4 Pesquisa de campo(s) - dbd.puc-rio.br · Huni Kuin, na Amazônia acreana. Este é um contexto em...
Transcript of 4 Pesquisa de campo(s) - dbd.puc-rio.br · Huni Kuin, na Amazônia acreana. Este é um contexto em...
104
4
Pesquisa de campo(s)
4.1
Introdução
Neste capítulo, apresentamos duas experiências de campo investigadas a
partir dos princípios norteadores que propusemos no levantamento realizado sobre
o LILD. São lugares com características diferentes entre si, mas com os quais se
pode estabelecer uma relação com o trabalho desenvolvido no LILD e o nosso
referencial teórico. Assim, poderemos conhecer e propor um diálogo entre
metodologias de trabalho diferenciadas, mas que possuem pontos em comum.
4.2.
Metodologia:
Trata-se de uma pesquisa qualitativa-interpretativa de cunho exploratório
que adotou como procedimento a pesquisa de campo que envolveu dois casos
específicos: O CPI (Construction Process Investigation Lab) e a Aldeia Lago
Lindo. A pesquisa qualitativa é utilizada como método por se tratar dos discursos,
modos de fazer e princípios adotados. Assim, a técnica adotada foi a de
observação participante, em que pude observar de perto e participar dos trabalhos
realizados em cada um dos lugares, entendendo os processos adotados. E foram
realizadas entrevistas abertas, com o objetivo de ouvir o que as pessoas
envolvidas tinham a falar sobre sua cultura material – como as entrevistas foram
realizadas principalmente com índios, eu defini os tópicos a serem abordados, mas
adaptei as perguntas e fiz perguntas preferencialmente durante algum trabalho, de
forma a facilitar a comunicação. Também foi efetuada uma pesquisa bibliográfica
específica para cada campo, a fim de fundamentar as informações. A pesquisa de
campo possibilitou a coleta de dados específicos de cada um dos lugares, que são
interpretadas de acordo com o referencial teórico e os dados acerca do LILD.
105
4.2.1
Pesquisa de campo(s), baseada em metodologia de observação
participante
A pesquisa de campo é recomendada e é utilizada neste trabalho para
possibilitar a concretização do objetivo geral desta tese, que é o de discutir
diferentes paradigmas para o desenvolvimento de técnicas construtivas em
harmonia com o meio ambiente físico e social, no âmbito da pesquisa
experimental. Os diferentes paradigmas são observados nesta pesquisa em dois
campos diferentes, com visita aos locais e metodologia de observação
participante.
Um é o CPI, Construction Process Investigation Lab, do curso de
Arquitetura da Universidade do Havaí. Este é um laboratório que tem alguns
pontos em comum com o LILD, pesquisando estruturas leves, estruturas com
bambu, e tendo preocupação com a sustentabilidade do projeto. Porém, este
laboratório está mais inserido em um contexto industrial e menos convivencial. A
proposta foi a de observar a metodologia de projeto e de pesquisa realizada lá,
buscando saber quais são as etapas projetuais, quais são os princípios para os
projetos, como é o método de trabalho, como ocorre a difusão do conhecimento
gerado no laboratório. Esse laboratório serviu de contraponto ao LILD, como
veremos adiante.
O outro campo observado nesta pesquisa é a aldeia Lago Lindo, da etnia
Huni Kuin, na Amazônia acreana. Este é um contexto em que são utilizadas
técnicas profundamente conectadas à natureza local e à comunidade. Mas,
diferentemente de um contexto universitário, a reprodução dessas técnicas é
totalmente não metodológica. Nesse contexto, eu observei e participei das
atividades relativas à cultura material e conversei com os índios a respeito, em
entrevistas informais, em que anotava as informações relevantes. A aldeia
apresenta-se como um cenário em que muitas das propostas do LILD já
aconteciam tradicionalmente.
106
A observação participante, utilizada em ambos os casos, é uma técnica que
permite uma imersão no modo de fazer local, aprendendo melhor sobre a
metodologia, sobre o contexto produtivo e permite o diálogo com as pessoas. Em
ambos os casos, participei dos trabalhos realizados no ambiente e conversei com
as pessoas.
No caso da Aldeia Huni Kuin, realizei entrevistas abertas com as pessoas,
visto não haver um conhecimento sistematizado do tema em termos de produção
bibliográfica. E, no caso do CPI, li artigos e livros produzidos no laboratório.
Nesse laboratório, não há teses e dissertações que servem como referência, como
no capítulo do LILD, pois não há pesquisadores que realizem toda sua pesquisa no
laboratório.
Tanto nas entrevistas, quanto na leitura de artigos e livros, a intenção foi a
de entender o que pensavam as pessoas a respeito do trabalho realizado, e qual o
vocabulário recorrente.
4.2.2
Análise de dados
Para a análise de dados, recuperamos as categorias de análise constituídas
a partir dos levantamentos dos princípios norteadores do LILD, visando uma
discussão que viabilizasse o paralelismo de experiências díspares, mas que trazem
elementos para a discussão sobre a pesquisa de técnicas em harmonia com o meio
ambiente e a comunidade. Assim, em cada ambiente, analisamos o modo de
trabalho, as estruturas e materiais e a difusão do conhecimento das técnicas.
Também é feita uma relação entre as experiências observadas no campo e
o nosso referencial teórico, trazendo questões como a convivencialidade e a
relação do ser humano com a natureza.
107
4.3
Princípios norteadores da pesquisa experimental no CPI
4.3.1
Introdução
Resolvi fazer pesquisa no laboratório CPI (Construction Process
Innovation Lab), do departamento de Arquitetura da Universidade do Havaí
quando soube que lá estava sendo feita uma pesquisa sobre estruturas de bambu.
O Prof. David Rockwood, responsável pelo laboratório, foi bastante receptivo à
minha visita quando lhe enviei fotos de trabalhos de que havia participado no
LILD. Para mim, seria interessante participar de um laboratório que estivesse
conduzindo uma pesquisa similar à do LILD, para entender a metodologia e os
princípios empregados, fazendo uma comparação.
Participei da pesquisa do laboratório entre junho e setembro de 2014. Ao
chegar lá, descobri que havia outros objetos de pesquisa que não envolviam
bambu e fui tentar entender quais os princípios gerais da pesquisa ali. A partir da
leitura de artigos e livro do Prof. David Rockwood e da minha participação na
pesquisa, pude entender a metodologia, o processo e os princípios de pesquisa
empregados.
O laboratório pesquisa processos construtivos, estruturas e materiais em
arquitetura. É coordenado pelo professor David Rockwood, que conta com a ajuda
de estudantes em suas pesquisas. Em linhas gerais, o modo de trabalho do
laboratório busca maior precisão e controle de todas as etapas do que o que é
realizado no LILD. A pesquisa no CPI é muito baseada na modelagem
computadorizada, para, em seguida, passar por testes de laboratório na engenharia.
É feita, primeiramente, uma análise profunda do projeto no meio eletrônico e com
relação aos dados do meio-ambiente, para depois experimentá-lo materialmente.
O laboratório também desenvolve projetos que possam ser reproduzidos
industrialmente, com peças pré-fabricadas para serem montadas no local. A ideia é
que a produção possa ser estandardizada e em larga escala. Técnicas e soluções
tradicionais são estudadas para serem modernizadas e poderem passar a ser
reproduzidas industrialmente.
108
A pesquisa com bambu é a mais prática e focada em experimentos com o
material. Essa pesquisa começou com uma visita do Prof. David Rockwood ao
Viatnam, em 2012, onde ele estabeleceu uma parceria com a Da Nang University
of Technology. O interesse pelo bambu veio do fato de ser um recurso renovável e
de rápido crescimento, com uma longa história de uso pela humanidade.
O Professor Rockwood estabeleceu alguns objetivos para a pesquisa com
bambu:
“Quatro objetivos principais foram determinados no início da pesquisa: Utilizar as propriedades naturais do bambu para a construção de estruturas (material) Criar estruturas que sejam boas e que tenham uso eficiente de recursos (forma) Desenvolver técnicas para a construção de bambu em um contexto moderno (processo) Criar estruturas com potencial para uso e abrigo humanos (propósito)” (ROCKWOOD, 2013, p. 15, tradução nossa)
As características naturais do bambu apresentam muitos desafios para seu
uso no contexto de construção moderno, em que os materiais devem ser
padronizados:
“O bambu se apresenta em muitas variedades e resistências; ele se parte com relativa facilidade, fazendo com que seja difícil usar técnicas de conexão modernas; é de tamanho e diâmetro variado. Esses fatores não se encaixam facilmente nos métodos industrializados, que demandam consistência e estandardização dos elementos em sua propriedades, formas, dimensões. Meu interesse em pesquisar o bambu vem das razões típicas para sua popularidade [é um material renovável, de rápido crescimento], mas também dos desafios de aplicar seu uso à construção em um contexto industrializado.” (ROCKWOOD, 2013, p. 9, tradução nossa)
Ou seja, a pesquisa com bambu tem como objetivo final o de se encontrar
formas de usar o material em um contexto moderno de construção, com a réplica
das peças em larga escala.
