A Anlise Econmica de Nelson Werneck Sodr Da Formao Brasileira a Polmica Em Torno Dos Restos Feudais

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1 A ANÁLISE ECONÔMICA DE NELSON WERNECK SODRÉ DA FORMAÇÃO BRASILEIRA: A POLÊMICA EM TORNO DOS “RESTOS FEUDAIS” Ivan Ducatti Resumo Pretende-se com este trabalho analisar como Nelson Werneck Sodré precisou a categoria feudal em suas obras de história da formação histórica brasileira. “Feudal” tem estatuto de centralidade na obra de Sodré. Queremos analisar se “feudal” também está ligado a uma sociedade de classes que se forma em torno de seu modo de produção ou se trata de uma metáfora política para justificar os obstáculos ao desenvolvimento da burguesia nacional e da sujeição desta ao imperialismo. Busca-se verificar a importância desse autor para a História, uma vez que, ao longo de sua carreira como historiador, construiu uma questão que, para ele, era fundamental na história socioeconômica brasileira: a formação da burguesia brasileira, articulando-se com as classes latifundiárias e a burguesia internacional, representada pelo imperialismo econômico. Palavras-chave: feudal; burguesia; modos de produção; latifúndio; imperialismo. Abstract The aim of this work to analyze how Nelson Werneck Sodré determined the feudal class in his works of history of Brazilian historical formation. “Feudal” has status of centrality in the work of Sodré. We intend to examine whether “feudal” is also attached to a class society that forms around its mode of production or is it a political metaphor to justify obstacles to the development of the national bourgeoisie and the subject of this imperialism. We seek to verify the importance of this author to history, since, throughout his career as a historian, an issue that has built for him, was instrumental in the Brazilian socioeconomic history: the formation of the Brazilian bourgeoisie, linking up with landowning classes and the international bourgeoisie, represented by economic Imperialism. Key Words: Feudal; Bourgeoisie; Modes of Production; Landlordism; Imperialism.

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Nelson Sodré sobre os modos de produção brasileiro

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A ANÁLISE ECONÔMICA DE NELSON WERNECK SODRÉ DA FORMAÇÃO

BRASILEIRA: A POLÊMICA EM TORNO DOS “RESTOS FEUDAIS”

Ivan Ducatti

Resumo Pretende-se com este trabalho analisar como Nelson Werneck Sodré precisou a categoria feudal em suas obras de história da formação histórica brasileira. “Feudal” tem estatuto de centralidade na obra de Sodré. Queremos analisar se “feudal” também está ligado a uma sociedade de classes que se forma em torno de seu modo de produção ou se trata de uma metáfora política para justificar os obstáculos ao desenvolvimento da burguesia nacional e da sujeição desta ao imperialismo. Busca-se verificar a importância desse autor para a História, uma vez que, ao longo de sua carreira como historiador, construiu uma questão que, para ele, era fundamental na história socioeconômica brasileira: a formação da burguesia brasileira, articulando-se com as classes latifundiárias e a burguesia internacional, representada pelo imperialismo econômico. Palavras-chave: feudal; burguesia; modos de produção; latifúndio; imperialismo. Abstract The aim of this work to analyze how Nelson Werneck Sodré determined the feudal class in his works of history of Brazilian historical formation. “Feudal” has status of centrality in the work of Sodré. We intend to examine whether “feudal” is also attached to a class society that forms around its mode of production or is it a political metaphor to justify obstacles to the development of the national bourgeoisie and the subject of this imperialism. We seek to verify the importance of this author to history, since, throughout his career as a historian, an issue that has built for him, was instrumental in the Brazilian socioeconomic history: the formation of the Brazilian bourgeoisie, linking up with landowning classes and the international bourgeoisie, represented by economic Imperialism. Key Words: Feudal; Bourgeoisie; Modes of Production; Landlordism; Imperialism.

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Introdução

São conhecidas, pela historiografia brasileira, as críticas feitas ao historiador Nelson

Werneck Sodré por ele ter afirmado que, no Brasil, o atraso das forças produtivas capitalistas devia-

se à permanência de “restos feudais” no pensamento da elite brasileira, pensamento este que se

desenvolve ao longo da formação histórica do país. Esses embates historiográficos envolveram

conhecidos autores, como, por exemplo, Caio Prado Jr, Carlos Guilherme Mota e Guido Mantega,

que são fortemente contrários à ideia de uma questão feudal na formação econômica brasileira1.

Apesar desses debates – aqui um elemento de ponderação – não se pode negar a importância de

Sodré para a historiografia brasileira, pois sua obra reflete rigor metodológico na pesquisa

científica, sua produção abrange vários ramos das humanidades (história, imprensa, geografia,

estética, literatura etc). Vale frisar que atualmente o interesse acadêmico2 por sua produção

intelectual tem crescido, nos últimos quinze anos, o que nos leva a pensar que se trata realmente de

um autor de importância para a historiografia brasileira. Em uma palavra, esse interesse por Sodré

talvez seja o reconhecimento de sua grande estatura enquanto crítico que, por intermédio de seu

legado teórico, tem possibilitado novas releituras do Brasil.

