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A ARQUITETURA DOS BRICS E A COOPERAÇÃO SUL-SUL: O NOVO
BANCO DE DESENVOLVIMENTO DOS BRICS, ACORDOS DE INVESTIMENTO E
AS SALVAGUARDAS SOCIOAMBIENTAIS
Aluno: Gabriel de Barros Torres
Orientador: Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves
Introdução
Desde 2011, Nicholas Stern e Joseph Stiglitz apontavam, às margens das reuniões do
G-20 e da Cúpula dos BRICS em Sanya, para a possibilidade de criação de um banco de
desenvolvimento para financiar projetos de infraestrutura que tivessem como acionistas iniciais
países em desenvolvimento [1]. O tema compôs ainda a agenda do G-20 em sucessivas cúpulas:
Rússia (2013), Austrália (2014) e Turquia (2015). No interior do agrupamento BRICS, a
proposta de criação de um novo banco de desenvolvimento foi inicialmente lançada no Plano
de Ação de Nova Deli, no âmbito da IV Cúpula do BRICS realizada em 2012. A proposta
respondia à paralisia do processo de reforma das Instituições Financeiras Internacionais e, ao
mesmo tempo, à escassez de recursos para o financiamento da infraestrutura em países em
desenvolvimento.
A despeito do sucesso do lançamento do NBD, o processo de aprovação dos primeiros
projetos e a divulgação das políticas socioambientais lançaram sombra de dúvida sobre o
conceito de sustentabilidade que orienta as ações do banco e sobre suas políticas no que
concerne transparência e accountability. Dessa forma, a parte inicial (“A”) deste projeto de
pesquisa consiste, primeiramente, em uma análise da estrutura institucional do Novo Banco de
Desenvolvimento (estrutura de capital e governança) e, em segundo lugar, em uma análise
comparativa da política socioambiental do banco – sua política para o gerenciamento dos riscos
gerados por projetos financiados sobre o meio ambiente e comunidade locais – em relação às
políticas adotadas por outros bancos multilaterais de desenvolvimento, particularmente pelo
Banco Mundial e Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB).
Além da criação do Novo Banco de Desenvolvimento, o ano de 2015 também
testemunhou a inauguração de uma importante ferramenta para a promoção e atração de
investimento no Brasil: Em 30 de Março de 2015, em Maputo, a partir de extensivas consultas
com o setor privado, o governo brasileiro assinou junto ao governo de Moçambique o primeiro
de uma série de novos acordos bilaterais com o objetivo de alavancar a internacionalização das
empresas brasileiras ao oferecer maior segurança para o investidor nos países signatários). O
modelo dos chamados Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos foi elaborado
em conjunto com representantes da FIESP, CNI e de grandes empresas brasileiras, em resposta
a demandas pela adoção de medidas capazes de proteger investimentos frente à atuação do
Estado. Atualmente, o Brasil é signatário de ACFIs bilaterais com sete parceiros na África e
América Latina – além de um Protocolo de Cooperação de Facilitação de Investimentos
recentemente assinado no âmbito do Mercosul – e considera, ainda, expandir a lista com acordo
análogo junto à Índia [2]
Entretanto, apesar dos benefícios esperados em termos de atração e promoção de
investimento, organizações da sociedade civil têm demonstrado preocupação acerca do efeito
dos ACFIs sobre a capacidade do Estado de formular políticas públicas (policy space), além de
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preocupações com o grau de robustez dos compromissos de responsabilidade socioambiental
corporativa estabelecidos pelos acordos. Dessa forma, a segunda parte (“B”) deste projeto de
pesquisa consiste em uma análise dos dispositivos dos novos ACFIs brasileiros, à luz tanto dos
tradicionais acordos bilaterais de investimentos quanto de documentos propositivos sobre
regulação de investimento e responsabilidade socioambiental corporativa elaborados por
organismos internacionais e redes da sociedade civil.
