2014. VIDAL, Fabiano. Em Torno Do Nosso Lar -Uma Analise Das Controversias Produzidas No Movimento...

100
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES EM TORNO DO NOSSO LAR: UMA ANÁLISE DAS CONTROVÉRSIAS PRODUZIDAS NO MOVIMENTO ESPÍRITA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências das Religiões como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências das Religiões por FABIANO CESAR DE MENDONÇA VIDAL. Orientadora: Profª. Drª. Dilaine Soares Sampaio Co-orientadora: Profª. Drª. Iracilda Cavalcante de Freitas Gonçalves. JOÃO PESSOA-PB 2014

description

.Nosso Lar

Transcript of 2014. VIDAL, Fabiano. Em Torno Do Nosso Lar -Uma Analise Das Controversias Produzidas No Movimento...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

    CENTRO DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DAS RELIGIES

    EM TORNO DO NOSSO LAR:

    UMA ANLISE DAS CONTROVRSIAS PRODUZIDAS NO MOVIMENTO ESPRITA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias das Religies como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias das Religies por FABIANO CESAR DE MENDONA VIDAL. Orientadora: Prof. Dr. Dilaine Soares Sampaio Co-orientadora: Prof. Dr. Iracilda Cavalcante de Freitas Gonalves.

    JOO PESSOA-PB

    2014

  • V648e Vidal, Fabiano Cesar de Mendona.

    Em torno do Nosso Lar: uma anlise das

    controvrsias produzidas no movimento esprita /

    Fabiano Cesar de Mendona Vidal.-- Joo Pessoa, 2014.

    99f. : il.

    Orientadora: Dilaine Soares Sampaio

    Coorientadora: Iracilda Cavalcante de Freitas

    Gonalves

    Dissertao (Mestrado) - UFPB/CE

    1. Cincias das religies. 2. Espiritismo. 3. Nosso

    Lar - controvrsias.

    UFPB/BC CDU: 279.224(043)

  • Dedico este trabalho minha famlia, em

    especial aos meus desencarnados

    queridos: Vicente Ferrer de Mendona,

    Dalva Pessoa de Mendona, Francisco de

    Assis Vidal e Julieta Pinto Vidal (in

    memoriam).

  • AGRADECIMENTOS

    Clara Betania de Souza e Maria do Carmo F. Beleza, do arquivo de obras raras da

    Federao Esprita Brasileira (FEB), que gentilmente disponibilizaram, em formato digital,

    edies raras de Reformador, alm da Resenha Histrica Cronolgica do livro Nosso Lar.

    CAPES pela bolsa de estudos obtida durante todo o perodo do Mestrado, e sem a qual no

    teria sido possvel a concretizao deste trabalho, que implicou em diversas leituras de

    variadas fontes de pesquisa.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Cincias das Religies da Universidade Federal da

    Paraba e toda sua equipe de professores, em especial Maria Lcia Abaurre, Iracilda

    Gonalves e Dilaine Soares Sampaio, grandes incentivadoras do presente trabalho.

    LIHPE Liga de Pesquisadores do Espiritismo, pela sugesto de leituras que em muito

    enriqueceram o contedo deste trabalho.

    Associao de Divulgadores do Espiritismo do Rio de Janeiro (ADE-RJ), cujo presidente

    Sergio Fernandes Aleixo foi de fundamental importncia para uma melhor compreenso dos

    embates doutrinrios que se fazem presentes no movimento esprita brasileiro.

    Aos amigos Anderson Santiago, Artur Felipe Ferreira, Davidson Mangueira, Edileide

    Bezerra, Joo Arnaldo Nunes, Maria das Graas Cabral, Maria Ribeiro, Magali Fernandes

    Oliveira, Nivia Rosa, Rose Ribas, Snia Cristina Pinto e Karla Sousa pelo interesse e apoio

    demonstrados.