Ainda que também não concordemos com a noção de uma etapa3 feudal no Brasil, por se

tratar de uma construção mecanicista de interpretação da história, aplicada como um determinismo

teórico-político – rompe-se com a noção de dialética e emprega-se a visão “progressista” da

burguesia brasileira contra o latifúndio –, insistimos, no entanto, que a contribuição de Sodré, de

modo geral, para a historiografia brasileira é rica e relevante para as ciências sociais. Podemos e

devemos discordar de hipóteses e pressupostos – o que é um elemento necessário para o debate

teórico, que deve primar-se por ser enriquecedor em nível científico e acadêmico em geral –, mas

não podemos cair no equívoco, a partir de uma formulação considerada inconsistente, de refutar por

1 Esse tipo de discussão também ocorrera, por exemplo, na Argentina, com calorosos debates entre Ernesto Laclau, Rodolfo Puiggrós e André Gunder Frank, porém numa perspectiva mais abrangente: saber se houve ou não resquícios feudais na América Latina como um todo. 2 Exemplos dessas produções somente em formato de livro, excetuando as várias dissertações e teses: Nelson Werneck Sodré: entre o sabre e a pena, de Paulo Cunha e Fátima Cabral; Nelson Werneck Sodré na historiografia brasileira e Dicionário Crítico Nelson Werneck Sodré, ambos organizados por Marcos Silva, com a contribuição de mais de quarenta autores. 3 A teoria das etapas na formação sócio-histórica é uma teoria que embasou o pensamento de militantes e pensadores filiados ao PCB. Mazzeo e Carone (Referencial Bibliográfico), entre outros, analisam essa perspectiva teórica.

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completo a contribuição de um pensador, se sua obra total mantém determinado nível de coerência e

contribui para a construção das ideias no plano crítico.

Ao nos inquietarmos com as posições polêmicas de Sodré – que fora um grande pensador –

e com as formulações críticas a ele endereçadas (ao nosso ver, construídas com argumentos sólidos,

porém insuficientes para rebater e superar satisfatoriamente as concepções do autor em questão),

procuramos aprofundar nossas análises acerca de alguns elementos da categoria “feudal” à luz dos

estudos econômicos acerca do modo de produção feudal, a partir das diversas discussões travadas

por vários pensadores econômicos4 que estudaram a sociedade feudal, desembocando em longos

diálogos – às vezes ásperos, mas muitas vezes complementares e elucidativos – que compõem, na

historiografia, as teses sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, para, a partir daí,

verificar como Sodré precisou a categoria “feudal”, como ele se aproximou ou se distanciou dos

debates ora mencionados.

Esses debates ocorreram ao longo das décadas de 1950 e 1960; provavelmente Sodré os

conhecera. A economia feudal, nesses estudos, teria entrado em decadência por inúmeras razões.

Ou os fatores externos – como o avanço da economia mercantil a partir do Oriente Médio – ou os

fatores endógenos – divididos em basicamente duas opções: (a) a transformação do camponês em

produtor direto que comercializa seus excedentes, tornando-se produtor e distribuidor de

mercadorias; (b) o camponês que passa a produzir a partir do comando dos mercadores, que

comandam a produção e transformam o camponês em assalariado – teriam gestado o nascente

capitalismo mercantil e, consequentemente e a partir deste, o capitalismo industrial moderno

desenvolve-se, tal como conhecemos hoje.

A transição, como elemento teórico que abrange a economia, amplia o horizonte crítico, pois

seus pensadores têm esmiuçado os elementos constitutivos da ordem feudal, no que diz respeito ao

comércio, à produção e ao mercado internacional. Os estudos acerca da transição complementariam

as críticas a Sodré, superando as insuficiências, como uma chave heurística a ser explorada. Como

podemos observar, do feudalismo, surge (não mecanicamente) o mundo comercial mercantilista –

que desemboca nas grandes navegações – até a formação da Revolução Industrial, impulsionada, no

plano técnico, pela ciência e tecnologia, que são exigências para a superação de crises do capital,

4 Entre os historiadores e cientistas sociais que pensaram o modo de produção feudal e a transição, temos: Maurice Dobb, Paul Sweezy, Charles Parain, Pierre Vilar, Kohachiro Takahashi, Giuliano Procacci, Rodney Hilton, Albert Soboul e outros. Uma obra mais recente acerca da crítica à transição é o livro A Origem do Capitalismo, de Ellen Meiksins Wood.

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como a Grande Depressão (1873-1896). Esse desenvolvimento histórico e econômico é um

processo da Europa ocidental; não se realizou ao mesmo tempo e na mesma dinâmica no Brasil e na

América Latina. É nesse sentido que entender a industrialização brasileira a partir de um embate

feudal entre produtores e classe dominante torna-se um equívoco, uma vez que transpõe-se

mecanicamente elementos de uma determinada realidade para outra, sem sequer haver semelhanças

em suas pilares de formação.