A- O Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS e as Salvaguardas
Socioambientais
Contexto
A criação do banco de desenvolvimento foi o centro das discussões da V Cúpula dos
BRICS, realizada em Durban, onde foram debatidas as prioridades do Banco e as contribuições
de cada membro fundador. O banco foi efetivamente criado na Cúpula seguinte, em 2014, em
Fortaleza, Brasil. Representantes dos cinco governos do bloco assinaram o Acordo sobre o
Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) – cuja entrada em vigor seria anunciada durante a VII
Cúpula, em Julho de 2015, em Ufa, Rússia, marcando o início das operações do Banco [3]. A
instituição foi criada em um momento em que os bancos multilaterais de desenvolvimento
ganham relevância em razão (i) da ausência de condicionalidades; (ii) agilidade na realização
de operações de crédito, e (iii) no financiamento da infraestrutura dos países de renda média.
A sede do Banco foi estabelecida em Shanghai - China, e foi anunciado que o primeiro
escritório será criado em Johanesburgo - África do Sul. Em janeiro de 2016 os cinco membros
fundadores aportaram a primeira parcela, no valor de US$750 milhões, ao capital social do
Banco. Assim, em fevereiro de 2016 o Banco entrou em funcionamento pleno. Vale mencionar
que, segundo o Acordo sobre o Novo Banco de Desenvolvimento, o capital social total da
primeira fase de incorporação do NBD somará US$ 10 bilhões, pagos em sete parcelas, em
sistema de cotas iguais entre os membros do grupo. Além dos aportes nacionais, foram emitidos
“títulos verdes” no valor de 3 bilhões de yuans (em moeda local chinesa). Finalmente, desde
seu lançamento o NBD já assinou acordos de cooperação com diversos bancos de
desenvolvimento - BNDES, VEB, India Eximbank, CDB, DBSA e, recentemente, com Grupo
do Banco Mundial. Contudo, o passo de maior impacto foi o anúncio, em abril de 2016, do
primeiro conjunto de projetos, no valor de US$ 911 milhões, a ser financiado pelo banco.
Passado um ano desde sua implementação, o NBD já aprovou sete projetos e, em agosto de
2016, publicou o conjunto de políticas socioambientais. Contudo, ainda segue sendo alvo de
críticas da sociedade civil, que clama por transparência e processo mais inclusivos.
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Tabela 01: Projetos aprovados pelo Novo Banco de Desenvolvimento
País Valor do
empréstimo Banco Intermediário Descrição do Projeto/ Potencial de
geração de energia Data de
Aprovação
Brasil US$ 300 milhões BNDES Infraestrutura para energia solar e
eólica (600 megawatts);
Linhas de transmissão
16/04/2016
Rússia
US$ 50 milhões Banco Eurasiático de
Desenvolvimento Construção de hidrelétricas
(50 megawatts)
20/07/2016
US$ 50 milhões International Investment Bank
Índia US$ 250 milhões Canara Bank Energia renovável (500 megawatts) 16/04/2016
US$ 350 milhões Empréstimo soberano¹ Revitalização de rodovias 23/11/2016
China
US$ 81 milhões Shangai Lingang Hongbo New
Energy Development Company Produção de paineis solares
(100 megawatts)
16/04/2016
US$ 290 milhões Empréstimo Soberano² Energia eólica e solar
(250 megawatts)
23/11/2016
África
do Sul US$ 180 milhões ESKOM Holdings SOC Ltd. Infraestrutura para energia
renovável (500 megawatts) 16/04/2016
Fonte: Elaboração própria, com base em Mattos & Rosa, 2016
Discussão
Políticas socioambientais e salvaguardas são, em geral, consideradas respostas às falhas
de mercado e externalidades negativas resultantes da ação de agentes privados. Desde a década
de 1990, o debate acerca dos impactos socioambientais deu ênfase às decisões de investimentos
apoiadas por Instituições Financeiras Internacionais (IFIs). Nesse contexto, os Bancos
Multilaterais de Desenvolvimento passaram a ser considerados como agentes determinantes das
condições socioambientais de países em desenvolvimento. O processo de integração da agenda
socioambiental às decisões de investimento foi fundamental para o desenvolvimento de
salvaguardas e políticas de prevenção, mitigação e compensação. Em relação à construção de
salvaguardas socioambientais, o Banco Mundial tornou-se uma instituição de referência [4].
