A colônia Consagrada Mono Eloy
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ELOY BARBOSA DE ABREU
A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e
política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII)
São Luís
2006
1
ELOY BARBOSA DE ABREU
A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e
política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII)
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual de Maranhão – UEMA, para obtenção do grau de Licenciado em História.
Orientador: Prof.ª Msc. Helidacy Maria Muniz Corrêa.
São Luís
2006
2
ELOY BARBOSA DE ABREU
A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e
política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII)
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual de Maranhão – UEMA, para obtenção do grau de Licenciado em História.
Orientador: Prof a. Helidacy Maria Muniz Corrêa
Aprovado em ___/___/____.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________ Profª. Ms. Helidacy Maria Muniz Corrêa
Orientadora
__________________________________________________________________
Profo. Ms. José Henrique de Paula Borralho
__________________________________________________________________ Profo. Fábio Henrique Monteiro Silva
3
Aos meus pais, Maria e Hermano.
Às minhas irmãs e aos meus irmãos.
A todos os meus amigos
4
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, pelo carinho, amor, dedicação e apoio durante os momentos de
elaboração deste trabalho.
Aos meus irmãos e minhas irmãs, Giordano, Marize, Marizeth, Maysa, Hermano,
Marília e Marilene, pelo convívio, incentivo aos estudos e inspirações para a realização deste
trabalho. Que legado vocês me proporcionaram. Essa é a vantagem de ser o irmão caçula.
Aos meus sobrinhos e sobrinhas, Lucas, Marina, Danielle, Matheus, Yasmim, Gabriel,
Giovanna e Beatriz, pelas brincadeiras e os momentos de descontração.
À Mauro Fernando, pela maravilhosa companhia e dedicação que tem me
proporcionado. Obrigado, seus incentivos me ajudaram demasiadamente.
À Edyene, amiga (sobrenatural), irmã, companheira nos estudos e nos trabalhos.
Quero abraçar e agradecer pelo convívio agradabilíssimo durante estes cinco anos. Obrigado
pelos conselhos, pelo apoio e a pressão que me motivaram a escrever esta monografia. Sem
você a piada não tem graça!
À Professora Helidacy, minha orientadora, pelo exemplo de profissionalismo, pela
orientação e incentivo à pesquisa e à escrita desta obra. Obrigado pelas oportunidades que me
chegaram por seu intermédio.
Aos professores Marcelo Cheche e Elizabeth Abrantes, pelas aulas maravilhosas e o
auxílio, que me ajudaram a enfrentar as disciplinas de Estágio e o desafio de ser professor.
Aos demais professores do curso de História, Lourdinha Lacroix, Henrique Borralho,
Paulo Rios, Alan, Adriana Zierer, Júlia Constança, Ximendes e Fábio Monteiro, pela
contribuição do conhecimento sobre história, que me proporcionou a formação acadêmica.
5
Aos alunos e ex-alunos do curso de História, pelo convívio durante estes cinco anos e
apoio a esta pesquisa, especialmente a Arlindyane, que me auxiliou na pesquisa de alguns
manuscritos.
À Cibele, pela nobre amizade. Obrigado pelas adaptações feitas nos mapas presentes
neste trabalho.
À Joselma, pelo tratamento as ilustrações e arte gráfica da capa. Obrigado pela
dedicação, carinho e amizade.
À Elizabeth, pela companhia agradável e prestativa. Obrigado!
Aos demais amigos que de algum modo me auxiliaram e me apoiaram pra que esta
obra se concluísse. Especialmente, Nelma, Flávia Andresa, Elizene, Clícia, Patrícia, Carol
Castro, Lívio Bruno, Esmênia e Sandro, Bruno Serra, Gabriela Melo, Rafael, Marilde, Nara,
Jeane, Ritinha, Ana Lígia... Obrigado!
6
(...) Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. (...)
(Mircea Eliade)
7
RESUMO
A colonização da América Portuguesa traz em si um conjunto de sentidos que não podem ser
como diz Alfredo Bosi, entendidos apenas como uma corrente migratória de europeus e
africanos para o “Novo Mundo”. Para além das idéias de povoamento e exploração, o ato de
colonizar pode ser pensado como uma resolução de carências e conflitos da Metrópole e
também com retomada, em uma outra realidade, do domínio sobre a natureza e implantação
do processo civilizador. Pensando a formação do Maranhão Colonial, sobretudo entre 1646 a
1755, pela perspectiva da “dialética da colonização”, busca-se, neste trabalho, compreender a
política empregada por Portugal na Colonização do Maranhão e a Teologia da Igreja Católica,
tomando como objeto de pesquisa a festa de Corpus Christi, que pode ser descrita como:
momento de afirmação da sacralização do poder real e do poder de representantes da política
local, através do Senado da Câmara de São Luís; espaço de sociabilidade para a população e
reafirmação a hierarquia política, social e religiosa. Através da investigação dos Termos de
Vereações, que se encontram nos Livros Acórdãos da Câmara de São Luís, esta obra
apresenta uma análise da configuração da Festa do Corpo de Deus como um espaço de
representatividade simbólica.
Palavras-chaves: Religiosidade. Festa. Representação. Sociabilidade.
8
ABSTRACT
The colonization of Portuguese America brings in itself a set of meaning that they can’t be
with says Alfredo Bosi, understood as only one migratory chain of Europeans and Africans
for the “New World”. To beyond the ideas of populating and exploration. The act to
colonize can be thought as a resolution of lacks and conflicts of the Metropolis and also with
retaken, in one another reality of the domain on the nature and implantation of the civilize
process. Thinking the formation of the Colonial Maranhão, over all between 1646 and 1755,
for the perspective of the “dialectic of the colonization”, searches, in this work, to understand
the politics used for Portugal in the Colonization of the Maranhão and the Theology of the
Church Catholic, being taken as research object the party of Corpus Christi, that can be
described as: moment of affirmation of the sacred of the real power and the power of
representatives of the local politics, through the House’s Senate of São Luís; space of
sociability for the population and reaffirmation and hierarchy politics, social and religious.
Through the inquiry of the Terms of Vereações, that it find in Books Sentences of the House’s
Senate of São Luís, this work presents an analysis of the configuration of the Party of the
Body of God as space of symbolic representation.
Key words: Religiosity. Party. Representation. Sociability.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 Bandeira Real de D. João III – 1521..............................................
28
Ilustração 2
Bandeira para a Índia e para América............................................ 28
Ilustração 3
Organograma demonstrativo da atuação administrativa na
América Portuguesa.......................................................................
34
Ilustração 4
Planta da cidade de São Luís de Frei João de Santa Teresa –
1698.................................................................................................
38
Ilustração 5
Brasão de Armas da cidade de São Luís......................................... 45
Ilustração 6
Livro de Horas do século XIV – Representação de São Jorge....... 51
Ilustração 7
Tipos de Bandeiras.......................................................................... 51
Ilustração 8
Uma procissão portuguesa do século XVIII................................... 52
10
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 As formas de representações sociais e religiosas na festa de Corpus Christi de 1647...........................................................................................
48
11
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................
12
2 CRUZES, ESPADAS, CONQUISTAS E EVANGELIZAÇÕES:........................ 20
2.1 Construindo uma Teologia do Corpo de Cristo e uma religiosidade colonial........ 20
3 OLHA LÁ! VEM PASSANDO A PROCISSÃO: O Corpo de Deus nas ruas..... 34
3.1 O Senado de Câmara de São Luís e as festas......................................................... 34
3.2 O tempo e o espaço da Festa de Corpus Christi em São Luís...............................
36
4 AS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS NA PROCISSÃO DE CORPUS
CHRISTI....................................................................................................................
43
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Propostas para uma continuidade.......................
53
REFERÊNCIAS........................................................................................................
56
ANEXOS.................................................................................................................... 64
12
1. INTRODUÇÃO
O estudo humanístico, social, político, econômico, e ainda, religioso das
manifestações festivas vem gerando hipóteses, teorias, conceitos, concepções e definições
acerca do complexo objeto: festa. Gera-se, neste sentido, uma diversidade de interpretações,
pois o que pode ser considerado festa para uns, pode não ser para outros. Ao mesmo tempo
em que, por hora, tais produções, trazem soluções, ou aspectos, ou evidências, ou, numa
possibilidade bem remota, soluções para as problemáticas levantadas, surgem novos
questionamentos, o que faz da pesquisa uma prática constante, pois nunca se esgota as
perspectivas de análise de uma determinada temática.
Rita de Cássia Amaral (1998, pp.23-37), em sua tese de doutorado, aponta dois
enfoques negativos sobre os escritos acerca das festas. Primeiramente, embora se tenha uma
ampla batelada de obras sobre as festividades, para a maioria dos autores que as produzem,
ignora-se os processos de construções dos eventos festivos e as razões para que eles
aconteçam, adotando-se concepções a partir de situações particulares e depois generalizando-
as. Outro fator preponderante é a rarefeita presença de reflexões teóricas sobre as festas,
ficando-se apenas na superficialidade de suas descrições.
No campo teórico das ciências humanas e sociais, é a partir de Jacob Burckhardt
que “o termo festa aparece já, como categoria significativa”. Mas é com Durkheim, que os
especialistas das ciências sociais vêm tentando amainar o caráter impreciso do vocábulo.
Porém as conceituações dos tais cientistas são definições truncadas, porque incorporam as
particularidades de um estudo de caso para conceituar festa (GUARINELLO, 2001, p.970). O
próprio Durkheim a compreende como um evento exclusivamente religioso e sacramental.
Para Freud, é um divertimento que gera momentos de descontrações e liberdade para as
tensões reprimidas, invertendo o caráter rotineiro do cotidiano. Duvignaud a considera como
um ato subversivo que desconfigura a ordem social e transforma-a no caos. E para Bakhtin, o
evento festivo se apresenta como uma manifestação coletiva e popular que se caracteriza de
forma divertida, hilariante e grotesca1.
1 Sobre o debate, que permeou a segunda metade do século XX, acerca da festa enquanto objeto de estudo entre os cientistas sociais, confira: DURKHEIM, 1968; FREUD, 1974; DUVIGNAUD, 1991 e BAKHTIN, 1987.
13
Termo abstruso e por possuir uma ampla quantidade de situações, a festa precisa
ser refletida no plural, preocupando-se, principalmente, com as particularidades do
acontecimento festivo em questão e as possibilidades de interpretá-lo.
O campo da pesquisa em História vem passando por um processo de ampliação.
Há, hoje em dia, uma grande diversidade de objetos de estudos, que vão desde as relações
sócio-econômicas até as representações culturais de um determinado recorte espaço-temporal;
e também nas formas de abordagens de tais variedades de objetos, valendo-se principalmente
não só de paradigmas da História como também, de outras ciências humanas e sociais, como
a Antropologia, a Lingüística e a Psicologia. Nos últimos trinta anos, o olhar exclusivamente
político ou econômico vem dividindo espaços de produções e publicações de trabalhos com
correntes teórico-metodológicas que se caracterizam por possuírem uma perspectiva cultural
sem determinismos, buscando um olhar historiográfico mais amplo, incluindo em uma
pesquisa aspectos das representações de sociabilidade, dos relacionamentos políticos, das
práticas culturais e econômicas. Atrelada a este contexto de mudanças paradigmáticas, a festa
se constitui como objeto de estudo de recente para os historiadores.
Sobre o aspecto das trajetórias de pesquisas acerca das festas nas ciências humanas
e sociais, especialmente na História, no Brasil, István Jancsó e Iris Kantor (2001), divide a
produção do conhecimento científico tendo as festas como fenômeno analisado em dois
grandes momentos. Em primeiro lugar um grupo de trabalhos, produzidos no final do século
XIX, que consistia em obras de memorialistas, viajantes, literatos e juristas, tratando de
manifestações lúdicas orientadas em fundamentos ontológicos, éticos e raciais, dadas as
necessidades de se explicar à nacionalidade brasileira sob a ótica da mestiçagem.
Em segundo lugar, acompanhado ao movimento modernista, a institucionalização
do ensino de ciências sociais e de contribuições de estudos de folcloristas sobre a cultura
popular, na década de 1930, observou-se uma renovação nos estudos sobre manifestações
festivas, produzidas nos centros universitários do Brasil.
[...] As preocupações dos cientistas sociais centraram-se no impacto sobre as culturas tradicionais dos processos de urbanização acelerada no papel da mestiçagem, no sincretismo religioso, nos processos de aculturação e integração dos imigrantes estrangeiros à cultura local. Em relação à visão do período colonial, tais estudos tenderam a conceber o passado colonial
14
como “herança” ou “persistência” não superada no processo de modernização da sociedade brasileira após a revolução de 1930, com esta “herança colonial” explicando a persistência de certos códigos arcaicos presentes nas formas de sociabilidades marcadas na sua origem pelo escravismo. (JANCSÓ e KANTOR, 2001, p.06).
