, 1994); Seyferth (1994), Silva (2007) entre outros, fazem crticas em diferentes graus, aos trabalhos que louvam tanto os imigrantes alemes como os italianos. Destaca-se entre as crticas, a idia de epopia. Estes autores, se referem a construo deste imaginrio de supervalorizao do imigrante como um mito, que chamam de mito do pioneiro. J para muitos descendentes de alemes e italianos, a viso vitoriosa disseminada e compartilhada facilmente, especialmente nas pocas em que ocorrem comemoraes de centenrios de imigrao.

A recriao da teuticidade na realidade sul-rio-grandense e brasileira nasce, interage e integra-se com outras etnias, e esta troca de culturas se enriquece e permite que uma nova seja criada. Assim, a cultura encontrada em Santa Cruz do Sul no unicamente teuto-brasileira. Ela possui diversos traos de outras etnias e tambm gacha e brasileira. Canclini (1997) denomina estas manifestaes como hbrida, porque se mistura e por que os grupos interagem entre si e promovem mudanas nos padres culturais originais dos grupos envolvidos. Assim, o imigrante alemo, ao instalar-se no sul do Brasil, vai recriar sua identidade, e traduzir valores baseados na famlia, no trabalho, na religio, entre outros.

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Emlio Willems (1940) tambm recorre noo de cultura hbrida, e explica que ela resultante do contato dos imigrantes e seus descendentes com o meio ambiente, a sociedade e a cultura brasileira, ou seja, uma cultura que no nem alem, nem brasileira, mas sim uma mistura de ambas produzida pelo processo de colonizao. Neste sentido, o processo de adaptao dos imigrantes alemes com a realidade pode ser pensado a partir da categoria utilizada por Bhabha (2003, p. 27), que corresponde a cultuar aquelas tradies trazidas da terra natal e adapt-las a realidade da nova terra, dando origem a uma terceira cultura. Dessa forma, os costumes foram sendo adaptados e mesclados, desde a poca em que os colonizadores tiveram contato com as populaes luso-brasileira pr-existente na regio de Santa Cruz do Sul.

A construo da identidade um fenmeno que se produz com critrios de aceitabilidade, credibilidade e se faz por meio da negociao direta com outros. Memria e identidade so valores disputados em conflitos sociais e intergrupais e em conflitos que opem grupos polticos diversos. No podemos deixar de considerar que toda relao de identidade implica em operaes de incluir e excluir, uma vez que demarca aqueles que pertencem e aqueles que no pertencem. Sendo assim, a defesa por uma identidade, automaticamente pressupe uma relao de poder. Seus significados culturais e sociais so apoiados em representaes e estas se ligam a sistemas de poder, quando representam quem tem ou no poder de definir e determinar a identidade. Assim, a constituio das identidades sempre depende de paradigmas de valores, de forma a colocar o sujeito numa relao de poder. A comparao tambm passa a ser uma forma de confrontar particularidades de uma identidade, com as caractersticas gerais de outras identidades, tidas como diferentes. (WASSERMAN, 2001).

Para Rossini (2004, p. 11)A identidade a forma como o grupo define a si mesmo e a sua trajetria, social, cultural, histrica, marcando com isso sua diferena, sua alteridade em relao a outro grupo. o momento em que o grupo aplaina suas diferenas internas, a fim de ressaltar seus traos em comum, a fim de demarcar seu espao de ao, no campo das representaes, diante do outro.

Para Vogt (2001), alguns meios foram utilizados como veculos de (re)produo cultural em Santa Cruz do Sul como a imprensa teuto-brasileira, a escola comunitria alem, a

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religio e as atividades desenvolvidas pelas diferentes sociedades. Tambm a importncia dada ao trabalho, educao, lngua, heimat16 e ao associativismo, foram meios de (re)produo cultural em Santa Cruz do Sul. Estes meios sustentaram um imaginrio como por exemplo, a cultura do trabalho que, para os alemes, constitui uma atividade geradora de riquezas ou necessria para a sobrevivncia, mas tambm, segundo o trabalho representa um valor moral e um fator de identificao tnica. (SEYFERTH 1982, p. 74-155). Assim, a tica do trabalho se constituiu como ferramenta essencial do esprito empreendedor e associativo, bem como a moralidade e a higiene na vida cotidiana, significados mticos que permitem a configurao de um imaginrio comum.

O discurso germanista impulsionou a formao cultural da comunidade de Santa Cruz do Sul, mas, a partir de 1937, com a Campanha de Nacionalizao17 posta em prtica pelo Governo Vargas, o germanismo cedeu lugar para a construo de um discurso vitimizador, novamente usado pelos descendentes alemes para promover a prpria supervalorizao da sua cultura.

