2151 - Dúvidas Filosóficas - Bertrand Russell

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Dúvidas Filosóficas por Bertrand Russell (1872-1970) Versão para ebook de Agapito Ribeiro Júnior  [email protected]  Bertrand Russell Talvez fosse de se esperar que eu começasse pela definição de "filosofia", mas, certo ou errado, não me proponho a tal. A definição de "filosofia" variará segundo a filosofia que adotarmos; para começar, diremos apenas que há certos problemas, julgados interessantes por certas pessoas, mas que não pertencem, pelo menos até agora, a qualquer uma das ciências especiais. Esses  problemas são de molde a levantar dúvidas a respeito do que comumente se entende por conhecimento; e se as dúvidas requerem resposta, esta virá unicamente por meio de um estudo especial, a que denominamos "filosofia." Portanto, o primeiro passo para definir "filosofia" está na indicação de tais problemas e dúvidas - e será também o primeiro passo no verdadeiro estudo da filosofia. Entre os tradicionais problemas da filosofia, há alguns que não parecem merecer, em minha opinião, tratamento intelectual, por transcenderem nossa capacidade cognitiva; desses problemas não cuidarei. Existem outros, porém, para os quais, embora não seja  possível encontrar-se solução definitiva neste momento, pode-se indicar o rumo para uma busca de solução, e o tipo de solução que, em tempo oportuno, venha a se revelar possível. A filosofia origina-se de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por conhecimento, na vida comum, padece de três defeitos : é convencido, incerto e, em si mesmo, contraditório. 0 primeiro passo rumo à filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos, não a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente, mas para substituí-lo por uma aperfeiçoada espécie de conhecimento que será experimental, precisa e autoconsistente. Naturalmente, desejamos atribuir outra qualidade ao nosso conhecimento : a compreensão. Desejamos que a área de nosso conhecimento seja a mais ampla possível. Isto, no entanto, é mais da competência da ciência que da filosofia. Um homem não vem a ser necessariamente melhor filósofo graças ao conhecimento de maior número de fatos científicos; são os princípios e métodos, e as concepções gerais, que ele deva apreender da ciência, caso a filosofia seja matéria de seu interesse. A missão do filósofo é, a bem dizer, a segunda natureza do fato  bruto. A ciência tenta agrupar fatos por meio de leis científicas; estas leis, mais que os fatos originais, são a matéria-prima da filosofia. A filosofia envolve uma crítica, do conhecimento científico, não de um ponto de vista em tudo diferente do da ciência, mas de um ponto de vista menos preocupado com detalhes e mais comprometido com a harmonia do corpo genérico das ciências especiais.  As ciências especiais desenvolveram-se pelo uso de noções derivadas do senso comum, tais como coisas e suas qualidades, espaço, tempo e causalidade. A própria ciência tem demonstrado que nenhuma dessas noções baseadas no senso comum presta-se completamente à explicação do mundo; nenhuma ciência tem atribuição de empreender a necessária reconstrução de fundamentos. Isto deve ser matéria da filosofia. Quero dizer, desde logo, que acredito ser este um empreendimento da maior importância. Acredito que os erros filosóficos nas crenças do bom senso não somente produzem confusão na ciência, como também prejudicam a ética e a política, em instituições sociais, e a conduta de todos na vida diária.   Não faz parte de meu mister, neste volume, apontar os efeitos práticos de uma má filosofia : minha missão será puramente intelectual. Mas, se estou certo, as aventuras intelectuais já, empreendidas têm efeitos em muitos rumos que parecem, à primeira Página 1 de 6 22/4/2005 ebook:russell2.html

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Russell

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  • Dvidas Filosficas

    por

    Bertrand Russell (1872-1970)

    Verso para ebook de Agapito Ribeiro Jnior

    [email protected]