Porém, faz-se mister considerar que Nelson Werneck Sodré, ao analisar a realidade sócio-

histórica por intermédio do materialismo histórico-dialético, buscou extrair da teoria crítica o que é

fundante para esse método: o trabalho. Sodré estudou a forma como o trabalho fora apropriado no

Brasil pelas elites, bem como as formas de organização econômica. Assim, o leitor de Sodré passa a

conhecer as relações de exploração no Brasil predominantemente agrário e demonstra que o salto

para a industrialização seria a superação a ser conquistada, pois alavancaria novas possibilidades de

modernização, ampliaria as possibilidades de consumo e circulação e possibilitaria um processo de

autonomização do país, que encontrava-se na dependências dos capitais especulativos e à mercê do

imperialismo – que, para Sodré, numa associação com o grande latifúndio, remetia o Brasil à

condição de uma subcolônia, dentro do quadro geopolítico que a Guerra Fria ia desenhando.

A formação econômica de Sodré

Nos seus primeiros trabalhos sobre a processualidade histórica do Brasil, Sodré, em especial

Formação da sociedade brasileira, de 1944, analisava a formação da sociedade até as vésperas de

1929, afirmando que, dentro de um conjunto de vários fatores responsáveis na gênese da formação,

o econômico era de importância superior. O autor, já naquele momento, investia na ideia de que o

atraso econômico por que o Brasil passava devia-se ao fato de que os traços coloniais ainda se

mantinham presentes na constituição da sociedade brasileira. O atraso econômico destacava-se por

um sistema cuja reprodução social não se encontrava ainda no marco de uma etapa capitalista

semelhante aos moldes da Europa ocidental, sendo a influência colonial a grande razão que

emperrava o Brasil nos trilhos que o desenvolvimento industrial, coordenado pela burguesia

nacional, poderia engendrar. A questão colonial estaria ainda ligada a uma estrutura feudal. Nesse

conforme ensina o autor, constituíam organizações autárquicas, sobre as quais havia uma produção

para o consumo imediato. Apesar de enfatizar uma característica econômica da sociedade feudal,

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Sodré, nesse momento, explica que seu declínio dá-se por intermédio de uma causa política, quando

da representação da luta pelo fortalecimento do poder central do rei. O poderio central surge em

contrapartida ao dos senhores feudais. Encontramo-nos, aqui, diante de uma fase histórica em que

os Estados nacionais se formam incorporando feudos. Das diversas classes sociais, destaca-se a

burguesia; daí, o fator do desenvolvimento do comércio como componente do declínio feudal não

ser descartado pelo autor; pelo contrário, houve um aumento de uma clientela dentro do

crescimento das trocas e sua capacidade de poder aquisitivo não poderia se limitar apenas às

necessidades locais. Como se vê, Sodré privilegia o político – que não deve, obviamente, ser

desprezado, mas não enfatiza a questão econômica como preponderante.

Sodré reporta-se à história de Portugal. Este país, representado pela burguesia comercial, já

se constituía numa nação com desenvolvimento do comércio, e isso lhe possibilitou um

cosmopolitismo que permitia a formação de um nacionalismo precoce. Na realidade, Portugal mal

conhecera o feudalismo, mesmo na era medieval. Seu solo não favorecia a atividade agrícola,

limitada mais às abadias. Nesse sentido, segundo Azevedo (1988), podemos observar que, sem a

dependência total das atividades camponesas, a precoce nação portuguesa reflete uma sociedade

cuja dinâmica socioeconômica rompe com os limites naturais da exploração da terra. Essa mesma

análise sobre um Portugal não feudal já começa a nos remeter às contradições de uma colonização

de caráter feudal. Como o feudalismo, enquanto economia de subsistência, desde o século XII, era

apenas um traço na formação daquele país, muito dificilmente o colonizador teria transposto uma

forma de subsistência para as colônias. Ao contrário, a historiografia tem documentação suficiente e

estudos consagrados para demonstrar que o Brasil, enquanto colônia, produz em larga escala para o

comércio ultramar, no Antigo Sistema Colonial, resultado direto das políticas mercantilistas. Por

isso mesmo, não feudais.

Sobre o período inicial da colonização portuguesa no Brasil, Sodré nos coloca que a empresa

é, na sua amplitude, capitalista. A sociedade colonial que se desenvolve e explora o trabalho no

Brasil, a partir de elementos de Portugal, se caracterizou pela vida para o exterior, isto é, suas

energias de dominação eram de garantir a produção para a exportação. Tanto é observável que o

comércio colonial brasileiro, desde os tempos de Methuen, fora todo orientado para a Inglaterra.

Aliás, o capital inglês soube também se associar à produção interna. A colonização inicia-se em

grandes domínios de terra. Esses domínios deram início à questão do monopólio da terra, grande

preocupação para o autor, por serem por ele considerados, causas do atraso das relações

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socioeconômicas no campo. E, novamente, remete-se às forças produtivas, pois essas não poderão

se desenvolver sem a eliminação do monopólio. O autor, nesse sentido, aponta a necessidade da

superação do latifúndio. Poderemos verificar, no tocante às opiniões políticas do autor, que tal

superação dar-se-á no fortalecimento das relações democráticas, em que se configuram

trabalhadores e burguesia nacional, de um lado, contra capital estrangeiro e imperialismo, de outro.