Com as mudanas no panorama regional ocasionados pela Campanha de Nacionalizao, as ideologias so difundidas, os regionalismos e localismos comunitrios destrudos, a lngua alem, bem como, as manifestaes lingsticas, artsticas e culturais, proibidas. As primeiras medidas visavam estimular o patriotismo nacional e, por isso, atingiram as escolas primrias de ensino em idioma alemo, atravs da incluso de disciplinas de portugus, de conhecimentos gerais de histria, geografia e educao cvica sobre o Brasil. Alm da escola, o Decreto n. 1.545, de 25 de agosto de 1939, estabeleceu as prdicas religiosas em lngua nacional. A campanha proibia o uso de idiomas estrangeiros em pblico e em cerimnias religiosas, interferindo na vida cotidiana de cada comunidade, pois a lngua materna (alem) era o elemento aglutinador de sua identidade. (SEYFERTH, 1999 p. 221).

Entende-se que a represso da lngua impactou a comunidade daquela poca, pois a16

Heimat, palavra alem que traduz o conceito de ptria ou terra-natal derivada de Heim (lar). A palavra Heimat incorpora a moradia, a Haus, a Heim, o estar em casa, der Hof, o mini territrio em que se concretizam a vida e as relaes familiares e a Heimat, a terra natal, a querncia que realizada pelo mundo fsico e cultural mais imediato e, ao mesmo tempo, palco das relaes comunais. Significa, portanto, o espao e o mundo comunal em que a pessoa nasce, cresce e se torna adulta e no qual se enraza e com o qual se desenvolve relaes existncias permanentes e indelveis. (RAMBO, 1994, p. 48).17

Sobre a Campanha de Nacionalizao, os autores Kipper (1979); Azambuja (2002); Seyferth (1999); Petry (1956) e Vogt (2001) tambm contribuem para um melhor entendimento.

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proibio soava como uma ameaa direta para a cultura, a lngua materna, a Heimat. Desta forma, muitos historiadores locais relatam que as medidas nacionalizadoras ocasionaram a diminuio da vida social e cultural da comunidade, j que a maioria da populao evitava a exposio por no falar nem entender o portugus, alm de conseqncias como o fechamento de jornais editados em lngua alem, como o Kolonie18, e de instituies, associaes comunitrias e culturais fizeram com que a imprensa em lngua alem, escolas teutobrasileiras e algumas instituies culturais desaparecessem. Para Vogt (2001, p. 82) a Campanha de Nacionalizao deixou seqelas profundas porque gerou constrangimentos, medo e insegurana aos descendentes alemes. Grtner (1999) tambm compartilha deste pensamento, e destaca uma srie de valores ao salientar que a lngua alem patrimnio de toda a coletividade rio-grandense19. Contudo, Correa (2002) considera que, nas condies urbanas, o abrasileiramento no se deu de forma to violenta, pois o viver na cidade se constitua em fator preponderante para a integrao dos descendentes de alemes nas reas de colonizao e imigrao no Rio Grande do Sul. Sendo assim, a vida urbana no exige a mesma solidariedade ou a mesma vida em coletividade daquela do meio rural, ou seja, muitos descendentes almejaram aprender a falar fluentemente a lngua portuguesa e conscientemente abandonaram o idioma materno e tampouco quiseram ensin-lo aos seus filhos (CORREA, 2002, p. 87). O que se percebe na historiografia tradicional que este perodo, mais uma vez, foi encarado de forma vitimizadora e por esta razo, h muitos defensores da preservao da lngua, bem como dos costumes. Esta tentativa colabora diretamente para a delimitao de grupos e para a constante tentativa de manuteno da identidade tnica das sociedades.

Bourdieu (2001) destaca que a defesa da lngua/dialeto representa a busca pela definio de uma identidade regional/tnica, atravs da manipulao simblica. Nas palavras do autor,As lutas a respeito da identidade tnica ou regional, quer dizer a respeito de prioridades (estigmas ou emblemas) ligadas origem atravs do lugar de origem e

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Kolonie Principal jornal de Santa Cruz do Sul, editado em lngua alem. Editado por Stutzer & Hermsdorf, depois Kalsing & Kull e, finalmente, Lamberts & Riedl, de 1/1/1891 a 29/8/1948. Gazeta do Sul, 26/01/2007).19

Grtner (1999) ainda sugere algumas medidas para o resgate da lngua alem. preciso que aqueles que esto conscientes de sua importncia continuem falando-a, ou recomecem a fal-la, incentivando dessa forma a estima pelo idioma dos antepassados. Mas, sobretudo, preciso que se possibilite a cada nova gerao a apreenso da lngua dialetal, em seio familiar, e posteriormente o acesso lngua alem-padro atravs do ensino formal, para que ela possa expandir a sua capacidade de comunicao-expresso nesse idioma. (GRTNER, 1999, p.74). Artigo extrado do site (www.brasilalemanha.com.br).

