8-Patrícia_Pronto
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Resenha
UM CONVITE À LEITURA DE “MARTINHO LUTERO, UM
DESTINO”Por Patrícia Woolley Cardoso
estes, epidemias, guerras entre as
monarquias nascentes, fome, rebeliões,
clérigos que se mostravam tão rudes e mal
instruídos quanto qualquer paroquiano. Angústias e
incertezas assolavam a Europa no alvorecer do século
XVI. Se a conquista de novos mundos revelava a
capacidade humana, as disputas políticas entre
príncipes, papas e burgueses, demonstravam o lado
obscuro dos homens. A bela tela acima, do flamengo
Pieter Bruegel (1525-1569), O Triunfo da Morte, de
1562, capta em pormenores o espírito dessa época:
burgueses assustados abandonavam sua mesa farta.
Exércitos de caveiras destruíam os campos, derrubavam
príncipes. Homens atordoados amontoavam-se uns
sobre os outros, tentando escapar do cenário
apocalíptico. Socorrem-se sob a cruz de Cristo, parece
ser o que tentavam realizar. Foi, enfim, o que fez
Lutero, em 1505, aos 22 anos de idade, quando
ingressou no Convento dos Agostinianos de Erfurt.
Martinho Lutero, que a posteridade denominou
de o pai da Reforma Protestante, foi um homem do seu
tempo, assolado pela angústia e o medo do inferno.
Não pretendia ser o líder de uma ruptura religiosa. Pelo
contrário. Cristão solitário buscava apenas encontrar o
remédio para os seus males interiores. Mesmo no fim
da vida, em 1546, não se julgava o construtor de uma
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nova Igreja. Lamentava o fato de os rudes, os
camponeses ignorantes, não terem compreendido a sua
mensagem de liberdade cristã. Esse é o quadro
complexo que Lucien Febvre constrói com vigor em
Martinho Lutero, um destino, clássico de 1928 e que
acaba de ganhar a sua primeira edição brasileira em
2012. Longe de apresentar mera narrativa biográfica,
Febvre empreende o estudo atento da trajetória e das
ideias do agostiniano,
combinando crítica
historiográfica e minuciosa
análise das fontes. Serve-
se dos textos clássicos,
como as Conversas à Mesa,
de 1545, mas, também,
das notas dos cursos
ministrados em
Wittemberg, da volumosa
correspondência
destinada aos amigos e
adversários, e, claro, dos
textos vorazes produzidos
entre 1517 e 1521, anos
violentos, que
antecederam a
excomunhão de Lutero
pelo papa Leão X,
formalizada em 3 de
janeiro de 1521.
Na primeira parte
da obra, Febvre esforça-se
por traçar a longa evolução espiritual do personagem,
entre os anos de 1505 e 1515, quando a experiência no
mosteiro foi decisiva para a sua descoberta interior, ou
seja, a crença de que apenas a fé em Deus justificava o
indivíduo. Sobre a viagem a Roma, em 1510, que os
teólogos luteranos apontam como decisiva para a sua
revolta, Lucien Febvre diz que não passou de um
episódio sem importância. “Cumpriu
conscienciosamente sua função de peregrino, e
peregrino destituído de qualquer senso crítico. (...)
Levou, de seu contanto com os escritórios da Santa Sé,
(...) uma impressão muito favorável que ele manifesta
em diferentes ocasiões.” Não mais que outros de seu
tempo, Lutero criticava os abusos da Igreja. Não eram
os abusos que o moviam. O que lhe interessava era a
sua salvação pessoal. Os estudos dos Evangelhos e das
Epístolas de São Paulo
não lhe ofereceram nova
doutrina, e sim, a
descoberta individual
para seus próprios males.
Os martírios, jejuns, as
boas obras, as
indulgências, não
modificavam a condição
de pecador do ser
humano. Portanto, para
que se preocupar com
todas essas coisas?
Apenas Deus perdoava e
justificava o homem. Essa
foi a grande descoberta
de Lutero, o remédio que
lhe reconfortava, e que,
sem dúvida, divulgou aos
seus alunos, aos seus
pares, aos paroquianos
de Wittemberg.
Na segunda parte do
livro, dedicada ao Lutero vigoroso dos anos de 1517 e
1525, Febvre esclarece que as 95 Teses de 31 de
outubro de 1517 não foram um arroubo súbito contra a
pregação das indulgências, promovida nos arredores da
Saxônia pelo dominicano Johann Tetzel, subcomissário-
geral do arcebispo Albrecht de Brandeburgo. As
indulgências eram populares no século XVI. Muitos
outros religiosos, e mesmo fora da Alemanha, já tinham
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clamado contra elas. Na própria Wittemberg, o
príncipe Frederico da Saxônia possuía milhares de
relíquias em seu Castelo (gotas do leite de Maria, lascas
da cruz de Cristo, ossos dos santos apóstolos),
anualmente visitadas por peregrinos que, com esse ato
de fé, recebiam, ou melhor, pagavam, por indulgências.