Em suas análises do processo colonial, os investimentos em capital são realizados tanto na

circulação como na produção. Vale destacar as observações feitas por Sodré sobre o papel dos

capitais, comercial ou produtivo, em diversos momentos na história do Brasil, o qual permitiu

alterações nas forças produtivas, uma vez que ele não deixa de enfatizar a empresa colonial

portuguesa como precursora moderna de expansões mercantis, numa época em que, na Europa

(especialmente fora da Península Ibérica), a agricultura de subsistência ainda se mantinha como

base para a produção social.

No início da colonização, Sodré frisa que o grupo mercantil português não teria interesse em

investir inicialmente no Brasil. Além de falta de recursos para a empreitada, não estaria disposto a

aplicar recursos em produção, uma vez que as trocas são as características centrais de seus

negócios. A nobreza portuguesa, com seus negócios voltados para o Oriente, tampouco se

interessava por tal empresa. Buscou-se a distribuição de faixas territoriais pela Coroa a donatários,

que se encarregariam de explorar e ocupar os novos territórios. As dificuldades da administração à

distância e toda a estrutura para a realização de tal ocupação só foram possíveis para a empresa

donatária, como frisa Sodré, “naquilo que em economia moderna conhecemos por investimento”

(1978a). Ainda aqui, os escritos de Sodré apontam para o capital especulativo, que busca as

mediações necessárias para sua aplicação: o início da colonização, por algumas décadas, não fora

viável. Também uma consagrada historiografia afirma com veemência que a ocupação do território

brasileiro, depois de trinta anos ocupado sem uma produção consistente, só passa a ser encarada

com preocupação por fatores político-militares, como a ameaça de invasão e colonização por outras

nações mercantis, como a Fraca, por exemplo.

Para Sodré, a questão da expansão de capitais não se dá de forma tranquila e automática,

seja na produção ou no comércio, uma vez que a forma em que uma sociedade está organizada e

estruturada pode dificultar ou não a expansão de capitais. Nesse sentido, os investimentos de

capitais são um elemento que tende a alterar o desenvolvimento econômico de uma sociedade, que

põe em conflito o próprio modo de produção em que esta se encontra estruturada. A dinâmica

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desses investimentos, como sinalizada por Sodré, mostra que seu ritmo nos auxilia a compreender

também o declínio feudal.

Que ritmos são esses? O autor aborda a questão dos traços feudais influenciados pela

legislação portuguesa do planejamento colonial, no que se refere às doações de capitanias, e que

marcaram as características dos monopólios da terra, os latifúndios. Partindo da afirmação de que

“os que apoiaram a tese da existência de características capitalistas na empresa da colonização

foram levados a isso, certamente, pela confusão que reinou por longo tempo entre as noções de

capital comercial, característica da fase mercantil, e capitalismo” (SODRÉ, 1962: 82), tampouco

pode-se concluir sobre uma empresa colonizadora capitalista. O mercantilismo, sistema econômico

dentro do qual Portugal se insere, não pode ser considerado como capitalismo industrial, isso é

óbvio, mas há um capital que se acumula e promove novas e crescentes empresas de comércio

exterior. Diríamos que a colonização enquadra-se dentro do que Arrighi (1994) chama de ciclo

sistêmico de acumulação. Ainda que haja uma mentalidade feudal (resquício) que organize a

distribuição de terras a serem cultivadas no Brasil colonial, são os capitais que irão efetivamente ser

empregados para transformar o solo, ao utilizar e explorar a força de trabalho escravo e engenhos

necessários. Tanto que várias capitanias não foram trabalhadas, desembocando no fracasso que a

historiografia explica, pois não havia a intenção de risco de capitais para elas, ainda que a divisão

de terras obedecesse às ordens senhoriais, numa estrutura de vassalagem.

A propósito das argumentações sobre a existência de uma feudalidade no Brasil, vale notar

que o pensamento de Sodré encontra ecos, por exemplo, nas teses de Guimarães, em Quatro

Séculos de Latifúndio, em que não só defende que a colônia portuguesa no Brasil fora feudal como

rechaça a existência de um protocapitalismo. Segundo Guimarães (1977), o fato de Portugal, à

época do descobrimento, encontrar-se em fase do desenvolvimento econômico do mercantilismo,

não permite concluir que esse fenômeno ter-se-ia prolongado também nas colônias de ultramar.

Assim, no Brasil, vingaram-se as características fundamentais do feudalismo, e não as do

capitalismo. As primeiras tentativas de colonização fracassaram em virtude de os fidalgos sem

fortuna desejarem “reviver aqui os tempos áureos do feudalismo clássico” (GUIMARÃES, 1977:

23), uma vez que as forças do medievalismo estavam ainda profundamente arraigadas em Portugal.

Como consequência, seria evidente que se lançasse, no Novo Mundo, os fundamentos da produção

feudal, por ser a ordem econômica vigente. Haveria, dessa forma, uma contradição entre os gestores

administrativos da colônia, de um lado, que se nutriam de um universo feudal português; e, de outro

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lado, a nova ordem econômica mercantil, que impunha novas dinâmicas entre as relações sociais.