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................06

    1. CONTEXTUALIZANDO O NOSSO LAR: O ESPIRITISMO NO BRASIL..............08

    1.1 A imortalidade e o ps-morte no Espiritismo.....................................................................17

    1.2 Nosso Lar: da obra medinica s telas do cinema..............................................................22

    1.3 Nosso Lar: o filme .............................................................................................................38

    2. NOSSO LAR E O MOVIMENTO ESPRITA: DISCURSOS TRANSVERSOS............42

    2.1 O discurso de Jean Baptiste Roustaing...............................................................................46

    2.2 O discurso de Emanuel Swedenborg .................................................................................63

    2.3 O discurso de contemporneos ..........................................................................................68

    2.4 As controvrsias em torno do Nosso Lar nos discursos de grupos espritas no

    Facebook..................................................................................................................... ..............73

    3. O NOSSO LAR E O DISCURSO KARDEQUIANO: MAPEANDO AS

    CONTROVRSIAS ............................................................................................................ ...79

    3.1 Consideraes finais...........................................................................................................87

    REFERNCIAS.......................................................................................................................90

  • RESUMO

    O presente trabalho possui um olhar histrico-antropolgico, de carter essencialmente

    bibliogrfico, e tem por inteno abordar as controvrsias existentes no Movimento Esprita

    entre a obra de Allan Kardec e Nosso Lar, obra de Francisco Cndido Xavier cujo autor

    espiritual Andr Luiz. Pretendendo recuperar as controvrsias que se estabeleceram no

    momento do surgimento da obra, foram utilizadas edies de Reformador, uma das principais

    e mais antigas publicaes espritas no Brasil. Para demonstrar a atualidade da temtica,

    foram tambm analisadas as controvrsias presentes em grupos espritas no Facebook que

    envolvem o Nosso Lar. O trabalho, ao tomar como inspirao as ideias de Bruno Latour

    acerca das controvrsias, rastreia os atores que possibilitaram, em nosso entendimento, uma

    reelaborao original do Espiritismo kardecista no Brasil. Embora as obras de Allan Kardec

    sejam utilizadas como base doutrinria, seus princpios sero revisitados por Bezerra de

    Menezes e Chico Xavier, cujos trabalhos sero fundamentais na origem de um espiritismo

    brasileira conforme as ideias defendidas por Sandra Jacqueline Stoll.

    Palavras chave: Espiritismo, controvrsias, Nosso Lar.

  • ABSTRACT

    The present work has a historical-anthropological perspective, it is essentially bibliographical

    and intends to address the existing controversies in the Spiritist Movement between Allan

    Kardecs books and Francisco Cndido Xaviers book, Nosso Lar (Our Home, in

    English), whose spiritual author is Andr Luiz. As we retrieved such controversies that were

    present since the time Our Home was published, many issues of the magazine

    Reformador were consulted once it is one of the oldest and most important Spiritist

    publications in Brazil. In order to demonstrate the relevance of the subject, we also analyzed

    the controversies within some spiritist groups on Facebook that involve the book Nosso

    Lar (Our Home). This study, when using some of Bruno Latours ideas about

    controversies, investigates the actors that enabled, in our view, an original re-elaboration work

    of Kardecist Spiritism in Brazil. Although Allan Kardecs books are used as the doctrinal

    basis, their principles were revisited by Bezerra de Menezes and Chico Xavier, whose works

    were essential in the origin of a Brazilian Spiritism, according to the ideas defended by

    Sandra Jacqueline Stoll.

    Keywords: Spiritism, controversies, Our Home.

  • 6

    1. INTRODUO

    H cerca de seis anos decidi conhecer mais profundamente a doutrina esprita

    elaborada por Allan Kardec, pois considerava seu contedo doutrinrio divulgado pela

    mdia e imprensa escrita algo um tanto vago. A leitura das obras kardequianas despertou

    meu interesse pelo tema, e dei continuidade a estas com a obra Nosso Lar, romance

    medinico psicografado pelo mdium Francisco Cndido Xavier, de autoria atribuda ao

    esprito Andr Luiz.

    Despertou-me a ateno em Nosso Lar teses que no se encontravam nas obras de

    Kardec. Decidi, ento, me aprofundar ainda mais nas leituras acerca do Espiritismo, e

    encontrei, para minha surpresa, vrias controvrsias a respeito de temas que poderiam, ou

    no, serem aceitas como verdades doutrinrias espritas.

    A partir dessa constatao, nasceu a ideia de estudar esse jogo de vozes existente no

    movimento esprita, com o objetivo de compreender suas razes e como essas

    controvrsias ajudaram a moldar o espiritismo brasileira como o conhecemos hoje.