Nesse contexto, o NBD divulgou, em 30 de Agosto de 2016, documentos enunciando
suas estratégias para identificação e controle do impacto socioambiental dos projetos que
financia. O Environment and Social Framework atua como guarda-chuva para três conjuntos
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de normas relativas ao meio-ambiente, deslocamento involuntário e populações indígenas. O
documento apresenta importantes similaridades em relação às políticas de salvaguarda adotadas
pelo BAII – Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura – cujas normas também se
encontram referidas às agendas de meio-ambiente, deslocamento involuntário e povos
indígenas. O Banco Mundial – que conduziu, na última década, longo processo de revisão de
sua política socioambiental – manteve uma agenda mais abrangente, que compreende normas
relativas a eficiência energética e condições de trabalho até saúde e segurança comunitárias.
Contudo, no que concerne ao gerenciamento de riscos socioambientais, o NBD reproduz
algumas práticas controversas comuns às outras instituições. De fato, como outros BMDs o
NBD transfere parte significativa das responsabilidades aos seus clientes e à implementação de
“sistemas nacionais” de proteção.
A efetividade desse enfoque é, porém, controversa e se encontra entre posições distintas
acerca do relacionamento entre os bancos multilaterais e os Estados nacionais. De um lado,
podemos encontrar aqueles que advogam uma abordagem bottom-up centrada no
desenvolvimento de sistemas nacionais, de outro, os que defendem uma perspectiva top-down,
sustentada por um conjunto de princípios supostamente universais. No primeiro grupo,
encontramos o argumento de que o uso de salvaguardas não enfrentaria os principais obstáculos
à efetiva proteção ambiental: frágeis sistemas nacionais dotados, no mais das vezes de baixa
capacidade de implementação. Segundo Humphrey (2016), ao se sobrepor às legislações
nacionais, políticas de salvaguardas de bancos multilaterais teriam impacto mínimo sobre a
maioria dos projetos responsáveis por impactos socioambientais negativos, que não são
financiados por bancos multilaterais – além de suscitarem questionamentos sobre violações à
soberania e à “apropriação nacional” (ownership). Ainda nessa chave, críticos da abordagem
“top-down” afirmam que a adoção de salvaguardas representaria mais uma forma de proteção
contra críticas externas do que proteção a direitos sociais e ambientais. As salvaguardas não
seriam apenas pouco efetivas, mas também muito onerosas, uma vez que implicam em custos
significativos para os tomadores de empréstimo com a elaboração e aplicação de estudos e
planos socioambientais. Nessa perspectiva, o método ideal para garantir a minimizar os
impactos sobre o meio ambiente e populações locais seria o fortalecimento de sistemas legais
nacionais e de sua capacidade de implementação em um processo “meticuloso, rigoroso e
transparente” que envolveria tanto bancos, quanto seus clientes. Essa prática encorajaria a
obediência à lei nacional e tornaria evidente ao público as deficiências de determinados
sistemas legais nacionais, estimulando reformas - a serem realizadas com a assistência do banco
de desenvolvimento [5].
A abordagem abordada pelos três bancos é, contudo, objeto de severas críticas. Segundo
análise do CIEL (Center for International Environmental Law), a experiência do Banco
Mundial demonstra deficiências fundamentais em abordagens centradas no fortalecimento de
sistemas nacionais. Na maioria dos casos, há “diluição dos padrões socioambientais” exigidos,
na medida em que frequentemente a eficácia e efetividade de instituições dos países clientes
encontra-se abaixo do exigidos por padrões internacionais. Embora o Banco Mundial determine
que, em tais casos, deva-se adotar medidas para o preenchimento desse gap, a experiência
demonstra o “fracasso consistente do Banco Mundial em especificar detalhes sobre tais medidas
e um cronograma para sua implementação” (CIEL, 2008). Conforme observação do CIEL, a
abordagem de Sistemas Nacionais depende muito mais da capacidade de agências
governamentais do que da capacidade do banco de implementar padrões. Na maioria dos casos,
essa capacidade é insuficiente. Mesmo assumindo que essa capacidade possa ser construída,
recursos financeiros e técnicos para garantir a construção de capacidades adequadas
dificilmente estão disponíveis [6].