Novamente um argumento político – a permanência da feudalidade enquanto poder –, que não

explica, mas oculta o fato de que o latifúndio, enquanto uma porção enorme de terras, para ser

produtivo, necessita de intervenção humana – trabalho e tecnologia (mesmo que rudimentar, não

importa) – para ser produtivo. Porém, reitera-se o que já havíamos afirmado no parágrafo anterior,

os riscos de uma empresa são considerados por capitalistas (primeiros grandes comerciantes); os

capitais não são invertidos aleatoriamente, sem que haja uma possibilidade de ganhos e

acumulação.

O autor reconhece, no entanto, a economia mercantil, mas não havia avanços estruturais

nessa nova ordem capazes de alterar a característica feudal. Por isso, para ele, é uma falha chamar o

Brasil colonial de capitalista, se Portugal não era. Mas a organização socioeconômica não permitia,

no entanto, que o Brasil se formasse por intermédio da feudalidade, senhorio e vassalagem. As

discussões acerca da Idade Moderna, em que o mercantilismo se desponta como sistema econômico

dominante, que se apresenta como uma ponte entre o mundo feudal e mundo capitalista, impõe ao

cientista social rigor ao aplicar o vocabulário econômico. Não era, de fato, um capitalismo

industrial, mas não é incorreto afirmar que era um capitalismo mercantil, em que a circulação ainda

é preponderante à produção.

Ainda sobre Portugal. Na fase quinhentista, este tinha uma base econômica agrícola, embora

fossem importantes as ações comerciais marítimas. A classe dos comerciantes repartia com a

Realeza o poder do Estado, porém não ocupando posição dominante ou forças suficientes para

destruir (ou superar) a força feudal vigente. Em toda a Europa, nessa época, a ordem feudal ainda

não estava superada por completo. A Metrópole decidira transplantar para a América o modo de

produção dominante para além-mar, pois seria a forma de organização que melhor repousaria sobre

o monopólio da terra. Na realidade, não se trata de um transporte de modo de produção: a colônia

responde à dinâmica comercial de Portugal; não há uma separação entre metrópole e colônia, mas

uma complementaridade; a partir de Portugal, começa a distribuição e comercialização dos produtos

tropicais, produzidos em larga escala, por uma camada de grandes negociantes e financistas que

fomentam o mercado externo, numa relação de nações, como Holanda e Inglaterra, por exemplo. Na

colônia, produziam-se as mercadorias, as novidades (especiarias) que o mercado europeu ia

absorvendo; produz-se em altíssima escala pela força de trabalho escava, explorada por senhores de

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engenho, também comerciantes, que se complementam aos negociantes e financistas portugueses e

de outras nacionalidades.

Sodré afirma que, mesmo desenvolvido o caráter comercial da produção do açúcar para o

mercado mundial, isso não havia sido suficiente para diluir seu caráter feudal. Além do mais, ele

aponta para o fato de que a cultura do açúcar, sustentada por grandes plantações, não faria dessas

unidades econômicas, unidades do tipo capitalista. O modo de produção da colônia, para

Guimarães, sobre quem Sodré sustenta-se teoricamente, realizou-se por intermédio do feudalismo

colonial, uma vez que supor o contrário, i. é, “sob o signo da formação social capitalista significa,

nada mais nada menos, considerar uma excrescência” (GUIMARÃES, 1977: 33), “taxar de

supérflua qualquer mudança ou reforma profunda de nossa estrutura agrária” (idem). Certamente,

para Sodré, foi mais exequível apelar para um “feudalismo colonial”, que carece, profundamente,

de uma demonstração não somente teórica, mas até mesmo documental, pela qual se expressem a

natureza desse tipo de relação, do que compreender a fase mercantilista, de transição, complexa,

com elementos que ainda requerem uma ampliação de seus movimentos para uma mais bem

construída análise, à luz das relações de troca, acumulação e classes sociais capitalistas

(negociantes, financistas e mercantilistas). “Feudalismo colonial” pouco explica enquanto conceito,

suas determinações são confusas e mais remetem ao mundo mercantil do que à ordem feudal.

A economia natural – aspecto feudal do materialismo histórico

Afinal, por que a categoria “feudal” tem estatuto de centralidade na obra de Sodré? Diante

desta pergunta, devemos, primeiro, localizar e demonstrar se, realmente, a questão feudal é uma

categoria central para o autor, e, em segundo lugar, perceber se feudal está ligado a uma sociedade

de classes que se forma em torno de seu modo de produção ou se é uma metáfora política para

justificar os obstáculos ao desenvolvimento da burguesia nacional e da sujeição desta ao

imperialismo. Solidarizando-se com Sodré quanto ao uso do termo “feudal”, Quartim de Moraes diz

que

Seja qual for, ou vier a ser, a melhor solução terminológica, para Sodré, como para a maioria dos comunistas de sua geração, o essencial na questão do “feudalismo”, isto é, do monopólio latifundiário da terra e da dominação pessoal sobre o camponês, era fundamentar a necessidade da reforma agrária (QUARTIM DE MORAES, 2001: 27).