    Com essa finalidade, este trabalho se prope a discutir as controvrsias existentes

    entre a obra de Kardec e o Nosso Lar, de Francisco Cndido Xavier, tomando por

    inspirao o conceito de controvrsia de Bruno Latour (2012) e utilizando a metodologia

    de anlise do discurso de Michel Foucault (2011) para compreender a produo do

    discurso da doutrina, seus modos de legitimao e rejeio.

    Para atingir esse objetivo, foi realizada uma seleo de obras de autores espritas e

    acadmicos, a fim de nos aprofundarmos no discurso produzido pelos adeptos do

    Espiritismo e de seus autores espirituais, em nosso caso, Andr Luiz, sujeito-narrador da

    colnia espiritual Nosso Lar. Portanto, foi-nos necessrio estudar, alm das obras de Allan

    Kardec e Andr Luiz, autores reconhecidos como de renome no movimento esprita, a

    exemplo de Jos Herculano Pires, Sergio Fernandes Aleixo, Heigorina Cunha, Nazareno

    Tourinho, Krishnamurti Carvalho Dias, Marlene Nobre e Suely Caldas Schubert, que no

    s discutiram a temtica das colnias espirituais, como demais assuntos a ela relacionados.

    Dentre os acadmicos, destacamos Emerson Giumbelli, Clia da Graa Arribas, Fbio Luiz

    da Silva, Iracilda Cavalcanti de Freitas e Maria ngela Vilhena.

    Nesse levantamento, foi realizada pesquisa tambm na internet, com o intuito de

    perceber a vivacidade ou no da temtica abordada, em funo da necessidade de

    confirmar a hiptese de que a discusso em torno do Nosso Lar pelos espritas encontrava-

  • 7

    se viva. Deparamo-nos, pois, com a realidade de que as controvrsias entre as obras de

    Allan Kardec e o Nosso Lar, de Andr Luiz, assim como a produo de discursos a ela

    relacionados, encontra-se quase que em tempo real na internet, onde a localizamos com

    relativa facilidade em redes sociais no Facebook, em blogs e at mesmo em vdeos no

    Youtube, fato que, em nossa viso, comprova a atualidade e a vivacidade do objeto de

    estudo desta pesquisa. Desse modo, entendo que ela pode dar sua parcela de contribuio

    no entendimento da produo destes discursos atravs das controvrsias produzidas pelo

    movimento esprita, geralmente dividida entre os adeptos mais tendentes ao movimento

    religioso (e que comumente so denominados de msticos) e aqueles mais identificados

    com a dita face cientfica da doutrina esprita (tambm identificados como ortodoxos).

    No que se refere estruturao do trabalho, no primeiro captulo abordo a chegada

    do Espiritismo no Brasil, a perseguio nova doutrina pela Igreja Catlica e o esforo

    empreendido por adeptos como Luiz Olympio Telles de Menezes, Bezerra de Menezes e

    Chico Xavier para legitimar a doutrina kardecista em seu carter religioso. Discuto ainda

    os conceitos de imortalidade e ps-morte conforme entendido pelo kardecismo e a

    trajetria de sucesso do livro Nosso Lar, lanado na dcada de 1940 at a sua verso

    cinematogrfica na dcada de 2000.

    No segundo captulo abordo os discursos transversos do movimento esprita a partir

    do Nosso Lar, assim como a influncia de autores como Emanuel Swedenborg e Jean

    Baptiste Roustaing, este ltimo contemporneo de Allan Kardec, nas teses apresentadas

    pelo autor espiritual Andr Luiz no best seller de Chico Xavier. Analiso ainda a construo

    de discursos empreendidos pela Federao Esprita Brasileira e adeptos favorveis ou

    contrrios s teses apresentadas na obra Nosso Lar.

    No terceiro captulo trato, com mais nfase, das controvrsias existentes no

    movimento esprita brasileiro a partir do Nosso Lar, realizando a cartografia das

    controvrsias seguindo o modelo de Bruno Latour (2012). Com esse intuito, selecionamos

    duas temticas causadoras de grandes debates entre os adeptos do Espiritismo: a existncia

    das colnias espirituais e as necessidades e sofrimentos dos espritos na vida ps-morte.

    Em seguida tecemos as consideraes finais buscando demonstrar que os atores

    envolvidos nas controvrsias que permeiam o movimento esprita brasileiro ajudaram a

    moldar um Espiritismo brasileira conforme as ideias de Sandra Jacqueline Stoll (2003).

