A Cidade Que a Gente Não Vê

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Joinville, 10 de julho de 2015. Norton Ortiz. Redação Jornalística. A cidade que a gente não vê Em Tupi-guarani, Juquiá significa “rio sujo”. Na comunidade com o mesmo nome, no final do bairro Ulisses Guimarães, o canal do Palmital, que desemboca na Baía da Babitonga, recebe o esgoto da população ribeirinha, mas não é a única coisa suja com a qual aquelas famílias têm que conviver. O entulho, a lama, o esgoto a céu aberto, os casebres de madeira mal construídos, é este o cenário onde as crianças crescem e para onde os pais e mães de família retornam depois da jornada longa de trabalho. O Juquiá, comunidade que se encontra em ocupação irregular, tem mais de quinze anos e está longe de tudo. Distante do olhar e da consciência da maior parte dos cidadãos da manchester catarinense. A viagem até lá é longa e sinuosa. O sentido é zona sul. Para chegar até lá, são 8,7 quilômetros pela rua Monsenhor Gercino, até o começo da rua Jarivatuba. Entrando à esquerda, são mais 1,3 quilômetros, até o cruzamento com a rua Álvaro Maia, onde a se vai a direita para se percorrer uns 700 metros. Ainda falta um trecho. A rua Dilson Funaro fica logo a esquerda, e aí se segue por uns 2 km ou mais, até não haver mais asfalto, até terminar a rede elétrica, a água encanada, a mínima infraestrutura. Lá os direitos humanos são ignorados, o papel da segurança cabe aos cachorros e o estado aparece para cortar os “gatos”, ameaçar de despejo as famílias, reestabelecer a ordem com a polícia quando a população se revolta e resolve reclamar seu direito. O trajeto parece ainda mais complicado quando o jovem repórter que para lá se dirige não dispõe de um GPS para lhe guiar. No caminho, meio perdido, conheço dona Ângela, 58 anos. Mulher viva, boa de conversa, evangélica fervorosa e sorridente. Ela vai para o bairro Ulisses Guimarães, eu pergunto sobre a avenida Max Pruner, ela se anima. Ligeira abre a porta e salta para dentro do carro enquanto eu escondo envergonhado a bagunça.

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Page 1: A Cidade Que a Gente Não Vê

Joinville, 10 de julho de 2015.

Norton Ortiz.

Redação Jornalística.

A cidade que a gente não vê

Em Tupi-guarani, Juquiá significa “rio sujo”. Na comunidade com o mesmo nome, no final do bairro Ulisses Guimarães, o canal do Palmital, que desemboca na Baía da Babitonga, recebe o esgoto da população ribeirinha, mas não é a única coisa suja com a qual aquelas famílias têm que conviver. O entulho, a lama, o esgoto a céu aberto, os casebres de madeira mal construídos, é este o cenário onde as crianças crescem e para onde os pais e mães de família retornam depois da jornada longa de trabalho.

O Juquiá, comunidade que se encontra em ocupação irregular, tem mais de quinze anos e está longe de tudo. Distante do olhar e da consciência da maior parte dos cidadãos da manchester catarinense. A viagem até lá é longa e sinuosa. O sentido é zona sul. Para chegar até lá, são 8,7 quilômetros pela rua Monsenhor Gercino, até o começo da rua Jarivatuba. Entrando à esquerda, são mais 1,3 quilômetros, até o cruzamento com a rua Álvaro Maia, onde a se vai a direita para se percorrer uns 700 metros. Ainda falta um trecho. A rua Dilson Funaro fica logo a esquerda, e aí se segue por uns 2 km ou mais, até não haver mais asfalto, até terminar a rede elétrica, a água encanada, a mínima infraestrutura. Lá os direitos humanos são ignorados, o papel da segurança cabe aos cachorros e o estado aparece para cortar os “gatos”, ameaçar de despejo as famílias, reestabelecer a ordem com a polícia quando a população se revolta e resolve reclamar seu direito.

O trajeto parece ainda mais complicado quando o jovem repórter que para lá se dirige não dispõe de um GPS para lhe guiar. No caminho, meio perdido, conheço dona Ângela, 58 anos. Mulher viva, boa de conversa, evangélica fervorosa e sorridente. Ela vai para o bairro Ulisses Guimarães, eu pergunto sobre a avenida Max Pruner, ela se anima. Ligeira abre a porta e salta para dentro do carro enquanto eu escondo envergonhado a bagunça. “Minha cunhada falou que quando eu menos esperasse Deus me faria uma surpresa,” conta agradecida pelo inesperado transporte. Fico contente com o entusiasmo da mulher. Ela se oferece para ser minha guia, me levar até perto da comunidade e depois voltar a pé para casa.

Dona Ângela me ajuda muito e logo encontro meu anfitrião e meu destino. Em frente à Nossa Senhora do Carmo, igreja católica que é ponto de referência na região, fica a Bar do Sorriso. O estabelecimento está vazio e um homem costura uma rede de pesca. “O senhor é seu Sebastião?” Ele sorri e me chama para dentro da bodega. “Pode me chamar de Sorriso”, apresenta-se, enquanto puxa uma cadeira.