Antes de 1517, em 1516, num de seus sermões
dominicais, Lutero se manifestou sobre o tema,
condenando a falsa segurança das indulgências, que,
aos seus olhos, significavam um escambo pouco seguro,
a partir do qual o perdão era adquirido em troca de
esmolas. “Jamais os ouviremos [os pregadores] explicar
a sua plateia o que é de fato a indulgência, a que se
aplica e quais são seus efeitos. Pouco se lhe dá se os
cristãos iludidos acreditam que já estão salvos tão logo
adquirem seu pedaço de pergaminho”.
Febvre afirma que Tetzel foi um pretexto a mais
para que Lutero expusesse ao público suas convicções
íntimas. Não lhe preocupavam o charlatanismo do
pregador, ou o interesse da Igreja em arrecadar fundos
para a Construção da Catedral de São Pedro, em Roma.
Pretendia simplesmente anunciar com fervor o remédio
que curou sua alma. Foram esses os sentimentos
religiosos por detrás das 95 Teses, rapidamente
impressas e difundidas em toda a Alemanha e fora dela.
Escritas em alemão vulgar, tornavam-se
potencialmente revolucionárias, apesar do tom
comedido do texto. Não sem razão, o próprio Lutero
surpreendeu-se com a ressonância desse seu “grito”.
As palavras de Lutero não foram de encontro apenas
às angústias espirituais de uma Alemanha dividida, mas,
também, revelaram-se interessantes às controvérsias
humanas. Cavaleiros, nobres, mercadores, muitos
nutriam desconfianças por Roma, e, ao mesmo tempo,
mostravam-se ávidos por incorporarem suas riquezas. A
defesa que Lutero fazia da liberdade cristã, da
dependência exclusiva de Deus, atraiu esses indivíduos.
Muitos deles, aliás, se aproximaram de Lutero nos anos
de perseguição, buscando convencê-lo a romper com o
“Cativeiro da Babilônia”, visando transformá-lo não em
um reformador da Igreja, mas em um reformador da
Alemanha. Febvre observa que as cidades alemãs eram
ricas, populosas e cosmopolitas, tais como Augsburgo, a
cidade dos banqueiros Fuggers, e Nuremberg,
importante pela fabricação de bússolas e astrolábios
que impulsionavam a descoberta da América. Não era
proveitoso para Igreja enfrentar inconvenientes nesse
território tão interessante. Política, diz Febvre, a
política, mais do que a religião, explica a ferocidade
com que Roma perseguiu e condenou Matinho Lutero
como herético, embora outros de seu tempo
defendessem ideias semelhantes.
Lutero nunca pretendeu ser o reformador da Igreja,
conclui Febvre na terceira e última parte do livro. Após
os meses de reclusão forçada em Wartburgo (4 de maio
a 1º de março de 1521), relutou em formalizar um ritual
único aos seus seguidores. Se o fez, afirmava Febvre, foi
muito a contragosto, encurralado pelas circunstâncias,
pelos pregadores exaltados que falavam em seu nome e
fomentavam a rebelião contra as autoridades. Face aos
motins camponeses de 1524 e 1525, cedeu aos
Martin Lutero, de Lucas Cranach
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príncipes o direito de coagir aqueles que se desviassem
da doutrina. Mas não se tratou de ato oportunista,
previamente planejado. A esse respeito, Febvre insiste
em lembrar que a história de Martinho Lutero não foi
simples. Seu pensamento e sua vida foram complexos,
tanto quanto o século em que viveu. Deixou-se usar
pelos príncipes e burgueses, mas não se vendeu a eles.
No fim da vida, ainda que se mostrasse melancólico, se
manteve fiel à sua convicção interior, a de que Deus lhe
revelara a misericórdia. Foi essa convicção que
manifestou em Worms, na tarde de 18 de abril de 1521,
quando se negou a revogar seus escritos: “Não posso
nem quero revogar o que seja, porque agir contra a
própria consciência não é seguro nem honesto, que
Deus me ajude, amém!”.
Esse foi o destino de Lutero: não renegar a sua
descoberta interior, a fé que construiu a partir de sua
experiência pessoal no mosteiro e nos bancos de
Wittemberg, ainda que a política o tenha arrastado
para as Reformas. Eis, por fim, a importância desse livro
do grande Lucien Febvre: analisar o século XVI a partir
de uma personagem de carne e osso, e demonstrar o
quanto a história é imprevisível e humana, e, por isso
mesmo, fascinante.
Patrícia Woolley Cardoso: Doutora em História pela UFFe professora da Universidade Veiga de Almeida e dasFaculdades Integradas Simonsen - RJ.
Lucien Febvre