  • 8

    1. CONTEXTUALIZANDO O NOSSO LAR: O ESPIRITISMO NO BRASIL

    No pretendo, neste trabalho, reapresentar a histria do Espiritismo em seus pormenores,

    pois considero que esta temtica j foi devidamente abordada tanto por autores acadmicos como

    Aubre & Laplantine (1990) e Emerson Giumbelli (1997) quanto por adeptos como Arthur

    Conan Doyle (1995) e Dalmo Duque dos Santos (2010) 1

    . Desta forma, abordarei aqui apenas o

    que concernente ao objeto de estudo.

    Prandi (2012) ressalta que, anterior a Allan Kardec, a possibilidade de comunicao com

    os espritos prosperavam mundo afora durante o decorrer do sculo XIX, fato este que atraiu o

    interesse de variados grupos de pessoas, interessadas na experimentao cientfica desses

    fenmenos e a comprovar a existncia de vida aps a morte (PRANDI, 2012, p.21). Um dos

    fatos mais importantes ocorridos neste perodo foram as experincias vividas pela famlia Fox

    em Hydesville, Estados Unidos, no ano de 1848. As filhas do casal John D. Fox e Margareth

    Fox, Katherine, de onze anos, e Margaret, de catorze, se tornaram protagonistas de um episdio

    tido por Prandi como o incio do espiritismo (PRANDI, 2012, p.21), embora ainda estivesse

    distante deste ter um corpo doutrinrio constitudo. Os fenmenos presenciados pela famlia Fox

    consistiam de vibraes, pancadas no assoalho, coisas que deslizavam e raspavam, sem nenhum

    motivo aparente (COELHO, 1982, p.81).

    De acordo com o relato de Conan Doyle (1995), foi na noite de 31 de maro de 1848 que

    Kate Fox desafiou a fora invisvel a repetir as batidas que ela dava com os dedos (DOYLE,

    1995, p.75), tendo sua provocao imediatamente respondida na forma de golpes. No tardou

    para que a notcia se espalhasse e uma comisso de investigao foi organizada para um jogo de

    perguntas e respostas com a inteligncia invisvel. Obtiveram as informaes de que a

    inteligncia que se manifestava era um esprito de algum assassinado naquela residncia, aos

    trinta e um anos de idade por motivos relacionados a dinheiro, e cujo corpo fora enterrado numa

    adega. O alegado esprito comunicante tambm revelara o nome de seu assassino (DOYLE,

    1995, p.76).

    Na concepo de Dalmo Duque dos Santos (2010),

    Os seres de Hydesville eram espritos, seres inteligentes que estavam invadindo

    a Terra com a clara inteno de causar espanto e curiosidade. A estratgia deles

    era mexer com a imaginao popular, causar um choque no senso comum das

    1AUBRE, Marion. A mesa, o livro e os espritos: gnese, evoluo e atualidade do movimento social esprita

    entre Frana e Brasil. GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma histria da condenao e legitimao

    do espiritismo; DOYLE, Arthur Conan. A Histria do Espiritismo; SANTOS, Dalmo Duque. Nova Histria do

    Espiritismo Dos precursores de Kardec a Chico Xavier.

  • 9

    pessoas e sacudir toda a estrutura de conhecimentos teolgicos e cientficos

    dominantes no mundo contemporneo (SANTOS, D., 2010, p.14).

    Ainda de acordo com este autor, os seres de outro mundo que se comunicavam atravs

    do fenmeno das mesas girantes, que teve como consequncia a elaborao da doutrina esprita

    ou Espiritismo na Frana, buscavam chamar a ateno para diversos assuntos pendentes h

    sculos, no campo do conhecimento filosfico e religioso (SANTOS, D., 2010, p.18). Este

    fenmeno o fato impulsionador para que Allan Kardec desse incio s suas pesquisas a respeito

    deste acontecimento, muito comum no pas, no ano de 1853, e que era considerado por grande

    parte da sociedade da poca como um entretenimento:

    O fenmeno ocorria quando pessoas se colocavam ao redor de uma mesa, em

    cima da qual punham as mos. Levantando um dos ps, a mesa dava uma pancada equivalente a uma determinada letra que servia ao esprito comunicante

    para formar palavras (VIDAL, 2013, p.12).