A pesquisa que está sendo realizada com bambu é a de criação de grades
curvas, um projeto em parceria com a Da Nang University of Technology, no
Vietnam.
109
Fig. 60: Modelo de estrutura de grade curva de bambu realizado no Vietnam (Imagem
extraída de Rockwood, 2013)
Durante minha estadia no laboratório, o Professor Rockwood estava
finalizando um livro sobre o trabalho com bambu. Participei da pesquisa
bibliográfica para o livro, fazendo um levantamento de teses, dissertações e livros
com temas relacionados ao bambu.
Paralelamente, quando cheguei ao laboratório, o projeto que estava sendo
conduzido era a pesquisa para a construção de casas populares nas Ilhas Marshall,
no Pacífico. O projeto estava sendo feito com a intenção de se conseguir um
financiamento para a sua realização. Trabalhei neste projeto junto com outra
estudante brasileira, do programa Ciência sem Fronteiras, Alice Calmon.
O projeto de construção nas Ilhas Marshall lida com a realidade de uma
população de baixa renda que está perdendo seu modo de construção tradicional –
tradicionalmente, as construções eram com materiais naturais – troncos, folhas,
cipós. Atualmente, a população está construindo com materiais industrializados,
como tijolos de concreto, de maneira pouco segura. Trata-se de um local em que
desastres naturais, como furacões e enchentes são recorrentes. Antes, as casas de
materiais naturais eram facilmente reconstruídas.
A proposta do projeto é o de manter o design das casas tradicionais
nativas, mas usando novos materiais, para tornar as casas resistentes e atraentes
para a população. As casas tradicionais têm algumas características que foram
levadas em conta – o piso elevado do chão, a ausência de paredes, formando um
ambiente coletivo, a planta com formato retangular e o telhado bem inclinado.
O projeto objetiva levar em conta o meio ambiente e as condições locais.
Tendo em vista o alto índice de umidade e calor, é considerado mais adequado o
110
uso de concreto reforçado com fibras (Fiber Reinforced Concrete – FRC), um
material resistente à umidade. Esse material será moldado em peças que vão gerar
a construção. Peças pré-moldadas possibilitam uma construção rápida e fácil.
Participei da criação das peças da casa em modelagem 3D computadorizada, e as
peças foram passando por constante retificação ao longo do processo.
Fig. 61: Modelagem 3D do projeto de habitação para as Ilhas Marshall
Fora os projetos dos quais participei, pude ler sobre diversos projetos do
laboratório, que envolviam a adaptação de construções ao clima quente tropical e
a facilidade no transporte urbano.
Uma das principais pesquisas envolve a criação de cobertura e paredes
para clima tropical, com o objetivo de, ao mesmo tempo, refrescar o ambiente
interno e aproveitar a luz natural e o vento, usando um mínimo de energia. A partir
de estruturas leves que criam sombras, camadas que permitem o ar circular e
instrumentos de captação da energia do vento e do sol, são projetados edifícios
próprios para o clima tropical, gerando um ambiente interno agradável e
aproveitando as fontes de energia naturais.
111
Figs. 62 e 63: Imagens de projetos de telhado e capa protetora para edifício, para o
máximo de conforto térmico com o mínimo de gasto energético – eles são feitos com
uma camada de circulação de ar no meio (Imagens do arquivo do Prof. Rockwood)
Em vários projetos do CPI, vemos artifícios para evitar a incidência direta
dos raios de sol. Escolhe-se trabalhar com materiais resistentes que possam formar
uma camada bem fina. Como vimos, no LILD, também há uma preocupação com
o conforto térmico das construções e o pesquisador Walter Teixeira (2013)
desenvolveu um brise soleil – porém, os materiais são outros.
Também foram desenvolvidos projetos de mobilidade urbana – com a
intenção de criar meios de transporte mais sustentáveis do que o automóvel
individual. Um dos projetos de mobilidade urbana é o de um motor elétrico leve
para ser acoplado à bicicleta, aumentando sua potência, e sendo um modo de
transporte mais sustentável que o carro; o outro é um projeto de esteira rolante de
velocidade variável para o transporte urbano.
112
Fig. 64: Projeto de esteira rolante para mobilidade urbana (imagem do arquivo do prof.
Rockwood)
Fig. 65: Projeto de motor de transmissão continuamente variável para bicicleta (imagem
do arquivo do Prof. Rockwood)
A partir da análise dos projetos de pesquisa e dos artigos, pude perceber
alguns valores recorrentes nos projetos do laboratório.
Em todos os projetos que analisei, percebi a busca do uso eficiente de
materiais e energia, com a criação de estruturas leves, que minimizem o uso de
material e com uso eficiente das fontes de energia.
113
A reprodutibilidade industrial e intenção de geração de lucro foram
outras características que encontrei em todos os projetos, inserindo a pesquisa em
um contexto industrial / capitalista.
Há uma busca do uso de fontes energias e matéria renováveis , como a
energia do sol, do vento, a captação da água da chuva e o uso do bambu como
material.
Os projetos trazem uma preocupação com o conforto térmico do ambiente
– no caso, lidam com a criação de ambientes frescos no clima tropical, e uma
preocupação com a segurança, criando estruturas e ambientes que não
apresentem riscos para os usuários.
A resistência e a durabilidade também são características importantes,
sobretudo ao se projetar para lugares com intempéries naturais, como furacões e
enchentes.
Essas características são desenvolvidas no laboratório com modelos
eletrônicos, no computador, frequentemente trabalhando em conjunto com
pesquisadores de outras áreas, como as da engenharia civil, mecânica e elétrica.
Participando do projeto das Ilhas Marshall no laboratório, trabalhamos em
conjunto com o professor Ian Robertson, da Engenharia Civil, que nos ajudou a
dimensionar e definir os elementos estruturais de uma casa, e que mais tarde faria
os testes de resistência.
Os projetos são desenvolvidos em um processo de retificação constante, na
busca de se aproximar dos princípios listados.
4.3.2
Princípio “modo de trabalho do laboratório”
O laboratório trabalha com bastante planejamento e precisão, buscando
retificar os projetos e planejar cada passo para não se surpreender com
imprevistos, começando os projetos no computador e depois passando para os
testes de laboratório. Nos projetos das Ilhas Marshall, retificamos constantemente
114
as peças, tendo reuniões com o Professor Robertson, da engenharia civil e com o
Professor Rockwood.
Fig. 66: Etapas de construção da casa, planejadas com modelagem 3D
4.3.2.1
O experimento prático
Apesar de o laboratório trabalhar sobretudo com modelos
computadorizados, na pesquisa com bambu, os experimentos feitos foram
práticos. Isso foi porque a equipe estava aprendendo sobre o material e suas
propriedades, um conhecimento que é melhor adquirido na prática. A pesquisa
com bambu foi feita em parceria com uma universidade no Vietnam, onde foram
feitos mais experimentos práticos junto aos estudantes.
O Prof. David Rockwood encontrou pouca literatura sobre o assunto, tendo
desenvolvido a pesquisa de forma bastante prática:
“A pesquisa começou, então, com apenas um delineamento vago das questões envolvidas. Uma metodologia clara não pôde ser definida a princípio. O trabalho foi iniciado, assim, criando objetivos provisórios, esboçando um cronograma e foco do trabalho, e começando a trabalhar diretamente com o material bambu. O método de aprender fazendo foi fundamental para a nossa abordagem. Desse modo, pouco tempo foi gasto com modelos reduzidos, modelos de computador ou outras representações típicas de um processo de projeto em arquitetura. Para
115 testar a viabilidade do bambu na construção de grades curvas, foi essencial testar o comportamento dos materiais em escala real.” (ROCKWOOD, 2013, p. 109, tradução nossa)
Foi realizada uma sucessão de experimentos práticos para a criação de
estruturas em grade curva (gridshell) com bambu. A partir da resposta de um
experimento, era elaborado o próximo, com a intenção de superar os obstáculos
encontrados – se o bambu rachava, ou a conexão ou a distância entre os bambus
eram inadequadas, propunha-se modificações no modelo.
Fig. 67: Experimento prático com grade de bambu na Universidade do Havaí (Foto
extraída de ROCKWOOD, 2013)
Fig. 68: Experimento prático com bambu com estudantes em universidade no Vietnam
(Foto extraída de ROCKWOOD, 2013)
Nos experimentos com bambu, o primeiro passo realizado no Vietnam foi
o modelo da curva catenária. Trata-se de usar uma corrente para definir a
116
curvatura entre dois pontos – a corrente gera a melhor curva naturalmente. A partir
das medidas geradas, pode-se reproduzir a curva com outros materiais. Este
experimento também é realizado no LILD, e é melhor feito materialmente do que
no computador:
“Enquanto atualmente existem modelos de computador para modelar estruturas, modelos de catenária continuam sendo usados; eles têm a vantagem da manipulação direta da locação e de onde colocar as partes e facilitam a visualização da relação entre força e forma.” (ROCKWOOD, 2013, p. 85, tradução nossa)
Fig. 69: Modelos de catenária usados para encontrar a curvatura da estrutura (Imagens
extraídas de ROCKWOOD, 2013)
Fig 70.: Observação da curva catenária no LILD
A pesquisa com o bambu trouxe essa inovação de se manipular
diretamente o material e aprender com ele.