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Tabela 02: Análise comparativa das políticas socioambientais de bancos multilaterais de
desenvolvimento
Banco Documento
Principal Principais Responsabilidades do Banco Principais Críticas de Organizações da
Sociedade Civil
Banco Mundial Environment
and Social
Framework
(04/08/2016)
(1) Categorizar projetos e explicar exigências ao cliente;
(2) Revisar estudos de impacto ambiental e planos de gestão do cliente;
(3) Auxiliar clientes a realizar consultas públicas e estabelecer
mecanismos de reclamação;
(4) Monitorar performance socioambiental durante ciclo do projeto
(1) Transferência de Responsabilidades para clientes;
(2) Flexibilização da exigência de planos de
reassentamento antes do projeto;
(3) Menção mínima a proteção de Direitos Humanos
Banco Asiático de
Investimento em
Infraestrutura
(AIIB)
Environment
and Social
Framework
(02/2016)
(1) Categorizar projetos e explicar exigências ao cliente
(2) Revisar estudos de impacto ambiental e planos de gestão do cliente;
(3) Divulgar documentação socioambiental de projetos online
(4) Monitorar performance socioambiental durante ciclo do projeto
(1) Transferência de responsabilidades para clientes
(2) Falta de transparência sobre metodologia para
determinar “equivalência” de sistemas nacionais;
(3) Omissão de “materiais nucleares” da lista de
projetos proibidos
(4) Flexibilização do conceito de “consentimento
livre, prévio e informado” (FPIC) para populações
locais
Novo Banco de
Desenvolvimento Environment
and Social
Framework
(30/08/2016)
(1) Categorizar projetos e explicar exigências ao cliente;
(2) Revisar estudos de impacto ambiental e planos de gestão do cliente;
(3) Compartilhar "boas práticas internacionais" com clientes;
(4) Monitorar performance socioambiental durante ciclo do projeto
-
Fonte: Elaboração própria, com base nos respectivos documentos
Conclusão
Tanto no que concerne à atribuição de responsabilidades quanto ao uso de sistemas
nacionais, as políticas socioambientais dos três bancos são notavelmente convergentes. Quando
tratam da divisão de responsabilidades entre banco e cliente, o NBD e o BAII apresentam as
mesmas linhas gerais e diretrizes que o Banco Mundial, transferindo o ônus do cumprimento
de normas socioambientais ao cliente e reduzindo as possibilidades de responsabilização e
prestação de contas dos bancos perante populações impactadas. Os três bancos apontam ainda
para o uso extensivo de sistemas nacionais para a proteção socioambiental. Contudo, não há
clareza quanto aos mecanismos de fortalecimento dos sistemas nacionais e, particularmente no
caso do NBD e do BAII, dos parâmetros com os quais tais sistemas deveriam estar alinhados.
Portanto, o desenvolvimento de mecanismos específicos de fortalecimento de sistemas
nacionais e de construção de capacidades é tarefa urgente que deve ser enfrentada pelo NBD e
demais BMDs.
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B- O Novo Modelo Brasileiro de Acordos de Cooperação e Facilitação de
Investimentos e as Salvaguardas Socioambientais
Contexto
Ao longo de 2015, o Brasil assinou seis ACFIs com países da África e América Latina
- Angola, Moçambique, Maláui, México, Chile e Colômbia – seguidos pela assinatura, em
2016, de um Acordo de Ampliação Econômico-Comercial com o Peru (com capítulo de
investimentos nos moldes dos ACFIs) e de um Protocolo de Cooperação e Facilitação de
Investimentos no âmbito do Mercosul, em Abril de 20171. Anunciados como inovações
regulatórias, os acordos apresentam mudanças substantivas em relação aos TBIs tradicionais,
especialmente no que diz respeito a cláusulas sobre expropriação indireta, responsabilidade
social corporativa, solução de controvérsias, tratamento nacional e nação-mais-favorecida–
com impactos variáveis do ponto de vista da proteção aos direitos humanos e ambientais.
Ainda, embora os acordos obedeçam largamente a um modelo comum, é possível identificar
variações entre os dispositivos de cada acordo em pontos específicos.
