Criacutetica

Publicado por revistaphilipeiaabril 9 2014

LIMINARIDADE MARGEM CRIATIVA E A LOacuteGICA CONSTITUTIVA DA APRECIACcedilAtildeOESTEacuteTICA

Beano Regenhaux

Ao presenciar comentaacuterios de espectadores de filmes em sites como o filmow deparo‑me com expressotildeestipo lsquorsquoformalismorsquorsquo e lsquorsquohermetismorsquorsquo para certas obras com teor um tanto autoral e experimental Isto meprovoca um ligeiro mal estar pela disposiccedilatildeo repetitiva de tais formulaccedilotildees munidas de nenhumaexploraccedilatildeo argumentativa a respeito das alegaccedilotildees embutidas Satildeo foacutermulas faacuteceis para indicarestranhamento perante a apreensatildeo dos dados filmicos implicando em uma quebra de expectativas naperformance exigida para o momento de apreciaccedilatildeo da obra Devido a esta minha inquietaccedilatildeo decidiescrever este texto para refletir a respeito da loacutegica constituinte dos juiacutezos de apreciaccedilatildeo esteacutetica dosespectadores tanto leigos quanto estudiosos de cinema visando expor o condicionamento que promovetal postura convergente de suas disposiccedilotildees

Centralizando a discussatildeo acerca dos libelos ldquohermetismordquo e ldquoformalismordquo gostaria de desconstruiressas noccedilotildees envolvidas no que tangem ao princiacutepio de concepccedilatildeo artiacutestica e a fenomenologia daexperiecircncia de apreciaccedilatildeo uma vez que segundo esta perspectiva tanto a concepccedilatildeo quanto aapreciaccedilatildeo nunca seratildeo esgotadas pelo autor nem pelo puacuteblico a despeito dos momentos histoacutericos eculturais especiacuteficos E ulteriormente tomo de empreacutestimo as noccedilotildees relativas agrave liminaridade ndash asdimensotildees liminal e liminoide ndash desenvolvidas pelo antropoacutelogo Victor Turner cujas formulaccedilotildeesdestacam as diferenccedilas de experiecircncia na loacutegica ndash sintaxe e semacircntica ndash da composiccedilatildeo ritual noscontextos das sociedades tradicionais e complexas

Parto do pressuposto que a acusaccedilatildeo de formalismo resulta da exigecircncia de certas formalidadesimpliacutecitas que condicionam a apreciaccedilatildeo esteacutetica pelo exerciacutecio de exposiccedilatildeo continuada e naturalizaccedilatildeoe sob um monopoacutelio tributaacuterio de uma loacutegica que submete as sensaccedilotildees e a cogniccedilatildeo ao plano dalinguagem verbal Tais princiacutepios responsaacuteveis por esta loacutegica satildeo o da narrativa linear sublinhados pelacoesatildeo e coerecircncia dos elementos contidos na obra audiovisual de forma que o filme reproduza e alinheo seu processo de sua construccedilatildeo ao de um texto escrito sintaacutetica e semacircntica unilaterais sentidosdirecionados para um maacuteximo iacutendice de convergecircncia entre autor e puacuteblico o filme reduzido a umsimples veiacuteculo de mensagem e deslocado de suas propriedades criadoras Tais configuraccedilotildeesrepresentam em grande parte o triunfo da gramaacutetica hollywoodiana no cinema sobre o jugo esteacutetico dosespectadores e de setores da criacutetica especializada

Discordo da atribuiccedilatildeo de rdquohermetismordquo por alguns criacuteticos para a obra de Glauber Rocha porexemplo pois o verdadeiro formalismo eacute a formalidade proveniente da cristalizaccedilatildeo pedagoacutegica doformato linear hollywoodiano a partir de uma concepccedilatildeo uacutenica que exige uma aproximaccedilatildeo com oformato do texto contiacutenuo e horizontal da prosa na qual a transmissatildeo do conteuacutedo verbal e amontagem se subjugam a esse ritmo uniforme que visa uma doutrinaccedilatildeo e condicionamento daapreensatildeo esteacutetica dos espectadores

O verdadeiro hermeacutetico eacute aquilo que exige cortes na pesquisa formal e na inspiraccedilatildeo do autor A obranatildeo pertence ao puacuteblico nem ao autor este uacuteltimo apenas apresenta um olhar sobre a realidade deforma estilizada expressando vieses possiacuteveis sobre o real O essencial no cinema eacute o olhar que se lanccedilasobre a realidade como matriz expressiva e estiliacutestica e natildeo a representaccedilatildeo fiel monoliacutetica de umassunto ou a sua reduccedilatildeo agrave narrativa verbal ndash chamo isso de um viacutecio de avaliaccedilatildeo da arte que eacute umaexpectativa ou exigecircncia criada diante da obra que desconsidera totalmente sua especificidade