Distanciando-se cada vez mais do caráter “pitoresco” e do “costumbrismo” do
século XIX, os estudos sobre festas foram distinguindo-se dos trabalhos de cunho folcloristas,
tornando-se, no final da década de 30 e início da de 40 do século XX, em produções mais
singulares e menos generalizantes. Porém, não desmerecidos, os estudo sobre o folclore
brasileiro, serviu de base para as produções de monografias, dissertações e teses sobre as
manifestações festivas.
Sobre os estudos historiográficos em relação à festa, percebe-se, ainda, a partir da
década de 70, uma presença marcante, nos estudos brasilianistas, de concepções teóricas e
modelos da historiografia francesa, exclusivamente da Nova História e da repriorisação a
história acontecimental, fazendo-se uma abordagem antropológica dos fenômenos culturais e
da politização da vida cotidiana. Sobre a atuação da Nova História, movimento que se
desencadeou da Escola dos Annales em França, Mona Ozouf (1995, p.216), ao escrever
sobre a Revolução Francesa, sob o viés da festa, apresenta um pouco do cenário das
produções científicas, quando o fenômeno “festa” torna-se o centro das atenções no palco de
objetos de estudos da História.
Que espetáculo, atualmente, julgamos perfeito se não consegue torna-se uma festa? Que futurologia não nos promete festas? A festa invadiu o vocabulário do ensaio político, da crítica teatral, do comentário literário. [...] A história por outro lado, desde há muito tempo tem se preocupado conscientemente mais com os trabalhos e os esforços dos homens do que com os seus divertimentos ou, como se queria, com as suas diversões. Se as festas tornaram-se doravante, com pleno direito, objeto da história, deve-se isso à dupla instigação do folclore e da etnologia. Por freqüentar um e outro campo, o historiador aprendeu a levar em consideração a armadura que a ritualização dá à existência humana, mesmo que seja uma ritualização anônima, desprovida de regulamentação explícita ou de coesão coerente. Acrescenta-se que, com a psicanálise, a história aprendeu, ao mesmo tempo, o interesse que pode ter a colheita do aparentemente insignificante. (OZOUF, 1995, p.217).
15
Ozouf atenta para um desperta do s estudos sobre festa nos historiadores da década
de setenta do século XX, e atribui esta mudança ao contato dos estudiosos da História com
produções que versavam sobre o folclore e a etnologia. Freqüentando estes campos de
pesquisa, foi que o historiador da Nova História aprendeu a encarar as ritualizações festivas
como objeto de estudo, alicerçado pela teoria psicanalista, no intuito de se fazer uma história
das mentalidades e dar sentido ao que parecia inicialmente insignificante.
No Brasil, é também, a partir da década de setenta que se destaca uma terceira
geração de estudos sobre festas, como sugerem István Jancsó e Iris Kantor (2001). Amparadas
pela Sociologia, a Antropologia, a Literatura e inspirados na nova história cultural brasileira,
tais produções tiveram um forte impacto na historiografia, principalmente já em meados dos
anos oitenta. É nesse contexto que as últimas produções, no Brasil, sobre festas, tem sido
escritas, dando-se preferência para o período colonial e o uso de um recorte temporal
caracterizado pela longa duração, pelo fato de se trabalhar com documentações em série, que
elucidam as dinâmicas das festas proporcionando a revelação de mudanças de significados e
ações do pensar dos sujeitos envolvidos no espaço festivo.
Pensando nestas considerações, acima apresentadas, o presente estudo, que tem
como objeto a festa de Corpus Christi, busca compreender a construção da religiosidade,
da sociabilidade e da política festiva na São Luís, Seiscentista e Setecentista, mais
precisamente entre os anos de 1646 a 17922, através dos registros que trazem informações
sobre a festa. .Ou seja, paralela a uma narrativa histórica sobre o evento já mencionado,
preocupa fazê-la inserida num suporte teórico e contextual, no intuito de evitar o caráter de
mera curiosidade.
Há, neste sentido, um conjunto de escolhas e interesses, tais como, o recorte
espaço-temporal, que privilegia a cidade de São Luís e os dois primeiros séculos de
colonização portuguesa da cidade; as fontes primárias e os referenciais teóricos, que
consistem na análise da documentação administrativa da Câmara de São Luís, sobretudo os
Livros de Acórdãos, sob a ótica da História Cultural, que por hora contemplam os objetivos
deste trabalho. A religiosidade que se refere é a que resulta de uma relação de conflitos e
2 Este recorte temporal se dá em função da documentação, o acervo de livros manuscritos da Câmara de São Luís – principalmente os Livros de Acórdãos – que se encontravam disponíveis para manuseio e pesquisa, alguns inclusive, já transcritos.
16
coexistências entre nativos, negros e portugueses; a festa é a de Corpus Christi; o espaço é a
cidade de São Luís e o tempo é o do início de sua construção e consolidação da colonização
portuguesa. Tem-se, assim, um quadro em pedaços composto de festas, pessoas, ruas,
representações simbólicas e temporalidade, que por meio da cientificidade da História,
pretendeu-se escrever sobre o passado religioso da São Luís.
A preocupação em se estudar a construção da religiosidade no Maranhão Colonial,
sobretudo, especificamente, a cidade de São Luís, através da sociabilidade festiva,
especialmente, entre os séculos XVII e XVIII, parte já desde os primeiros anos na Academia,
quando nos deparamos com obras que versam sobre a história das religiões, na perspectiva
das mentalidades, no Brasil e na Europa. Contribuíram também os contatos com
manifestações religiosas do presente, sobretudo as relacionadas à religiosidade popular de
descendências indígenas, européias e africanas, que evidenciam os processos de construções
simbólicas das representações culturais em São Luís. Propôs-se, então, a produção de um
conhecimento histórico do processo de formação do comportamento religioso da sociedade
colonial da cidade de São Luís, tendo como objeto de estudo a Festa de Corpus Christi.
Pretende-se com esta pesquisa contribuir com o estudo acerca dos primeiros
séculos de colonização de São Luís e a temática da religiosidade e da sociabilidade festiva,
numa perspectiva de renovação historiográfica. Neste sentido, o tema já mencionado
anteriormente, que envolve questões do passado das construções religiosas, festivas e sociais
de São Luís, pode oferecer interpretações que servem como explicações para as indagações
sobre os fenômenos festivos e religiosos.
Por meio do estudo crítico-analítico das fontes, que consistem nos Termos de
Vereações, que se encontram, nos já mencionados, Livros de Acórdãos da Câmara de São
Luís, desenvolve-se uma pesquisa quantitativa, com documentos em séries. As inquietações
giram em torno das seguintes questões: se “a colonização dá um ar de recomeço e de arranque
a culturas seculares”, então a festa político-teológica que é (re)produzida e a religiosidade que
se impõe, durante o processo colonizador do Maranhão, possuem elementos de originalidade
e diversificam-se das suas matrizes europeu-portuguesas? Qual o papel das representações
simbólico-festivas para a implantação de uma colônia portuguesa na América, sobretudo no
Maranhão?
17
A colonização da América Portuguesa traz em si um conjunto de sentidos que não
podem ser entendidos “como apenas uma corrente migratória de europeus e africanos para o
Novo Mundo” (BOSI, 1992, p.13). Para além das idéias de povoamento e exploração, o ato de
colonizar pode ser pensado como uma resolução de carências e conflitos da Metrópole e
também como retomada, em uma outra realidade, do domínio sobre a natureza e implantação
do processo civilizador.
Pensando a formação da São Luís Colonial, sobretudo entre 1619 a 1751, pela
perspectiva da “dialética da colonização”, discutida por Alfredo Bosi, se busca, nesta
pesquisa, compreender a relação entre a política empregada por Portugal na colonização do
Maranhão e a Teologia da Igreja Católica, tomando como objeto a festa de Corpus Christi,
que pode ser descrita como o momento de afirmação da sacralização do poder real, espaço de
sociabilidade para a população e reafirmação da hierarquia política, social e religiosa.
Intenta-se a utilização de uma História Cultural renovada em seus paradigmas,
valorando a relação dialética entre a longa duração do processo de construção da religiosidade
com o acontecimento, o evento festivo de celebração ao Corpo de Deus. “Considerando a
história, com efeito, enquanto a convergência de documentos que permite estabelecer
continuidades e variações” (D’ALESSIO, 1998, p.10), e que estas produções documentais
são, sobretudo, representações. O diálogo com outras ciências humanas e sociais se fez
necessário, no intuito de aprofundar as opiniões em relação ao ser humano e suas
coexistências com os mundos real e imaginário. Portanto, sem deixar de lado a especificidade
de estudo, o tempo histórico, paradigmas, da Antropologia Cultural e Religiosa, da Etnologia,
da Sociologia e da Psicologia Social, foi fundamental para a efetivação do trabalho.
Assim, a característica do estudo histórico no âmbito das mentalidades e da
História Cultural situa-se “no ponto de junção do individual e do coletivo, do longo tempo e
do cotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e
do geral.” (LE GOFF, 1995, p.71). Interessam-me, então, nesta pesquisa, as matrizes
religiosas que influenciaram na construção cultural do Maranhão, suas continuidades e
rupturas, com o cuidado de analisar as circularidades culturais e as construções das tradições
festivas e de alegorias religiosas.
18
Contudo, tal pesquisa não pôde ser realizada sem estar intimamente ligada “à
história dos sistemas culturais, das produções de crenças, valores e equipamentos intelectuais,
onde as culturas são construídas e transformadas” (LE GOFF, 1995, p.79). O estudo do
período colonial de São Luís numa perspectiva cultural requer, portanto, os preceitos teóricos
já citados anteriormente.
Mas, partindo dos olhares que se direcionaram as fontes, quais comentários se
pode versar com relação à festa do Corpo de Deus, na São Luís Colonial, principalmente entre
os anos de 1646 a 17143? Aplicavam-se ao público4, ator e espectador do evento festivo,
códigos de posturas para que não faltassem às solenidades, como descreve o termo de
vereação feito em sete de maio de 16475, na Câmara da cidade de São Luís, onde, segundo o
escrivão da dita Câmara, o juiz Pedro Vieira propõe que se façam posturas e assentos com
suas devidas penalidades para aqueles que não estariam acudindo com suas obrigações as
festas públicas.
Partindo da teoria que define festa como “uma forma de ação coletiva”
(GUARINELLO, 2001, p.971), observa-se a necessidade de atuação das categorias sociais, da
época, convocadas pelo Senado da Câmara de São Luís, pois a festa era um momento de
apresentação e reafirmação do pacto de sujeição do homem em relação a Igreja e da Colônia
em relação a Metrópole. As representações simbólicas nas procissões de Corpus Christi e, em
menor número de registros na documentação pesquisada, a na festa de São Sebastião, serviam
de retóricas para a implantação dos ideais colonizadores e configuração da hierarquia social.
Ver e fazer a festa significava ocuparem postos e exercer funções, que estavam
intimamente ligados ao tipo de ofício desenvolvido: mecânico, ferreiro, mercante..., e ao
segmento social pertencente, caracterizado pela cor da pele, origem familiar e função pública.
Momento de exibição e de reunião, que põe em coexistência a diversificada população
3 O recorte temporal que se fez entre 1646, ano do primeiro Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, até o ano de 1714, corresponde ao período, em que se constatou um grande volume de 4 A idéia de “público”, aqui presente, foi extraída do texto de João Adolfo Hansen, que diz: “[...] o público não pode ser entendido por meio de categorias iluministas que o definem como instância orientada pela livre-iniciativa crítica ou pela defesa da particularidade de um interesse ou de uma ideologia, que na sociedade de classes aparecem rotineiramente publicados como competição ou conflito com outros interesses e ideologias. No caso dos festejos colônias, o público não tinha autonomia crítica, ou seja, as representações dos festejos coloniais compõem a imagem da sua recepção prescritivamente, de modo que o destinatário é o testemunho da lei e da regra encenadas que reiteram sua posição subordinada. [...]” (JANCSÓ e KANTOR, 2001, p. 737), 5 SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Assento. Escrivão: Frutuoso Paes. 07/ jul./ 1647.
19
colonial, mas que não a congrega, a festa era discursivamente construída de cima para baixo.
Aplicada à sociedade, de modo coercitivo, através de multas e também prisões, exigia-se a
confecção e expectação das festividades pelos oficiais, onde suas atividades apareciam
representadas simbolicamente por meio de brasões em estandartes carregados pelos juízes de
ofícios.
Participar das festas públicas religiosas, que comemorava o Corpo de Deus, nos
séculos XVII e XVIII, era cumprir ordens, livrar-se de punições e “sociabilizar-se”, segundo o
modelo cristão obrigado pela Igreja Católica. Nesse macro-signo cabia espaço, ainda, para as
subversões e conflitos sociais, questões que ainda merece ser discutida, pois as relações sócio-
culturais são frutos dessas tramas e do jogo de resistência, fazendo surgir uma diversidade
religiosa, que hoje caracteriza nosso catolicismo popular.