A adoção dos ACFIs responde a uma tendência de crescimento vertiginoso do
investimento brasileiro no exterior e da internacionalização de empresas brasileiras. Segundo
dados do Banco Central, entre 2001 e 2013 o estoque de investimento direto brasileiro no
exterior aumentou em cerca de seis vezes, atingindo o patamar de US$ 295,4 bilhões em 2013
[7]. Paradoxalmente, porém, até a adoção do modelo dos ACFIs o Brasil servia como exemplo
para defensores das limitações de acordos bilaterais como instrumentos eficazes para a
promoção e atração de investimentos – embora entre 1994 e 1997 o Brasil tenha assinado 14
tratados bilaterais de investimento (TBIs), nenhum fora ratificado, devido à preocupação de
membros do Congresso Nacional acerca de possíveis restrições à capacidade do Estado de
regular em temas críticos, como padrões trabalhistas e licenciamento ambiental. Não obstante,
apesar da ausência de TBIs em vigor, o Brasil consolidou-se no século XXI como principal
receptor de investimento externo direto na América Latina, tendo recebido ainda o quinto maior
volume de IED do mundo em 2013 [8].
Discussão
A decisão paradoxal de inaugurar um novo modelo de Acordo de Cooperação e
Facilitação de Investimentos, portanto, deve ser compreendida à luz não apenas do crescimento
recente do IED brasileiro, mas dos interesses dos grupos e setores específicos que participaram
do seu processo de elaboração. Apesar dos benefícios esperados em termos de atração e
promoção de investimento, organizações da sociedade civil têm demonstrado preocupação
acerca do efeito dos ACFIs sobre a capacidade do Estado de formular políticas públicas (policy
space), além de preocupações com o grau de robustez dos compromissos de responsabilidade
socioambiental corporativa estabelecidos pelos acordos. Considerando diretrizes internacionais
sobre responsabilidade empresarial – como as Diretrizes da OCDE e os Princípios Orientadores
da ONU – além de modelos idôneos de salvaguardas socioambientais em acordos de
investimento formulados pela sociedade civil, é fundamental analisar o grau de equilíbrio entre
proteção a direitos humanos/ambientais e proteção a investidores previsto pelos novos ACFIs
brasileiros.
1 Dos sete ACFIs bilaterais assinados, o Brasil recentemente ratificou quatro: com o Peru (23/03/2017), México
(18/04/2017), Chile (09/05/2017) e Maláui (10/05/2017). Já os Acordos com Angola e Moçambique foram
recentemente aprovados pela Comissão de Relações Exteriores e aguardam votação no Plenário do Senado.
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Tendo em vista o alto impacto em potencial da ação de empresas multinacionais sobre
a proteção a direitos humanos e ao meio-ambiente, o desenvolvimento de marcos regulatórios
internacionais para a atuação empresarial faz parte da agenda de diversas organizações
internacionais há décadas. Assim, apesar de fortes críticas de organizações da sociedade civil
sobre a ausência de mecanismos vinculantes, organizações como OCDE e ONU lograram
consolidar diretrizes e princípios para a orientação da ação de empresas no que concerne seus
impactos sobre direitos humanos e ambientais – cuja implementação, porém, depende
largamente da vontade política dos Estados-membro em desenvolver Planos Nacionais ou
legislações específicas nessa direção.
Expropriação
Reconhecida internacionalmente como direito inerente do Estado, a expropriação de
propriedades situadas em território nacional – pertencentes a nacionais ou estrangeiros – é
considerada legítima mediante a observação de quatro requisitos básicos: (i) motivação por
interesse público, (ii) não-discriminação entre investidores, (iii) cumprimento do devido
processo legal e (iv) pagamento de indenização ao proprietário. A possibilidade de
expropriação, entretanto, constitui elemento de insegurança jurídica para investidores, que
enfrentam o risco de incorrer em prejuízos devido à decisão do Estado de expropriar seus
investimentos – configurando desincentivo natural à atração e promoção de capital. Dessa
forma, TIBs tradicionalmente incluem cláusulas que prevêem indenização em caso de
expropriação, incluindo regras específicas sobre seu valor devido e direitos de transferabilidade
da indenização para o exterior [9].