Presidente da associação de moradores, Sebastião Severo da Silva conhece como ninguém o lugar onde mora. Explico sobre o meu intento, conhecer as dificuldades e como se vira a gente dali. Ele se apressa para buscar um chapéu preto, enfia logo na cabeça e avisa: “Para ver como vive o povo é necessário ir a pé.” Aceito a proposta.

Morador da região à 30 anos, Sebastião luta para tentar dar voz aos pedidos da comunidade. “Já fui muito até a prefeitura pedir para colocar tubo, umas carradas de saibro, luz e água para nós.”

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O homem diz ter cansado de tanto levar “não”. Seu Sorriso guia-me entre casas de alvenaria inacabadas, algumas melhores com carro na garagem e casebres de madeira com roupa pendurada em varais improvisados. Comento sobre a diferença entre as moradias e ele me explica: “Na região tem gente mais antiga e mais nova. Quem tem cabeça consegue ir melhorando devagarinho.” E avisa, “a gente ainda não chegou nas casas que ficam na invasão.” Triste expectativa.

São 3 horas da tarde de uma segunda-feira e observo uma jovem trazer nas mãos uma garrafa de cerveja. Ela se ajeita na calçada para conversar com dois amigos, adolescentes como ela. Da casa à frente uma criança lhe chama por mãe.

Volto a dar atenção às moradias e elas se tornam mais parecidas, paupérrimas, algumas rodeadas por lixo. Achegamo-nos a uma delas e uma mulher nos recebe com certa timidez. Daiane Cristina Pereira tem 28 anos, mas sua aparência denota bem mais idade. Mãe de 3 filhos, acorda às 3 da manhã para trabalhar numa empresa de limpeza. Ela está no seu dia de folga e aproveita para cuidar da casa e do filho de apenas 2 anos. Ele tem bronquite, os irmãos também. “Quem sofre é o mais velho. Ele nasceu prematuro e tem um pulmão pequeno”, explica-me a mulher. Quando uma das crianças fica doente, uma boa saída seria o PA mais próximo. Seria. Conformada, a mulher avisa: “Faz um tempo, tá faltando pediatra”. O recurso é ir de ônibus até o Hospital Infantil. São apenas 12,7 km. O marido, autônomo, trabalha como servente. Pergunto pelo ordenado. Somando o salário dos dois, quando ele consegue serviço, o dinheiro fica por volta dos mil e quinhentos reais. Sinceramente, eu imaginava menos.

Seguimos adiante e um vira-latas se aproxima. Ele é esperto e parece bem nutrido. Por segurança, reduzo o passo. Seu Sebastião, sorrindo, desfaz meu temor e me apresenta o Bai, seu fiel escudeiro. Continuamos a viagem os três. O cão, de peito estufado, puxa a comitiva. Vamos pelo mangue e um rio de água escura se apresenta, plácido, à nossa frente. Para seu Sebastião, trata-se do Rio Velho. Procuro mais tarde no mapa, e encontro o Canal do Palmital. Independentemente do nome, a beira do rio está limpa, apesar do esgoto que corre nele. Nada das garrafas pet e das sacolas de supermercado, comuns pelo caminho. Orgulhoso, seu Sorriso me aponta o faxineiro: é o Bai, que contempla, altivo, o fruto do seu trabalho. Não é raro o cachorro lançar-se na água quando encontra algum objeto boiando no rio. Sebastião quer fazer um teste, para demonstrar a eficácia do seu companheiro. Ele encontra uma bola de capotão e ameaça jogá-la nas águas. Rápido, Bai toma o objeto das mãos do velho e rosna como se dissesse: “Aqui, não.”

Agenor da Silva Rosa, de 69 anos, tem uma lojinha num dos lugares mais precários que nós encontramos. Sujo de tinta, pincel na mão, ele pinta de azul a residência que é também seu comércio. O homem conversa conosco enquanto a esposa, desconfiada, espia pela janela. Seu Agenor comunica-se bem, parece um homem inteligente. Ele sintetiza os problemas do povo, e repete tudo o que fartamente nós havíamos visto e ouvido. A região precisa de luz elétrica, telefone, rede de esgoto, água encanada. O entrave para a realização destas demandas é a localização da comunidade em área de mangue, preservada pelos órgãos ambientais. Por outro lado, o povo precisa ficar ali. Perto daquele lugar existe um enorme loteamento, destinado para a construção de casas populares e acomodação daquelas famílias. A obra, entretanto, nem começou. Em vez disso, Seu Agenor quer a demarcação dos terrenos do lugar onde mora. Ele ainda sonha em construir. A moradia onde reside está caindo aos pedaços. Vivendo à margem, do rio e da sociedade, o ancião desabafa: “Nós não temos endereço.”