Viajemos no tempo e vamos à Festa!
São Luís, julho de 2006
Eloy Abreu
20
2 CRUZES, ESPADAS, CONQUISTAS E EVANGELIZAÇÕES
2.1 Construindo uma Teologia do Corpo de Cristo e uma religiosidade colonial
Ao leitor já pode parecer claro que este trabalho objetiva discorrer sobre a festa de
Corpus Christi em São Luís, tendo em vista o seu primeiro registro nos Livros de Acórdãos
da Câmara, no ano de 1646, e avançando no tempo, à medida que, a garimpagem por
informações nos manuscritos, proporcionou informações que colaboraram com a montagem
do presente escrito. Porém, antes de se partir para a especificidade do tema, faz-se necessário
uma apresentação e discussão do imaginário religioso europeu que antecedeu e permeou o
período de colonização do Maranhão. Tal debate delimita-se, principalmente, no confronto de
concepções teológicas, filosóficas e científicas, sobre o sacramento da eucaristia, prática
devocional católica, que era valorada na festa religiosa que a homenageava – Corpus Christi.
Longe de se cair no papel de historiador “ídolo das origens”6, mas há que se partir
de um ponto, que consiste no surgimento da festa de Corpus Christi, no Brasil. Tratava-se,
pois, de uma comemoração de origem européia e medieval, trazida pelos colonizadores
lusitanos e realizada sob a organização dos Senados das Câmaras7 nas principais cidades do
Brasil Colonial.
No continente europeu a devoção foi instituída e promovida durante o século XIII.
O culto a hóstia consagrada surgiu como forma de combate à heresia que negava a presença
de Cristo no Sacramento da Eucaristia. Conhecida como o dia de Corpus Christi, a festa que
6 Sobre a temática do ofício de historiador, confira: BLOCH, 2001. 7 “Elemento de unidade e de continuidade entre o Reino e seus domínios, pilares da sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos do mundo, as Câmaras Municipais Ultramarinas foram igualmente órgãos fundamentais de representação dos interesses e das demandas dos colonos”. (BICALHO, 1998). “Além de suas atribuições institucionais, a Câmara colonial desempenhava uma importante função dentro da estrutura administrativa metropolitana, que era a de tornar visível e presente um rei que se encontrava em outro continente. Esta era uma questão fundamental para a estabilidade do Império Português e um dos mecanismos utilizados era um extenso programa de cerimônias litúrgicas e solenidades destinadas a festejar pomposamente a figura do rei, com as procissões institucionais como a Corpus Christi, os Te Deum Laudamus, com fogos, repiques de sinos, limpeza obrigatória de ruas e testadas, luminárias e janelas ornamentadas. Na Casa da Câmara, como local de trânsito constante dos moradores, o retrato do monarca reinante deveria estar obrigatoriamente instalado em lugar de honra e acessível aos olhares respeitosos dos súditos”. (CAMPOS, 2006)
21
teve seus primeiros registros na cidade de Leódio, também denominada de Festa do
Santíssimo Sacramento, “era celebrada no segundo domingo após Pentecostes e foi
oficializada pelo papa Urbano IV, em 1264 e reafirmada pelo papa Clemente V, em 1314”
(AZEVEDO, 2002, p.448). A realização da festividade religiosa do Corpo de Deus, tinha e/ou
ainda tem por objetivo, sob o viés teológico, festejar Jesus sacramentado, relembrando o
relato bíblico, sobre a “última ceia”, presente nos Evangelhos do Novo Testamento8.
A atitude ritualística e sagrada de Cristo narrada nos escritos bíblicos, tornar-se-ia,
com a propagação do culto cristão, em um dos principais sacramentos da Igreja Católica – a
Eucaristia. Símbolo da comunhão entre os cristãos, o Santíssimo Sacramento foi considerado
o segundo grande cisma da cristandade, no tempo da Reforma Protestante. Como explicar, em
plena re-efervescência da teoria do atomismo9, a transubstanciação – transformação do pão e
do vinho em corpo e sangue de Cristo – durante o ritual da missa? Essa problemática da
transubstanciação constituía-se na principal questão posta aos teóricos da Igreja Católica no
século XVI. (WOORTMANN, 1997, p.85). Uma vez que a explicação do fenômeno
transubstancial do ritual eucarístico fazia-se pela crença no poder espiritual da palavra divina.
O atomismo, concepção que reaparece na revolução científica da modernidade
européia, nas primeiras décadas do século XVII, era um perigo para o dogma central do
cristianismo, segundo o jesuíta Vanni apud. Minois (1990, p.348), pois se são os átomos que
produzem os efeitos de sensibilidade das substâncias, então na Eucaristia não há
transubstanciação e o pão continua sendo pão. Com relação aos mistérios espirituais que
escapavam aos sentidos, como o da Trindade, a explicação firmava-se nos argumentos
filosóficos, porém o Santíssimo Sacramento contradizia o que era percebido pelos sentidos,
havia, neste contexto, uma extrema necessidade em justificar sua verdade através da ciência,
no intuito de tal mistério não se reduzir à pura magia, prática que o Catolicismo tanto
combatia com seus tribunais da Santa Inquisição.
Formula-se, com o tempo, mesmo anterior aos processos de readaptações
teológicas de Lutero e Calvino, um acúmulo de dúvidas sobre a hóstia consagrada como o
8 “[...] 26. E, quando comiam, Jesus tomou o pão e abençoando, o partiu, e o deu aos seus discípulos e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo [...]” (.....) 9 Doutrina de origem dos filósofos da Antiguidade Clássica Grega sustenta a idéia de ser a matéria formada de átomos que se agrupam em combinações causais e pro processos mecânicos. (HOLANDA, 1986, p.195).
22
verdadeiro Corpo de Cristo. Dentre tantos, Woortmann (1997) menciona os de Berenger, que
no século XI argumentava ser “as aparências do pão e do vinho indissociáveis da substância;
na melhor das hipóteses, poderia haver apenas consubstanciação – coexistência do pão e do
corpo de Jesus Cristo após a consagração do sacerdote”.
Já no século XIV, o autor destaca as críticas de Guilherme de Ockham10, que
também fez oposição à física aristotélica.
[...] Tudo que podemos conhecer são as propriedades dos objetos; não há distinção entre matéria e forma; a substância reduz-se à extensão. As qualidades, os acidentes não são uma realidade separada, mas o resultado de combinações diversas das partículas elementares da substância: a pedra é diferente do pão porque as partículas elementares da substância são agrupadas de maneiras distinta. Ora, se substância e acidentes são uma e a mesma coisa, a transubstanciação torna-se incompreensível. (OCCAM, Apud. WOORTMANN, 1997, p.86).
A teoria de Guilherme de Occam também fundamentada no pensamento filosófico
do atomismo deu embasamento para novas especulações acerca do mistério da consagração
da hóstia, como a de Nicolau D’Autrecourt, que afirmava serem as qualidades das coisas
puramente os resultados da combinação e do movimento dos átomos, substrato universal.
Uma resposta sob a égide do pensamento católico cristão, veio com a reforma na
ciência aristotélica. O clérigo Suarez, da Companhia de Jesus, já na segunda metade do século
XVI, aponta à necessidade de se resolver a contradição da Eucaristia à luz da razão. A
explicação que favorecia o ritual eucarístico encontrava-se na teoria da matéria de Aristóteles,
tornando o milagre possível, ou seja, embora houvesse no pão uma quantidade de matéria
suficiente para fornecer suas qualidades ou propriedades (cor, sabor, consistência...); através
do milagre da consagração da hóstia no ritual da missa, relembrando as palavras de Cristo,
tais qualidades ou propriedades subsistem, podendo ser o pão substituído pelo corpo de Jesus.
Suarez acreditava nesta possibilidade de explicação do milagre do Santíssimo Sacramento,
10 Teólogo e filósofo inglês, da ordem franciscana. Viveu entre os anos de 1285 a 1340, realizando estudos na Universidade de Oxford, que se apresentaram com uma postura nominalista. Para Ockham “o que existia no universo era apenas abstração; aos seus olhos, a metafísica era uma ciência vã; a inteligência humana não podia conceber Deus, que era totalmente livre; somente o singular se constitui enquanto real, porque oferecia matéria para o conhecimento”. Guilherme de Ockham foi condenado a morte pelo tribunal da Santa Inquisição em 1340. (PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p.295).
23
porque metafisicamente podiam-se separar os acidentes das substâncias, salvando por meio da
ciência a eficácia simbólica do ritual. (DUBOIS, 1995).
Nos séculos XVI e XVII, a dúvida acerca da presença corpórea de Cristo na
Eucaristia foi retomada pelo movimento de Reforma Protestante, sob o viés teológico,
buscando a separação entre espírito e forma e recolocando a relação entre verdade e realidade.
Para Lutero e Zwinglio havia certo dissenso sobre a verdade do símbolo da eucaristia, ou seja,
como se dava a presença de Cristo na liturgia. Retomavam-se, assim os questionamentos de
Occam.
[...] O ponto de vista de Lutero distinguia-se do católico, mas retinha um componente central da concepção tradicional. A teologia católica defendia o princípio da transubstanciação, isto é, a transformação de uma substância em outra, explicando a presença real de Cristo no Sacramento da Eucaristia. Para Lutero, ao invés de transubstanciação, ocorre a consubstanciação, ou seja, a reunião de dois corpos na mesma substância, mantendo a presença de Cristo: o rito sagrado corporificava o real e verdadeiro ponto de interseção, ou consubstanciação da divindade no mundo profano; por isso, era eficaz. [...] (WOORTMANN, 1997, p.89).
A concepção luterana optou por uma postura de meio-termo em relação ao
mistério da hóstia, significando ao mesmo tempo o pão e o corpo de Cristo. Haveria no ritual
uma invocação e uma reconstituição da presença de Jesus no pão.
Se por um lado as elucubrações de Martim Lutero encontravam-se a meio-caminho
da idéia de transubstanciação, pregada pelos clérigos, Zwinglio, por outro lado, propõe uma
ruptura total com a concepção transubstancialista ao sugerir a abolição do sacrifício
ritualístico. A Eucaristia, que ele interpretava “apenas como um símbolo externo da
comunhão interna de todos os crentes em Cristo” (WOORTMANN, 1997, p.89.), passa a ser
entendida como apenas uma rememoração da última ceia de Jesus com seus apóstolos e da
sua morte na cruz para remissão do pecado mundial; ou seja, o pão não é o corpo de Cristo,
mas o figura e o simboliza, significando a lembrança de sua morte física e sua ressurreição.
A discussão teológica sobre a Eucaristia que perpassou a Idade Média e culminou
na idéia dos reformistas, de que a eficácia da salvação encontrava-se na fé interna e não no
ritual ou no símbolo religioso, levou a mudança nos ideais luteranos, calvinistas e católicos.
24
Na tentativa de se eliminarem transcendências e imanências medievais, buscou-se pressupor a
possível separação entre o mundo espiritual e o material, contribuindo para a ruptura entre fé
e conhecimento.
[...] A Reforma desde Lutero, foi significativa por sua oposição a um sistema simbólico, cujo sentido já não era mais compreendido. Era necessário recodificar a linguagem (que inclui gestos, ritos e ícones) para restituir o sentido. O cristianismo havia construído um sistema simbólico – vale dizer, uma linguagem, - que cada gesto ou palavra em idioma ritual era capaz de produzir uma mensagem, tinha um significado. Com a perda do código, a liturgia perdeu o sentido, retendo apenas a forma [...] (WOORTMANN, 1997, p.93).
As mudanças nos pensamentos religiosos que transitaram os séculos XV, XVI e
XVII, foram caracterizadas pela oposição entre os sistemas de representações simbólicas do
dogma católico, por parte das religiões resultantes dos ideais de Lutero, Calvino e Zwinglio.
O impasse das idéias de transubstanciação e consubstanciação é apenas um exemplo do
variado reformulamento feito pelos opositores protestantes, que se retoma neste trabalho, por
apresentar um conflito de ordem teológica, filosófica e mesmo científica sobre o fato da hóstia
representar ou mesmo se transformar no corpo de Jesus. Debate que adentrou o século XVII e
que ameaçava os ideais de doutrinação das Américas, sobretudo a Portuguesa. Qual o sentido
para Portugal de se tradicionalizar, em terras coloniais, as Festa de Corpus Christi?