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Dobb (1987) nos ensina que o revivescimento do comércio, a partir de 1100, trouxe o

comerciante e a comunidade comercial, os quais passaram a ser “corpos estranhos” na sociedade

feudal. No entanto, com o passar do tempo, a presença do mercador tornou-se um incentivo para o

permuta dos produtos excedentes e a produção para os mercados, que começaram a atrair a ambição

de senhores feudais. Porém, é necessário observar que a expressão “corpos estranhos”, usada para

caracterizar a figura do comerciante, não nos parece suficiente para explicar qual exatamente era

sua relação, enquanto classe social, para com as outras classes sociais do então mundo feudal. À

primeira vista, tem-se a impressão que o termo “corpos estranhos” diz respeito àqueles que viviam à

parte do mundo feudal, não aceitos pela comunidade não comerciante, interagindo de forma

marginal ou mesmo não interagindo. Aparentemente, o termo diz respeito a uma classe que se

encontrava em número ainda reduzido e não suficientemente forte para alterar as estruturas do

mundo feudal, cujas atividades econômicas ainda destoavam numa sociedade agrícola. Ele

questiona se a ampliação do mercado pode ser admitida como condição suficiente para justificar o

declínio do feudalismo. Para tal problemática, Dobb sustenta que “a ‘economia natural’ e a

‘economia de troca’ são duas ordens econômicas que não se podem misturar e a presença da última,

ao que nos dizem, é bastante para fazer a primeira dissolver-se” (DOBB, 1987: 47). No entanto,

acrescenta que a influência do comércio sobre a estrutura feudal em várias partes da Europa,

submetida a estudos comparativos, leva a sérias dúvidas quanto à assertiva de tal interpretação.

Lembra, por exemplo, que na Polônia e na Boêmia, as oportunidades crescentes para a exportação

de cereais levaram não à abolição, mas ao aumento das obrigações servis do campesinato. Citando

vários exemplos de aumento de comércio conjugado ao aumento de servidão, Dobb concluirá que o

crescimento de uma economia monetária levou tanto à intensificação da servidão como fora a causa

do declínio feudal. O surgimento das cidades, à medida que o aumento do comércio ocorria,

exerceu influências desintegradoras sobre o sistema feudal, tais como êxodos rurais e o consequente

uso dessa nova força de trabalho, assalariada, no meio urbano, bem como o uso da força de trabalho

assalariada de camponeses, já desvinculados de seus meios de produção, por camponeses, visando a

excedentes. Porém, como ressalta o autor, “seria errôneo encará-las nesse estágio como

microcosmos do capitalismo” (DOBB, 1987: 78), uma vez que, ainda no início da vida urbana

medieval, seus habitantes pertenciam a uma estrutura feudal, consequentemente mantendo certas

relações feudais para com determinado(s) senhor(es). Somente quando, mais tarde, o comércio

torna-se ocupação principal dos habitantes é que podemos perceber que o fator econômico começa a

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caracterizar, de fato, as cidades como núcleos de sociedades cujos vínculos feudais vão, aos poucos,

perdendo seus ligamentos, por intermédio de lutas pela independência urbana, que, provavelmente,

deveu-se a elementos menos sujeitos à dominação feudal, i.é, “mercadores atraídos ao lugar vindos

de fora, ou, desde o início, achavam-se dotados de uma posição privilegiada por alguma concessão

ou patente especial” (idem: 89).

Estudando o mundo medieval europeu ocidental, pouco leva a crer que, no Brasil, o modo

de produção feudal tenha realmente existido nos moldes daquele continente. Baseando-nos nas

sínteses que seguem, não foi possível localizar, nos estudos de Sodré, quaisquer semelhanças. Por

exemplo, tome-se a afirmação “feudal” que Kula (1987) utiliza quando de seus estudos sobre o

feudalismo na Polônia:

Suffice it to say that the term ‘feudalism’ refers to a socio-economic system which is predominantly agrarian and characterized by a low level of productive forces and of commercialization; at the same time it refers to a corporate system in which the basic unit of production is a large landed estate surrounded by the small plots of peasants who are dependent on the former both economically and juridically, and who have to furnish various services to the lord and submit to his authority (KULA, 1987: 162).

Parain (1973), de forma sintética e generalizadora, classifica em três itens a sociedade

feudal:

1) As relações sociais de produção estabelecem-se essencialmente em torno da terra, uma

vez que a sociedade feudal mantém um sistema econômico predominantemente agrícola.

2) Há, para os trabalhadores, direitos de utilização e ocupação sobre a terra, mas a

propriedade pertence a uma hierarquia de senhores. Também ressalta o direito de apropriação do

senhor sobre o trabalhador, que significa se apropriar, ‘a priori’ e diretamente, do sobretrabalho do

trabalhador direto, nada mais que o direito de exploração do trabalho de outrem (por meio de

corvéias, pagamentos de rendas em gêneros ou em dinheiro, pagamentos dos direitos banais, etc.).

3) À base econômica feudal, corresponde toda uma rede de laços pessoais. A maioria dos

trabalhadores não goza de liberdade pessoal. Isso não significa que haja escravatura, mas, sim, a

servidão, que nada mais é do que a ligação do camponês ao senhor por meio de sistema de deveres.