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dos sinais duradouros que lhes so correlativos, como o sotaque, so um caso particular das lutas das classificaes, lutas pelo monoplio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definio legtima das divises do mundo social e, por este meio, de fazer e desfazer os grupos. Com efeito, o que nelas est em jogo o poder de impor uma viso do mundo social atravs dos princpios de diviso que, quando se impem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo. (BOURDIEU, 2001, p. 113).

Passado o perodo de represlias contra as manifestaes de outras culturas, gerados pela Campanha de Nacionalizao, mas tambm pela Segunda Guerra Mundial, a partir da dcada de 60, mais precisamente de 70 do sculo XX, o discurso tnico retoma flego e aparece revigorado com iniciativas que buscavam construir e fortalecer a identidade do municpio de Santa Cruz do Sul, calcada diretamente na etnicidade. Neste momento, com a globalizao sendo intensificada no mundo todo, as comunidades que foram reprimidas, vem a necessidade de resgatar a cultura para a nova gerao. O apelo s razes uma maneira de recuperar e, na verdade, inventar tradies que reconectem pessoas a lugares (reais ou imaginrios) e a temporalidades. Para Skolaude (2008, p. 46), a dcada de 1970 marcou um divisor de guas para estas relaes, pois em 1972, alguns sinais j demonstravam a necessidade de fortalecer a identidade germnica no municpio de Santa Cruz do Sul. Um exemplo disso foi o discurso feito pelo secretrio do turismo de Santa Cruz do Sul, Edson Baptista Chaves, na poca, ao afirmar que, o turismo de Santa Cruz do Sul devia explorar as caractersticas tnicas, j que foi essencialmente colonizado por alemes. Devia apresentar aos visitantes atrativos da cultura alem, como uma Casa do Chope, e oferecer pratos tpicos como forma de diferenciarse dos outros municpios do Estado20. Neste sentido, diversas iniciativas conservacionistas comeam a ser impulsionadas no municpio.

1.4 Representaes do germanismo em Santa Cruz do Sul

Podemos afirmar que a maior participao nas iniciativas em torno do fortalecimento da identidade alem no municpio de Santa Cruz do Sul, foi sendo construda com o envolvimento da elite social que via, neste ideal, a possibilidade de diferenciar-se dos demais20

Jornal Gazeta do Sul (27/05/1972, p.3).

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municpios e uma forma de garantir a sustentabilidade turstica. Em uma reportagem do colunista Ivo Scherer ao principal jornal local dizia: tudo muito simples, pois a inteno principal manter os costumes e a unidade da cultura alem21 e, partindo disso, as aes/iniciativas comearam a ser criadas e executadas no municpio.

Aquela memria que estava silenciada e tmida por sentimentos acumulados ao longo do tempo da represso das manifestaes culturais, agora encontra espao e momento propcio para florescer e representar, de diversas maneiras, aqueles sentimentos contidos. Assim, do medo e da vergonha, o sentimento passou a ser de orgulho e coragem para expressar o que havia sido reprimido, expressar das mais variadas formas o resgate das tradies germnicas.

O Poder Pblico de Santa Cruz do Sul introduziu as primeiras iniciativas de expresso do germanismo. Um exemplo as representaes contidas no Braso do Municpio22, mesmo sendo criado em 29 de dezembro de 1964, alguns anos antes deste movimento mais intenso de resgate da cultura alem, j podemos perceber a valorizao ao colono alemo. O Braso tem a representao de um casal, que com o seu trabalho contriburam para o progresso e desenvolvimento da cidade. No site do municpio de Santa Cruz do Sul, encontramos uma explicao do Braso,

Escudo Portugus de ouro, esquartelado por uma cruz de prata, simbolizando o nome do municpio. No primeiro quartel, em campo de goles (vermelho), trs pinheiros de sua cor tendo, ao fundo em prata, os cerros que formam o perfil geogrfico de Santa Cruz do Sul; no segundo quartel, em campo de blau (azul), a figura estilizada de um casal colonos, em ouro; no terceiro, em campo de sinople (verde), um arado antigo, de ouro, simbolizando os trabalhadores pioneiros da agricultura local, obra imortal dos colonos que primeiro devassaram os campos e iniciaram a construo da cidade; no quarto, em campo de goles (vermelho), os smbolos do comrcio e da indstria, em prata, emblema do progresso e desenvolvimento crescente do municpio, em marcha para o futuro. Ramos de fumo, florescentes, circulando o braso, como tenentes sustentadores que so, agrcola e industrialmente, do desenvolvimento de Santa Cruz do Sul. Ramos e flores em suas cores naturais. Listel de goles (vermelho), carregado das palavras SANTA CRUZ DO SUL em prata. Tudo encimado pela coroa mural de quatro torres, de prata.