    Bertrand Russell

    Talvez fosse de se esperar que eu comeasse pela definio de "filosofia", mas, certo ou errado, no me proponho a tal. A definio de "filosofia" variar segundo a filosofia que adotarmos; para comear, diremos apenas que h certos problemas, julgados interessantes por certas pessoas, mas que no pertencem, pelo menos at agora, a qualquer uma das cincias especiais. Esses problemas so de molde a levantar dvidas a respeito do que comumente se entende por conhecimento; e se as dvidas requerem resposta, esta vir unicamente por meio de um estudo especial, a que denominamos "filosofia." Portanto, o primeiro passo para definir "filosofia" est na indicao de tais problemas e dvidas - e ser tambm o primeiro passo no verdadeiro estudo da filosofia. Entre os tradicionais problemas da filosofia, h alguns que no parecem merecer, em minha opinio, tratamento intelectual, por transcenderem nossa capacidade cognitiva; desses problemas no cuidarei. Existem outros, porm, para os quais, embora no seja possvel encontrar-se soluo definitiva neste momento, pode-se indicar o rumo para uma busca de soluo, e o tipo de soluo que, em tempo oportuno, venha a se revelar possvel.

    A filosofia origina-se de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por conhecimento, na vida comum, padece de trs defeitos : convencido, incerto e, em si mesmo, contraditrio. 0 primeiro passo rumo filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos, no a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente, mas para substitu-lo por uma aperfeioada espcie de conhecimento que ser experimental, precisa e autoconsistente. Naturalmente, desejamos atribuir outra qualidade ao nosso conhecimento : a compreenso. Desejamos que a rea de nosso conhecimento seja a mais ampla possvel. Isto, no entanto, mais da competncia da cincia que da filosofia. Um homem no vem a ser necessariamente melhor filsofo graas ao conhecimento de maior nmero de fatos cientficos; so os princpios e mtodos, e as concepes gerais, que ele deva apreender da cincia, caso a filosofia seja matria de seu interesse. A misso do filsofo , a bem dizer, a segunda natureza do fato bruto. A cincia tenta agrupar fatos por meio de leis cientficas; estas leis, mais que os fatos originais, so a matria-prima da filosofia. A filosofia envolve uma crtica, do conhecimento cientfico, no de um ponto de vista em tudo diferente do da cincia, mas de um ponto de vista menos preocupado com detalhes e mais comprometido com a harmonia do corpo genrico das cincias especiais.

    As cincias especiais desenvolveram-se pelo uso de noes derivadas do senso comum, tais como coisas e suas qualidades, espao, tempo e causalidade. A prpria cincia tem demonstrado que nenhuma dessas noes baseadas no senso comum presta-se completamente explicao do mundo; nenhuma cincia tem atribuio de empreender a necessria reconstruo de fundamentos. Isto deve ser matria da filosofia. Quero dizer, desde logo, que acredito ser este um empreendimento da maior importncia. Acredito que os erros filosficos nas crenas do bom senso no somente produzem confuso na cincia, como tambm prejudicam a tica e a poltica, em instituies sociais, e a conduta de todos na vida diria.

    No faz parte de meu mister, neste volume, apontar os efeitos prticos de uma m filosofia : minha misso ser puramente intelectual. Mas, se estou certo, as aventuras intelectuais j, empreendidas tm efeitos em muitos rumos que parecem, primeira

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  • vista, bastante remotos em relao ao nosso tema. 0 efeito de nossas paixes em nossas crenas constitui assunto favorito dos psiclogos modernos; porm o efeito inverso, de nossas crenas sobre nossas paixes, tambm existe, embora no admitido por uma psicologia intelectualista antiquada. Ainda que eu no pretenda discuti-lo aqui, devemos t-lo em mente, a fim de convir que nossos debates podem abranger matrias alm da esfera ao intelecto puro.

    Mencionei h pouco trs defeitos das crenas comuns, a saber, que elas so convencidas, incertas e, em si mesmas, contraditrias. tarefa da filosofia corrigir esses defeitos na medida de suas possibilidades, sem sobrecarregar o conhecimento. Para ser um bom filsofo deve-se ter o desejo forte de saber, combinado grande cautela em acreditar que se sabe; tambm se deve possuir a acuidade lgica e o hbito do pensamento exato. Tudo isso, claro, uma questo de grau. A incerteza, em particular, pertence, at certo ponto, ao pensamento humano; podemos reduzi-la indefinidamente, embora jamais possamos aboli-la por completo. Em conseqncia, a filosofia uma atividade contnua, e no uma coisa pela qual podemos conseguir a perfeio final, de uma vez por todas. A este respeito, a filosofia tem sofrido por causa de sua associao teologia. Os dogmas teolgicos so fixos e encarados pelos ortodoxos como incapazes de aperfeioamento. Filsofos tm sido tentados com freqncia a produzir sistemas finais idnticos: no se contentam com aproximaes graduais que satisfaam os homens de cincia. Nisso, eles me parecem enganados. A filosofia deve ser fragmentada e provisria como a cincia; a verdade derradeira pertence aos cus, no a este mundo.

