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G N A R U S | 50 Resenha UM CONVITE タ LEITURA DE “MARTINHO LUTERO, UM DESTINOPor Patrícia Woolley Cardoso estes, epidemias, guerras entre as monarquias nascentes, fome, rebeliões, clérigos que se mostravam tão rudes e mal instruídos quanto qualquer paroquiano. Angústias e incertezas assolavam a Europa no alvorecer do século XVI. Se a conquista de novos mundos revelava a capacidade humana, as disputas políticas entre príncipes, papas e burgueses, demonstravam o lado obscuro dos homens. A bela tela acima, do flamengo Pieter Bruegel (1525-1569), O Triunfo da Morte, de 1562, capta em pormenores o espírito dessa época: burgueses assustados abandonavam sua mesa farta. Exércitos de caveiras destruíam os campos, derrubavam príncipes. Homens atordoados amontoavam-se uns sobre os outros, tentando escapar do cenário apocalíptico. Socorrem-se sob a cruz de Cristo, parece ser o que tentavam realizar. Foi, enfim, o que fez Lutero, em 1505, aos 22 anos de idade, quando ingressou no Convento dos Agostinianos de Erfurt. Martinho Lutero, que a posteridade denominou de o pai da Reforma Protestante, foi um homem do seu tempo, assolado pela angústia e o medo do inferno. Não pretendia ser o líder de uma ruptura religiosa. Pelo contrário. Cristão solitário buscava apenas encontrar o remédio para os seus males interiores. Mesmo no fim da vida, em 1546, não se julgava o construtor de uma P

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Resenha

UM CONVITE À LEITURA DE “MARTINHO LUTERO, UM

DESTINO”Por Patrícia Woolley Cardoso

estes, epidemias, guerras entre as

monarquias nascentes, fome, rebeliões,

clérigos que se mostravam tão rudes e mal

instruídos quanto qualquer paroquiano. Angústias e

incertezas assolavam a Europa no alvorecer do século

XVI. Se a conquista de novos mundos revelava a

capacidade humana, as disputas políticas entre

príncipes, papas e burgueses, demonstravam o lado

obscuro dos homens. A bela tela acima, do flamengo

Pieter Bruegel (1525-1569), O Triunfo da Morte, de

1562, capta em pormenores o espírito dessa época:

burgueses assustados abandonavam sua mesa farta.

Exércitos de caveiras destruíam os campos, derrubavam

príncipes. Homens atordoados amontoavam-se uns

sobre os outros, tentando escapar do cenário

apocalíptico. Socorrem-se sob a cruz de Cristo, parece

ser o que tentavam realizar. Foi, enfim, o que fez

Lutero, em 1505, aos 22 anos de idade, quando

ingressou no Convento dos Agostinianos de Erfurt.

Martinho Lutero, que a posteridade denominou

de o pai da Reforma Protestante, foi um homem do seu

tempo, assolado pela angústia e o medo do inferno.

Não pretendia ser o líder de uma ruptura religiosa. Pelo

contrário. Cristão solitário buscava apenas encontrar o

remédio para os seus males interiores. Mesmo no fim

da vida, em 1546, não se julgava o construtor de uma

P

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nova Igreja. Lamentava o fato de os rudes, os

camponeses ignorantes, não terem compreendido a sua

mensagem de liberdade cristã. Esse é o quadro

complexo que Lucien Febvre constrói com vigor em

Martinho Lutero, um destino, clássico de 1928 e que

acaba de ganhar a sua primeira edição brasileira em

2012. Longe de apresentar mera narrativa biográfica,

Febvre empreende o estudo atento da trajetória e das

ideias do agostiniano,

combinando crítica

historiográfica e minuciosa

análise das fontes. Serve-

se dos textos clássicos,

como as Conversas à Mesa,

de 1545, mas, também,

das notas dos cursos

ministrados em

Wittemberg, da volumosa

correspondência

destinada aos amigos e

adversários, e, claro, dos

textos vorazes produzidos

entre 1517 e 1521, anos

violentos, que

antecederam a

excomunhão de Lutero

pelo papa Leão X,

formalizada em 3 de

janeiro de 1521.

Na primeira parte

da obra, Febvre esforça-se

por traçar a longa evolução espiritual do personagem,

entre os anos de 1505 e 1515, quando a experiência no

mosteiro foi decisiva para a sua descoberta interior, ou

seja, a crença de que apenas a fé em Deus justificava o

indivíduo. Sobre a viagem a Roma, em 1510, que os

teólogos luteranos apontam como decisiva para a sua

revolta, Lucien Febvre diz que não passou de um

episódio sem importância. “Cumpriu

conscienciosamente sua função de peregrino, e

peregrino destituído de qualquer senso crítico. (...)

Levou, de seu contanto com os escritórios da Santa Sé,

(...) uma impressão muito favorável que ele manifesta

em diferentes ocasiões.” Não mais que outros de seu

tempo, Lutero criticava os abusos da Igreja. Não eram

os abusos que o moviam. O que lhe interessava era a

sua salvação pessoal. Os estudos dos Evangelhos e das

Epístolas de São Paulo

não lhe ofereceram nova

doutrina, e sim, a

descoberta individual

para seus próprios males.

Os martírios, jejuns, as

boas obras, as

indulgências, não

modificavam a condição

de pecador do ser

humano. Portanto, para

que se preocupar com

todas essas coisas?

Apenas Deus perdoava e

justificava o homem. Essa

foi a grande descoberta

de Lutero, o remédio que

lhe reconfortava, e que,

sem dúvida, divulgou aos

seus alunos, aos seus

pares, aos paroquianos

de Wittemberg.