A Reforma Protestante foi um movimento de sentido religioso e doutrinário, que
se caracterizou pelas multiplicidades de discursos por parte dos próprios integrantes da Igreja
Católica, que intentavam suprir a necessidade imperiosa de reformá-la, sugerindo mudanças
de acordo com aquilo que lhes favoreciam. Para as categorias sociais que se encontravam
atreladas ao Estado, queria-se a redução do Poder Papal; para a nascente burguesia, a rejeição
às elevadas taxas cobradas pelos serviços religiosos (batismo, casamento, missa, extrema-
unção...); já os teólogos, intelectuais e cientistas, pretendiam a abominação de certos dogmas
e aspectos doutrinais do culto católico – é neste contexto de conflito teológico que se insere o
cisma da eucaristia – e por fim um quarto protesto que dizia respeito às atitudes
desmoralizantes dos comportamentos de representantes da Igreja Católica (CHADWICK,
1969, apud., ANDRADE, 2002, p.30).
25
Tinham-se, então, dois padrões de críticas em relação à religião católica, uma que
estava direcionada as práticas e ações devocionais, administrativas e de condutas do clero; e
uma outra que correspondia a questões teológicas e concepções que fundamentalizavam a
religião. Inquietações que se fizeram presentes no contexto religioso já desde o século XIV,
intensificando-se no Quinhentismo, com o aumento do Poder do Rei sobre os seus impérios,
ficando a Igreja cada vez mais arraigada ao Estado.
No que tange ao movimento Contra-reformista, este atuou como uma reação às
criticas ao catolicismo, Maristela Andrade (2002, p.31), aponta o surgimento de dois grupos
opostos dentro do mesmo movimento, os que se aproximaram das propostas dos reformistas
protestantes, e os que repudiaram os ideais protestantistas.
O movimento da Contra-Reforma envolveu a perspectiva de realização de reformas por iniciativa da própria Igreja, em razão do reconhecimento por parte dos seus representantes da necessidade delas [...]. A forma mais explícita de manter a diferença perante os protestantes era através do incentivo às práticas devocionais medievais, especialmente o culto a Virgem Maria, em que a fé católica assumiria um aspecto ostensivo exterior. Daí as raízes do catolicismo brasileiro não serem propriamente medievais, como tantos afirmaram, mas uma forma de revivalismo medieval adotado pela Contra-Reforma, ou seja, eram práticas que se inseriam em um outro contexto histórico com propósitos específicos [...] (ANDRADE, 2002, p.32).
A ritualística católica medieval foi revisitada no intuito de revalorar atitudes
devocionais posta em desmerecimento pelos protestantes, principalmente em terras coloniais.
O teatro, que pregava o Auto Religioso, os sermões e o imaginário religioso presente em
documentações burocráticas da Coroa portuguesa e do Brasil colonial, demonstram o
atrelamento da Igreja com a Monarquia portuguesa e os mecanismos estilísticos e alegóricos
utilizados pela aquela instituição para efetivar o doutrinamento de nativos, colonos e
africanos, no intuito de aumentar o número de fies ao culto católico.
Tornava-se, conforme o Estado Nacional Português se absolutizava, mais intenso o
envolvimento da Monarquia nas “coisas” da Igreja, característica que emergiu a partir do
26
Edito de Milão11 no século IV e culminou na institucionalização do Padroado Régio,
singularidade de Portugal e Espanha, (que perpetuou entre os séculos XV ao XVII), onde o
Estado encontrava-se sobreposto as estruturas eclesiásticas. Neste sentido a presença de
ordens religiosas da Igreja Católica no processo colonizador do Brasil atuou como força
auxiliadora no processo de expansão, domínio e doutrinamento em terras de além mares
portugueses.
Seria a imposição das festas religiosas sob o viés da cultura portuguesa, também,
uma estratégia de domínio e uma tentativa da teologia católica de recodificar a linguagem do
ritual litúrgico, reavivando o sentido teatralizante de suas festividades e intensificando o uso
de alegorias12 nos seus discursos evangelizadores e catequistas, – representados no modelo
sacramental do sermão. Pode-se dizer que sim, partindo da concepção de Bosi (1992, p.12),
que entende o processo de colonização das Américas como palco principal para estas re-
significações, ao passo que “a colonização dá um ar de recomeço e arranque as culturas
seculares”.
A presença, nas Américas13, de representantes das nações européias, que se
lançaram nas navegações pelo Oceano Atlântico (Espanha, Portugal, França, Inglaterra e
Holanda), está marcada por um envolvimento religioso em tais expedições e iniciativas
colonizadoras, expressas nos vestígios que se mantiveram com o tempo. No caso dos projetos
hispânico e lusitano as expansões territoriais identificavam-se com um conceito teológico de
propagação da fé cristã católica. A mentalidade de “escolha divina” fazia parte da concepção
religiosa da Península Ibérica, difundindo-se um imaginário de entidades celestiais (santos,
apóstolos, anjos...) responsáveis pela proteção do mundo. 11 Decretado em 313, consistia num conjunto de regulamentações religiosas do Império Romano resultante das reuniões entre Constantino e Licínio, acordando o princípio de liberdade religiosa a todos. Após ter vencido Majêncio na batalha de Ponte Mílvio, Constantino, Imperador de Roma, no século IV, reconheceu o Deus dos cristãos e lhes rendeu adoração, atitude que ficou conhecida como “a conversão de Constantino”. 12 Entende-se por alegoria como uma espécie de linguagem que expõe o pensamento por uma forma figurada. “Definida assim, a alegoria explica uma idéia por intermédio de imagens. Na história do Cristianismo e, de modo geral, em quase todas as religiões, a alegoria ocupa lugar importante. Na Bíblia, esse método expositivo é frequentemente empregado; em Alexandria, cidade egípcia, a alegoria era comum nos textos – e no falar – de seus teólogos. Na cultura grega, em particular, ganhou destaque ainda maior com os pensadores, numa época em que passaram a empregá-la nas narrativas de caráter mitológico. Nos poemas homéricos, principalmente – e posteriormente recolhida pelos judeus, que a transpuseram para a Bíblia – esse tipo de exposição foi utilizado amiúde. Inúmeras parábolas são encontradas no Novo Testamento”. (AZEVEDO, 2002, p.28). Para BURKE (1994, pp.39 e 40), a alegoria se constituía como uma linguagem bastante conhecida do século XVII, pelo menos entre as elites, representando geralmente deuses, deusas e heróis clássicos que estavam associados a questões da moralidade humana, porém nem sempre eram facilmente codificadas. 13 Veja os mapas do anexos A e B, nas páginas 65 e 66, respectivamente, que são representativos da presença portuguesa e espanhola na América do Sul.
27
Em carta intitulada “Cartas a los Reyes Católicos”, Cristóvão Colombo, inicia seus
relatos acerca de sua viagem de Sanlúcar de Barrameda rumo ao Sul, com a seguinte frase:
“Partí em nombre de la Santíssima Trindade el miércoles 30 de mayo de 1498 [...]”. Mais
adiante, em outros trechos do referido documento, observa-se os constantes agradecimentos
de Colombo a Deus e a Nossa Senhora pelas boas condições do mar e do vento favorável,
fazendo com que chegassem aos arquipélagos da América Central.
Os relatos de Colombo dão visibilidade para o aspecto de união entre conquistas
políticas e promoção da fé cristã que fazia parte do discurso teológico ibérico. Perspectiva
também assumida por Portugal, que delegava a si a incumbência de propagação do culto
cristão católico, identificando o reinado terreno do monarca português ao reinado de Deus,
justificando sob o ponto de vista teológico a colonização, como sugerem Azzi (2004, p.40) e
Bosi (1992, p.15), respectivamente.
[...] Essa mesma perspectiva teológica é assumida em Portugal. À medida que o reino lusitano era identificado com o reino de Deus, a conseqüência lógica era que a dilatação desse reinado espiritual ficasse condicionada à própria expansão lusitana. Os aspectos religiosos, políticos e econômicos estavam interligados na realidade político-espiritual da Cristandade. O enfoque da dilatação da fé constitui, portanto, outro componente importante da teologia católica luso-brasileira, merecendo uma análise mais detalhada. A dilatação da fé está, aliás, vinculada diretamente à idéia de fronteiras da Cristandade. A teologia da Cristandade era complementada pela elaboração teológica sobre a Conquista lusitana [...]. [...] As motivações expressas dos colonizadores portugueses nas Américas, na Ásia e na África inspiram-se no projeto de dilatar a Fé ao lado de dilatar o Império, de camoniana memória. E os puritanos que aportaram às praias da Nova Inglaterra também declararam: to perform the ways of God14 [...].
A mentalidade religiosa portuguesa de “conquista e reconquista cristã”, já se fazia
presente em Portugal, desde o século XII, no projeto de expansão do Cristianismo e negação
da legitimidade sacramental de qualquer “alteridade, fosse ela representadas por árabes,
judeus e, posteriormente, por africanos, indígenas e asiáticos” (ANDRADE, 2004, p.94). O
14 Representar o caminho de Deus.
28
processo de colonização se alicerçou em duas pilastras de forças institucionais: a Igreja
Católica e o Estado Português. A Cruz de Cristo funcionou como um elemento simbolizador
desta aliança. Analisando as modificações nas Bandeiras Reis dos séculos XVI e XVII,
observam-se como os símbolos religiosos foram parecendo nas representações político-sociais
de Portugal, fazendo-se uso do discurso de necessidade civilizatória-evangelizadora dos
nativos, legitimando a conquista.
Ilustração 1: Bandeira Real de D. João III, 1521. Fonte: BRASÍLIA, 1993, p.32
Ilustração 2: Bandeira para a Índia e para a América. Fonte: BRASÍLIA, 1993, p.33
Na ilustração 1, aparece somente o Brasão de Armas de Portugal, abaixo de uma
Coroa Real. A ilustração 2, utilizada em terás asiáticas e americanas, observa-se três formas
de domínio, sobre tais terras: o político, representado pelo mesmo Brasão de Armas de
Portugal, agora subeposto a uma Coroa Imperial; o econômico figurado pela a esfera armilar,
que representava o comércio entre Brasil e Portugal15; e o religioso simbolizado na figura de
um clérigo jesuíta, que exibe uma cruz, na extremidade direita da bandeira.
15 Este emblema heráldico foi atribuído à colônia em decorrência da elevação do Brasil a categoria de principado, em 1645, por D. João IV. (
29
Neste sentido, entendendo a colonização sob a perspectiva alfrediana, que a
considera como uma ação que envolve atitudes de ocupação, dominação, exploração e
submissão de povos e da natureza, a religiosidade do colonizador, re-atualizada das suas
raízes, afirma-se também como um aspecto universal, primordial e preponderante da
humanidade, paralelamente as ações de sobrevivência e as relações políticas e/ou econômicas
resultantes da ação predatória de exploração dos recursos naturais que “nova terra” lhes
oferece. Se antes navegar foi preciso, habitar e cultivar a terra fazia-se necessário para
manutenção do processo de colonização do Brasil.
Além dos agentes físicos de operações econômicas, estão incluídas no processo as
crenças, inseridas numa cultura religiosa que é re-significada, re-elaborada e hibridizada para
dar espaço a uma política de doutrinação católica e conversão dos nativos. Das diversificadas
ordens religiosas que participaram na ação colonizadora portuguesa do Brasil, a Companhia
de Jesus destacou-se por institucionalizar a língua Tupi como língua geral buscando o
rompimento da barreira da linguagem para maiores e melhores resultados nos trabalhos
missionários de catequização indígena. Os autos religiosos e as procissões em dias de
comemorações serviam como instrumento de exaltação da doutrina católica cristã e
condenações das práticas religiosas das nações indígenas que tiveram contatos. Sob a
perspectiva dicotômica maniqueísta da luta do bem (a fé cristã) contra o mal (crenças dos
nativos), o teatro anchietano ao mesmo tempo em que condena dá visibilidade às culturas
religiosas não cristãs e possibilita a resistência dos nativos por meio do sincretismo religioso.
No Auto Religioso que foi apresentado na Festa de São Lourenço em um
acampamento missionário no Rio de Janeiro, Anchieta (1973) apresenta como personagens
três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem São Lourenço, São
Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os tentadores que se chamavam:
Guaixará, que era o rei, Aimbirê e Saravaia, seus criados. A fala de Guaixará, chefe e
guardião da aldeia, antes da presença dos padres da Companhia de Jesus, condenam a virtude
e os hábitos polidos dos estrangeiros.
Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira. Quem a teria trazido,
30
com seus hábitos polidos estragando a terra inteira? Só eu permaneço nesta aldeia como chefe guardião. Minha lei é a inspiração que lhe dou, daqui vou longe visitar outro torrão. Quem é forte como eu? Como eu, conceituado? Sou diabo bem assado. A fama me precedeu; Guaixará sou chamado. (ANCHIETA, 1973, p.4).
O sistema de viver bem de Guaixará prezava pela não abolição e não
constrangimento do prazer. Em versos cantados a encenação religiosa dos jesuítas vai
delegando ao demônio atitudes da cultura nativa, como: beber cauim, se embriagar, lutar,
bailar, adornar-se, andar pintado, tingir as pernas, empinado fumar e curandeirar e pintar-se de
preto. Condena ainda o amancebamento, o canibalismo e a espionagem.