    Os trs defeitos que mencionei so interligados, e a percepo de um nos leva a reconhecer os outros dois. Ilustrarei os trs atravs de uns poucos exemplos.

    Tomemos, em primeiro lugar, a crena em objetos comuns, quais sejam mesas, cadeiras rvores. Todos ns nos sentimos bastante seguros acerca desses objetos na vida comum, e no entanto nossas razes de confiana so, em verdade, muito inadequadas. 0 ingnuo senso comum supe serem eles o que aparentam, embora isto seja impossvel, uma vez que no parecem exatamente iguais a dois observadores simultneos. Pelo menos isso impossvel se o objeto uma coisa fsica, a mesma para todos os observadores. Se admitirmos no ser o objeto aquilo que vemos, ento j no podemos sentir a mesma segurana quanto existncia de um objeto. Esta a primeira intromisso da dvida. No entanto, podemos nos recobrar de imediato do golpe e dizer que, naturalmente, o objeto "realmente" o que a fsica diz que ele .l Ora, a fsica diz que uma mesa ou uma cadeira "realmente" um vasto e incrvel sistema de eltrons e prtons em rpida movimentao, com espaos vazios entre si. Tudo isso est muito bem. Mas o fsico, como o homem comum, depende de seus sentidos para a existncia do mundo fsico. Se o abordarmos, solenemente, e dissermos : "Quer ter a bondade de me dizer, como fsico, o que , em realidade, uma cadeira?", obteremos uma resposta conhecida. Mas se dissermos, sem prembulos : "H uma cadeira aqui?", ele dir : "Claro que sim. No a v?" A isso, poderemos responder de forma negativa. Poderemos dizer: "No, eu vejo certas extenses de cor, mas no vejo eltrons e prtons, embora o senhor me garanta que eles formam uma cadeira." Ele talvez replique : "Sim, mas uma quantidade de eltrons e prtons intimamente unidos assemelha-se a uma extenso de cor." "Que pretende dizer com 'assemelha-se'?", perguntaremos ento. Ele tem a resposta pronta, Dir que as ondas de luz partem dos eltrons e prtons (ou, mais provavelmente, so refletidas por eles a partir de uma fonte luminosa) , atingem o olho, produzem uma srie de efeitos nos bastonetes e cones, no nervo tico e no crebro, e finalmente causam uma sensao. Mas ele nunca viu um olho ou um nervo tico ou um crebro, da mesma forma que jamais viu uma cadeira : apenas viu extenses de cor que, segundo diz, so o que "se assemelham" aos olhos. Isto , ele pensa que a sensao que temos ao ver (assim pensamos) uma cadeira envolve uma srie de causas, fsicas e psicolgicas, mas todas elas, por sua prpria observao, vinculadas essencialmente e para sempre experincia externa. Todavia, ele pretende basear sua cincia na observao. bvio haver aqui um problema para o lgico, um problema pertencente no fsica, mas a outra espcie de estudo. Este o primeiro exemplo da maneira pela qual a busca de preciso destri a certeza.

    0 fsico cr inferir os eltrons e prtons do que observa. Mas a inferncia nunca est claramente disposta. em cadeia lgica, e, se estivesse, no pareceria assaz plausvel para garantir muita confiana. Na verdade, a evoluo global dos objetos, desde o senso comum aos eltrons e prtons, tem sido governada por certas crenas, raramente conscientes, mas que existem no homem natural. Estas crenas no so inalterveis, porm crescem e se desenvolvem como uma rvore. Comeamos por pensar que uma cadeira o que aparenta, e que ainda continua no mesmo lugar, quando no a olhamos. Mas descobrimos, mediante pequena reflexo, que estas duas crenas so incompatveis. Se a cadeira persiste, independentemente de ser vista por ns, ento deve ser algo mais que uma mancha de cor o que vemos, porque isso depender de condies extrnsecas cadeira, tais como as, diferenas de luz, se estamos de culos azuis, e assim por diante. Isso fora o homem de cincia a considerar a cadeira "real" como causa (ou parte indispensvel da causa) de nossas sensaes quando vemos a cadeira. Assim estamos comprometidos com a causao como uma crena a priori sem a qual no teramos razo de supor que existe absolutamente uma cadeira "real". Ademais, em vista da permanncia, ns introduzimos a noo de substncia : a cadeira "real" uma substncia, ou coleo de substncias, possuda de permanncia e do poder de provocar sensaes. Esta crena metafsica tem afetado, de forma mais ou menos inconsciente, a inferncia de sensaes para eltrons e prtons. 0 filsofo deve trazer tais crenas luz do dia, e ver se ainda sobrevivem. Muitas vezes descobrir que elas morrem quando expostas.