21 22

Jornal Gazeta do Sul (15/07/1978, p. 16).

O Braso do municpio usado em todos os papeis oficiais e escolas municipais e em algumas fachadas de propriedades municipais e foi criado no governo de Orlando Oscar Baumhardt.

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Imagem 1 - Braso Municipal de Santa Cruz do SulFonte: Site da Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul

Em 1969 foi criado o Monumento ao Imigrante Alemo pelo desenhista santacruzense Hildo Paulo Mller. Esta representao nos remete a importncia dada ao imigrante alemo e cultura do trabalho, pois nele consta a data da fundao da colnia, 1849, e o nome dos primeiros colonizadores. Constitui-se na homenagem prestada pela comunidade santacruzense aos imigrantes que, com seu rduo trabalho, colonizaram o municpio.23 O monumento simboliza a vida dos imigrantes na colnia. Nele retratada a figura de um imigrante lavrando a terra e outro semeando.

Imagem 2 - Monumento do imigrante alemoFonte: Site da Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul

23

Prefeitura de Santa Cruz do Sul, (http://www.pmscs.rs.gov.br).

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No ano de 1978, outras iniciativas foram implementadas no municpio, entre elas, a construo da Avenida do Imigrante e a organizao da I Semana da Imigrao Alem,24 elaborada pela Secretaria Municipal do Turismo, juntamente com a Comisso dos festejos do Centenrio. Neste mesmo ano e em 1979, a Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul, conjuntamente com o Jornal Gazeta do Sul, patrocinaram o Concurso de Monografia intitulado Santa Cruz do Sul Aspectos de sua Histria. A Associao Pr-ensino de Santa Cruz do Sul (APESC), presidida na poca por Ervino Hoelz, se encarregou de publicar as monografias vencedoras como forma de investir na conservao e manuteno da cultura local. Este concurso pretendia estimular pesquisas sobre a histria local, porm contribuiu tambm para a valorizao de uma das genealogias da cidade, a alem.25

Em 1979, seguindo o modelo da Semana da Imigrao Alem de 78, ocorre a 2 edio deste evento. Durante a abertura, as narrativas sobre a importncia da cultura alem foram reforadas com o discurso do Secretrio Municipal de Turismo, Ademir Mueller, que j manifestava o desejo de realizar, por meio da sua secretaria, um grande evento de conotao germnica ao ensejo da Semana da Imigrao. Em suas palavras,

que este evento faa ressaltar os olhos do Rio Grande e do Brasil as tradies, a cultura e o trabalho do povo de Santa Cruz do Sul. Lamentavelmente lembrou Ademir a II Guerra Mundial representou verdadeira catstrofe, no s para a economia, mas tambm para o setor cultural, afetando profundamente os costumes da regio.26

A partir de 80, as intenes de oficializao e naturalizao da identidade alem no municpio de Santa Cruz do Sul so intensificadas. Atravs da Secretaria do Turismo da cidade, grupos de danas folclricas foram trazidos da Alemanha, com a pretenso de valorizar o folclore alemo e incentivar a criao destes grupos na cidade. Uma alegre noite alem no embalo da amizade teuto-brasileira27 era a frase do anncio que divulgava o evento no jornal Gazeta do Sul.

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Nesta 1 Semana da imigrao alem, que ocorreu de 16 a 25 de julho de 1978, os santa-cruzenses prestigiaram a extensa programao que foi composta por Missas, Noite do Kerb, Concursos, (Imigrante Alemo mais Idoso e de bandinhas tpicas alems), Jogo de Argolas e Exposio de antiguidades.25 26 27

Jornal Gazeta do Sul (07/04/1979, p 16-17). Jornal Gazeta do Sul (25/07/1979, p. 21). Jornal Gazeta do Sul (25/07/1980, p. 3).

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No mesmo ano, seguindo os mesmos ideais de recuperao das tradies germnicas, surge o 1 grupo de danas alems do municpio coordenado pelo prof. Nelson Bender.28 Segundo o Prefeito da poca, Arno Frantz, o grupo de danas serviria como uma iniciativa para promover a cultura e o reavivamento do folclore alemo no municpio.