117
Fora da pesquisa com bambu, os experimentos materiais que são feito são
junto à engenharia, todos com muito rigor científico – testes estruturais ou de
temperatura.
Seriam feitos protótipos das peças para que pudessem ser feitos testes
estruturais de cada uma. Fiz a modelagem em 3D do molde das peças.
Fig. 71: Painel do chão da casa e seu molde
O estudante de mestrado em engenharia civil Søren Olsen, dinamarquês
que estava fazendo intercâmbio na universidade, colaborou na parte de
prototipagem e testes e construiu o molde do painel. Ele construiu o molde da
peça do painel do chão para que a peça pudesse ser construída e testada. Eu não
pude acompanhar a parte de testes, que ocorreria depois da minha partida, vi
apenas o início do processo.
Fig.: 72: Finalização da construção do molde
Percebemos que a pesquisa experimental no CPI se aproxima mais da
pesquisa nas ciências exatas, com testes feitos junto à engenharia. Os materiais
são todos medidos e, muitas vezes processados em máquinas, não havendo o
aprendizado do gestual, como ocorre no LILD.
118
4.3.2.2
O trabalho computadorizado
O laboratório trabalha com softwares de modelagem 3D e de desenho
técnico para idealizar, estudar e apresentar seus projetos. O processo de criação e
interação com o objeto se dá muito por computador, assim como a comunicação
visual das ideias.
As tecnologias de visualização e construção eletrônica de projetos estão
sendo cada vez mais usadas nos projetos de Design e Arquitetura.
Segundo o pesquisador do LILD João Victor Melo:
“As vantagens da utilização de sistemas CAD são inúmeras (Tabela 1),
principalmente no que diz respeito à redução de custos por protótipo e aceleração
do ciclo de projeto, fazendo com que o produto seja lançado em um tempo
reduzido, retornando investimentos mais rapidamente. Além disso, a
armazenagem, a troca de informações entre equipes, e as alterações no projeto, se
tornam muito mais rápidas, eficientes e precisas.” (MELO, 2011, p. 42)
No CPI, trabalhei com o software de modelagem 3D Autodesk Inventor
para a modelagem de um projeto de habitação das Ilhas Marshall. É um software
de modelagem 3D de alta performance, possibilitando a visualização fotográfica
das peças.
Os desenhos produzidos no software facilitam a comunicação e a
visualização das ideias, além de antever problemas que só seriam vistos quanto da
realização de protótipos físicos. Os desenhos computadorizados podem ser
retificados com mais facilidade do que os desenhos físicos, possibilitando
facilidade e rapidez no desenvolvimento dos projetos. Os desenhos também
podem ser facilmente enviados por Internet para pessoas que estão em lugares
distantes.
No desenvolvimento dos desenhos, pudemos mostrá-los facilmente para o
professor Ian Robertson, da Engenharia Civil, que sugeria modificações, e para o
Professor David Rockwood, enquanto ele estava viajando.
119
Sempre eram sugeridas modificações, que eram mais facilmente realizadas
do que em desenhos feitos à mão, o que possibilitou ao projeto ter um caminhar
contínuo. Como o projeto visa usar um material padronizado, cujas características
já são bem conhecidas e controladas, e que vai ser processado por máquinas, os
desenhos com precisão da modelagem computadorizada são adequados e facilitam
o processo. Os testes de laboratório, posteriormente, fazem testes de resistência
nas peças.
Quando se trabalha com materiais e métodos menos padronizados, como o
bambu, ou o barro, que sempre variam, os desenhos de modelagem 3D ainda
podem ser úteis para comunicar a ideia, mas vão se assemelhar menos ao
resultado físico em escala real.
4.3.3
Princípio “Estruturas e materiais”
4.3.3.1
Estruturas leves
A leveza pode ser considerada uma das principais características que
diferencia as estruturas modernas das tradicionais, algo que foi possibilitado pelo
surgimento de materiais leves resistentes e pela análise estrutural
computadorizada, em 3D.
O laboratório CPI trabalha com estruturas leves, na medida em que procura
sempre minimizar o uso de materiais, sem comprometer a resistência da estrutura.
A busca é pela melhor relação entre peso e resistência. Grande parte dos projetos
são pensados para ser leves – como o motor acoplado à bicicleta, ou as estruturas
que geram sombras em prédios. Essas estruturas podem ser projetadas para ser
leves, graças a materiais resistentes modernos, que podem ser moldados em uma
camada muito fina.
Já o bambu é um material tradicional que é leve e resistente, sendo
propício para se explorar formas de estruturas leves.
120
Na pesquisa com bambu, a pesquisa que se aprofundou foi a escolha de
estruturas feitas de grades curvas (gridshells):
“Por que estruturas de grades curvas? E por que estruturas de grades curvas feitas de bambu? Uma estrutura de grade curva é definida por ser uma estrutura de concha tendo algumas partes da concha removidas. Conchas são estruturas com uma ou com dupla curvatura, que resistem a pesos impostos através de esforço na superfície da membrana. Como um tipo de concha, grades curvas têm valores de resistência com relação a peso relativamente altos, grande superfície a uma camada estrutural fina.” (ROCKWOOD, 2013, p. 11, tradução nossa)
Este tipo de estrutura já foi estudada por Frei Otto, que, na década de 1970,
expôs grandes estruturas do tipo – Otto é um conhecido arquiteto alemão que se
dedicou ao estudo de estruturas leves. Com as grades curvas, é possível gerar uma
camada estrutural fina com bastante resistência.
Fig. 73: Estrutura em grade curva construída por Frei Otto junto a outros arquitetos na
Hannover Expo, em 2000.
Trata-se de estruturas resistentes, mas leves. Uma busca de se fazer o
máximo com o mínimo de peso. Algo que se aproxima, como vimos, do
pensamento de Buckminster Fuller (1985), que propunha reduzir ao máximo os
materiais, criando estruturas leves e que utilizassem os materiais da forma mais
eficiente possível, assim como costuma ocorrer na natureza.
O laboratório CPI trabalha com formas leves e buscando o máximo da
eficiência dos materiais, mas o bambu é o único material natural utilizado, como
veremos a seguir.
121
4.3.3.2
Os materiais pesquisados
O laboratório trabalha com diferentes materiais, de acordo com a
necessidade e o projeto. A escolha é de se trabalhar com o material mais eficiente
para o caso – o material mais resistente a intempéries, o material que menos
absorve o calor externo, ou o material com a melhor relação entre sua resistência e
seu peso. Em geral, os materiais são processados industrialmente. A exceção foi o
bambu – nesse caso, o material não foi escolhido em função do projeto – foi
escolhido o material e foi feita uma pesquisa sobre como se trabalhar com bambu.
Como vimos, no projeto das Ilhas Marshall, a prioridade foi para a
resistência do material base da construção – concreto reforçado com fibras (FRC)
– considerado o mais resistente e durável para um ambiente quente, úmido e com
muitas intempéries – não enferruja, nem se degrada com o sol.
No projeto de telhado com circulação de ar, o material usado é o ECC
(Engeneered Cementitious Composites), um material leve e resistente, que tem em
sua composição materiais reciclados e pode ser moldado em moldes industriais e
reproduzidos.
No projeto para a cobertura e paredes de edifícios que aproveitem a luz do
sol e o vento, a escolha é pelo uso mínimo de materiais, mas sempre usando o
material mais eficiente para o caso, em geral um material industrializado, como a
fibra de vidro especial, PTFE fiberglass, que tem maior índice de reflexão e
diminui a temperatura interna. Nesta figura, vemos a camada protetora do edifício,
que conta com diferentes materiais industrializados:
Fig. 74: Imagem do arquivo do Prof. Rockwood
122
Ao se escolher trabalhar com bambu, a ideia foi aproveitar ao máximo as
características naturais do material, para tentar pesquisar soluções de utilizá-lo em um contexto diferente das utilizações tradicionais:
“Porque o bambu tem propriedades estruturais que correspondem ou vão além de muitas das espécies de madeira comuns, parece que o bambu pode ser um substituto viável para a madeira em aplicações de grade curva.” (ROCKWOOD, 2013, p. 13, tradução nossa)
Foram levadas em contas as propriedades naturais do bambu para pensar como elas poderiam ser aplicadas às estruturas em grade curva (gridshells).