    Passemos agora a outro ponto. A evidncia de uma lei fsica, ou de qualquer lei cientfica, envolve sempre memria e testemunho. Temos de confiar no que nos lembramos ter observado em ocasies anteriores, e no que os outros dizem ter observado. Nos primrdios da cincia talvez fosse possvel dispensar, s vezes, o testemunho; no tardaria muito, porm, e todas as investigaes cientficas comeariam a ser construdas sobre resultados previamente checados, e a dependerem, por conseguinte, do que outros haviam registrado. De fato, sem a corroborao do testemunho dificilmente teramos maior confiana na existncia de objetos fsicos. s vezes pessoas sofrem alucinaes, isto , julgam perceber objetos fsicos, mas no so confirmadas, nessa crena, pelo testemunho de outras. Em tais casos, decidimos que elas esto enganadas. a similaridade entre as percepes de pessoas diferentes em situaes idnticas que nos torna confiantes quanto causao externa de nossas percepes; quanto a isso,

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  • quaisquer crenas ingnuas que tenhamos em objetos fsicos dissiparam-se h muito tempo. Em conseqncia, memria e testemunho so essenciais cincia. Todavia, cada um deles est aberto crtica do ctico. Ainda que possamos, mais ou menos, desfazer sua crtica, ficaremos, se formos racionais, com uma confiana menos completa em nossas crenas originais do que antes tnhamos. Uma vez mais, ficaremos menos convencidos medida que nos aproximamos da exatido.

    Memria e testemunho nos levam esfera da psicologia. Eu no os discutiria, a essa altura, alm do ponto em que se tornou claro que eles constituem legtimos problemas filosficos a serem resolvidos. Comearei pela memria.

    Memria uma palavra com vrios significados. No momento refiro-me recordao de ocorrncias passadas. Isto to notoriamente falvel que todo o experimentador faz um registro do resultado de seu experimento no instante mais imediato possvel: julga que a inferncia entre palavras escritas e acontecimentos passados tem menor probabilidade de conter engano do que as crenas diretas que constituem a memria. No entanto, uma frao de tempo, embora talvez inferior a poucos segundos, decorrer entre a observao e o registro, a menos que o registro seja to fragmentrio que a memria se faa necessria para interpret-lo. Assim, no escapamos necessidade de confiar, at certo ponto, na memria. Alm disso, sem memria no pensaramos em interpretar registros aplicados ao passado, porque no saberamos da existncia de um passado. Deixando de lado os argumentos destinados a provar a falibilidade da memria, h uma considerao embaraosa que o ctico poder opor. J que a recordao, como foi visto, no possvel - dir ele ela prova, ento, que a coisa lembrada ocorreu em outro tempo, porque o mundo pode ter emergido cinco minutos atrs, exatamente como ele foi, cheio de atos de recordao que eram inteiramente ilusrios. Oponentes de Darwin, tais como o pai de Edmund Gosse, levantaram argumento bem parecido contra a evoluo. 0 mundo, disseram, foi criado em 4004 a.C., com fsseis introduzidos para tentar nossa f. 0 mundo foi criado de repente, mas de tal maneira como se fruto de longa evoluo. No h impossibilidade lgica a esta opinio. E, igualmente, no h impossibilidade lgica opinio segundo a qual o mundo foi criado cinco minutos atrs, cheio de memrias e registros. Talvez parea uma hiptese improvvel, mas no refutvel logicamente.