Bloch (1987) afirma que na Baixa Idade Média, havia dificuldades de troca. Classifica isso

como “a penúria de espécies”, e explica que a sociedade medieval não desconhecia a compra/venda,

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vivia dela, apesar das irregularidades dos mercados; as trocas ocupavam menos lugar que as

prestações de serviços; o trabalho assalariado era algo abstrato. Em vez dessa prática de

remuneração:

Ofereciam-se duas soluções: albergar o homem em casa, alimentá-lo, fornecer-lhe aquilo que se chamava “cama e mesa”, ou então ceder-lhe, em paga de seu trabalho, uma terra que, por exploração debita ou sob a forma de foros pagos pelos cultivadores, lhe permitisse prover ele próprio à sua manutenção (BLOCH, 1987: 123)

A produção de tecidos marcava o tipo de manufatura da Idade Média. Os artesãos e

mercadores afirmavam-se com mais vigor nos centros urbanos, em especial a classe dos

mercadores, uma vez que a economia medieval foi dominada, não pelo produtor, mas pelo

comerciante.

Hobsbawm (1994), referindo-se aos “termos econômicos” do mundo feudal, destaca que

apenas algumas áreas desenvolveram-se em direção a uma agricultura puramente capitalista, sendo

a Inglaterra a principal delas, dando origem, em 1830, a uma classe de empresários agrícolas, de um

lado, e a um enorme proletariado, de outro. Esse recente quadro se coloca em oposição a uma classe

de monarcas que “quase nunca desejou, e nunca foi capaz de atingir, a total transformação

econômica e social que exigiam o progresso da economia e os grupos sociais ascendentes”

(HOBSBAWM, 1994: 39).

Como introdução, em seu debate sobre a transição feudalismo/capitalismo, Sweezy (1978)

afirma que o sistema feudal não se constituía como um sistema estável ou estático. Pelo contrário, o

mundo feudal dera lugar a competições entre senhores por terras e vassalos. Além disso, o autor nos

ensina que essa mesma sociedade tinha um crescimento populacional dinâmico. No entanto, um dos

pontos que o autor discute em seu artigo, num diálogo com Dobb, trata do declínio feudal. Quanto a

este momento, considera-se crucial atentar para este estudo, uma vez que tal movimento da história

da Europa ocidental traz muitos elementos para a compreensão da transição do modo de produção

feudal para o capitalista. Pois é justamente na era cronológica desse processo, séculos XV e XVI,

em que se encontra a formação sócio-econômica do Brasil, enquanto colônia nascente. Quanto a

essa periodização, Marx (1989) frisa com clareza que o prelúdio que criou a base do modo

capitalista de produção ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século

XVI.

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Inicialmente, Sweezy (1986) chama a atenção para a questão da influência das trocas a longa

distância, num sistema que se forma paralelo ao sistema feudal, de produção de valores de uso.

Nessa justaposição, há duas influências que alteram as características de uma economia de uso pra

uma outra de troca. A primeira refere-se à ineficiência da organização senhorial da produção: os

bens manufaturados já eram mais baratos que os produzidos em casa, gerando o que o autor chamar

de pressão de compra e pressão de venda, trazendo as propriedades feudais para a órbita da

economia de trocas. A segunda diz respeito à posse da riqueza em si, atraindo não só mercadores ou

comerciantes, mas também os membros dominantes da sociedade feudal. A riqueza em si era

representada pela posse de dinheiro e por ordens de pagamentos. Ele mostra que o declínio feudal

teve como causas principais os seguintes itens: a) a influência do comércio sobre a economia de uso

do mundo feudal; b) o papel do dinheiro; c) a evolução dos gostos da classe dominante feudal, uma

vez que esta começa a se empossar de dinheiro e aumentar seu rol de consumo; d) o

desenvolvimento das cidades, as quais passam a atrair a população camponesa pela possibilidade de

trabalho que as trocas iam proporcionando.

Mas há um ponto de convergência entre Sweezy e Dobb, que considera importante ressaltar,

e diz respeito à questão da servidão. Ambos autores afirmam que a economia de troca, triunfante e

dinâmica, não implica necessariamente no fim da servidão. Aliás, alertam que tal economia é

compatível tanto com a servidão, como com a escravidão, o serviço autônomo independente ou o

assalariado.

Conclusão

Buscamos averiguar se “feudal” seria uma categoria empregada por Sodré após este

observar o funcionamento da economia natural desenvolvida pelo modo de produção feudal da

Europa Ocidental. Temos levado em consideração que, como o próprio Sodré frisou, uma total

semelhança inexiste, pois o desenvolvimento histórico da América colonial é algo diferente daquele

da Europa ocidental medieval.

A colonização portuguesa no Brasil, principalmente nos primeiros séculos em que

preponderava a cultura da cana-de-açúcar, obedecia ao comércio externo dessa especiaria, dirigido

pela burguesia comercial portuguesa. Há, nos estudos de Sodré e de outros historiadores latino-

americanos (por exemplo, Puiggrós), afirmações de que a colonização, mesmo nas mãos de uma

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burguesia, obedecia a uma estrutura feudal de mando e vassalagem, em que o monarca se destacava

como principal senhor. Essa seria a inspiração feudal que se engendraria na formação

socioeconômica brasileira. Outros estudos de Sodré que reforçam a existência feudal, no Brasil,

apontam para um país de interior, cujas dimensões de latifúndios e de certo isolamento em relação à

metrópole caracterizariam uma sociedade fechada.