“A aplicação do bambu como material para grades curvas mostrou alguns paralelos possíveis para essas características da planta bambu. Por exemplo, a propriedade de flexibilidade do bambu poderia ser usada não apenas na estrutura final (por exemplo, para ajudar a absorver forças de vento e sísmicas), mas também como uma parte do processo de construção da estrutura. Colmos de bambu ficam muito próximos uns aos outros e são interconectados pela rede de rizoma. De modo análogo, os membros estruturais em uma grade curva são próximos e estão interconectados em uma rede.” (ROCKWOOD, 2013, p. 121, tradução nossa)
Como vimos, o bambu é uma exceção no trabalho do laboratório, que
costuma trabalhar com materiais industrializados, que facilitam a replicação do
projeto. No caso do bambu, está sendo feito um estudo de suas características
naturais, e das estruturas a que ele se adequa bem para em seguida, pensar em
como os projetos podem ser replicados.
O uso do bambu representa um desafio para se conseguir trabalhar com ele
de forma padronizada, já que ele tem diferentes espécies e, mesmo dentro de uma
mesma espécie, há muita variação na espessura, diâmetro, tamanho e resistência
dos colmos. Nesta pesquisa, foram encontrados obstáculos ao tentar se reproduzir
uma mesma estrutura com outra espécie de bambu.
4.3.3.3
Sustentabilidade
A sustentabilidade é um ideal sempre presente, mas, na pesquisa do CPI,
está ligada à eco-eficiência sobretudo, e não à renaturalização dos materiais, como
costuma acontecer no LILD. A ideia é trabalhar com materiais industrializados,
mas de maneira eficiente, de forma a minimizar o uso de material e energia. A
123
pesquisa também visa maximizar o uso de fontes de energia natural, como o sol e
o vento.
No projeto das Ilhas Marshall, há a utilização de ventilação e sombra
naturais, o que proporciona maior conforto térmico, com baixo uso de energia. Há
um sistema de aproveitamento da água da chuva, não sobrecarregando um sistema
de água centralizado. As fundações são elevadas, minimizando os impactos no
solo. A proposta ao se trabalhar com materiais pré-moldados é de a se reduzir o
desperdício de materiais, já que materiais duráveis reduzem o descarte. E a ideia é
a de se criar estruturas pensando na durabilidade dos materiais – é evitado o uso
de metais, pois se corroem nas partes externas da casa. Ao mesmo tempo, a ideia
é testar o uso de materiais descartados na mistura de concreto – cinzas e vidro
triturado. Nessas ilhas, todo o vidro é importado e, após o descarte, acaba sendo
acumulado em lixões, pois sai caro enviá-los de volta para serem reciclados no
continente. Assim, dar um uso para o vidro ao fim de sua vida útil, é essencial.
Os projetos desenvolvidos no laboratório trabalham sempre na busca de se
ter o máximo proveito de energia e matéria, reduzindo os impactos da construção.
Assim, as palavras empregadas se relacionam à redução do impacto – mitigação
(mitigation) e aumento do rendimento com durabilidade e resistência (durability,
resistence). Uma busca de se fazer mais a partir de menos, com projetos para
maximizar o ganho de energia solar em superfícies de edifícios, minimizar o calor
interno dos ambientes, maximizar o aproveitamento do vento, minimizar o
consumo de petróleo, minimizar o uso de materiais.
Esta estratégia, do máximo de output para o mínimo de input é a estratégia
do eco-design. Como a transição do modo de produção industrial tradicional, que
é altamente impactante ambientalmente, para um modo de produção sustentável é
muito difícil, o eco-design faz um esforço no sentido de minimizar os impactos,
criando sistemas mais eficientes. Um sistema eco-eficiente utiliza menos matéria-
prima e energia e gera menos lixo e poluição do que os sistemas industriais
tradicionais. A eco-eficiência não deixa de ser um passo positivo, mas é alvo de
muitas críticas, pois o sistema produtivo continua impactando o meio ambiente e
dependendo de fontes de energia e matéria não renováveis – apenas em uma
escala um pouco menor.
E, como não há uma quebra do paradigma de crescimento contínuo da
124
produção, a economia de recursos e a diminuição dos impactos serão
compensadas pelo crescimento econômico. O aumento da eficiência com a
minimização dos recursos não foge da lógica da racionalidade econômica, que
propõe criar mais output a partir de menos input. A sustentabilidade não pode ser
vista como uma grande aliada da economia, servindo como um estímulo para a
racionalidade produtivista; o paradigma de crescimento econômico contínuo,
dependendo da produção crescente de bens, deve ser colocado em questão. Nos
Estados Unidos, que são um país fortemente baseado na racionalidade produtiva e
no crescimento econômico, a estratégia da eco-eficiência está muito presente.
Todas as iniciativas pela sustentabilidade são muito bem pensadas no CPI,
em que os projetos são pensados nos mínimos detalhes. Mas, como vemos, a
sustentabilidade no CPI é trabalhada de maneira diferente de como é trabalhada no
LILD, que investe no uso de materiais naturais e na máxima integração com o
meio ambiente – em uma visão holística do objeto e seu entorno. O CPI investe
em diminuir os impactos do modo de produção industrial.
4.3.3.4
O conhecimento de estruturas e materiais tradicionais
Nos trabalhos do laboratório, percebemos que as soluções tradicionais são
levadas em consideração.
No projeto das Ilhas Marshall, foram pesquisadas características das casas
nativas tradicionais. Foram levadas em conta algumas características dessas casas
tradicionais.
O piso das casas costuma ser elevado, o que mantem a casa protegida
contra enchentes, contra insetos e cria circulação de ar embaixo da casa,
mantendo-a fresca.
O telhado é bastante inclinado, o que faz com que a água da chuva escorra
facilmente e facilita a possível captação de água da chuva. O telhado vai até bem
abaixo do usual, criando um ambiente sombreado na casa.
As casas são relativamente estreitas, não sendo necessárias vigas
estruturais no meio.
125
As casas não têm paredes, possibilitando a circulação de ar, e revelando ser
um ambiente coletivo, sem divisórias.
As características desse tipo de casa propiciam que ela seja adequada ao
clima quente e úmido local. É interessante notar como essa casa é extremamente
similar às casas dos huni kuin da Amazônia, como veremos adiante, que possuem
essas mesmas características listadas, como poderemos ver mais adiante neste
capítulo. São casas adaptadas ao mesmo tipo de clima e ambiente.
Figs 75 e 76: Imagens das casas nativas, usadas como fonte de pesquisa para o design
da casa
Fig. 77: Primeiro design do projeto, que leva em consideração o design das casas
nativas tradicionais
As características da estrutura da casa tradicional foram levadas em
consideração, na busca de valorizar e se adaptar ao design e cultura locais. Essas
características foram valorizadas, por sua capacidade de refrescar a casa, captar a
água da chuva e pela simplicidade de seu design. No entanto, os materiais usados
126
e as técnicas de construção tradicionais não foram consideradas no projeto. Há
uma separação entre o desenho da casa e os materiais e técnicas empregados.
Em outros projetos do laboratório, soluções tradicionais também foram
levadas em conta. Como vimos, o laboratório fez estudos sobre coberturas que
aproveitam a luz do sol e o vento, mantendo uma temperatura agradável no
interior. As pesquisas concluíram que a maioria das técnicas de construção
tradicionais contavam com elementos para manter o interior fresco, como
materiais vegetais e piso elevado do solo - enquanto as construções modernas
trabalham com materiais e técnicas que tendem a aumentar o calor interno – como
grandes vidros expostos ao sol, grandes áreas de concreto. A ideia não é a de se
aprender diretamente com esses conhecimentos, mas a de entender alguns
princípios empregados e criar soluções a partir da tecnologia e materiais
modernos.
Na pesquisa com bambu, há uma constante comparação entre os métodos
tradicionais de uso do bambu e os métodos modernos. O bambu é usado pela
humanidade há milênios, e muitas soluções já foram desenvolvidas. No entanto,
muitas dessas soluções não são viáveis em um contexto industrial.
Sendo um material natural e com muito amido, se não for tratado, em
pouco tempo, provavelmente será tomado por insetos e fungos. Tradicionalmente,
o bambu é tratado por exposição ao fogo, imersão no rio ou secado em pé. Os
métodos modernos são de tratamento químico, com banho ou injeção de
substâncias químicas. O tratamento químico é mais efetivo, mas geralmente
contém substâncias tóxicas.
Os métodos tradicionais de conexão são as amarrações, que têm a
vantagem de serem flexíveis, de se adaptarem a qualquer tamanho de bambu e de
não perfurarem o bambu.