    Alm desse argumento, que seria considerado fantstico, h motivos de sobra para a relativa desconfiana na memria. bvio que a confirmao direta de uma crena sobre uma ocorrncia passada no possvel, porque no temos acesso ao passado. Podemos encontrar confirmao de uma espcie indireta nas revelaes de terceiros nos arquivos contemporneos. Estes, conforme vimos, envolvem certo grau de memria, mas talvez envolvam muito pouco; por exemplo, quando o relato, em primeira mo, de uma conversa ou discurso foi feito na ocasio. Mesmo assim, no escapamos inteiramente necessidade de estender a memria a um espao mais longo de tempo. Suponhamos uma conversa de todo imaginria, com algum propsito criminoso; dependeramos, ento, das memrias de testemunhas, a fim de estabelecer seu carter fictcio num tribunal. E a memria que abrange longo perodo de tempo est muito propensa a erro, segundo demonstrado pelos equvocos invariavelmente descobertos em autobiografias. Quem reler cartas que escreveu muitos anos atrs verificar a maneira coma sua memria falsificou acontecimentos pretritos. Por estes motivos, o fato de no podermos nos libertar da dependncia da memria para construir o conhecimento , prima facie, uma razo para considerar o que chamamos de conhecimento como algo incerto. 0 tema genrico da memria ser considerado mais cuidadosamente em captulos subseqentes.

    0 testemunho levanta problemas ainda mais embaraosos, principalmente por ele participar da formao de nosso conhecimento de fsica, e, inversamente, a fsica ser convocada a estabelecer a veracidade dele. Alm disso, o testemunho denuncia todos os problemas ligados relao do esprito com a matria, Alguns filsofos eminentes, como Leibniz, construram sistemas segundo os quais no haveria testemunho, e no entanto aceitaram como verdadeiras muitas coisas que no poderiam ser conhecidas sem ele. No creio que a filosofia tenha feito justia a este problema, porm umas poucas palavras bastaro, segundo penso, para mostrar sua gravidade.

    Para nossos objetivos, podemos definir por testemunho os rudos que se ouvem, ou formas que se vem, anlogos aos que faramos se desejssemos transmitir uma afirmao, e que o ouvinte ou observador acredita serem causados pelo desejo de outra pessoa de transmitir uma afirmao. Vamos a um exemplo concreto : pergunto 0 caminho a um policial e ele diz : "Quarta direita, terceira esquerda." Melhor dizendo, eu ouo esses sons, e talvez veja o que interpreto como o movimento de seus lbios. Concluo que ele tem uma inteligncia mais ou menos igual minha, e que emitiu aqueles sons com a mesma inteno que eu os teria emitido, isto , para dar uma informao. Na vida ordinria, isso no constitui, em qualquer sentido adequado, uma interferncia; uma crena que assoma em ns na ocasio apropriada. Mas, se desafiados, temos de substituir a inferncia pela crena espontnea, e quanto mais examinada, mais a inferncia se mostra incerta.

    A inferncia a ser feita tem duas etapas, uma fsica e uma psicolgica. A inferncia fsica do gnero que consideramos anteriormente, no qual passamos de uma sensao para uma ocorrncia fsica. Ouvimos rudos e pensamos que eles procedem do corpo do policial. Vemos formas movendo-se, e as interpretamos como sendo os movimentos fsicos de seus lbios. Esta inferncia, como j vimos, em parte justificada pelo testemunho; contudo, verificamos agora que ela ter de ser feita antes que tenhamos razes para crer na existncia de algo como 0 testemunho. E essa inferncia, s vezes, est errada. Loucos ouvem vozes que ningum mais escuta; em vez de criar-lhes uma audio anormalmente aguda, ns os prendemos em asilos. Mas se ns mesmos, ocasionalmente, ouvimos frases que no procedem de um corpo, por que no se daria, ento, o mesmo caso? Talvez nossa imaginao tenha conjurado todas as coisas que pensamos ouvir dos outros. Isto, porm, parte do problema geral de inferir objetos fsicos de sensaes, o qual, difcil como parea, no constitui a parte mais difcil dos enigmas lgicos relativos ao testemunho. A mais difcil , a inferncia do corpo do policial para sua mente. No pretendo A insultar os policiais; diria o mesmo dos polticos, e at dos filsofos.