Com a justificativa de colocar Santa Cruz do Sul no mercado turstico brasileiro, a Prefeitura Municipal, juntamente com a Secretaria Municipal de Turismo, cria a Oktoberfest no ano de 198429. A festa surge como marco inicial na formao de um produto turstico do municpio. Ademir Mueller, Secretrio do Turismo da poca e idealizador do evento, enxergava na criao de uma festa tnica a possibilidade de explorar o turismo local e reforar a identidade do municpio atravs do germanismo. Para ele, o turismo era visto como uma necessidade de todo ser humano que precisa parar para recuperar suas energias e, neste sentido, Santa Cruz do Sul, por meio do atrativo da Oktoberfest, poderia transforma-se num centro turstico para o Rio Grande do Sul. Num discurso motivador, ele incentiva a populao a pensar no assunto atravs da seguinte afirmao:

Oktoberfest identifica o povo s suas origens germnicas Ns podemos sim. Para tanto basta um trabalho ordenado, participativo, com iniciativa privada trabalhando ativamente, arregaando as mangas para juntos edificarmos este plano. (...) Ento a Oktoberfest serve para levar o nome da nossa cidade, identificando-se como uma terra colonizada por imigrantes alemes e apresentando um povo ordeiro e trabalhador, mas que tambm sabe se divertir e bem acolher os que visitam. (...) O produto turstico chamado Santa Cruz do Sul ainda no est formado completamente. Para tanto necessrio desenvolver o nosso folclore riqussimo e que estava em decadncia, desenvolver a indstria caseira de alimentos, o artesanato, aumentar a capacidade hoteleira, melhorar ainda mais os servios de atendimento e oferecer roteiros permanentes com atrativos para diverses e compras.30

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Nelson Bender foi um pesquisador do folclore alemo no municpio, professor do primeiro grupo de danas chamado de Grupo de Danas Polka, e criador do programa de rdio Gazeta no folclore que tambm representava mais uma ao do germanismo no municpio. (Jornal Gazeta do Sul, 25/03/1980, p. 03).29

A Oktoberfest um festival de cerveja e uma feira de produtos e diverses celebrada originalmente em Munique (Mnchen), no estado da Baviera (Bayern), no sul da Alemanha, e disseminada por vrios lugares do mundo. Em Munique, a Oktoberfest teve origem h cerca de 200 anos, em 12 de outubro de 1810, quando o Rei Lus I, mais tarde Rei da Baviera, casou-se com a princesa Tereza da Saxnia, e para comemorar, organizou uma corrida de cavalos. O casal foi apropriando-se da festa que comemorava o casamento de ambos e tudo foi se tornando tradio anual, metamorfoseando-se numa monumental festa da cerveja, patrocinada pelos fabricantes da regio. A Oktoberfest de Munique recebe cerca de seis milhes de visitantes por ano e s foi interrompida durante os perodos das grandes guerras (Sasse, 1991). No Brasil, outros municpios tambm realizam a Oktoberfest, como o caso da cidade de Blumenau em Santa Catariana.30

Jornal Gazeta do Sul (27 e 28/09/1985, p 11).

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A obra Fragmentos de vida, editada pela Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul (EDUNISC), em 1999, outra iniciativa que apoiou s iniciativas de fortalecimento da cultura alem. Criada em comemorao aos 150 anos de colonizao, conta, atravs de vinte crnicas, as histrias dos imigrantes alemes e de seus descendentes, e reflete aspectos de uma comunidade totalmente estimulada pelos traos da memria e imaginao. Nesta obra, mais uma vez, os colonizadores aparecem como pessoas trabalhadoras, solidrias, mas corajosas que transformaram a regio no que ela hoje, desenvolvida e, por isso, so merecedores do xito econmico que desfrutam na cidade. Sobre este aspecto, citamos Da Matta (1986) que afirma que o trabalho sempre indica a idia (ou ideal) da construo do homem pelo homem. Um controle da vida e do mundo pela sociedade. (DA MATTA, 1986, p.9).

Nota-se que as iniciativas identitrias no municpio de Santa Cruz do Sul foram estimuladas por aes do Poder Pblico Municipal e sobre isso Weber (1997) afirma que a categoria poltica inspira a crena na etnicidade comum, ou seja, o estado que tem a capacidade de criar uma identidade pressuposta entre seus cidados. Mas, alm do Poder Pblico Municipal, agentes da comunidade e formadores de opinio tambm realizaram medidas para a valorizao tnica. Citamos os veculos de comunicao local, como jornais, televiso e rdio, como grandes influenciadores na construo de uma identidade distinta.

Como os formadores de opinio enquadram-se os discursos produzidos pela RBS TV (Rede Brasil Sul de Comunicao)31 e o principal jornal da cidade, a Gazeta do Sul. Estes se utilizam do discurso identitrio dos grupos regionais para, de certa forma, promover os seus trabalhos, ou seja, assumem um papel ativo no processo contnuo de auto-imaginao dessas comunidades, ao mesmo tempo em que se apropriam dos valores, reforando as identidades regionais. o que aconteceu tanto na comunidade de Santa Cruz do Sul, marcada pela descendncia alem, como na de Caxias do Sul, onde h o predomnio de descendentes de italianos.

31

A RBS afiliada da Rede Globo.