“A amarração é o método tradicional para conectar membros estruturais de bambu. De todos os métodos, essa é a técnica mais prevalente e permaneceu presente por centenas de anos, em diferentes culturas e lugares. O uso predominante da amarração pode ser devido, em parte, à falta de outras opções, como o uso de conexões mecânicas. De uma perspectiva contemporânea, a amarração pode ser considerada um remanescente da cultura artesã pré-industrial, e com pouca utilidade nos tempos modernos. No entanto, a amarração tem várias vantagens significativas para conexões de bambu.” (ROCKWOOD, 2013, p. 29, tradução nossa)
127
Figs. 78 e 79: Amarrações feitas com corda de fibra de coco na pesquisa no Vietnam (Fotos extraídas de Rockwood, 2013)
Com todas as vantagens, as amarrações não são adequadas para uma
produção industrial e para criar peças pré-produzidas, pois exigem um
conhecimento específico e as amarrações devem ser realizadas na hora.
Como vemos, no CPI ocorre um estudo de técnicas tradicionais – porém,
de forma diferente do que ocorre no LILD. Em geral, algumas estruturas servem
de inspiração, mas os materiais e técnicas não costumam ser levados em
consideração.
A pesquisa com o bambu é a mais aberta para se aprender com as técnicas
tradicionais e se trabalhar com inspiração nelas. Pois o bambu é um material
usado há milênios e muitas soluções já foram pesquisadas e encontradas. Sendo
um material natural, que cresce de forma não padronizada, é difícil tratá-lo de
forma padronizada, e o retorno às formas tradicionais de tratá-lo é frequente.
128
4.3.4
Princípio “difusão do conhecimento”
O projeto das Ilhas Marshall é um projeto de construção fora da
universidade, tendo sido desenvolvida uma pesquisa acerca das condições do local
– das condições naturais e dos tipos de habitações tradicionais. Foi levado em
conta que a população está perdendo seu modo de construção tradicional e está
construindo com materiais industrializados de forma pouco segura – em uma
região sujeita a desastres naturais, como furacões e enchentes – e não aproveitam
a iluminação e ventilação naturais. Como vimos, o projeto propõe soluções para
esses problemas.
O projeto ainda está em fase de planejamento, e está sendo buscado apoio
financeiro com fundações de pesquisa. Portanto, a construção ainda não começou,
mas o projeto está sendo feito de acordo com o método tradicional – a partir de
uma pesquisa, a equipe desenvolveu o projeto, sem a participação dos moradores,
mas levando em conta características importantes das habitações tradicionais da
população. A casa será construída a partir de peças pré-moldadas – o que abaixa o
custo, facilita e acelera a construção, que pode ser feita com ferramentas simples e
mão de obra pouco qualificada, gerando emprego para a população e criando a
possibilidade da abertura de empresas locais especializadas na fabricação dos
materiais. A ideia é que as próprias famílias possam montar e adaptar suas casas –
a construção foi projetada para poder ser concluída apenas com ferramentas
manuais, a partir das peças pré-moldadas. E a proposta é que a produção possa ser
continuada por empresas locais após a partida da equipe.
As peças serão modulares, possibilitando que a casa seja adaptada de
acordo com a necessidade da família; pode ser maior ou menor, e ter divisórias em
diferentes partes. A proposta é criar casas muito resistentes, seguras, com bom
conforto térmico e iluminação natural, que terão baixo custo e serão vendidas para
os moradores. Primeiramente, serão construídos uma casa e um centro
comunitário, que servirão de modelo para se criar um mercado para a construção
de casas similares.
É um método de difusão mais próximo ao comercial – a ideia é a de gerar
lucro com o projeto e criar mais construções. A pesquisa universitária está
presente para assegurar uma casa que seja resistente e confortável para os
129
moradores, usando o mínimo de material e energia. A interação da casa com os
moradores acontece depois que o projeto está pronto – eles montarão e adaptarão
a casa. Mas não há uma troca maior com os moradores durante o projeto, e há
ainda uma dependência de materiais importados.
4.3.5
Considerações parciais
A partir do contato com o laboratório, pude entender sobre as metodologias
empregadas e sobre os princípios presentes na pesquisa. Pela proximidade do
laboratório com as engenharias, a maioria dos projetos têm uma metodologia
científica bastante rigorosa, com testes de resistência dos materiais e estruturas.
Os trabalhos são desenvolvidos no computador, tendo uma concretização apenas
quando todos os testes e desenhos já estão bem definidos. A escolha dos materiais
é pelo material mais eficiente para o projeto. E os desenhos das peças são sempre
feitos levando em conta a reprodutibilidade industrial.
Os projetos são desenvolvidos com uma metodologia de constante
retificação dos desenhos eletrônicos, a partir do diálogo com os diferentes
pesquisadores, incluindo professores da engenharia. Após a fase de desenhos, são
feitos rigorosos testes de laboratório. A partir dos testes, são feitas retificações no
projeto. Trata-se de uma metodologia de retificação e aprimoramento constante –
na busca de um projeto mais firme, resistente e eficiente. A criação de modelos
eletrônicos auxilia muito no desenvolvimento e retificação constante dos projetos
– pois, de forma mais rápida, é possível perceber erros, consertá-los e comunicar
as ideias para outras pessoas darem sugestões. O laboratório tem uma metodologia
mais próxima às ciências exatas do que o LILD, e há menos espaço para fatores
inesperados.
A modelagem 3D está bem mais presente na criação de projetos do que
acontece no LILD, até pela preferência de se trabalhar com materiais
padronizados, que podem reproduzir mais facilmente os desenhos com a precisão
da modelagem 3D. Se, por um lado, há maior precisão e aproximação com a
engenharia, por outro lado, há menos proximidade com os usuários – o aspecto
humano do projeto.
130
Como acontece no LILD, vemos que há inspiração nas técnicas
tradicionais. Trabalhando com construções para o clima tropical, sempre ocorre
inspiração nas soluções construtivas pré-industriais. No entanto, são observadas
apenas as estruturas e as formas das construções – não os materiais, as técnicas e a
maneira como são realizadas. As estruturas e formas tradicionais são adaptadas ao
modo de produção e materiais industriais.
No caso da pesquisa com bambu, em que o material foi foco da pesquisa,
as soluções tradicionais para o uso do material foram pesquisadas, pois o bambu é
usado há milênios.
Há uma busca pela minimização do gasto de materiais e energia, de forma
a deixar o projeto mais eficiente e viável comercialmente. Como vimos, a busca
do mínimo de material para o máximo de resistência é uma proposta defendida
por Buckminster Fuller (1985). O laboratório consegue bons resultados nisso a
partir de um estudo muito rigoroso das estruturas e materiais.
Mas, ao mesmo tempo, dependendo da forma como esse pensamento é
aplicado, ele não foge da lógica da indústria capitalista e do crescimento
econômico. Uma lógica de produção em que o mais importante é reduzir os custos
para garantir a entrada no mercado, e o usuário aparece apenas como consumidor.
Pudemos perceber que o laboratório, apesar de trabalhar com projetos para
pessoas, prioriza o aspecto técnico das pesquisas, inserindo-se pouco na parte
humana. Os usuários não participam dos projetos, e não dominam a técnica de
construção da casa, não sendo caracterizada como técnica convivencial. Não
ocorre um diálogo de troca de ideias e conhecimento com o usuário na criação do
objeto. É sempre feito um estudo do meio ambiente em que o projeto está
inserido, em termos de condições climáticas, buscando adequar a construção ao
clima. Mas os materiais escolhidos não são os locais – são os materiais industriais
mais eficientes para o caso. A transferência de tecnologia de países mais ricos para
mais pobres é algo extremamente delicado, pois, frequentemente, ocorre de forma
a aumentar as desigualdades. Como coloca o geógrafo Milton Santos, as
importações e exportações, comandadas por empresas globais, só têm aumentado
a desigualdade e a pobreza no mundo, sendo importante que cada lugar tenha
131
relativa autonomia – ele fala sobre a importância de se criar um país que seja uma
“federação de lugares” (SANTOS, 2001, p. 95). O mundo global, como vimos,
tende a deixar os lugares desterritorializados, estando em conflito com o local, o
espaço do cotidiano das comunidades.
Como falamos, a pesquisa está inserida em um contexto industrial-
capitalista, não tendo contestações a ele, mas buscando tornar os projetos o mais
eficiente o possível, visando a lucratividade. Existe uma preocupação de
minimizar os impactos ecológicos e usar fontes de energia renováveis, o que são
pesquisas importantes e que vêm sendo feita de forma muito cuidadosa. Assim
como há a preocupação com a segurança e a resistência, o que é importante em
uma região com muitas intempéries climáticas. Porém, não há rompimento com a
centralização do conhecimento e da produção.
A pesquisa com bambu foge dos parâmetros usuais do laboratório, já que
se trabalha com um material de difícil adequação para uma produção padronizada,
e o processo foi o de aprender com a natureza do material, lidando diretamente
com ele.
É interessante como o próprio material foge à padronização e demanda um
outro modo de pesquisar e de projetar.