    Porm, apenas em 1854 que o pedagogo Hippolyte Lon Denizard Rivail ter seu

    primeiro contato com as mesas girantes, atravs de um colega da Sociedade de Magnetistas, de

    nome Fortier, ocasio em que inicia seus estudos acerca do fenmeno (KARDEC, 2003, p.15).

    Sua concluso de que as comunicaes recebidas atravs das mesas estavam muito alm do

    conhecimento social e cultural dos participantes das sesses. Foi neste perodo que afirma ter

    recebido, atravs de um esprito denominado Verdade, a revelao de que seria o responsvel

    pela codificao de uma nova doutrina. Os espritos ainda teriam lhe revelado seu nome - Allan

    Kardec - em uma encarnao anterior como druida, assinatura que, mais tarde, utilizou como

    pseudnimo no lanamento de O Livro dos Espritos, ocorrido em 18 de abril de 1857.

    A chegada da doutrina esprita no Brasil se d em consequncia das estreitas ligaes

    entre intelectuais de ambos os pases. rgos da imprensa brasileira, a exemplo de o Jornal do

    Commercio do Rio de Janeiro e o Dirio de Pernambuco de Recife, alm de O Cearense, de

    Fortaleza, do destaque sobre os fenmenos medinicos que ocorriam nos Estados Unidos e na

    Europa (ARRIBAS, 2010, p.53).

    Santos destaca que por muitas dcadas, desde sua chegada ao Brasil, o Espiritismo

    cresceu num ambiente maciamente catlico. Nesta poca, segunda metade do sculo XIX, a

    Igreja Catlica, que possua o status de religio oficial do pas, conforme estabelecido no artigo

    5 da Constituio Brasileira, encontrava-se em um momento conflituoso com o Imprio

    (SANTOS, 2004, p. 15).

  • 10

    Todavia, o mesmo artigo que dava religio catlica esse status permitia, com algumas

    restries, a possibilidade de instalao de outras religies em solo brasileiro. Assim, seus

    adeptos praticavam a sua f quase que na clandestinidade, de forma discreta, sem poder

    promov-la, atrair novos adeptos e tampouco realizar suas prticas em lugares marcados por

    qualquer tipo de identificao externa.

    Os primeiros grupos destinados ao estudo dos princpios espritas no Brasil surgem no

    Rio de Janeiro (1865) e Salvador (1873), sendo constitudos por membros da colnia francesa

    instalada na Corte, alm de integrantes das elites e classes mdias locais, dentre os quais se

    destacavam intelectuais, mdicos, engenheiros e militares (STOLL, 2003, p.49).

    O principal modo de divulgao do Espiritismo, em solo brasileiro, ocorreu atravs da

    literatura: Les temps sont arrivs, de 1860 e autoria de Casemir Lieutaud, publicado em francs e

    Echos de Alm-Tmulo, cujo lanamento ocorreu na Bahia em julho de 1869.

    Segundo Stoll, poca do lanamento destas obras, Allan Kardec ainda estava envolvido

    com alguns dos seus principais ttulos doutrinrios, que no tardaram a chegar ao Brasil,

    traduzidos para o portugus2 (STOLL, 2003, p.50). Reginaldo Prandi destaca que, poca da

    formao do Espiritismo,

    A Frana era o pas que mais servia ao Brasil como referncia cultural, artstica,

    filosfica e cientfica. As poucas livrarias brasileiras vendiam, sobretudo, livros publicados na Frana, e at obras escritas por brasileiros eram editadas naquele

    pas (PRANDI, 2012, p.47).

    De acordo com este autor, o sucesso das ideias de Allan Kardec apresentadas em O Livro

    dos Espritos foi imediato, fato que chamou a ateno do jornalista Paulo Barreto, mais

    conhecido por Joo do Rio, que mais tarde publicou, em livro, uma srie de reportagens sobre as

    religies praticadas na ento capital federal, As religies do Rio (1904), obra compreendida por

    Prandi como um repositrio de preconceito e intolerncia contra as crenas que surgiam em um

    Brasil em que o Catolicismo reinava como religio oficial e era a nica tolerada (PRANDI,