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Um exemplo disso a criao do programa que vai ao ar desde setembro de 200232 pela RBS TV de Santa Cruz do Sul, chamado de Preserve o que nosso. Este instrumento utilizado para alimentar a memria da comunidade, atravs da valorizao da histria arquitetnica regional e das iniciativas de pessoas preocupadas em manter seus referenciais identitrios33. Para Sturmer (2006), o programa,evidencia casas antigas que foram restauradas, mostrando representantes das famlias ou de pessoas que tm ou tiveram relao com as edificaes, contando histrias que se passaram em seu interior ou detalhando o trabalho de restaurao e os motivos que levaram restaurao. (...) Essas produes levam em considerao as seguintes noes: a relao entre o passado e o futuro, a relao entre os ambientes rural e urbano e os elementos de reconhecimento identitrio. (STRMER, 2006, p. 9)

A representao televisiva, ao mesmo tempo em que cria condies de comunho, dinamiza e consolida as identidades no interior das comunidades imaginadas, (STURMER, 2006, p.2) e a transmisso da Oktoberfest tambm demonstra isso, pois a festa apresentada como um retorno s tradies legadas pelos antepassados, sendo que no passa de uma tradio inventada pelos adjetivos de coragem, higiene e esprito associativo ressaltados e reverenciados na festividade, como detalharemos no texto nos prximos captulos. Tanto a RBS TV quanto o Jornal Gazeta do Sul cobrem a festa nos dias de realizao e inclusive se instalam dentro do Parque para realizar a cobertura durante o evento, e de outros da mesma natureza, como Festa das Cucas, a Kerbfest, a Christkindfest.

O maior jornal do municpio, Gazeta do Sul, que atua h sessenta e dois anos na cidade, edita frequentemente34 especiais que trazem aspectos da colonizao, da cultura e das tradies em Santa Cruz do Sul, e so lidos por cerca de oitenta mil leitores35 de todo Estado e fora do Rio Grande do Sul onde o jornal circula. No municpio tambm j figuraram mostras do cinema alemo e exposies de fotos antigas dos imigrantes.

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Antes disso, entre julho e dezembro de 1999, a RBS TV VRPT exibiu a srie Lutas, Memrias e Conquistas, que contou a histria da colonizao na regio, dentro do projeto 150 Anos da Imigrao Alem. Foram 60 captulos com um minuto de durao.33

Extrado de um documento de apresentao do Preserve o que nosso, assinado por Clairton Braun, diretor do programete.34

O Jornal Gazeta do Sul elabora em julho de cada ano um caderno para homenagear o colono e motorista, e em outubro de cada ano faz o caderno da Oktoberfest, em ambos a histria da imigrao alem, cultura e tradies so fortemente mencionadas.35

Segundo pesquisa do Ibope, informao divulgada no site http://www.gazetadosul.com.br/institucional

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Assim, podemos inferir que, a identidade dos grupos surge a partir daquilo que ele mesmo reproduz, a partir da narrativa de sua histria e da sua postura social frente a outros grupos tnicos. Em Santa Cruz do Sul este discurso orgulhosamente afirmado quando, de forma geral, mantm relaes e cria representaes da cultura germnica. A representao das identidades coletivas, entre elas a tnica, estabelece pontes simblicas entre indivduos com interesses comuns que articulam sua insero na comunidade. Partindo desse ponto de vista, a representao da identidade tnica contribui para a manuteno e reconfigurao da comunidade alem, ou seja, as representaes atuam na atualizao da memria, na atualizao dos contedos subtrados do contexto original. (SILVEIRA APUD STURMER 2006, p.7).

Ainda podemos classificar como comunidade o grupo que vive em certo espao geogrfico, divide os mesmos objetivos e realidade e identifica-se com experincias semelhantes. Torna-se uma comunidade imaginada, quando mantm uma perspectiva de comunho, de conexo com os membros dessa comunidade, por mais que estes no se conheam. As comunidades locais, construdas por meio da ao coletiva, constituem fontes especficas de identidade. Essa identidade, porm, consiste numa reao de defesa contra os desequilbrios e a desordem global e pelas rpidas e incontrolveis transformaes decorrentes da globalizao. As comunidades, assim, constroem abrigos, e esses abrigos procuram manter, pelo menos em parte, a cultura, a identidade e a memria social de um povo. (CASTELLS, 2002).

Maurice Halbwachs (2004) contribui com as cincias sociais ao propor o conceito de memria coletiva, e ao definir os quadros sociais que compem esta memria. Para o autor, no existe memria puramente individual, uma vez que as pessoas esto a todo o momento interagindo e sofrendo a ao da sociedade. Bosi (1987) afirma que a memria permite a relao do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representaes. A autora ainda declara que cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, que muda conforme o lugar que algo ocupa e que este mesmo lugar muda segundo as relaes que mantemos com outros meios. Assim, as lembranas do passado esto sempre sendo reconstrudas conforme o lugar atual que se ocupa.