4.4
Levantamento de dados Lago Lindo- Visita à aldeia Huni Kuin
4.4.1
Introdução
4.4.1.1
A proposta da visita
A proposta da visita a uma aldeia da etnia huni kuin foi a de visitar um
ambiente não universitário que, tradicionalmente, trabalha com técnicas similares
às que investigamos no LILD (Laboratório de Investigação em Living Design) – o
uso de materiais renováveis locais, as estruturas leves e a autoconstrução –
132
construção feita pelos próprios membros da comunidade, com conhecimento
passado de modo informal de uns para os outros – mas sem metodologia e
conhecimento estruturados formalmente.
Entendemos que a cultura material brasileira tradicional é riquíssima e é
fruto de um amplo conhecimento da natureza local e da construção de estruturas
leves e de rápida realização – com muito conhecimento que pode ser útil para
pesquisas. O LILD sempre valorizou esses conhecimento. O ex-pesquisador do
LILD José Francisco Sarmento Nogueira, em sua dissertação de Mestrado,
questionou por que a cultura material pré-industrial brasileira não é considerada
Design e não é devidamente valorizada:
"(...) as questões que se levantam neste trabalho são: porque o afastamento do design no estudo da cultura material das culturas ágrafas do Brasil? Ou ainda das várias etnias que compõem este país. Por que não considerar os processos de construção dos artefatos destes povos como resultado de design?" (NOGUEIRA, 2005, p. 15)
As culturas indígenas brasileiras têm muito a nos ensinar sobre a sua
cultura material, que são baseadas na vegetação e na terra locais. Berta Ribeiro foi
uma antropóloga que visitou e escreveu sobre a cultura material e a habitação
indígenas. Segundo Ribeiro (1987), a habitação indígena varia muito em termos
de formato e de tamanho da edificação, mas os materiais básicos não variam
muito: a casa indígena é construída integralmente com materiais vegetais.
“As formas habitacionais são leves, de fácil construção e razoável durabilidade. As construções se fundem com o local, a começar pela matéria-prima empregada, idêntica em tom e textura ao ambiente em que se assenta. Entretanto, a aldeia como um todo, ao mesmo tempo, se articula e contrasta com o ambiente, estabelecendo a oposição cultura / natureza. A primeira, correspondendo aos espaços humanizados; a segunda, aqueles naturais e da sobrenatureza.”
(RIBEIRO, 1987, p. 92)
A relação indígena da cultura com a natureza, das ações humanas com o
meio ambiente, é de grande interesse e tem um conhecimento que pode ser útil à
pesquisa universitária. Mas, diferentemente das aldeias, no ambiente universitário
de pesquisa, os projetos têm registro, reflexão e embasamento teórico constantes.
Esta visita teve o propósito de entender um pouco sobre a metodologia de uma
comunidade tradicional que trabalha há séculos com técnicas profundamente
integradas ao meio ambiente natural e social.
133
Assim, poderemos observar a diferença do entendimento dessas técnicas
quando ele é passado de forma intuitiva e tradicional e quando de forma
sistematizada, na academia.
Ao mesmo tempo, esta observação teve o objetivo de entender a presença
de alguns princípios que discutimos no capítulo anterior – a convivencialidade, a
autonomia produtiva, a integração com a natureza local.
4.4.1.2
A Aldeia Huni Kuin
Tive a oportunidade de visitar uma aldeia huni kuin, na Amazônia acreana
e achei que era um lugar interessante para esta investigação. Fui para a aldeia para
o festival do povo Huni Kuin, pois havia me interessado pela sua cultura quando
da visita de alguns índios ao Rio de Janeiro. Percebi que seria uma oportunidade
permanecer um pouco na aldeia e me aprofundar no estudo da cultura material
huni kuin.
A aldeia que visitei chama-se Lago Lindo e fica à beira do rio Tarauacá, no
Município de Jordão, a duas horas de barco do centro do município. Jordão fica a
duas horas de avião de Rio Branco, capital do Acre. Ou a uma semana de barco,
nessa época de inverno, que é o período seco. É um lugar muito isolado de
qualquer centro urbano considerável, ainda mais considerando-se o custo das
viagens – a gasolina lá custa R$ 5,00 o litro. E Jordão é uma cidade muito
pequena, com um comércio limitado. Este isolamento da região é, provavelmente,
o responsável pela grande preservação de muitos aspectos da cultura indígena,
como a língua Hatxa Kuin, que é a língua mãe dos Huni Kuin; o Português é a
segunda língua, que os índios falam mal, fazendo erros característicos de falantes
estrangeiros. O Hatxa Kuin faz parte da família linguística Pano, e o povo faz
parte da etnia Caxinauá, que habita terras entre o Brasil e Peru. A cultura material
também é muito preservada: a alimentação, baseada nas plantações feitas ali; as
construções, quase exclusivamente feitas com material da floresta (à exceção dos
pregos); os utensílios e ornamentos (cestos, cerâmica, abanos, redes, cocares,
maracas, arco e flecha, dentre outros).
134
Fig. 80: Vista da Aldeia Lago Lindo
A aldeia Lago Lindo tem 13 famílias e foi estabelecida há três anos atrás.
Eles dizem que é preciso no mínimo 63 pessoas para se construir uma aldeia, que
é a população aproximada desta aldeia. Lá, há plantação de milho, mandioca,
inhame, mamão, banana e amendoim, que são as plantações que também há nas
outras aldeias da região. Lago Lindo é a aldeia onde são realizados os festivais do
povo huni kuin – festival que este ano teve sua terceira edição. Fabiano Txana
Bane e Bane Sales, duas pessoas influentes na aldeia, têm a intenção de construir
ali um modelo de aldeia sustentável, em relação a aspectos como tratamento da
água e do lixo, dois dos principais desafios das aldeias indígenas da região. E de
valorizar tradições da cultura material indígena, como a cerâmica, a cestaria, o
artesanato com sementes.
A pesquisa não teve o objetivo de aprofundamento antropológico,
sociológico ou histórico do povo huni kuin. O objetivo era entender como se
desenvolve a cultura material tradicional e o que pensa sobre suas ações um povo
que extrai a maior parte dos recursos necessários da floresta onde vive e que faz
autoconstrução e trabalho em mutirão.
Os índios são muito receptivos e me convidaram para permanecer lá e
acompanhar as atividades. Fabiano Txana Bane iria construir uma casa na aldeia,
e eu queria acompanhar a construção e conversar com os índios sobre a atividade.
Quando ele me falou sobre a construção da casa, o combinado era começar no dia
seguinte. Mas o início da obra acabou sendo adiado. Pois, no dia combinado,
135
Txana Bane foi para a cidade, no outro dia resolveu pescar, num outro dia foi
fazer roçado. Depois, resolveu delegar a construção para outras pessoas que a
fariam mais tarde. Então, não pude acompanhar a construção da casa. A partir daí,
já pude perceber bem o quanto eles não seguem planejamentos; sempre fazem o
que têm vontade no dia, ou, então, a atividade que outra pessoa propuser no
momento.
4.4.2
O modo de trabalho huni kuin
4.4.2.1
O discurso huni kuin e a ausência de planejamento
Os huni kuin não trabalham com planejamento ou cronograma e não são
nem um pouco teóricos – eles têm muito pouco ensino formal – a escola na aldeia
tem uma carga horária reduzida. Eles não falam bem o português, tendo um
vocabulário reduzido e fazendo erros de quem fala o português como língua
estrangeira, sobretudo as mulheres. Sua língua mãe é o hatxa kuin.
Eles falam entre si apenas em Hatxa Kuin, que é impossível para quem é
de fora entender. No entanto, ao prestar atenção às suas conversas, ouvimos
algumas palavras em português no meio da fala. Podemos supor que as palavras
ditas em português são palavras inexistentes em sua língua, revelando
originalmente uma forma de pensar totalmente diferente. As palavras que ouvi em
português foram: organizar, planejar/planejamento, dia X, X horas, X reais,
explica, liderança, importante, antigo/antigamente, hoje em dia.
A ausência de planejamento, de organização, linearidade do tempo e
explicações revela-se na própria língua.
136
Ao perguntar para eles sobre a forma, métodos e materiais, frequentemente
recebia respostas muito vagas, demonstrando uma total não sistematização do
conhecimento e a falta de explicações didáticas. Isto ocorreu quando perguntei
para Bane Sales, que é um índio que já morou bastante tempo em Rio Branco e
tem um português fluente:
- Como vocês constroem a casa?
- A gente constrói mesmo.
- Vocês fazem com tudo da floresta?
- É tudo da floresta.
- E que árvores vocês usam?
- É madeira mesmo.
Ou ao tentar me informar sobre as sementes de um colar:
- Essa semente é de quê?
- É semente mesmo.
- Mas é semente de quê?
- É semente mesmo.
O mesmo ocorreu quando vi Maspã dando um banho de ervas na ferida da
neta Joseana Mawapae e perguntei:
- O que é isso que você está passando na ferida dela?
- É remédio mesmo.
- Mas que planta é essa?
- É remédio mesmo.