O caso dos ACFIs brasileiro não é diferente: Em todos os sete acordos assinados, reitera-
se o direito do Estado de expropriar por interesse público – obedecidos os quatro requisitos
tradicionais – e estabelecem-se critérios para o recebimento de indenização por investidores.
Embora os acordos variem na terminologia empregada para referir-se à expropriação –
enquanto os ACFIs com Moçambique, Angola e Malaui utilizam “nacionalização”, os acordos
com Colômbia e Chile empregam “desapropriação” - há pouca variação no conteúdo dos
capítulos em si. De fato, todos os sete ACFIs reiteram a provisão de indenização pelo Estado
ao investidor no “valor justo de mercado” do investimento durante sua “data de expropriação”,
demanda básica de investidores. Por outro lado, apenas os acordos com Colômbia, Maláui e
Peru orientam as partes a cooperar e trocar informações sobre suas respectivas legislações
nacionais em matéria de expropriação de investimentos.
Entretanto, atualmente entende-se que a “ameaça” da expropriação direta perde sua
centralidade frente à predominância de casos de “expropriação indireta” – situações nas quais
a ação do Estado, embora não envolva a transferência em si de títulos de propriedade, resulte
na redução do valor econômico de um investimento, ou em prejuízo ao controle do investidor
[9]. Medidas consideradas indiretamente expropriatórias podem incluir regulações tributárias,
comerciais, trabalhistas, ambientais, ou mesmo relativas a saúde e direitos humanos. Inexiste,
porém, definição consensual e exata sobre quais medidas constituem ou não expropriação
indireta, tornando fundamental a especificação do tema em tratados de investimento para
orientar eventuais controvérsias.
Um dos pontos negativos apontados nos novos ACFIs é precisamente a ausência, na
grande maioria dos acordos, de especificações sobre casos de expropriação indireta2 - o que,
segundo Picard (2013), “pode ter deixado uma porta aberta para que os investidores
2 Os Acordo de Cooperação e Facilitação de Investimentos com o Chile e Peru são os únicos a explicitar que
suas provisões abrangem apenas expropriações diretas (Artigo 7º, 51).
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reivindiquem algo como a expropriação indireta” [10]. A ambiguidade acerca dos limites da
expropriação indireta pode prejudicar significativamente o policy space de Estados através do
chamado chilling effect, quando um Estado deixa de adotar regulações de interesse público por
antecipar o pagamento de indenização a investidores potencialmente prejudicados [9]. Dessa
forma, os AFCIs apresentam variação em relação aos TBIs tradicionais ao se absterem de
regulamentar a expropriação indireta, com efeitos potencialmente detrimentais sobre a
capacidade do Estado de regular em prol do interesse público.
Responsabilidade Social Corporativa
O alinhamento de práticas empresariais com compromissos de direitos humanos e
ambientais é tema controverso e alvo frequente de críticas da sociedade civil, particularmente
no que tange o respeito a direitos trabalhistas e a adoção de métodos produtivos sustentáveis.
Dessa forma, a inclusão de cláusulas de responsabilidade socioambiental corporativa em
acordos de investimento é demanda básica de organizações da sociedade civil [7].
No caso dos ACFIs brasileiros, é possível observar pontos positivos nesse quesito,
porém obscurecidos por significativas limitações: Todos os acordos, em seus respectivos
preâmbulos, mencionam a importância da “promoção do desenvolvimento sustentável (...), da
redução da pobreza (...) e do desenvolvimento humano”, assim inserindo considerações
socioambientais no “espirito do tratado”. Ainda, todos os sete acordos contêm capítulos sobre
responsabilidade social corporativa nos quais investidores são encorajados a “respeitar a
proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável”, “respeitar os direitos humanos
internacionalmente reconhecidos daqueles envolvidos nas atividades destas empresas”,
“estimular (...) a cooperação com comunidades locais” e “abster-se de ingerência indevida nas
atividades políticas locais”34.
Entretanto, Borges (2015) destaca nos acordos a predominância de linguagem
puramente exortatória, de baixa normatividade, e que não estabelece compromissos vinculantes
para investidores: em matéria de responsabilidade social corporativa, os acordos orientam as
partes a “estimular empresas (...) a aplicar políticas de sustentabilidade e responsabilidade
social” e encorajam investidores a “realizar seus melhores esforços”, “se esforçar para atingir”
ou “se empenhar para realizar” normas de direitos humanos e proteção ambiental [7].