Tambm Pollak (1992), enfatiza a relao entre memria e identidade, definindo a

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memria como um fenmeno construdo (consciente ou inconsciente), como resultado do trabalho de organizao (individual ou socialmente). Sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, tambm um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruo. Identidade para este autor a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela prpria, a imagem que ela constri e apresenta aos outros e a si mesma, para acreditar na sua prpria representao e tambm para ser percebida da maneira que quer pelos outros.

Esta reviso do processo histrico de Santa Cruz do Sul, imigrao, imaginrios e representaes criadas como alternativas para promover o discurso da identidade local so importantes, na medida em que a histria da imigrao e desenvolvimento da cidade simbolizada na Oktoberfest, atravs de inmeros elementos que compem a festa e sero descritos no terceiro captulo deste trabalho.

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CAPTULO 2

AS FESTAS TNICAS E A OKTOBERFEST DE SANTA CRUZ DO SUL

Nada seria mais falso na verdade do que acreditar que as aes simblicas (ou o aspecto simblico das aes) no significam nada alm delas mesmas (...). Pierre Bourdieu

O objetivo deste segundo captulo apresentar a importncia das festas tnicas como manifestaes simblicas para a construo do imaginrio e da identidade de uma sociedade. Para tanto, trazemos inicialmente alguns trabalhos atuais sobre festas tnicas para, em seguida, tratarmos do histrico das principais festas do municpio de Santa Cruz do Sul, a Festa Nacional do Fumo (FENAF), e, principalmente, a Oktoberfest.

O Brasil realiza festas desde o perodo colonial, e foi neste perodo que as festas estabeleceram uma relao social entre colonizadores portugueses, negros e indgenas e promoveram o hibridismo cultural nacional. Os historiadores tm apontado a importncia das festas para a construo de laos sociais e, para a formao do hibridismo cultural brasileiro.

Para Amaral (1998, p. 47) as festas instituram um contrato social, que inclua a busca de semelhanas, dentro das diversidades, atravs da linguagem, do dilogo entre os diferentes. Assim, para a autora, desde o perodo colonial as festas estabeleciam a comunicao entre as culturas e criavam um modelo de sociabilidade, servia como mediao entre natureza local e o instrumental cultural dos colonizadores, (entre etnias, mitos e tempos histricos diversos).

Durkheim apud Amaral (1998) faz uma reflexo sociolgica sobre a funo recreativa

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das festas ao afirmar que, no divertimento de determinado grupo, o indivduo desaparece e passa a ser denominado pelo coletivo, e desta forma as crenas grupais e as regras tornam possvel a vida em sociedade. (DURKHEIM PUD AMARAL, 1998, p.26). Ainda, a autora salienta que, para Durkheim, os laos sociais correm o risco de se desfazerem e as cerimnias festivas, ou os ritos religiosos, possuem o papel de mant-la unida. Assim, as festas contribuem para que a sociedade estabelea os laos sociais. Da Matta (1986) explica que todas as festas ou ocasies extraordinrias recriam e resgatam o tempo, o espao e as relaes sociais (DA MATTA, 1986, p. 81). J as pesquisas mais atuais sobre o assunto apontam para os significados e as representaes que as festas possuem para as sociedades. Estas pesquisas destacam que as festas podem explicar a forma de organizao de determinada sociedade e suas contribuies para a formao de uma identidade diferenciada. o caso das pesquisas de Amaral (1998), Santos (2004) e Morigi (2007), conforme detalharemos abaixo.

Amaral (1998) pesquisou as principais festas brasileiras como a Oktoberfest de Blumenau, as Festas Paulistas, as Festas Juninas, as Festas do Divino Esprito Santo, e a Festa do Crio de Nazar. Sobre as festas brasileiras, a autora apresenta trs hipteses que justificam as suas criaes. A primeira delas que as festas assumem dimenso cultural, na medida em que ocupam lugar privilegiado no folclore brasileiro; a segunda, que as festas demonstram a organizao social dos grupos em ao e, a terceira, que as festas so um excelente negcio, produto turstico capaz de fomentar a economia das cidades. As hipteses trazidas pela autora possuem muita relevncia, pois demonstram que, atravs das festas, possvel identificar o perfil de uma cidade e ainda possibilitar o seu desenvolvimento. (AMARAL 1998, p. 7).

A constante vinda de colonizadores ao Brasil, no sculo XVIII, contribuiu, em tese, para que as festas assumissem novas caractersticas, j que houve a influncia de novos costumes e crenas, sobre as tradies locais e regionais. (TINHORO, 2000). As fuses entre as culturas, ou seja, a aculturao dos povos e os comportamentos de diversos grupos contriburam para o desenvolvimento das prticas tnicas, sendo uma delas as festas que, alm de aproximar culturas, estabeleceram trocas entre as mesmas.