137
Não conseguia obter respostas bem explicadas; a melhor explicação que
eles davam era fazendo as coisas. Pedimos para Mawapae nos ensinar a fazer
cestos. Ela aceitou, pegou conosco a palha específica para cestos, que é a mesma
do telhado, só que ainda não amadurecida, dentro do colmo. Primeiro, ela
preparou as fitas, cortando fora um fio grosso e espinhento que há na lateral da
folha.
Fig. 81: Mawapae preparando as fitas para o cesto, sendo observada pela filha
Depois, começa a confecção do cesto propriamente dito. Mawapae era
muito paciente, mas não nos deu nenhuma explicação de como se fazia, apenas ia
fazendo. E nenhuma das pessoas que estavam fazendo a ‘oficina do cesto’ – eu e
mais três mulheres não índias – conseguiu entender a lógica da formação do cesto.
A cada camada, variava o número de fitas que iam por cima e por baixo e não
pudemos entender a lógica, não conseguimos reproduzir. Mawapae ajudou na
confecção do cesto de cada uma, mas não deu explicações.
Fig. 82: Mawapae trançando o cesto
138
Vi este mesmo modelo de cesto sendo feito muito rapidamente por outra
mulher, Ayani, enquanto fazíamos um passeio. Ao longo do passeio, Ayani coletou
a palha e fez o cesto, com grande destreza, enquanto as outras pessoas apenas
caminhavam e conversavam. Ayani também fez rapidamente um abano para o
fogão a lenha, a partir de uma folha da palmeira.
Figs. 83 e 84: Cesto e abano feitos rapidamente por Ayani
O discurso pouco elaborado dos Huni Kuin pode ser resultado de uma
dificuldade de tradução para o português de termos próprios de sua língua, como
nomes de espécies de plantas. Nas línguas indígenas brasileiras, inclusive nas
línguas Pano (tronco linguístico do Hatxa Kuin), costuma haver sistemas
elaborados de modalizadores nas línguas, que não podem ser traduzidos para o
Português. Partículas e elementos gramaticais, que não existem no Português e
que avaliam a fonte da informação, se é da experiência direta do falante, se ele
ouviu alguém falar, se há dúvida, espanto, etc. (MAIA, 2002). Essa riqueza
linguística não pode ser expressa em Português, o que pode resultar em um
discurso simplório.
Esse obstáculo linguístico deve ser levado em conta, mas não desqualifica
a observação de que a experiência prática é muito mais relevante que o discurso
entre os huni kuin. Pois o planejamento não é preciso, importando mais o
momento da realização prática. E, mesmo entre os huni kuin, observamos haver
um aprendizado maior por observação do que por explicações.
139
4.4.2.2
O trabalho comunitário
O senso de comunidade na aldeia e entre as aldeias é muito forte.
Dificilmente alguém faz um trabalho sozinho, sempre há grupos de atividades
para todas as tarefas da aldeia – cozinhar, lavar louça, lavar roupa, colher
mandioca, buscar água, pegar lenha, construir, fazer roçado, fazer artesanato,
dentre outras. Entre as aldeias, há sempre uma troca – se uma aldeia vai preparar o
roçado, pessoas da outra aldeia vão ajudar.
A coletividade é muito forte, não havendo senso de privacidade – dia e
noite, as pessoas estão no coletivo, fazendo atividades juntas. Não existe a noção
de trabalhos e projetos individuais. Cada pessoa é um colaborador em uma
atividade tradicional e coletiva.
4.4.2.3
Confecção de cerâmica
Não ocorrendo a construção da casa, conversei com Bane Sales, e ele
resolveu dar início a uma confecção de potes e panelas de cerâmica, atividade
tradicional das mulheres. Fomos buscar o barro no rio no dia 4 de julho de 2013,
eu e Bane Sales. Na beira do rio, há um barro muito bom para cerâmica, muito
argiloso, em um tom cinza claro. Também buscamos areia em uma praiazinha na
beira do rio.
O trabalho com barro é feminino e os huni kuin mantêm uma forte divisão
entre o trabalho das mulheres e o dos homens. O Bane foi buscar o barro no rio
por ser muito pesado para carregar, mas disse que estava sendo bonzinho, pois
muitos homens não fariam isso – buscar o barro também é um trabalho feminino.
Ao ir buscar o barro, ele ‘conversava com o barro’, chamando seu nome em hatxa
kuin, para pedir licença e ajuda para pegar o melhor pedaço de barro possível.
No dia seguinte, Maspã, mãe de Bane, iria dar início à modelagem. Fomos,
eu e ela, passar na casa de sua prima, Francisca, para pegar uma ferramenta que
140
elas usam para auxiliar na modelagem – um pedaço de cabaça lisa e fina, que
forma uma sessão de esfera. Fomos depois do almoço, mas, ao chegarmos na casa
de Francisca, ela ia servir o almoço e nos convidou para almoçar. Descobri que é
comum as pessoas almoçarem mais de uma vez quando passam para visitar
parentes, amigos e vizinhos (sendo que o cardápio é basicamente o mesmo –
macaxeira, banana...). Cheguei a pensar que a confecção de cerâmica não seria
iniciada, mas começamos mais tarde naquele mesmo dia.
Ao longo dos dias em que trabalhamos, com intervalos, fomos fazendo
vários potinhos. Volta e meia, apareciam outras mulheres da aldeia, passavam por
ali e começavam a ajudar nos potinhos, dando continuidade aos que já haviam
começado a ser feitos, ou, então, começando a fazer novos potinhos. Nada era
regrado – as mulheres chegavam, faziam potinhos, conversavam e dali a pouco
iam embora.
Figs. 85 e 86: Maspã trabalhando sozinha e com outras mulheres que vieram trabalhar
junto com ela
Elas seguiam o método tradicional huni kuin para o feitio de potes. Todas a
quem eu perguntava diziam que sempre se fez potes assim e que aprenderam
assim desde pequenas. Primeiro, misturam argila com um pouco de areia e
amassam bastante, criando uma massa homogênea, sem pelotas.
141
Fig. 87: Maspã com a prima Francisca amassando o barro.
Depois, elas enrolam a massa, formando uma cobrinha. Em seguida, a
cobrinha é estruturada em forma de pote e, a partir daí, elas vão alisando e
ajeitando a forma.
Fig. 88: Cobrinhas de barro que são enroladas em forma de potinho
O processo de ajeitar a forma é bem demorado e detalhista, podendo um
mesmo pote passar pela mão de várias mulheres.
142
Fig. 89: As mulheres ajeitando os potinhos
Depois de seco, uns dois dias depois, elas passam uma pedra lisa para
alisar o barro, fechando os poros, um trabalho também bastante demorado.
Fig. 90: Potinhos secando
Passado mais um ou dois dias, para que o pote esteja totalmente seco, ele é
queimado na fogueira. A queima é bastante rudimentar. Coloca-se o pote em cima
da lenha e, em cima do pote, coloca-se lenha fina ou galhos mais leves. Assim, os
potes ficam posicionados bem dentro da fogueira. A queima dura
aproximadamente uma hora. Os potinhos ficam primeiramente pretos, e, quando
começam a clarear, sabe-se que já estão prontos.
143
Fig. 91: Os potinhos sendo queimados na fogueira
Pude observar que a forma de trabalho segue um método previamente
conhecido pelos índios, mas o modo de trabalho é muito flexível e comunitário;
não é estipulado um horário, nem quem vai fazer qual tarefa. E o trabalho é
coletivo e harmônico, não havendo um senso de autoria ou propriedade.
4.4.3
Estruturas e materiais
4.4.3.1
As casas
As casas huni kuin são feitas com material da floresta – com a única
exceção dos pregos, que são comprados na cidade.
As casas são construídas em mutirão pelos homens e levam
aproximadamente 30 dias para serem feitas, desde a coleta do material até a
finalização, pelo que me informou Zeli Maspã.
A arquitetura das casas indígenas foi influenciada pelos seringueiros, que
chegaram às terras indígenas a partir do final do século XIX e trouxeram o modelo
de construções com piso elevado, o que protege a casa de bichos e inundações.
144
Figs. 92 e 93: Vista das casas huni kuin, com piso elevado
Antes, as casas eram triangulares e sem piso, diretamente no solo, com
telhado de palha até o chão – modelo chamado de cupixaua.
Segundo Pereirinha, índio huni kuin nascido em 1948, até a década de
1980, os índios não tinham acesso à serra elétrica e usava-se apenas madeira roliça
e tábuas de uma madeira chamada pachuba, que podem ser obtidas abrindo o
tronco da árvore e tirando o miolo.
Fig. 94: Casa feita com tábuas de Pachuba, que não precisam de serra elétrica
A palha que cobre as casas é de uma palmeira chamada Arucuri. Eles
fazem um risco no meio da palha e dobram as folhas ao meio, deixando-as secar
por alguns dias. As palhas são aplicadas nas casas de baixo para cima.