Dessa forma, ao se absterem de determinar a obrigatoriedade dos compromissos de
responsabilidade social corporativa, os ACFIs se afastam das melhores práticas internacionais
e enfraquecem significativamente sua capacidade de responsabilizar empresas e investidores
por violações de direitos humanos e ambientais.
Mecanismos de Solução de Controvérsias
As últimas duas décadas testemunharam o fortalecimento sem precedentes de sistemas
supranacionais de solução de controvérsias, em um movimento orientado pela demanda de
investidores e “moldado na prática” por árbitros, sem participação ativa do Estado (Bernasconi-
Osterwalder, 2016). Dessa forma, diversos tratados internacionais de investimento passaram a
3 O ACFI com o Chile é o único a fazer referência direta às Diretrizes para Empresas Multinacionais da OCDE,
embora com linguagem exortatória - “investidores (...) deverão realizar os seus melhores esforços para cumprir”
as normas (Artigo 15º, 2) 4 O acordo com Angola é o único a mencionar especificamente, em seu capítulo sobre reponsabilidade social
corporativa, o compromisso das partes em “observar as legislações relativas à saúde, à segurança, ao meio-
ambiente e aos padrões laborais comerciais ou industriais”
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contemplar a possibilidade de investidores iniciarem procedimentos arbitrais contra Estados,
reivindicando indenizações por alegadas violações a garantias legais.
Entretanto, mais recentemente, diversos Estados têm apresentado crescente
preocupação com as limitações desse sistema, particularmente no que tange a falta de
transparência dos processos arbitrais, a ocorrência de conflitos de interesse entre árbitros – que
frequentemente desempenham a função dupla de árbitros e advogados de empresas – e,
principalmente, o impacto negativo gerado sobre o espaço de políticas públicas do Estado.
No caso do Brasil, diferentemente de seus vizinhos latino-americanos, observa-se
tradicional reticência em relação à adoção de mecanismos que possibilitem a arbitragem
investidor-Estado: O país é uma das poucas economias emergentes (junto à Índia e África do
Sul) que não assinaram a Convenção de Washington de 1965 que deu origem ao Centro
Internacional para Solução de Disputas sobre Investimentos (CISDI)5, sob o argumento de que
algumas de suas cláusulas entrariam em conflito com a Constituição Federal brasileira [8].
Assim, o novo modelo de Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos
apresenta continuidade do posicionamento reticente brasileiro, na medida em que estabelece
uma estrutura de governança focada na prevenção de controvérsias e que exclui a possiblidade
de arbitragem investidor-Estado. Alternativamente, a arbitragem é tratada como último recurso
e apenas prevista no formato Estado-Estado [8].
Dessa forma, a governança dos ACFIs é conduzida por dois órgãos principais: Por um
lado, um Comitê Conjunto, composto por representantes de ambas as partes dos acordos,
monitora os investimentos recebidos e identifica oportunidades para a expansão de negócios;
por outro, um Ponto Focal – espécie de ombudsman baseado no modelo de acordos sul-coreanos
– serve como elo entre investidores e Estado, facilitando o diálogo para a prevenção de
conflitos. Caso o diálogo entre as partes não seja o suficiente para prevenir determinada
controvérsia e um investidor queira levá-la à arbitragem, os acordos preveem a obrigatoriedade
da realização prévia de uma avaliação completa sobre o questionamento por parte do Comitê
Conjunto, responsável por submeter um relatório em 120 dias. Esse modelo de governança é
considerado dinâmico, permitindo adaptações contínuas e promovendo a cooperação entre as
Partes e a contínua prospecção de novos investimentos.
Caso, mesmo após a avaliação do conflito, as partes optem pela via arbitral, observa-se
variação nos procedimentos previstos entre os seis ACFIs assinados: Enquanto os acordos
latino-americanos – com México, Colômbia, Chile e Peru – apresentam critérios para a seleção
da corte arbitral e código de conduta para os árbitros, os demais ACFIs preveem apenas que “as
Partes poderão recorrer a mecanismos de arbitragem entre Estados a serem desenvolvidos pelo
Comitê Conjunto”. Segundo Picard (2015), mesmo no caso dos ACFIs latino-americanos, a
ausência de detalhamento nas cláusulas presentes pode revelar-se insuficiente para garantir a
imparcialidade de árbitros e impedir conflitos de interesse.