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  • A inferncia da mente do policial certamente pode estar errada. Est claro que um fabricante de objetos de cera seria capaz de fazer um boneco quase idntico a um policial de carne e osso, e dentro pr um gramofone que o habilitaria, periodicamente, a informar os visitantes de uma feira onde monta guarda sobre o caminho at a seo mais interessante. 0s visitantes teriam a mesma evidncia de seu estar vivo que encontrariam diante de outros policiais. Descartes acreditava que os animais no tm esprito, no passando de complicados autmatos. Os materialistas do sculo XVIII estenderam esta doutrina aos homens. Mas no estou preocupado agora com o materialismo; meu problema bem diferente. At um materialista deve admitir que, quando fala, pretende transmitir alguma coisa, isto , usa palavras como signos, no como simples rudos. Talvez seja difcil decidir exatamente o que est contido nesta declarao, mas claro que ela significa algo, e que isso constitui as observaes de uma pessoa. A questo : estamos certos da realidade das observaes que ouvimos, bem como das que fazemos? Ou as observaes que ouvimos talvez no passem de outros tantos rudos, meros distrbios do ar, sem significao? 0 principal argumento contra isto a analogia, : as observaes que ouvimos so to iguais s que fazemos que julgamos terem elas causas similares. Mas embora no possamos prescindir da analogia como forma de inferncia, ela no , de maneira alguma, demonstrativa, e no raramente nos extravia. Mais uma vez, portanto, ficamos com uma razo prima facie de incerteza e dvida.

    A questo sobre o que queremos exprimir quando falamos me leva a outro problema, o da introspeco. Muitos filsofos sustentam que a introspeco tornou o conhecimento mais indubitvel; outros afirmam no existir o que se chama introspeco. Descartes, depois de tentar duvidar de tudo, chegou a esta concluso : "Penso, logo existo", como base para o conhecimento restante. 0 behaviourista Dr. John B, Watson diz, ao contrrio, que no pensamos, mas apenas falamos. Dr. Watson, na vida real, d tantas provas de pensar como qualquer outro; portanto, se ele no est convencido que pensa, estamos todos em maus lenis. De qualquer modo, a mera existncia de uma opinio como esta, da parte de um filsofo competente deve bastar para mostrar que a introspeco no to certa quanto alguns pensam. Examinemos, porm, a questo um pouco mais de perto.

    A diferena entre introspeco e o que chamamos percepo de objetos externos parece-me ligada, no com o que fundamental em nosso conhecimento, mas com o que inferido. Pensamos, de uma feita, estar vendo uma cadeira; de outra feita, pensamos acerca de filosofia. Ao primeiro caso, chamamos percepo de um objeto externo; ao segundo, chamamos introspeco. Nesse ponto j encontramos motivo para duvidar da percepo externa, no sentido vigoroso em que o senso comum a admite. Examinarei mais adiante o que h de indubitvel e de primitivo na percepo; por enquanto, anteciparei minhas concluses dizendo que o indubitvel quando se "v uma cadeira" a ocorrncia de um certo esquema de cores. Mas essa ocorrncia, segundo verificamos, est vinculada tanto a mim quanto cadeira; ningum, a no ser eu mesmo, pode ver exatamente o modelo que vejo. Existe, portanto, algo de subjetivo e particular no que entendemos por percepo externa, mas isto disfarado pelas precrias extenses no mundo fsico. Penso que a introspeco, ao contrrio, envolve extenses precrias no mundo mental: despojada dessas extenses, ela no difere muito da percepo externa despojada de seus desdobramentos. Para esclarecer melhor, tentarei mostrar o que sabemos estar ocorrendo quando, conforme foi dito, pensamos em filosofia.

    Suponha que, em conseqncia da introspeco, voc chega a uma crena expressa em palavras : "Agora acredito que o esprito diferente da matria." 0 que voc sabe, afora as inferncias, nesse caso? Primeiro de tudo, deve eliminar a palavra "Eu" : a pessoa que acredita uma inferncia, no parte do que voc pensa de imediato. Em segundo lugar, deve ter cuidado com a palavra "acredito". No estou preocupado com o que esta palavra significaria em lgica ou teoria do conhecimento; estou preocupado com o que pode significar quando usada para descrever uma experincia direta. Em semelhante caso, parece que ela s pode descrever um certo gnero de impresso. E quanto declarao de que pensa alue acredita, ou seja, "o esprito diferente da matria", muito difcil dizer o que na verdade ocorre quando voc pensa acreditar nisso. Talvez sejam meras palavras, pronunciadas, visualizadas e ouvidas, ou imagens motoras. Talvez sejam imagens do que as palavras "significam", mas, nesse caso, no seria absolutamente uma representao exata do contedo lgico da declarao. Voc pode ter a imagem de uma esttua de Newton "viajando por estranhos mares s de pensamento", e outra imagem de uma pedra rolando pela encosta, combinada com as palavras "como diferente!" Ou poder pensar na diferena entre preparar uma conferncia e comer seu jantar. Somente quando se chega a exprimir o pensamento em palavras que ocorre a aproximao com a exatido lgica.