No drama religioso de José de Anchieta a salvação e a libertação da aldeia
encontravam-se na presença dos padres que ameaçavam as práticas demoníacas e infligiam a
Lei Divina, que para os colonizadores encontrava-se na religião católica.
QUINTO ATO Dança de doze meninos, que se fez na procissão de São Lourenço. 1º) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando. Por teus rogos desejando Deus nos faça venturosos nosso coração guardando. 2º) Nós confiamos em ti Lourenço santificado, que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos vícios já desligados nos pajés não crendo mais, em suas danças rituais, nem seus mágicos cuidados.
31
3º) Como tu, que a confiança em Deus tão bem resguardaste, que o dom de Jesus nos baste, pai da suprema esperança. 4º) Pleno do divino amor foi teu coração outrora. Zela pois por nós agora! Amemos nosso Criador, pai nosso de cada hora! (ANCHIETA, 1973, p.42).
No último ato, no qual dançam doze meninos índios, o auto propõe o modelo de
festa religiosa que se deve celebrar, a negação das manifestações religiosas dos nativos e
aceitação de uma educação centrada na catequese dos padres da Companhia de Jesus,
instaurando na colônia uma teologia da conquista e dominação das nações nativas, onde sobre
o pretexto de tornar a alma escrava do Senhor, torna-se o índio escravo de colonos e jesuítas.
A necessidade de uma religião institucionalizada, imposta pelo colonizador
português e confrontada a outras práticas de culto e manifestações do sagrado, favoreceu o
surgimento de um catolicismo menos ortodoxo, com a participação ativa de leigos ou beatos,
que investiam principalmente na criação de eventos festivos, onde as representatividades
governativas da metrópole e da colônia obrigavam a participação da população em tais
manifestações festivas. Distanciando-se cada vez mais do catolicismo oficial, a religiosidade
no Maranhão Colonial se constituiu por meio da dicotomia permitido/proibido, marcada por
um processo de implantação da doutrina católica (obrigatória e oficial) em detrimento da
tentativa de eliminação das religiosidades africanas e indígenas (considerada pelos
administradores coloniais como ridicularias).
Percebe-se, então, a presença de três aspectos importantes para a formação
religiosa no Maranhão Colonial: a herança de crenças milenares, onde o sagrado e o
misterioso se inserem no cotidiano do crente e orientam a vida prática; a religiosidade
ontocrática, onde o religioso baseia-se no recurso intermediário mais próximo e sensível, para
estabelecer um contato com o sobrenatural ou o divino, podendo ser personificados ou
simbolizados; e a ausência ou presença irregular do padre, de modo que as práticas constantes
32
da religiosidade popular prescindiam do mesmo, sendo o padre substituído pelos leigos
consagrados.
No Maranhão a preocupação em se implantar uma religiosidade católica, está
presente desde as primeiras tentativas de exploração do litoral norte do Brasil. A presença de
franceses na Ilha de São Luís é marcada por um ritual religioso que pode ser descrito, com
base nos relatos dos missionários padres capuchinhos, como uma missa seguida de procissão
e fincamento de uma cruz na terra, acompanhada pela presença dos nativos.
[...] Depois dos franceses, foi a cruz adorada pelos índios, um após outros, com modéstia e reverência sem igual. Adoraram-na primeiro os principais com particular devoção, como exemplo dado a todos os índios. [...] Seguiram-se depois os velhos e pessoas antigas, e afinal todos os índios presentes com ordem, sem confusão, uns após outros, e de mãos postas, ajoelharam-se perante a cruz, como nos viram fazer, adoravam-na, beijavam-na com todo o respeito, humildade e devoção, como se fossem em toda a sua vida educados pelo Cristianismo. [...] Erguendo a cruz, como já contei, foi benzida a ilha ao som de muitos tiros de artilharia do Forte e de nossos navios, em sinal de regozijo. (D’ABBEVILLE, 2002, p. 103).
A narrativa de Abbeville, que alguns dos intelectuais maranhenses do final do
século XIX interpretaram-na como relatos que atestam a fundação da cidade de São Luís por
franceses, é considerada pela historiografia maranhense recente como apenas a descrição de
um ritual de posse da terra à francesa. Apesar das merecidas críticas feita a obra de Abbeville,
ela serve-me para ilustrar o imaginário religioso católico, ou ao menos o ideal de religião que
se quer evidenciar, das nações do Velho Mundo que se lançaram no processo de colonização
do Maranhão.
Omite-se qualquer vestígio de resistência indígena ao contato com os franceses, e
o cristianismo e suas formas de representações tornam-se fatores de supremacia para a suposta
cordialidade entre ambos. Ou seja, o estranhamento e o confronto, comum a qualquer situação
de contato entre alteridades, são amenizados pela presença da cruz; atribuindo-se aos índios
atitudes e qualidades de cristãos. A doutrina religiosa cristã torna-se o instrumento pelo qual a
33
colonização é possível, pois esta, aos olhos dos colonizadores, civiliza os nativos que são
considerados selvagens porque não conhecem a “verdadeira” religião.
A Igreja Católica através de um discurso evangelizador reafirmou sua relação
com o Estado Absolutista ao assegurar sua presença no pleito de disputa pelas regiões das
Américas, sobretudo a região norte do Brasil. A colonização do Maranhão, que abrangia as
regiões que hoje correspondem aos estados do Amazonas, Pará, Maranhão e Piauí, e
consequentemente a construção da cidade de São Luís pelos portugueses, também se
configurou por meio da aliança Estado e Religião. As festividades de Corpus Christi em São
Luís, que se realizaram nos dois primeiros séculos de colonização da cidade, inserem-se neste
contexto. Passemos a analisá-las
34
3 “OLHA LÁ! VEM PASSANDO A PROCISSÃO”: O Corpo de Deus nas ruas
3.1 O Senado da Câmara de São Luís e as festas
De modo geral as estruturas administrativas instaladas nas terras coloniais da
América Portuguesa estão recheadas de modificações e amoldamentos das instituições de
governo para cada região e período, que se pretende pesquisar. Paiva (2001, p.27), em artigo
sobre o imaginário brasileiro acerca da colonização, apresenta um organograma, que diz ser
simplificado e incompleto, mas que serve para compreender a gerência colonial no Brasil.
Transcrito, aqui, na ilustração abaixo.
ADMINISTRAÇÃO PORTUGUESA NO BRASIL COLÔNIA
COROA
CONSELHO ULTRAMARINO
GOVERNADORIA GERAL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
COLÔNIA
↓ GOVERNO DAS
CAPITANIAS ↓
CAPITANIAS ↓
OUVIDOURIAS ↓
COMARCAS ↓
SENADOS DA CÂMARA
VILAS E CIDADES ↓
CURATOS
TERMOS FREGUEZIAS ↓
BAIRROS PARÓQUIAS Ilustração 3: Organograma demonstrativo da atuação administrativa na América Portuguesa. Fonte: PAIVA, 2001, p.27.
35
Das instâncias políticas apresentadas no organograma acima, chamamos atenção
para o Senado da Câmara, composto por Juizes, Vereadores, Procurador e Oficiais; e ainda, as
Freguesias e Paróquias, por se constituírem enquanto instituições políticas e eclesiásticas,
respectivamente, estando às mesmas diretamente ligadas a realização da Festa de Corpus
Christi. A Câmara de São Luís foi criada durante o ano de 1619, tendo Simão Estácio da
Silveira como seu primeiro juiz. João Francisco Lisboa (s/d., p.45), ao escrever sobre aspectos
políticos de São Luís no período colonial, afirmou ser a “expansão da municipalidade” um
fenômeno extraordinário expresso no poder político do Senado da Câmara, representado pelos
“nobres”, sobre a cidade. Sob o seu regimento legislativo controladorista estavam à taxação
do preço ao trabalho indígena, e outros trabalhadores livres; aos produtos manufatureiros dos
oficiais mecânicos, tais como, a carne, o sal, a farinha, a aguardente, o pano e o fio de
algodão, os medicamentos e, também as manufaturas que chegavam de Portugal.
A promoção, o controle e a proibição de festas religiosas solenes ou populares
competiam, também, a Câmara de São Luís. Tais atribuições se faziam pela via coercitiva do
jogo político-legislativo de permissões e proibições. Das festas consideradas oficiais e
realizadas pela Câmara, Lisboa destaca, além da procissão de Corpus Christi, as festas de São
Sebastião, a do Anjo Custódio, a de Nossa Senhora da Vitória e a da restauração de Portugal
em homenagem a D. João VI. Festividades “públicas ordinárias e regulares” eram compostas
principalmente por missas cantadas e sermões, sendo a procissão uma peculiaridade da
festividade corpo-cristiana.
Ao mesmo tempo em que tais festividades legitimavam a hierarquia social e a
cultura branco-européia; aos nativos e, posteriormente aos negros, a ação repressora era
intensificada, restringindo ou proibindo suas práticas festivo-culturais. “Em vereação de 3 de
novembro de 1686 deliberou-se que ninguém consentisse em seus quintais poracês16 do
gentio da terra, e bailes de tapanhunos, salvo em tempo de festa e de dia” (LISBOA, s/d.,
p.203). Existia, nesse sentido, uma cultura de matriz portuguesa, legitimada por meio da
imposição e, do lado oposto, uma alteridade, inicialmente indígena e depois, também, negra
que se intentava exterminar, mas que a ação repressora da magnificência política não deu
conta, dada às estratégias sincréticas de salvaguarda das culturas indígenas e africanas, por
parte dos agentes que as (re)produziam ou hibridizavam-nas.
16 Termo de origem, que Tupi significa dança religiosa, dos índios ao som do maracá, do tambor e da flauta, acompanhadas de bebidas e tabacos (HOLANDA, 1986, p.1366).
36
3.2 O tempo e o espaço da Festa de Corpus Christi em São Luís
A idéia de tempo e espaço são construções que divergem de uma sociedade para
outra e que requerem a necessidade de “um situar-se” para que se possa vê-los e senti-los.
Para Cardoso (2006, p.1) é possível que a concepção de espaço tenha surgido nas sociedades
antigas primeiro que a de tempo, sobrepondo-se sobre esta última, ou seja, referia-se ao tempo
partindo-se de uma noção espacial, onde algumas palavras (longo, curto, trás, frente, perto,
distante...) que possuíam e/ou ainda possuem um significado relacionado ao espaço serviam
para adjetivarem o tempo.
Não se pretende, aqui, entrar numa discussão filosófica sobre as categorias tempo e
espaço, mas parte-se das relações de sentidos entre ambas para se tratar da Festa de Corpus
Christi, na cidade de São Luís, entre os séculos XVII e XVIII, sob a perspectiva das suas
dimensões espaciais e temporais. A rua era por excelência o palco da festa corpo-cristiana, o
espaço que ela percorria influenciava diretamente na sua duração. Composta por variados
momentos e eventualidades, missa cantada, sermão, danças e procissão, as celebrações em
solenidade ao Santíssimo Sacramento constituíam-se em acontecimentos cíclicos anuais,
geralmente realizados nos meses de maio ou junho.
O Estado Colonial do Maranhão e Grão-Pará, instituído em virtude da necessidade
de se intensificarem as ações colonizadoras na região norte da América Portuguesa,
estabeleceu-se pela Carta Régia de 13 de junho de 162117, compreendendo uma vasta
expansão territorial18. Inicialmente teve a cidade de São Luís como capital até o ano de
175319, porém Antônia Mota, em artigo sobre a temática das fortunas de famílias maranhenses
no período colonial, aponta data divergente sobre a mudança de capital do Estado.
[...] A imensa área abrangida pelo Estado foi sucessivas vezes delimitada obedecendo aos interesses colonizadores da coroa. A partir de setembro de 1751, com a redefinição de novas estratégias de defesa e colonização para
17 C.f. MOTA, 2001. 18 Simão Estácio da Silveira (2001, p.38), em sua Relação sumária das cousas do Maranhão, publicado em 1624, relata, ao descrever o Maranhão, suas terras e seus rios, que “o sítio do Maranhão é uma baía que olha para o Norte, e terá como quarenta e duas léguas da ponta do Periá até a ponta do Cumã”, contendo esta área uma quantidade aproximada de vinte ilhas e ilhéus. 19 C.f. MEIRELES, 2001, p.71.
37
a região amazônica a capital passa a ser em Belém e o Estado passa a [ser chamado de] Grão-Pará e Maranhão. (MOTA, 2004, pp.51 e 52).
Observa-se que a concepção de delimitação do espaço do Estado do Maranhão no
século XVII foi bastante maleável, obedeceu a critérios de interesses luso-colonizadores na
tentativa de solucionar problemas com relação aos avanços nas ocupações territoriais da
região amazônica.