A opção dos ACFIs por adotar modelo de arbitragem Estado-Estado e coibir a
possibilidade de investidores iniciarem procedimentos arbitrais contra Estados, além de atrair
interesse de outros países [8], é reconhecida por organizações da sociedade civil como passo
positivo em direção à redução de proteções excessivas a investidores [7]. Entretanto, são
observadas algumas limitações ao modelo previsto: Segundo Hamilton & Grando (2016), o
envolvimento estatal em demandas de investidores pode politizá-la e submetê-la a influências
5 Na América Latina, Bolívia, Equador e Venezuela denunciaram o Convênio de Washington e se retiraram do
CISDI em 2007, 2009 e 2012, respectivamente.
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da política externa nacional, trazendo vantagens ou desvantagens ao investidor. Ainda, o
formato da arbitragem Estado-Estado tornaria o processo de solução de controvérsias mais
suscetível à influência de assimetrias de poder entre as partes envolvidas, particularmente “se
fosse assinado esse tipo de acordo com algum dos países do G8” [11].
Tratamento Nacional e Nação-Mais-Favorecida
Finalmente, seguindo o padrão dos TBIs tradicionais, os ACFIs brasileiros incluem
cláusulas de tratamento nacional e nação-mais-favorecida, segundo as quais “cada parte (...)
permitirá aos investidores da outra parte estabelecer investimentos e conduzir negócios em
condições não menos favoráveis que as disponíveis para outros investidores domésticos e
estrangeiros”. Tais cláusulas, comuns no âmbito de acordos comerciais, representam uma das
principais demandas de investidores estrangeiros preocupados com garantir igualdade em
condições de concorrência. Embora todos os sete ACFIs incluam tais cláusulas, os acordos
preveem também alguns limites, como a possiblidade de “adoção e aplicação de novas
exigências ou restrições legais aos investidores e seus investimentos, desde que não sejam
discriminatórias” – além de, notavelmente, excluírem a aplicação das cláusulas de tratamento
nacional a questões tributárias reguladas por outros acordos6.
Cabe destacar, ademais, que todos os sete acordos destacam a exceção ao principio da
nação-mais-favorecida na forma de benefícios negociados no âmbito de processos de integração
regional: Reitera-se que não existe obrigação de uma Parte em conceder ao investidor de outra
Parte preferências decorrentes de “uniões aduaneiras, mercados comuns, zonas de livre
comércio ou acordos internacionais de cooperação econômica existentes ou futuros de que cada
parte seja membro ou a que venha a aderir”.
Conclusão
Em suma, a partir de tais elementos tradicionais de acordos de investimentos, observam-
se similaridades e divergências entre os ACFIs brasileiros e os BITs tradicionais: Embora os
ACFIs preservem o direito do investidor à indenização em casos de expropriação direta, geram
riscos ao não excluir a possibilidade de demandas por compensação devido à expropriação
indireta. Por outro lado, destaca-se como principal inovação dos acordos o estabelecimento de
uma estrutura de governança para a prevenção de controvérsias, eliminando a possibilidade de
arbitragens entre investidores e Estados. Entretanto, ao utilizar linguagem exortatória e não-
vinculante em seus compromissos de reponsabilidade socioambiental, os ACFIs perpetuam as
críticas feitas por organizações da sociedade civil ao caráter voluntário dos Princípios
Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos e das Diretrizes da OCDE.
Dessa forma, os ACFIs respondem parcialmente às demandas de organizações da
sociedade civil e suas críticas aos TBIs tradicionais, convergindo em alguns pontos com os
modelos idôneos de marcos regulatórios para investimentos desenvolvidos nos últimos anos.
6 O ACFI com o Chile é o único a não excluir de seu âmbito direitos e obrigações decorrentes de legislação
nacional ou convênios internacionais em matéria tributária.
Instituto de Relações Internacionais
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