    Na introspeco e tambm na percepo externa, tentamos exprimir o que sabemos em PALAVRAS.

    Chegamos aqui, como na questo do testemunho, ao aspecto social do conhecimento. 0 objetivo das palavras dar ao pensamento o mesmo gnero de publicidade reclamado pelos objetos fsicos. Numerosas pessoas podem ouvir uma palavra falada ou ver uma palavra escrita, porque ambas so ocorrncias fsicas. Se eu lhe digo "o esprito diferente da matria", haveria apenas leve semelhana entre o pensamento que tento exprimir e o pensamento despertado em voc, mas esses dois pensamentos tm apenas isto em comum : poderem ser expressos pelas mesmas palavras. Igualmente, haver grandes diferenas entre o que voc e eu vemos quando, por exemplo, olhamos a mesma cadeira; todavia, ambos podem exprimir nossas percepes pelas mesmas palavras.

    Um pensamento e uma, percepo no so, por conseguinte, muito diferentes em sua prpria natureza. Se a fsica est correta, eles divergem em suas correlaes : quando vejo uma cadeira, outros tm percepes mais ou menos idnticas, e acredita-se que estas percepes esto associadas s ondas de luz provenientes da cadeira, enquanto que, quando eu formulo um pensamento, outros talvez no estejam pensando em algo idntico. Mas isso se aplica tambm a uma sensao de dor de dente, o que normalmente no seria considerado um caso de introspeco. Em resumo, portanto, parece no haver razo para considerarmos a introspeco um gnero diferente de conhecimento em relao percepo externa. Mas a questo voltar a ocupar-nos outra vez em etapa posterior deste livro.

    Quanto veracidade da introspeco, h novamente um completo paralelismo com o caso da percepo externa. 0 dado

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  • verdadeiro, em cada caso, impecvel, mas as extenses que f azemos instintivamente so questionveis. Em vez de dizer "Acredito que o esprito diferente da matria", voc deveria dizer : "Certas imagens se processam com uma certa relao mtua, acompanhadas de um certo sentimento." No existem palavras para descrever a verdadeira ocorrncia em toda a sua particularidade; todas as palavras, inclusive os substantivos adequados, so genricas, com a possvel exceo de "isto"

    que ambguo. Quando voc traduz a ocorrncia em palavras, est fazendo generalizaes e inferncias, da mesma forma que quando voc diz "existe uma cadeira." No h, em verdade, diferena vital entre os dois casos. Em cada caso, inexprimvel o que viria a ser realmente um dado, e o que se pode pr em palavras envolve inferncias que estariam erradas.

    Quando digo que h "inferncias" envolvidas, estou dizendo uma coisa no suficientemente precisa, a menos que fosse cuidadosamente interpretada. Ao "ver uma cadeira", por exemplo, no apreendemos logo um esquema colorido, para em seguida inferirmos uma cadeira: a crena na cadeira surge espontaneamente ao vermos o esquema colorido. Mas esta crena tem causas no s no estmulo fsico presente, mas tambm, em parte, na experincia passada, e em parte nos reflexos. Nos animais, os reflexos desempenham parte considervel; nos seres humanos, a experincia mais importante. A criana aprende devagar a correlacionar tato e viso, e a esperar que os outros vejam o que ela v. Os hbitos que, em conseqncia, no formamos tornam-se essenciais nossa noo adulta de um objeto igual a uma cadeira. A percepo de uma cadeira por intermdio da vista tem um estmulo fsico que afeta s diretamente a viso, mas que estima idias de solidez e assim por diante, na experincia inicial. A inferncia poderia chamar-se "fisiolgica". Uma inferncia de tal natureza prova de correlaes passadas, por exemplo, entre tato e viso, mas podem estar equivocadas neste caso. Pode-se, para citar um exemplo, errar um reflexo num grande espelho para outra sala. Da mesma forma, cometemos em sonhos erros de inferncia fisiolgica. No podemos, por conseguinte, ter certeza a respeito de coisas que, neste sentido, so inferidas, porque, ao tentarmos aceitar o maior nmero possvel delas, estamos, por outro lado, compelidos a rejeitar algumas devido autoconsistncia.