A ocupação do ambiente da cidade de São Luís pelos colonos portugueses se
estabeleceu desde o início do século XVII, intensificando-se à medida que a implantação do
sistema agro-exportador, centrado no modelo de criação de engenhos de produção do açúcar,
ampliava-se. A Carta Régia de 18 de junho de 1647 do Conselho Ultramarino, enviada ao rei
D. João IV, disserta sobre a necessidade de se enviar, para a Capitania do Maranhão, cerca de
cinqüenta casais da ilha de Santa Maria e São Miguel (AHU – ACL – CU - 009, Caixa: 02,
Doc. 00215). Só em 1649, uma nova correspondência à D. João IV comunica sobre a chegada
dos ditos cinqüenta casais ao Maranhão, mandados pelo Dr. Antônio de Albuquerque Coelho
de Carvalho (AHU – ACL – CU - 009, Caixa: 03, Doc. 00278).
O perfil urbano da São Luís Seis-Setecentista foi construído paralelo e
condicionado ao movimento de povoamento da cidade. Em 1624 a área citadina correspondia
a “vinte e duas léguas de [comprimento] e sete de [largura]” (SIVEIRA, 2001, p.38). Sua
ocupação se fez no sentido de fora pra dentro, partindo do litoral para as regiões mais internas
da ilha, cercadas palas fortificações de São Felipe, São Francisco (envoltos no mapa da
ilustração 3 por círculos verdes), Itaparí e São José, que não aparecem no mapa abaixo. A
planta da cidade feita por ocasião da invasão holandesa na região, entre a década de quarenta
do século XVII20, representa além do projeto pelo qual foi construída a cidade, em formato
ortogonal, onde as ruas teriam anchos estáveis e orientações conforme os pontos cardeais, a
ampliação do setor urbano da região.
20 Esta planta corresponde ao ano de 1641, foi copiada e publicada pelo Frei João José de Santa Thereza em 1698. Veja o mapa no anexo 08 desta obra.
38
6
5
4
3
2
1
Ilustração 4: Planta da cidade de São Luís de Frei João de Santa Thereza, 1698. Fonte: MOURA, 1943 apud PALHANO, 1988, p. 271.
Com a efetivação do processo de colonização do Maranhão liderada pelo Capitão-
mor Jerônimo de Albuquerque, nos primeiros decênios Setecentista, foi providenciado o
arruamento da cidade de São Luís, seguindo-se o projeto do Engenheiro-mor Frias de
Mesquita. “No século XVII, São Luís contava com três estruturas urbanas: a cidade entre os
muros construídos, pelo então Governador Bento Maciel parente (1638 – 1641), que ia da
[atual] Avenida Pedro II até a Praça Benedito Leite; uma área pouco povoada por trás do atual
Largo do Carmo; e as imediações do bairro do Desterro, um núcleo urbano mais adensado
com uma população que se estendia até o Portinho, seguindo a margem do rio Bacanga,
limitando-se a Rua Afonso Pena” (SÃO LUÍS, 2005, pp.22 e 23).
LEGENDA Instituições religiosas 1 Igreja de Nossa Senhora da Vitória
2 Colégio dos Padres jesuítas 3 Igreja de São Jorge
Percurso da Procissão de Corpus Christi 4 Igreja de Nossa Senhora do Carmo
5 Igreja de São João
6 Convento de São Francisco
Fortalezas
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No mapa acima, observa-se, ainda, que o controle religioso católico sob o espaço
da nascente cidade de São Luís se fazia presente concomitantemente ao aumento das áreas de
povoação do sítio urbano. As construções de capelas, ermidas, igrejas, conventos e catedral se
fizeram atreladas às instalações de Ordens Religiosas Católicas na cidade, sob o aval do poder
régio e municipal. “Entre 1616 a 1658, época em que a população total de São Luis era
estimada em apenas 600 habitantes, já havia se estabelecido na cidade as quatro grandes
Ordens Religiosas encarregadas da pacificação dos indígenas. Cronologicamente as Ordens
eram: 1) os Capuchos Franciscanos e os Carmelitas, que foram os primeiros missionários
portugueses no Estado, que chegaram em 1614 na expedição de Jerônimo de Albuquerque,
que expulsou os franceses da Ilha; 2) os jesuítas, presentes na região já desde 1618 e em 3) os
Mercedários, que entre 1654 a 1658 construíram em São Luís e em Alcântara uma igreja e um
convento” (IPHAN/3ªSR, 2000, p.15).
A preocupação com o aparato religioso e a construção de uma igreja católica que o
representa-se esteve presente desde os primeiros anos da consolidação de um núcleo urbano
colonial na Ilha de São Luís, intensificando-se com o tempo. Em uma carta, de 1 de janeiro de
1624, assinada por Baltazar João Carneiro para o Governador do Maranhão, Francisco Coelho
de Carvalho, encontram-se informações sobre a necessidade de se providenciar a construção
de uma Igreja Matriz na cidade (AHU – ACL – CU – 009, Caixa: 01, Doc.: 0071).
A dimensão da religião católica em São Luís se perpetuou de forma processual e
construtiva. Superada a necessidade se erguer em terras ludovicense, a preocupação girou em
torno dos utensílios religiosos utilizados nos rituais da liturgia católica. No comunicado do
Conselho Ultramarino de 30 de Outubro de 1649, ao rei D. João IV, apresentou-se um pedido
do Padre Valentim do Amaral, vigário da Igreja de São Luís no Maranhão, de uma ajuda de
custo e o envio de instrumentos religiosos: ostensório, resplendor, cálice, custódia e âmbula.
(AHU – ACL – CU – 009, Caixa: 03, Doc.: 00281).
No que concerne à relação do espaço citadino com a festa do Corpo de Deus,
primeiramente a preocupação da política festiva do Senado da Câmara de São Luís se
consistia na abrangência da área cujos habitantes deveriam estar envolvidos na realização e
assistência das festas públicas promovidas pelos funcionários da dita câmara. Em vereação
feita no dia sete de junho de 1647, em que estiveram presentes o juiz Pedro Vieira, os
vereadores (Manoel Nunes de Melo e Manoel de Carvalho), o procurador do Conselho João
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Francisco e os homens bons do povo (o Sargento-mor Agostinho Correia, Luís Domingues e
Francisco Alves Brito), através de posturas, criadas para sanar a ausência dos cidadãos nas
festas públicas, demarcou-se a área e as “qualidades sociais” que estariam, daquele dia em
diante, envolvidas nas festas promovidas pela Câmara.
[...] Nesta cidade de São Luís do Maranhão, nas casas da Câmara, estando os oficiais dela juntos juízes e vereadores e o procurador do conselho [...]. Acordamos e mandamos que todo cidadão desta cidade de São Luís de qualquer qualidade que seja que a Câmara celebre festas e procissões, estando residente na cidade ou duas léguas ao redor, não acudir as ditas festas e procissões para [acompanhá-los] nos postos que lhes forem ordenados pague mil réis de pena as obras do conselho. [...] Acordamos e mandamos que todo o mercador vizinho desta cidade acuda pela sobredita maneira as ditas procissões e festas com suas folhas sob pena de dois cruzados para as obras do Conselho e da Câmara [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdão de 1647, p.22).
A obrigação de assistir à festa rompia coma às barreiras do espaço urbano e das
categorias sociais. A atuação na festividade deveria envolver a todos os cidadãos,
independente de suas qualidades, de uma área que compreendia além do perímetro urbano,
um em torno de duas léguas e, ainda, as cidades vizinhas.
Não se pode localizar com precisão qual era o percurso oficial da procissão de
Corpus Christi em São Luís, mas as pesquisas nos documentos referentes à festividade que
contêm registros e informações, possibilitam uma aproximação em relação ao trajeto que o
cortejo fazia nos dias de festas. Azzi (2005, p.274), relata acerca da tentativa do Bispo do
Maranhão, D. Frei Antônio de Pádoa, em 1785, em querer modificar o trajeto da procissão de
Corpus Christi, enviando à Câmara da cidade de São Luís um aviso comunicando que o
percurso se faria pelas ruas da cidade alta. Porém o pedido do Bispo foi vetado pelo então
governador José Teles da Silva e o Senado da dita Câmara, sob a alegação de se conservar o
costume do percurso da Praia Grande, uma vez que a inspeção da procissão e sua
realização competiam à Câmara e não ao Bispo.
41
Um outro espaço importante da cidade e local de passagem de procissões, ao que
indica o Termo de Vereação feito em doze de janeiro de 1692, era a Rua de Amaro dos Reis.
[...] e assim mais requereram os misteres do pano que prezentes estavam que era muito necessário a esta cidade o concerto da Rua de Amaro dos Reis por ser uma das principais da cidade e por ela ser a passagem do maior concurso de gente e de procissão [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdão de 1647, p.22).
Seria a Rua de Amaro dos Reis local de passagem da procissão de Corpus Christi
em dias de festas na cidade? Resposta difícil de precisar, atualmente, uma vez que as
demarcações do espaço e, consequentemente, sua referenciação e localização, na São Luís
Colonial eram extremamente pessoalizadas.
Partindo-se da concepção de que a procissão se constituía no principal
acontecimento da festividade, o tempo da festa girava em torno de tal evento, podendo ser
dividido em o antes, em que por meio das seções de reuniões dos camaristas de São Luís
eram requeridos a realização da festa e como esta deveria ser feita; o durante, onde no
momento do cortejo além das situações de consagração da eucaristia, representações políticas,
civis e religiosas e momentos de sociabilidade, firmava-se a vigilância por parte dos
funcionários da Câmara para averiguarem se as determinações preestabelecidas estavam
sendo cumpridas; e por último o depois, espaço para as possíveis condenações daqueles que
não tornaram efetivo o que lhes foram determinados.
[...] Aos vinte dias do mês [de maio do] ano atrás declarado nesta dita cidade de São [Luís] do Maranhão e na Casa da Câmara dela estan[do] nela juntos (sic) os oficiais da Câmara que nela ser[ve]m [...] o qual dito Procurador do Conselho João Pereira Borges requereu aos ditos oficiais da Câmara que se vinha chegando a festa do Corpo de Deus (sic) da cidade que suas mercês tratassem de fazê-la como era uso e costume e logo pelos ditos vereadores foi dito que eles estavam prestes para fazerem a dita festa do Corpo de Deus [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdãos de 1690, p.18). [...] Aos vinte e cinco dias do mês de junho de mil setecentos e noventa e um anos nesta cidade de São Luís do Maranhão e Casas da Câmara dela
42
onde foi vindo o Dr. Juiz de Fora Manoel de Pinho de Almeida e Lima Presidente do mesmo Senado [...] com os mais senadores abaixo assinados comigo Escrivão ao diante nomeado para efeito de se fazerem conferência e fazendo-se nela acordaram fossem notificadas as pessoas que foram avisadas para as insígnias da procissão de Corpus Christi e faltaram sem serem escusas [...] para na vereação se verem condenar [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de 1691, p.9).
Essa variedade temporal que a festa proporcionava expressa na citação acima,
demonstra a própria dinâmica de promoção da procissão por parte dos seus promotores, que
girava em torno do dia de Corpus Christi. Havia o tempo de requerer, que antecedia o dia da
procissão, em que os camaristas deliberavam o modelo a ser cumprido pelos oficias, juízes de
ofícios e demais cidadãos, além de angariar recursos para os gastos com a missa cantada, o
sermão e a cera que se queimava nas solenidades durante o dia de festa. E existia o tempo
posterior à procissão, que era o momento de punir quem não contribuiu com a festa.
O tempo do cortejo, que reiterava ou afrontava a ordem social instituída, pois
gerava um espaço de sociabilidade e representação, constituía-se como o principal momento
da produção festiva religiosa por parte dos camaristas de São Luís. Assunto para o próximo
capítulo.
43
4 AS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS NA PROCISSÃO DE CORPUS CHRISTI
As festas públicas dos séculos XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil
proporcionavam um contexto de produção de representações. Entendia-se, tal categoria,
como um reconhecimento da autoridade nela concebida, percebida como um testemunho do
poder de quem a utilizava. (HANSEN, 2001). Numa cultura de estruturação da sociedade
marcada pela necessidade de distinção das categorias sociais de forma hierárquica, a efígie
simbólica servia para conferir em ambientes públicos ou privados o grau de qualidade de uma
pessoa ou grupo e suas relações de poder em função dos demais. “Construção discursiva ou
simbólica do mundo social”, no qual as festas estavam inseridas, as representações nas
procissões de Corpus Christi se faziam atreladas a um contexto de “coerções objetivas que
limitavam e possibilitavam as referidas representações”. (HANSEN, p.736).