145
Figs. 95 e 96: Palmeira de Arucuri e as folhas sendo aplicadas em uma casa
Essas casas são de fácil fabricação, feitas com o material da floresta e são
leves, sobretudo a cobertura, que é de palha. As estruturas têm bastante conforto
ambiental, sendo abertas, com muita circulação de ar e bem iluminadas,
dispensando a iluminação artificial durante o dia.
4.4.3.2
A riqueza material da floresta
A floresta amazônica tem uma grande riqueza material e os huni kuin têm
vasto conhecimento dessa riqueza, sendo capazes de sobreviver a apenas com o
que a floresta propicia. Eles têm pouco acesso a bens industrializados, e podem
ser considerados muito pobres com relação a esses produtos e ao dinheiro em
geral. Apesar do isolamento do local, os índios têm cada vez mais acesso a
produtos industrializados – desde alimentos a músicas, vestimentas, ferramentas,
utensílios. No entanto, ao contrário dos bens da floresta, que podem ser adquiridos
diretamente, através do trabalho na natureza, os bens industrializados exigem
dinheiro. Os índios têm fascínio pelos bens industriais e sempre propõem trocas
com as pessoas que chegam com bens industrializados. E, no entanto, sabemos
que, quanto mais houver o contato com bens industriais, maior a chance de eles
perderem as tradições do uso dos materiais da pópria floresta.
Muitas de suas tradições materiais são muito trabalhosas – como a
tecelagem – eles plantam algodão, colhem, fazem o fio e tecem manualmente.
Assim, as coisas tecidas por eles levam muito tempo para serem feitas – uma rede
146
pode levar seis meses. Eles também tecem túnicas, camisas, calças, saias e coletes,
todos feitos com estampas de desenhos tradicionais. Os bens industrializados são
bem mais práticos de serem adquiridos, se eles tiverem dinheiro à mão.
Os Huni Kuin fazem, tradicionalmente, artesanato com padrões
geométricos, representando alguns animais da natureza local, como a jiboia, o
macaco, a tartaruga. Tradicionalmente, esse artesanato é feito de tecido de fibras
naturais tingidas ou sementes e penas. No entanto, atualmente, quase já não há
artesanato de sementes – os colares, pulseiras, faixas para a cabeça, etc, são feitos
de miçanga. São usados os padrões geométricos tradicionais, porém feitos em
miçanga colorida. A miçanga é trazida de fora, e os índios costumam pedir a quem
for para a aldeia para trazê-la. O trabalho com as sementes é mais difícil, porque
elas têm que ser coletadas e furadas, um processo demorado em que as pessoas
podem machucar os dedos. Assim, o uso de outros materiais pelos índios é
motivado pela lei do menor esforço e, frequentemente, pela desinformação –
alguém lhes apresenta algo e eles não têm noção de que aquilo lhes trará muitos
malefícios, como no caso de balas, que causam cáries em seus dentes.
Figuras 97 e 98: Enfeites huni kuin, com padrões geométricos tradicionais, feitos de
algodão e de miçanga.
A consciência que os índios têm da vantagem do trabalho a partir da
natureza está muito ligada ao aspecto econômico. Eles têm a experiência de que,
na cidade, é preciso dinheiro para qualquer coisa. Na aldeia, é possível viver sem
dinheiro. Planta-se, colhe-se, caça-se, pesca-se, coleta-se o material da natureza e
trabalha-se com ele... Quem chega, como explicou Zeli Maspã, não precisa pagar
hotel, não precisa pagar pela água e a comida é compartilhada. Na cidade, a
147
hospedagem é cara e tudo é comprado. Este fator é o que eles sempre apontam
como sendo a vantagem da vida na floresta.
4.4.4
Considerações parciais
A produção entre os huni kuin não tem precisão nem é inovadora, mas
segue uma tradição ancestral no modo de fazer, na relação dos objetos com a
comunidade e com a natureza. Esta tradição, de uma sociedade que trabalha
sobretudo com materiais advindos diretamente da natureza, não processados, tem
aspectos em comum com o trabalho desenvolvido no LILD, que, como vimos,
inspira-se nas técnicas de sociedades tradicionais. Também se relaciona com nossa
bibliografia, sendo um exemplo de sociedade que tem um conhecimento próprio
na relação com o meio ambiente e sua transformação.
A observação da aldeia Huni Kuin pôde revelar a forte presença da
convivencialidade na cultura material da comunidade. O trabalho é em conjunto e
o ensino é informal, através da observação e da convivência. As pessoas contam
sempre umas com as outras para produzirem, em um trabalho não individualizado.
A convivencialidade aqui é a de uma sociedade pré-industrial, em sua organização
social e sua relação com a natureza, em que as pessoas dependem da comunidade
e do meio ambiente para produzirem suas coisas.
O discurso huni kuin, como vimos, não é nada abstrato ou reflexivo, sendo
o foco sempre na experiência direta. Vimos, com Bakhtin, que o discurso não
pode ser visto como expressão da individualidade do falante, mas como fruto do
contexto social e da língua. Estabelecemos uma relação com o design, que não
pode ser visto apenas como expressão do gênio criativo do designer, mas de todo
o contexto social. Essa característica é extremamente forte entre os huni kuin – em
que a criação não é individual, mas é a reprodução de um modo de produzir
tradicional, em que a individualidade das pessoas não é relevante.
O modo de produção coletivo é uma reprodução da forma como sempre foi
feito – as pessoas aprenderam a fazer daquele jeito com seus pais, avós... Um
148
modo de se fazer artesanal que não tem uma busca pela inovação. Aqueles
objetos, feitos daquele jeito, sempre foram o suficiente.
Os huni kuin poderiam ser considerados uma ‘sociedade da abundância’,
conforme o termo de Marshall Sahlins (1966), por terem suas necessidades
preenchidas a partir do meio, a partir de técnicas simples, não precisando de mais.
No entanto, com o contato com a sociedade industrial, há uma geração crescente
de necessidades. Muitas ferramentas, utensílios e bens materiais passam a
aumentar as necessidades da população. É neste contato com outros bens que a
produção tradicional da comunidade passa a não bastar.
A capacidade de autonomia produtiva, de produzir a partir da natureza
local também é muito forte. Apesar de haver cada vez mais acesso a ferramentas,
materiais e objetos industrializados, esse acesso é caro e difícil, ainda havendo
uma relação intrínseca com a floresta. O conhecimento acerca da natureza local é
muito grande – os huni kuin sabem como obter comida, material de construção e
medicamentos diretamente da floresta.
A sustentabilidade não é uma meta ou uma consciência presente entre os
huni kuin – a relação intrínseca com a natureza é algo natural ao seu modo de
vida, na construção com materiais biodegradáveis e seu descarte na natureza. As
coisas produzidas por eles integram-se à natureza também em sua cor e aparência,
pois os materiais são todos extraídos dali. É um modo de produção tradicional
sustentável. Mas a chegada de produtos industrializados, não biodegradáveis,
complica um pouco a relação dos huni kuin com o meio ambiente, pois eles não
sabem lidar com o descarte desses produtos – descartam-nos diretamente na
natureza, como estão acostumados a fazer com as coisas que produzem a partir da
floresta. Isso traz um novo desafio para esse povo, que é, na verdade, o mesmo
desafio de toda a sociedade industrial.
149
4.5
Reflexões intermediárias sobre os campos
Como pudemos ver, foram investigados dois ambientes com metodologias
de trabalho bastante diferenciadas entre si e em relação ao LILD.
Como metodologia de trabalho, pudemos ver que, no laboratório CPI,
ocorre um planejamento das etapas, um processo de retificação constante do
objeto e o uso de softwares de modelagem 3D no desenvolvimento do projeto.
Já na Aldeia Lago Lindo, os objetos não são retificados, mas são feitos da
mesma maneira sempre – sem haver, no entanto, planejamento e cronograma
precisos.
Outra diferença fundamental observada é na relação com a natureza – os
huni kuin usam, como matéria-prima, principalmente a natureza local, numa
relação direta com essa natureza. No CPI, os materiais são principalmente
processados industrialmente e há uma preocupação em minimizar o uso destes
materiais, ou torná-los duráveis. A relação com a natureza é intermediada por
diversos processos e ideias de como utilizá-la da maneira mais eficiente. Vimos
que a casa projetada para as Ilhas Marshall tem inspiração no design da casa
tradicional, feita com materiais naturais, mas ela é projetada para ser feita com
materiais processados.
Também vimos que, na Aldeia, o trabalho é coletivo e não há diferença
entre usuário e produtor – todos produzem e usam os objetos. Um trabalho
convivencial. Bem diferente do que ocorre no CPI, que trabalha no
desenvolvimento de objetos para usuários que só vão participar no final.
Podemos ver que o LILD tem algumas características dos dois ambientes.
Tanto do pensamento universitário, de retificação contínua dos projetos, quanto da
inspiração nos materiais naturais, não processados industrialmente, e do trabalho
convivencial.
O diálogo entre esses diferentes ambientes será desenvolvido mais a fundo
no capítulo 6.