Na segunda parte do

livro, dedicada ao Lutero vigoroso dos anos de 1517 e

1525, Febvre esclarece que as 95 Teses de 31 de

outubro de 1517 não foram um arroubo súbito contra a

pregação das indulgências, promovida nos arredores da

Saxônia pelo dominicano Johann Tetzel, subcomissário-

geral do arcebispo Albrecht de Brandeburgo. As

indulgências eram populares no século XVI. Muitos

outros religiosos, e mesmo fora da Alemanha, já tinham

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clamado contra elas. Na própria Wittemberg, o

príncipe Frederico da Saxônia possuía milhares de

relíquias em seu Castelo (gotas do leite de Maria, lascas

da cruz de Cristo, ossos dos santos apóstolos),

anualmente visitadas por peregrinos que, com esse ato

de fé, recebiam, ou melhor, pagavam, por indulgências.

Antes de 1517, em 1516, num de seus sermões

dominicais, Lutero se manifestou sobre o tema,

condenando a falsa segurança das indulgências, que,

aos seus olhos, significavam um escambo pouco seguro,

a partir do qual o perdão era adquirido em troca de

esmolas. “Jamais os ouviremos [os pregadores] explicar

a sua plateia o que é de fato a indulgência, a que se

aplica e quais são seus efeitos. Pouco se lhe dá se os

cristãos iludidos acreditam que já estão salvos tão logo

adquirem seu pedaço de pergaminho”.

Febvre afirma que Tetzel foi um pretexto a mais

para que Lutero expusesse ao público suas convicções

íntimas. Não lhe preocupavam o charlatanismo do

pregador, ou o interesse da Igreja em arrecadar fundos

para a Construção da Catedral de São Pedro, em Roma.

Pretendia simplesmente anunciar com fervor o remédio

que curou sua alma. Foram esses os sentimentos

religiosos por detrás das 95 Teses, rapidamente

impressas e difundidas em toda a Alemanha e fora dela.

Escritas em alemão vulgar, tornavam-se

potencialmente revolucionárias, apesar do tom

comedido do texto. Não sem razão, o próprio Lutero

surpreendeu-se com a ressonância desse seu “grito”.

As palavras de Lutero não foram de encontro apenas

às angústias espirituais de uma Alemanha dividida, mas,

também, revelaram-se interessantes às controvérsias

humanas. Cavaleiros, nobres, mercadores, muitos

nutriam desconfianças por Roma, e, ao mesmo tempo,

mostravam-se ávidos por incorporarem suas riquezas. A

defesa que Lutero fazia da liberdade cristã, da

dependência exclusiva de Deus, atraiu esses indivíduos.

Muitos deles, aliás, se aproximaram de Lutero nos anos

de perseguição, buscando convencê-lo a romper com o

“Cativeiro da Babilônia”, visando transformá-lo não em

um reformador da Igreja, mas em um reformador da

Alemanha. Febvre observa que as cidades alemãs eram

ricas, populosas e cosmopolitas, tais como Augsburgo, a

cidade dos banqueiros Fuggers, e Nuremberg,

importante pela fabricação de bússolas e astrolábios

que impulsionavam a descoberta da América. Não era

proveitoso para Igreja enfrentar inconvenientes nesse

território tão interessante. Política, diz Febvre, a

política, mais do que a religião, explica a ferocidade

com que Roma perseguiu e condenou Matinho Lutero

como herético, embora outros de seu tempo

defendessem ideias semelhantes.

Lutero nunca pretendeu ser o reformador da Igreja,

conclui Febvre na terceira e última parte do livro. Após

os meses de reclusão forçada em Wartburgo (4 de maio

a 1º de março de 1521), relutou em formalizar um ritual

único aos seus seguidores. Se o fez, afirmava Febvre, foi

muito a contragosto, encurralado pelas circunstâncias,

pelos pregadores exaltados que falavam em seu nome e

fomentavam a rebelião contra as autoridades. Face aos

motins camponeses de 1524 e 1525, cedeu aos

Martin Lutero, de Lucas Cranach

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príncipes o direito de coagir aqueles que se desviassem

da doutrina. Mas não se tratou de ato oportunista,

previamente planejado. A esse respeito, Febvre insiste

em lembrar que a história de Martinho Lutero não foi

simples. Seu pensamento e sua vida foram complexos,

tanto quanto o século em que viveu. Deixou-se usar

pelos príncipes e burgueses, mas não se vendeu a eles.

No fim da vida, ainda que se mostrasse melancólico, se

manteve fiel à sua convicção interior, a de que Deus lhe

revelara a misericórdia. Foi essa convicção que

manifestou em Worms, na tarde de 18 de abril de 1521,

quando se negou a revogar seus escritos: “Não posso

nem quero revogar o que seja, porque agir contra a

própria consciência não é seguro nem honesto, que

Deus me ajude, amém!”.

Esse foi o destino de Lutero: não renegar a sua

descoberta interior, a fé que construiu a partir de sua

experiência pessoal no mosteiro e nos bancos de

Wittemberg, ainda que a política o tenha arrastado

para as Reformas. Eis, por fim, a importância desse livro

do grande Lucien Febvre: analisar o século XVI a partir

de uma personagem de carne e osso, e demonstrar o

quanto a história é imprevisível e humana, e, por isso

mesmo, fascinante.

Patrícia Woolley Cardoso: Doutora em História pela UFFe professora da Universidade Veiga de Almeida e dasFaculdades Integradas Simonsen - RJ.

Lucien Febvre