Organizadas por instituições políticas e religiosas clericais ou leigas, – tais como,
respectivamente, as Câmaras das principais cidades da Colônia e da Metrópole, a Igreja
Católica e as Irmandades, – as representações presentes nas festividades, especificamente do
Brasil Colônia, ligavam-se a um modelo de sociedade européia hirearquizante e a uma
religiosidade católica. Intentava-se manter nos portugueses e implantar nos nativos e,
posteriormente, nos negros africanos e seus descendentes nascidos no Brasil, os usos e
costumes de Portugal, impondo-lhes dogmas e práticas do culto católico da Metrópole.
Quanto ao uso de formas imagéticas ou expressões lingüísticas representativas da
sociedade, seguiam-se as normas de condutas da legislação portuguesa. O quinto Livro das
Ordenações Filipinas de Portugal, que tem como 92º título, Dos que tomão insígnias de
armas, e Dom ou appellidos, que lhes não pertencem, prescreve como eram atribuídos os usos
de Brasões das Armas e Apelidos e as devidas penalidades para aqueles que indevidamente
utilizavam-se de um ou mais símbolos que não lhes pertenciam, fossem eles lingüísticos ou
visuais.
[...] Como os Brasões das armas e appellidos, que se dão áquelles, que per honrosos feitos os gamharão, sejão certos sinaes e prova de sua Nobreza e honra, e dos que delles descendem, he justo que essas insignias e appellidos andem em tanta certeza, que suas famílias e nomes se não confundão com as dos outros, que não tiverem iguaes merecimentos.
44
E que assi como elles per serviços feitos a seus Reys, ou Republicas se assinalarão e avantajarão dos outros, assi sua preeminencia e dignidade seja a todos notória. Pelo que ordenamos, que qualquer pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que novamente tomar armas, que de Direito lhe não pertenção, perca sua fazenda, ametade para quem o accusar, e a outra para os Captivos. E mais perderá toda sua honra e privilegio de Fidalguia e linhagem, e pessoa, que tiver, e seja havido por plebêo, assi nas penas, como nos tributos e feitas, e sem nunca poder gozar de privilegio algum, nem honra, que por razão de sua linhagem, ou pessoa, ou de Direito lhe pertença. (ALMEIDA, 1870, p.1242).
O exame das deliberações legislativas da Metrópole, que também serviam à
Colônia, expressas na citação acima, mostra que havia uma grande importância no controle
depositado aos grupos sociais formados ou em formação ao se representarem imageticamente.
Os símbolos heráldicos, o direito ao uso de armas, os apelidos de Dom e Mor, eram atribuídos
às pessoas em função de seus feitos honrosos, por suas preeminências e dignidades.
O uso de tais insígnias servia de distinção social, principalmente num momento de
um evento festivo público, onde as categorias sociais coexistem mais não se misturam e a
relação de poder norteada pela hierarquia necessitava ser preservada. Uma vez atribuída às
armas a uma pessoa, família ou cidade, proibia-se o abandono de tais brasões em detrimento
de outra representatividade, sendo ainda, condenados as severas penalidades, - “dous annos de
degredo para África, e multa de cincoenta cruzados para o Rey de Armas de Portugal, ou
outro Official de Armas, que accusar, [...]” – quem acrescentasse ou tirasse de seu brasão
qualquer coisa que por direito não deveria fazer.
As representações dos estatutos sociais, que se faziam por meio da utilização de
vestimentas, títulos, insígnias e propriedades móveis e imóveis, serviam para situar na escala
de poderes e privilégios sociais as pessoas. A aparição em público deveria ser feita condizente
com o Status que lhe competia, identificando à sociedade o seu devido reconhecimento: eu
sou; eu tenho; eu faço...
Com relação ao contingente populacional que habitava a cidade de São Luís, João
Lisboa, em seu Jornal de Tímon, do século XIX, os divide em raças e classes e assim os
classificam. Primeiramente estavam os moradores que eram portugueses e seus imediatos
45
descendentes brancos, divididos em três classes: a dos nobres ou cidadãos; a dos peões, ou
dos mercadores, mecânicos, operários e trabalhadores de qualquer espécie; e a dos infames
pela raça ou pelos crimes, ou cristãos novos e degredados. Na seqüência encontravam-se os
nativos que eram classificados por suas condições em selvagens, cristãos livres, administrados
em aldeias, ou a serviço dos moradores; por fim os escravos que eram compostos por nativos
e negros africanos vindos de Angola, Guiné, Cacheu, Mina e Cabo Verde.
Tímon aponta ainda as possibilidades de miscigenação de todas essas raças que
resultavam nos homens pardos ou gente de cor de diversas graduações, que eram
denominados de mamelucos, caboclos e cafuzos à medida que se aproximavam ou se
afastavam dos tipos que lhes eram oriundos – brancos, nativos e negros. À preponderante
nobreza ludovicense, que ocupava os principais cargos civis, militares e religiosos da região,
foram concedidos os privilégios de cidadãos do Porto, em detrimento da bem sucedida
expulsão dos holandeses do Maranhão, o que garantiu a cidade de São Luís o seu Brasão de
Armas, representado na ilustração abaixo, e privilégios ou infanções atribuídas às pessoas
nobres e de boa geração (LISBOA, s/d. p.50).
Ilustração 5: Brasão de Armas da cidade de São Luís. Fonte: BRASÍLIA, 1993, p.67.
46
O símbolo, que por sua forma e natureza evocava, representava ou testemunhava,
num determinado contexto, o poder monárquico, simbolizado no desenho de uma cora real na
parte superior do Brasão e a conquista da região pelos portugueses em dois momentos de
invasão do território por duas nações européias, respectivamente, França e Holanda.
Concedido pela Provisão Régia de 10 de abril de 1647, o Brasão de Armas de São Luís foi
interpretado, no século XVIII, pelo Padre José Morais como uma representatividade de um
momento histórico, onde a preponderância e a justiça das armas de Portugal pesaram mais que
as forças das armas de França e Holanda.
A respeito das representações sociais nas festas do Corpo de Deus que se
realizaram entre os séculos XVII e XVIII, especificamente entre o período que vai de 1646 a
1791, as representatividades se faziam com o uso de varas, pálio, bandeiras e guiãos. Na
vereação de sete de julho de 1647 o juiz Pedro Vieira, que propôs posturas para regularização
das festas públicas em São Luís, reclama a falta dos cidadãos daquela cidade, que não
estavam acudindo com suas obrigações de levarem, nas solenidades festivas organizadas pela
Câmara, as varas de pálio e as pontas dos guiãos. No mesmo Termo de Vereação, ainda foi
acordado que se mandassem fazer bandeiras para representarem na procissão os ofícios
mecânicos existente na cidade.
[...] Acordamos e mandamos que os juízes de todos os ofícios mecânicos façam fazer bandeiras de seu[s] [respectivos] oficio[s] na forma costumada dentro de um ano. Depois do ano se ficar sob pena não no fazendo passado o dito ano de dois mil réis e de trinta dias de cadeia sem remissão e as mais penas que a Câmara parecerem justas e de como assim acordaram mandaram fazer este assento [...]. (SÃO LUÍS, Livro de Acórdãos da Câmara. 1647 n. 2 p.)
A figuração das categorias sociais da São Luís dos Seiscentos e dos Setecentos na
Procissão do Corpo de Deus, portanto, servia de linguagem teatral e visual dos ideais de
estruturação da população, alicerçada na hierarquia e no poder. Fazer e ver a festa significava
estar sujeito a um sistema de coação institucional repressor, que normalizava as regras
políticas, sociais e religiosas às representações, tornando-as aptas à reprodução dos dogmas
católicos, monárquicos e colonizadores.
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Como a participação na festa era obrigatória a todos os cidadãos da cidade e suas
circunvizinhanças, as distinções entre as pessoas se faziam por meio de vestimentas
diversificadas; das corporações de ofícios existentes na cidade; do lugar ocupado na ordem do
cortejo e de figuras ou objetos presentes no momento do desfile. Os serviços mecânicos, -
principalmente os de ferreiro, sapateiro, carpinteiro, serralheiros, padeiros, pedreiros, alfaiates
e tecelões – eram simbolizados pela presença de bandeiras (ilustração 7) levadas por seus
respectivos juízes de ofício. Tais juízes eram eleitos pelo Conselho da Câmara e ficavam
“responsáveis pela organização e fiscalização de seus pares, constituindo essa categoria ou
função uma peculiaridade da cidade de São Luís” (XIMENDES, ).
Na procissão corpo-cristiana ludovicense, com base nas posturas e nos Termos de
Vereações da Câmara, eram dadas ênfases aos ofícios de padeiro e pescador, no que concerne
a apresentação de danças e insígnias e decorações das ruas durante o trajeto do cortejo
religioso. Não se encontrou nas fontes pesquisadas uma forma de composição do cortejo
corpo-cristiano de São Luís, porém se a procissão seguia o modelo lisboeta – representado na
gravura portuguesa do século XVIII, na ilustração 8 – e de outras cidades do Brasil Colônia,
pode-se considerar que a organização da procissão ludovicense era semelhante a da cidade de
Salvador, onde “costumavam ser encabeçadas pelo bispo e pelo governador, acompanhados
dos oficiais da câmara e dos melhores do lugar. Vinham em seguida as profissões liberais, os
grupos letrados da burocracia e da justiça; da metade pro fim, os vários grupos de oficiais
mecânicos; a plebe branca e por último índios, negros forros e escravos” (HANSEN, 2001,
p.737).
Embora a composição estrutural da procissão de Corpus Christi em São Luís não
tenha sido relatada na documentação que foi possível pesquisar, a Ata de Reunião dos
camaristas de sete de julho de 1647 é bastante significativa para ilustrar as formas como a
população deveria se fazer presente na festa. Para elucidar melhor as representações dos
oficiais mecânicos, juízes e clérigos na procissão, apresenta-se a tabela que segue abaixo.
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Categorias Sociais Formas de representações
na Procissão
Penalidades por não
cumprir com a obrigação
de representação
Igreja Missa, sermão e condução da
hóstia em um ostensório, sob
o pálio
―
Juízes de Ofícios Mecânicos Bandeiras de seus ofícios Multa de dois mil réis e trinta
dias de cadeia
Tecelões Panos Multa de Quinhentos reis
para as obras da Câmara
Mercadores Folhas e a figura de El Rei Multa de dois cruzados para
as obras do Conselho
Padeiros Arcos enramados e danças Multa de um cruzado as
Obras da Câmara
Pescadores Insígnias Multa de cinco tostões para
as obras do Conselho
Ferreiros Alegoria de São Jorge com
serpente e dragão
Multa e prisão
Músicos Canções ―
Tabela 1: As formas de representações sociais e religiosas na festa de Corpus Christi de 1647.
A Interpretação que se faz das informações expostas na tabela acima, diz respeito
ao caráter das representações sociais e religiosas na procissão, que não se davam de forma
aleatória e livre, mas sim, inseridas num contexto administrativo normativo, coativo e
promovedor do evento comandado pelos camaristas de São Luís. O público que ao mesmo
tempo era autor, no sentido manufatureiro da festa, e expectador não tinha autonomia ao se
fazerem presentes, seguindo os acordos e mandados dos Vereadores, Juízes e Procurador do
Senado da Câmara. À Igreja competia o comando dos rituais católicos (a missa e o sermão
realizados pelo pároco da cidade e a condução do Santíssimo Sacramento no percurso da
procissão, levado pelo Bispo do Maranhão).
No que tange ao imaginário religioso católico na festa, São Jorge era por
excelência o santo da procissão, tendo local de destaque no cortejo. Sua presença de forma
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representativa e alegórica na festa fazia-se por meio dos oficiais ferreiros, que eram obrigados
darem assistência à festa, caso contrário, eram punidos com multa e até prisão. Na cidade de
São Luís, no ano de 1677, o Termo de Vereação do dia 19 de junho, que atestou a reunião na
Casa da Câmara dos juizes, vereadores, o procurador do conselho e o escrivão do Senado,
onde “pelos vereadores foi perguntado ao procurador do conselho se tinha que requerer ao
que respondeu que ele requeria a suas mercês que se desse fazer na procissão de Corpus
Christi as danças e figuras de São Jorge com sua serpente e dragão, como se costuma
fazer no Reino de Portugal” (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdão da Câmara de
1677, p.66). Outro Termo de Vereação, escrito em 23 de maio de 1693, pelo escrivão Diogo
Campelo de Andrada, relata que pelo procurador do conselho “foi requerido que sendo
obrigado o juiz do ofício de ferreiro João Barbosa para dar em procissão do Corpo de Deus
a figura de São Jorge”. Porém, ao que consta mais adiante no referido documento, o dito juiz
do ofício de ferreiro não cumpriu a obrigação que lhe foi creditada, pois segundo o mesmo
escrivão, “sendo João Barbosa para este mesmo efeito notificado da sua obrigação para com a
festa e não o fez, o que constou por fé do escrivão das varas e que nesta forma fosse
condenado em três mil reis para que se mandasse passasse mandado ao que foi deferido para
mais oficiais da câmara” (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdão de 1693, pp.48 e
49).