    2012, p.47). No caso do Espiritismo, Joo do Rio relata que havia, na sociedade baixa pessoas

    credulamente enganadas por traficantes que apresentavam uma mistura de feitiaria com

    catolicismo e que, entre os adeptos de classes de gente educada havia os frvolos e tolos dos

    quais o espiritismo cientfico deles se serve para triunfar... (JOO, 2006, p.269). Porm, se faz

    interessante ressaltar que, em determinada passagem de seu texto acerca da temtica esprita,

    2 Stoll se equivoca quanto data de lanamento do Echos de Alm-Tmulo. Para esta autora, seu lanamento ocorreu

    na Bahia em 1865, porm este peridico teve seu lanamento em julho de 1869, portanto, Allan Kardec, que havia

    falecido a 31 de maro do mesmo ano, no conheceu o peridico brasileiro.

  • 11

    Joo do Rio oferece um amplo espao para a reproduo de um discurso de Leopoldo Cirne3

    sobre os princpios bsicos do Espiritismo kardecista, deixando suas crticas mais pesadas s

    prticas do baixo espiritismo, que acompanhou durante oito dias ao lado do amigo e Marechal

    Ewerton Quadros, primeiro presidente da Federao Esprita Brasileira (JOO, 2006, p.282):

    (...) Alm dos raros grupos onde se procede com relativa honestidade, os desbriados e os velhacos so os seus agentes. Os mdiuns exploram a

    credulidade, as sesses mascaram coisas torpes e de cada um desses viveiros de

    fetichismo a loucura brota e a histeria surge (...) (JOO, 2006, p.283).

    O Espiritismo que desde sua chegada ao Brasil, em fase anterior proclamao da

    Repblica, foi perseguido pela religio oficial do Imprio, o Catolicismo, necessitou realizar um

    grande esforo na busca de sua legitimao em solo brasileiro. Considero a primeira tentativa

    nesse sentido a criao, no ano de 1869, em Salvador, do peridico O cho de Alm-Tmulo,

    primeira publicao esprita em solo brasileiro que apresentava por objetivo a divulgao dos

    princpios bsicos da doutrina esprita, enfatizando sempre a necessidade de estud-la para uma

    melhor compreenso. Seu idealizador, o jornalista Luiz Olympio Telles de Menezes, que reuniu

    seus companheiros do Grmio de Estudos Espirticos da Bahia (ARRIBAS, 2010, p.63),

    defendia a tese de que para ser esprita seus adeptos no necessitavam abandonar o Catolicismo,

    religio oficial do pas, uma vez que considerava o Espiritismo uma filosofia de vida, uma

    conduta moral, que podia conviver, nesse momento, com o Catolicismo (GOMES, 2012,

    p.155).

    Ubiratan Machado destaca que Luiz Olympio fora criado em uma famlia catlica e que,

    por isso, no admitia a possibilidade de separar-se da Igreja de Roma, fazendo sempre questo de

    declarar-se como esprita e catlico, opo que causava ento espanto, revolta, indignao

    (MACHADO, 2010, p.13).

    De acordo com Fernandes, essa opo de Luiz Olympio em associar o Espiritismo

    Kardecista ao Catolicismo ocorreu, provavelmente, com a inteno de proteger-se para no ser

    identificado como adversrio da religio oficial do Estado (FERNANDES, 2010, p.60).

    Todavia, essa opo realizada por Telles de Menezes no parece ter encontrado

    ressonncia em solo francs. Em correspondncia enviada pela Societ Anonyme parts

    3 Leopoldo Cirne nasceu na Paraba em 13 de abril de 1870 e considerado pela Federao Esprita Brasileira,

    instituio da qual foi presidente aps a morte de Bezerra de Menezes em 11 de abril de 1900, um dos maiores

    vultos do Espiritismo brasileiro. Foi o responsvel pela traduo dos livros No Invisvel e Cristianismo e

    Espiritismo, ambos de autoria de Lon Denis. Faleceu no Rio de Janeiro em 31 de julho de 1941 (Adaptado da

    biografia disponvel no site da Federao Esprita Brasileira. Disponvel em:

    . Acesso em 26 nov.2013).