    Chegamos um momento atrs ao que chamei "inferncia fisiolgica" como ingrediente essencial na noo elo senso comum de um objeto fsico. A inferncia fisiolgica, em sua forma mais simples, significa isto : dado um estmulo S, para o qual, mediante um reflexo, reagimos por um movimento corporal R, e um estmulo S' como uma reao R', se os dois estmulos so freqentemente experimentados em conjunto, S produzir, com o tempo, R'.2 0 que vale dizer, o corpo agir como se S' estivesse presente. A inferncia fisiolgica importante na teoria do conhecimento, e terei observaes a acrescentar mais adiante. Por enquanto, mencionei-a parcialmente para evitar que ela fosse confundida com a inferncia lgica, e tambm a fim de introduzir o problema da induo, sobre a qual devemos dizer algumas palavras preliminares nesta fase de nossa exposio.

    A induo prope talvez o mais difcil problema em toda a teoria do conhecimento. Toda lei cientfica estabelecida por seu intermdio, e no entanto difcil ver porque a julgaramos um processo lgico vlido. A induo, em seu fundamento, consiste do seguinte argumento : j que A e B tm sido encontrados juntos muitas vezes, e jamais separados, quando A for encontrado outra vez, B provavelmente o ser tambm. Isto ocorre, primeiro, como "inferncia fisiolgica", e como tal praticado por animais. Quando comeamos a refletir, ns nos descobrimos a fazer indues no sentido fisiolgico; por exemplo, espera de que o alimento que vemos possua um certo gosto. Com freqncia: s nos damos conta dessa expectativa quando ela nos desaponta., isto , se provamos sal julgando ser acar. Ao abraar a cincia, a humanidade tentou formular princpios lgicos justificadores desse gnero de inferncia. Discutirei tais tentativas em captulos posteriores; agora, direi apenas que elas me parecem assaz infrutferas. Estou convencido de que a induo deve ter alguma validade, at certo grau, mas o problema de mostrar como ou por que ela pode ser vlida continua insolvel. Enquanto isso no for resolvido, o homem racional duvidar se o alimento o nutrir, e se o Sol se erguer amanh. No sou um homem racional nesse sentido, mas, neste momento, pretenderia ser. E mesmo que no possamos ser completamente racionais, faramos o possvel, sem dvida alguma, para sermos mais racionais do que somos. Na pior das hipteses seria uma aventura interessante ver at onde a razo nos conduzir.

    Nenhum dos problemas que levantamos so novos, bastam para indicar que nossas opinies cotidianas sobre o mundo e nossas relaes com ele so insatisfatrias. Estivemos a indagar se conhecemos isto ou aquilo, mas ainda no perguntamos o que "conhecer". Talvez descobrssemos ter idias erradas a respeito do conhecimento, e que nossas dificuldades crescem menos quando dispomos, neste particular, de idias mais corretas. Penso que deveramos iniciar nossa jornada filosfica pela tentativa de compreender o conhecimento como parte da relao do homem com sua ambincia, esquecendo, por enquanto, as dvidas fundamentais que estivemos a considerar. Talvez a cincia moderna nos capacite a ver problemas filosficos sob uma nova luz. Nessa esperana, vamos examinar a relao do homem com o seu meio, com o intuito de chegar a uma viso cientifica do que constitui o conhecimento.

    Notas

    1 No estou pensando, aqui, na fsica elementar a ser encontrada num compndio escolar. Penso na moderna fsica terica, mais particularmente em relao estrutura do tomo, sobre a qual terei outras coisas a dizer em captulos posteriores.

    2 Por exemplo se voc ouve um rudo agudo e v, simultaneamente, uma luz brilhante, com o tempo o rudo sem a luz contrair, suas pupilas.

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  • In Russell, B. (1977): Fundamentos de Filosofia, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 7-20.

    Opdateret d. 9.2.2001Opdateret d. 9.2.2001

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