O latifúndio seria, para Sodré, grosso modo, a razão do atraso econômico no Brasil. O

latifúndio, em associação ao imperialismo, final do século XIX e início do XX, conforme analisado,

impedia a implantação e o crescimento da indústria manufatureira, e isso se refletia no plano

político. A luta contra o latifúndio, e os “restos feudais”, dar-se-ia no plano da luta democrático-

popular, em que as forças progressistas, burguesia nacional e proletariado firmar-se-iam em uma

aliança.

Pode-se aferir que a questão feudal no Brasil, para Sodré, embora o mesmo tenha afirmado

que suas análises baseiam-se em método científico, não correspondem a uma sociedade de

economia natural e fechada, pois a colonização tinha, no plano da circulação, uma economia

voltada para a exportação de mercadorias, cuja produção realizava-se por intermédio da força de

trabalho escrava, para uma classe de mercantilistas capitalistas, os quais eram proprietários de

escravos, ao contrário de submetê-los ao servilismo, num sistema de vassalagem e garantias de

segurança. O modo de produção, desenvolvido em época colonial, não apresentava características

fechadas, obedecia ao crescimento da expansão no ultramar e ao crescimento de uma burguesia

mercantil e comercial.

As argumentações de Sodré sobre a força política da classe latifundiária contra a expansão

industrial, no Brasil, e seu papel de beneficiária de uma política econômica cambial são elementos

da história brasileira, e essas argumentações demonstram a importância de obras como Introdução à

Revolução Brasileira, História da Burguesia Brasileira e Capitalismo e Revolução Burguesa no

Brasil, entre tantos outros livros de Sodré aqui citados. No entanto, a associação do latifúndio à

questão feudal coloca-nos como algo além de uma metáfora política, conjugada a uma postura

política nacionalista, que Sodré defendeu, justificando outra associação da classe trabalhadora à

classe da burguesia nacional.

O latifúndio colonial se consolida por intermédio do trabalho escravo, e não pelo servil, mas

as características feudais são apontadas por Sodré e são centrais em sua obra. Nesse sentido, o

latifúndio, para Sodré, representa a estagnação do desenvolvimento socioeconômico. A necessidade

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da grande produção colonial para atender ao mercado externo mundial deve nos levar a uma leitura

que permita compreender a participação da economia colonial no nascente sistema capitalista

mundial, oriundo do desenvolvimento mercantil. Em face das particularidades da formação

histórica do Brasil, Sodré nos aponta como este país inseriu-se na formação do sistema em questão,

qual sua condição hoje e quais suas perspectivas de avanço e de superação, e julgamos de

importante relevância.

Ianni (1978) afirma que as formações sociais baseadas naquele tipo de trabalho (o escravo)

nascem e desenvolvem-se no interior do mercantilismo, também reiterando que o Novo Mundo

entra ativa e intensamente no processo de acumulação primitiva, que vai se realizar de forma

acentuada na Inglaterra. Esse processo reflete a progressiva subordinação do capital mercantil ao

produtivo. As formações sociais baseadas no trabalho compulsório sofrem impactos das exigências

da produção industrial, e, nesse sentido, as relações escravistas de produção e as próprias formações

sociais escravocratas entram em crise e declínio. A crise e o declínio do escravismo revelam mais a

influência “externa” do capital industrial, obedecidas as realidades internas de cada nação

insurgente da América Latina e do Caribe, na configuração dessas. O caráter feudal que impediria

ou diminuiria o ritmo da influência do capital produtivo, à primeira vista, parece explicar as

dinâmicas de cada nação em articulação com a era do capital produtivo; porém sociedades que, no

período colonial, formaram-se e articularam-se, antes, em torno do eixo mercantil, mesmo

apresentando aparentes focos de economias naturais dentro de determinadas regiões das colônias e,

posteriormente, nações, devem ser observadas a partir de seu caráter universal, isto é, por seu

intermédio engendra-se o próprio sistema capitalista. Assim, o caráter feudal demonstra ser mais

um axioma do que a explicação mesma do raquitismo capitalista desenvolvido na América Latina.

Portanto, duas considerações sobre o pensamento de Sodré relativo à formação histórica do

Brasil devam estar destacadas. A primeira é que nosso esforço é o de não perder de vista a

centralidade da categoria feudal na argumentação do autor, bem como salientar em quais momentos

históricos brasileiros ela, a centralidade, desponta. A segunda, em consequência da primeira, é

aquela que torna nosso material de estudo relevante, como um autor coadjuvante que surpreende

mesmo à presença do protagonista: ao apontar as articulações dos fatos e dos acontecimentos que

compõem o mosaico da história do Brasil, surgem os movimentos por contradições das classes. A

narrativa de Sodré revela sempre a processualidade na História, que vai além das riquezas factuais,

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por mostrar o rigor no trato das fontes, traduzido em seu método expositivo. À histografia, os

ganhos são muitos, ainda que não estejam totalmente presentes na Academia.

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