Quando a dimensatildeo mercadoloacutegica e profissional dos imperativos do sistema de produccedilatildeo e a dealinhamento com a estrutura poliacutetica e juriacutedica da sociedade determinam as disposiccedilotildees e accedilotildees dossujeitos entra em vigor o que Victor Turner delimitou como a esfera liminal da atividade ritual queneste caso eacute substituiacuteda pelas ldquoopccedilotildees de lazer e entretenimentordquo nas sociedades complexas A distinccedilatildeoentre as esferas liminal e liminoide segundo Turner consiste no caraacuteter obrigatoacuterio da primeira e no deopcional na segunda sendo esta uacuteltima despojada do compromisso com o reforccedilo e a reproduccedilatildeo dasinstituiccedilotildees sociais A inversatildeo temporaacuteria das regras e o geacutermen para inovaccedilatildeo e subversatildeo presentes nocontexto ritual podem tanto reafirmar a estrutura social e leis vigentes (como no contexto liminal e cito oexemplo de formas de expressatildeo tributaacuterias dos rituais sazonais como o carnaval) como apresentarloacutegicas alternativas e questionamentos aos construtos sociais ndash contexto liminoacuteide) O desenvolvimentoda esfera liminoide eacute sublinhado pelo autor para as sociedades complexas onde se disseminam oindividualismo ocidental o pluralismo de conteuacutedos simboacutelicos e informativos e em suas opccedilotildeesexpressivas de entretenimento e atividades de desopilaccedilatildeo quando envoltas em micropoliacuteticas dosujeito Fazendo a interface entre as esferas liminal e liminoide e a acusaccedilatildeo de formalismo que repousaem exigecircncias formais percebo um exerciacutecio obstrutivo do conceito liminal se inserindo napotencialidade expressiva liminoide presente nas vanguardas esteacuteticas

Ainda a respeito da intromissatildeo da dimensatildeo liminal na liminoide presente em vanguardas esteacuteticas oautor afirma ldquothe so‑called ldquohigh culturerdquo of complex societies liminoid is not only removed from a rite of passagecontext it is also ldquoindividualizedrdquo The solitary artist creates the liminoid phenomena the collectivity experiencesliminal symbols This does not mean that the maker of liminoid symbols ideas images etc does so ex nihilo itonly means that he is privileged to make free his social heritage in a way impossible to members of cultures in whichthe liminal is to a large extent the sacrosanctrdquo Destaco neste trecho transcrito a disposiccedilatildeo para o fator deconsagraccedilatildeo e sacralizaccedilatildeo da estrutura social frisada para sociedades em pequena escala ou em setoresconservadores o que estaacute longe de atender a demandas e privileacutegios ldquoburguesesrdquo que preconizam evalorizam a autonomia da arte por si mesma ldquosem funcionalidade socialrdquo segundo uma acusaccedilatildeotipificada proposta por um suposto ldquobolchevismo esteacuteticorsquorsquo O ataque conservador e liminal aplicado agravesvanguardas expressivas da sociedade satildeo irradiados de preocupaccedilotildees uniformizantes provenientes seja

de setores estatais como foi na Ruacutessia bolchevique seja de corporativismos mercadoloacutegicos e oligopoacuteliosmidiaacuteticos que visam cristalizar um padratildeo formal de estilo e transmissatildeo de conteuacutedos simboacutelicos Taisboicotes se aproximam de requisiccedilotildees formais e rituais das sociedades tradicionais a partir da dimensatildeoliminal os quais representam natildeo uma falha comunicativa das vanguardas mas sim um temor pelaalteridade expressiva uma vez que subestimam a capacidade de apreciaccedilatildeo esteacutetica dos espectadores ousatildeo oportunistas por aproveitar de um contexto desprovido de informaccedilatildeo variada disputando oumonopolizando atenccedilotildees e pleiteando um exclusivismo condicionante das disposiccedilotildees destes uacuteltimos

Citaccedilatildeo TURNER Victor Liminal to Liminoid in Play Flow and Ritual An Essay in ComparativeSymbology New York Performing Arts Journal Publications 1982

Mestrando do Programa de Poacutes‑Graduaccedilatildeo em Antropologia da UFPB

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