Considerado um dos grandes santos da Igreja grega, São Jorge era militar e morreu
martirizado na Palestina. O culto a sua imagem e pessoa difundiram-se como símbolo de
combate às heresias contra o catolicismo. A fábula existente em sua hagiografia – relatos de
luta de São Jorge contra um dragão e uma serpente – pode ser entendida como uma alegoria
da luta maniqueísta do bem (Catolicismo) contra o mal (outras formas de manifestações
religiosas).
Santo de grande popularidade, a devoção a São Jorge em Portugal teve origem
com a fundação do reino. Sua importância para os primeiros monarcas portugueses se
expressa na igreja em Lisboa, que recebeu o nome do santo, construída por ordem do rei
Afonso Henrique; no cavalo que São Jorge recebeu de herança do rei Sancho I e na invocação
do nome do santo como grito de guerra por Afonso IV. Georgina Santos (2004) aponta
distinções no culto a São Jorge entre as dinastias de Borgonha (séculos XII-XIV) e a de Avis
(XIV-XVI), devoção pessoal para a primeira e “intercessor celeste na batalha que opôs
Portugal a Castela, pela disputa da Coroa Lusitana em 1385”. Observa-se que além da
50
mudança de sentido, há uma ampliação da representação do santo: de simples religiosidade
particular passa-se a símbolo de ligação do mundo físico com o imaginário celestial,
representando a nação portuguesa.
Protetor do exército real, São Jorge torna-se padroeiro de Portugal no reinado de
D. João I, em homenagem a vitória na batalha de Aljubarrota, dando origem a uma devoção
dinástica e uma representatividade simbólica da relação entre fé católica e monarquia
portuguesa, na conquista de regiões de além mar (SANTOS, 2004). A expressão “Vestir as
roupas e as armas de Jorge” passa a ser entendido como ato de invocação da proteção
santíssima do cavaleiro de Cristo, não só contra exércitos de nações que se pretendiam
conquistar, como também contra as heresias e manifestações religiosas não condizentes ao
culto cristão católico.
No ano de 1387 faz-se a primeira representação de São Jorge na festa de Corpus
Christi, em Portugal. Seguindo o modelo padrão de cortejo, “abria-se com a dança de
trabalhadoras das hortas e pomares ao som de gaitas e de flautas; adiante se assistia à
passagem de São Jorge, escoltado pelos artesãos que lidavam com ferro e fogo; seguiam-nos
as demais corporações de ofícios, seus mestres, patronos, mercadores, funcionários da Câmara
e ordens monásticas” (SANTOS, 2004, p.16).
Observa-se, na descrição do cortejo lisboeta da festa do Corpo de Deus, que São
Jorge encabeça a procissão. Sua presença simbólica, alegoricamente apresentada e
teatralizada, imprimem ao evento um caráter cívico e também o desejo e a necessidade de
conquista de novas terras.
A devoção a São Jorge atravessou o oceano atlântico e chegou a América
Portuguesa acrescida de peculiaridades do catolicismo colonial, cuja principal se consistia no
sincretismo religioso que majoritariamente indígenas e posteriormente negros africanos e
ladinos faziam, associando entidades de suas religiosidades com caracteres semelhantes ao de
São Jorge. Há relatos da representatividade do santo, abrindo e encerrando os cortejos, nas
procissões de Salvador, Vila Rica e Rio de Janeiro, onde o caráter sacro-profano
preponderava com a presença de músicos, mascarados e dançarinos (TINHORÃO, 2000).
51
Jorge sentou praça na procissão corpo-cristiana da América Portuguesa. O culto a
sua imagem difundiu-se nas culturas religiosas do Brasil. Festejado no dia 23 de abril, São
Jorge é cultuado, atualmente, desde as formas mais oficias da religião católica até as
diversificadas expressões populares de devoção. É representado com vestimentas militares,
armaduras de ferro, montado a cavalo, cujas patas estão um dragão e uma serpente, que ele
fere com uma lança, mantendo-se o modelo alegórico do século XIV (Ilustração 6 ).
Ilustração 6: Livro de Horas do século XIV, representação de São Jorge. Fonte: SCHWARCZ, 2002.
Ilustração 7: Tipos de Bandeiras. Fonte: BRASÍLIA, 1993, p.21.
52
Ilustração 8: Uma procissão portuguesa do século XVIII Fonte: SCHWARCZ, 2002.
53
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Propostas para uma continuidade
Objetivou-se apresentar, ao fim das pesquisas em fontes históricas e leituras de
bibliografias que versam sobre o período colonial e sobre festas religiosas, no Brasil e no
Maranhão, um trabalho módico. Tal fato se justifica tendo em vista às exigências dos prazos,
a escassez de documentações originais, a incompetência dos órgãos administrativos que
deveriam cuidar e disponibilizar com mais presteza tais manuscritos, mas que não fazem,
alegando falta de higienização e o deterioramento dos Livros. Porém não se desistiu da busca
da originalidade, que se marcou na inquirição minuciosa das fontes produzidas pela Câmara
de São Luís objetivando as festas promovidas pela instituição, especialmente a de Corpus
Christi.
Trabalho árduo, mas que se fez, parafraseando Maria Bethânia, com a sensação de
quem estar aprendendo o seu ofício, unindo a disciplina com o prazer. Foi compensador, uma
vez que os frutos dos arquivos alicerçaram as elucubrações pulverizadas no corpo desta
monografia. O ineditismo encontra-se, também, nas questões a que este trabalho se propôs
discutir, acondicionado na interposição da documentação com a teoria. Destacando-se
principalmente a necessidade de se compreender a construção de representações (prática e
ações) da religiosidade colonial, da sociabilidade e da política festiva na São Luís, entre os
séculos XVII e XVIII, através da Festa de Corpus Christi.
Intentando-se responder as inquietações sobre o conhecimento das representações
do passado festivo, político, social e religioso da cidade de São Luís nos seus primeiros
séculos de construção, produziu-se este escrito. No primeiro capítulo desta obra, apresenta-se
uma discussão filosófica e teológica, que perpassou os séculos XIV, XV, XVI e XVII, na
Europa acerca do Sacramento da Eucaristia – ritual religioso católico de transformação ou
representação do pão e do vinho no corpo e sangue de Jesus. Dogma do cristianismo que
desde o período medieval vinha sendo contestado, o Santíssimo Sacramento, assim
denominado pela Igreja Católica, foi também especulado pelo movimento reformista religioso
de Lutero, Calvino e Zwinglio. O debate central que girava o confronto das concepções
teológicas sobre a hóstia consistia em atribuir, ou não, veracidade a hierofania do ritual, ou
54
seja, seria o pedaço de pão exibido pelo padre, no momento da consagração, o corpo de
Cristo?
Nesse contexto de formulações e reformulações, à eucaristia foram atribuídos
múltiplos discursos, expostos simbolicamente em sermões, tratados teológicos e em eventos
festivos. Os pensamentos divergentes dos protestantes da idéia de consubstanciação, presença
real do corpo de Cristo no pão, proporcionaram a Igreja Católica do Seiscentismo europeu e
Américo-português uma postura de reafirmação dogmática do valor simbólico do seu
principal sacramento, símbolo da conversão à religião católica. Atrelada ao Estado, no
processo de expansão de domínios de terras d’além mar, mas assumindo em alguns momento
uma postura de conflito com a monarquia, a Igreja Católica esteve envolvida no processo de
colonização do Brasil por se constituir enquanto religião oficial do Império português e por
legitimar, através do discurso de civilização dos nativos por meio da catequização, as invasões
territoriais feitas por Portugal. Uniram-se cruzes às espadas para que se efetivassem as
conquistas e evangelizações dos nativos.
No segundo capítulo, busca-se um aprofundamento na especificidade desta obra,
que consisti na festa de Corpus Christi, situando-a no tempo e no espaço da São Luís Colonial
dos séculos XVII e XVIII. Apresentam-se neste capitulo, a participação do Senado da Câmara
de São Luís na festa como promotor do evento religioso normativo; a formação do espaço
urbano da cidade, por ser a rua o palco do objeto de estudo, que se analisou nesta obra. No
que concerne ao tempo da festa, dividiu-se a sua construção em três etapas, a saber: o tempo
que antecedia o cortejo, onde eram acordados e mandados pelos camaristas ludovicenses a
maneira pela qual se deveria fazer a procissão; o tempo do cortejo, em que a rua se
transformava em espaço de sociabilidade e a procissão num mosaico de representações; por
fim, o tempo que precedia o cortejo, onde eram punidas as pessoas que não se fizeram
presentes na festividade. Vislumbra-se, portanto, a festa na rua.
O terceiro capítulo faz uma análise do que seria o terceiro tempo da festa de
Corpus Christi, o cortejo pelas ruas de São Luís. Nesse sentido, requisita-se a idéia de
representação como elemento de coexistência e definidor de grupos sociais, alicerçando o
modelo de segregação hierárquica das categorias sociais. Analisa-se, pois, as maneiras de
representações das pessoas envolvidas nas festas, dos dogmas religiosos da Igreja Católica e
do poder de instituições locais sobre a cidade.
55
Ritual rico, peculiar e repleto de significações simbólicas, as festas colônias em
homenagem ao dia de Corpus Christi possibilitarem este olhar sobre o evento festivo
religioso colonial, que aqui se disserta, mas há continuidades, pelo fato de poder se dar as
documentações, que trazem representações acerca do passado da festa, um diversidade de
abordagens teórico-metodológicas. Este trabalho optou-se por equilibra-se entre questões de
matriz cultural e político-administrativa na festa.
Poder-se-ia ter enfocado a relação do evento festivo e das interpretações ao
Santíssimo Sacramento para a Igreja Católica com os sermões; a relação de trabalho no
contexto da festa, envolvendo a participação dos oficiais mecânicos na produção “plástica” do
cortejo; as receitas e despesas do Senado da Câmara de São Luís com a procissão do Corpo de
Deus. Enfim, um grande e variado leque de possibilidades para se pensar a festa.
Por hora, finaliza-se esta obra considerando a mudança de sentido que a festa de
Corpus Christi, em São Luís, entre os séculos XVII e XVIII. De celebração que surgiu para
combater a heresia de Berenger, que não acreditava na transubstanciação, passa-se a uma
festividade apropriada pelos camaristas da cidade para se representarem e sociabilizarem-se,
elucidando de forma lúdica os lugares e papeis dos grupos populacionais na sociedade
colonial de antanho. A realização da festa do Corpo de Deus, em São Luís, esteve sob o
comando da Câmara até o século XIX (veja o anexo F na página 70).
56
REFERÊNCIAS
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maio/ 1651.
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SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Matias de Almeida. 02/ jul./
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57
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Matias de Almeida. 19/ jul./
1653.
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Matias de Almeida. 22/ nov./
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• Livro de Acórdãos da Câmara (1675-1681)
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SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
14/ abr./ 1696.
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
18/ dez./ 1696.
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
14/ fev./ 1698.
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
30/ maio/ 1698.
58
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
01/ jul./ 1699.
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
18/ jul./ 1699.
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
12/ jan./ 1702.
SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de vereação. Escrivão: Bonifácio da Fonseca e Silva
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SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Vereação. Escrivão: Jacinto Raymundo de Moraes Reys. 20/ agos../ 1791.
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59
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64
ANEXOS
65
ANEXO A: MAPA DA AMÉRICA PORTUGUES DE 1600
Fonte: Fac-símile (Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores – Rio de janeiro).
66
ANEXO B: MAPA DA AMÉRICA PORTUGUESA DE 1641
Fonte: Fac-símile (Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores – Rio de janeiro).
67
ANEXO C: MAPA DO ESTADO DO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ
Fonte: LIMA, 2001, p.214.
68
ANEXO D: PLANTA DA CIDADE DE SÃO LUÍS DE 1641
Planta da Cidade de São Luís feita pela ocasião da presença dos holandeses no Maranhão, 1641. Fonte: LIMA, 2001, p.215.
69
ANEXO E: MAPA DETALHADO DA CIDADE ALTA – SÃO LUÍS (1641)
Fonte: LIMA, 2001, p.216.
70
ANEXO F: LEI Nº. 60 DE 29 DE MAIO DE 1838
71
Fonte: Coleção de Leis e decretos do Maranhão. Lei nº. 60 de 29 de Maio de 1838
72
Abreu, Eloy Barbosa de
A Colônia Consagrada: religiosidade, sociabilidade e política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII) / Eloy Barbosa de Abreu – São Luís, 2006.
71 f.: il.
Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual do Maranhão, 2006. 1. Religiosidade 2. Festa. 3. Representação 4. Sociabilidade I. Título
CDU: 94 (812.1) “16/17”