J Santos (2004) pesquisou uma festa tnica, a Festa da Uva de Caxias do Sul,

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realizada sob forte influncia da etnia italiana. Para a autora, a festa atua como um elemento que reafirma os valores simblicos do grupo de descendentes de imigrantes, reforando, ao restante da sociedade, uma imagem que valoriza os pioneiros, os desbravadores e civilizadores de uma terra selvagem, os bons trabalhadores e bons catlicos e, desta forma, merecedores do xito econmico e do prestgio poltico e social. (SANTOS, 2004 p.25).

Morigi (2007) observou a construo simblica das festas, como uma teia significativa que envolve e fortalece uma identidade. No caso, deteve-se a analisar, o Maior So Joo do Mundo, de Campina Grande (PB). Para o autor, a festa junina estabelece relaes entre o passado e o moderno, a partir de mediaes e construes de discursos sobre identidade nordestina. Ainda, a festa junina pode ser mencionada como um exemplo de comemorao que se enraizou pelo Brasil e assumiu caractersticas especficas conforme cada regio. Embora estas festas estejam modificadas das formas originais, elas promovem a aglutinao de multides e esto inseridas no calendrio comemorativo das mais diversas regies do pas.

Ainda para Morigi (2007), a idia de construo, pressupe a noo de mediao, papel daqueles que construiriam as interpretaes, que sustentam as construes de identidade nacional. Nesse sentido, os folcloristas, nas dcadas de 30 e 40 do sculo XX, exerceram um papel de destaque pois, atravs dos estudos que realizavam, desenharam o pas regionalmente, fornecendo elementos para que instaurassem as construes ideolgicas, a partir da idia de integrao e, desta forma, tornaram-se responsveis pela formao da identidade nacional. (MORIGI, 2007, p. 26). J Segalen (2002, p.104) diz que as festas servem de suporte aos poderes polticos locais que se valorizam por meio de mais uma encenao. Sob este aspecto, podemos afirmar que as festas fazem parte do jogo poltico que, juntamente com a mdia local, consegue seduzir a comunidade, com discursos que afirmam que as festas podem trazer vantagens ao municpio. Estas vantagens vo desde a criao de empregos diretos e indiretos at a fomentao do turismo, do comrcio e demais setores, contribuindo para a sua diferenciao e, de certa forma, para o seu desenvolvimento regional. Assim, uma festa capaz de gerar deslumbramento no imaginrio coletivo e pode favorecer tanto a imagem de determinado grupo poltico como de um municpio.

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Entende-se, com isso, que as festas no ocorrem espontaneamente ou isoladas, mas fazem parte de um complexo processo de planejamento que almeja atingir um determinado fim. Canclini (1983, p.54) afirma que a festa sintetiza a totalidade da vida de cada comunidade, a sua organizao econmica e suas estruturas culturais, as suas relaes polticas e as propostas de mudanas. Weber (1997) tambm assinala que toda organizao festiva se constri a partir de componentes conscientes, pois os valores orientam a ao e podem ser fundamentais para definir o padro de comportamento de uma sociedade. Assim, as festas se constituem como um espetculo para satisfazer as massas e so geralmente influenciadas por foras de carter poltico, econmico e ideolgico. Assim, podemos dizer que as festas tornaram-se comuns em vrias regies do Brasil. Todos os estados incluem diversas comemoraes festivas em seus calendrios, que vo desde manifestaes populares dos santos padroeiros, celebraes de datas cvicas e colonizaes, at festas comerciais que valorizam o principal produto agrcola de uma cidade ou regio. De forma geral, as festas esto associadas histria e aos mitos e, por isso, muitas delas so de cunho tnico, enfatizando e exaltando determinada etnia. As festas de cunho tnico so destaques mais freqentes no sul do Brasil por esta regio do pas possuir uma caracterstica civilizatria mais diversificada.

As festas tnicas, ou religiosas, entre outras, se destacam pela tentativa de afirmar e reafirmar uma identidade atravs das representaes do passado e valores legitimadores do presente. Mostram-se com uma cultura diferenciada e supervalorizada e so organizadas buscando marcar as origens tnicas da comunidade a partir das representaes e das manifestaes simblicas. Assim, as festas tnicas apresentam como caracterstica marcante, a necessidade de narrar sua maneira, a histria de determinada comunidade. Cohen (1978, p. 117) apresenta o conceito de etnia como, uma coletividade de pessoas que partilham alguns padres de comportamento normativo, ou cultura. J Weber (1994, p. 270) colabora com a seguinte afirmao,

chamaremos grupos tnicos aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanas no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranas de colonizao e migrao, nutrem uma crena subjetiva na procedncia comum, de tal modo que esta se tor