  • 12

    d'intrts Capital Variable de la Caisse gnrale et centrale du Spiritisme4, datada de 11 de

    outubro de 1869 e assinada por Armand Thodore Desliens5 ao peridico esprita brasileiro,

    havia elogios iniciativa brasileira na difuso do Espiritismo, mas tambm crticas acerca de

    certas passagens, umas relativas aos dogmas religiosos(FERNANDES, 2010, p.64) e outra que

    considerava que

    (...) O Espiritismo no deve adstringir-se a nenhuma forma religiosa

    determinada; , e deve permanecer uma filosofia progressiva e tolerante, abrindo seus braos a todos os deserdados, qualquer que seja sua nacionalidade

    e a crena religiosa a que pertenam (FERNANDES, 2010, p.64).

    Mesmo diante dessa declarada inteno de Telles de Menezes em conciliar Espiritismo e

    Catolicismo, a doutrina esprita no escapou dos ataques da Igreja Catlica, que a 25 de julho de

    1867, publica uma pastoral assinada pelo Arcebispo baiano D. Manuel Joaquim da Silveira,

    enfatizando a necessidade de censurar e combater o Espiritismo (GOMES, 2012, p.157). As

    causas que levaram ao Catolicismo combater enfaticamente a doutrina esprita foram:

    (...) O Espiritismo se implantou no que era ento o ncleo dominante da

    populao catlica; criou bases slidas no perodo final do Imprio; beneficiou-se da retrao que o Catolicismo vivia, uma vez que este ia perdendo a relao

    privilegiada que mantinha com o Estado, no Brasil. Ocorriam conflitos entre a

    administrao do Imprio e a hierarquia catlica, como na Questo Religiosa (1872-1875) que resultou na condenao de dois bispos. Ao mesmo tempo, as

    elites polticas do pas debatiam a proposta de separar a Igreja do Estado

    (SANTOS, 2004, p.17).

    Diante desse cenrio, Santos considera que no mbito estritamente religioso das ltimas

    dcadas do sculo XIX, era o Espiritismo a ameaa religiosa mais visvel para a hierarquia

    catlica (SANTOS, 2004, p.17). Em 24 de agosto de 1871, Olympio Telles de Menezes realiza,

    juntamente ao Vice-Presidente da Bahia, Dr. Francisco Jos da Rocha, a primeira tentativa de

    reconhecimento oficial do Espiritismo. O requerimento entregue pedia aprovao dos estatutos e

    autorizao para o funcionamento do que seria a Sociedade Esprita Brasileira. Este no seria um

    empreendimento fcil, por duas razes: primeiro, a Constituio do Imprio que permitia a

    coexistncia de outras religies apenas para o culto domstico ou particular; segundo, o decreto

    2.711, de 19 de dezembro de 1860 que determinava que a aprovao por parte do governo de

    4 Sociedade Annima sem fins lucrativos de Capital Varivel da Caixa Geral e Central do Espiritismo. 5 O contedo da missiva de A. Desliens para Luiz Olympio Telles de Menezes foi reproduzida na ntegra na Revista

    Esprita de novembro de 1869, ano dcimo segundo. Traduo de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro:

    Federao Esprita Brasileira, 2005.

  • 13

    qualquer sociedade religiosa no-catlica deveria ser submetida para a aprovao do Ordinrio,

    D. Manoel Joaquim da Silveira, com quem Telles de Menezes polemizara alguns anos antes

    (MACHADO, 1983, p.98).

    Tentando escapar da reprovao do Ordinrio, a Sociedade Esprita do Brasil lanou mo

    de um subterfgio ao apresentar-se, em seus estatutos, como associao literria e beneficente.

    A estratgia no obtm sucesso e sua aprovao negada. Em seu parecer, o Arcebispo

    argumenta que o Espiritismo era um atentado formal contra a f catlica, e que uma doutrina

    que possua por objetivo contrariar a religio do Estado, s poderia ser contra esse mesmo

    Estado (MACHADO, 1983, p.98).

    Machado considera essa reprovao por parte do Arcebispo Dom Manoel Joaquim da

    Silveira instalao da Sociedade Esprita do Brasil como a primeira grande vitria da Igreja

    Catlica sobre o Espiritismo na Bahia. Com a derrota, houve um desnimo generalizado entre os

    espritas. A partir deste acontecimento, a capital esprita do Brasil desloca-se de Salvador para o

    Rio de Janeiro, capital do Imprio, local de grandes agitaes (MACHADO, 1983, p.98).

    A doutrina esprita de Allan Kardec estabelece-se no Rio de Janeiro, na dcada de 1870,

    onde comea a organizar seu movimento. Novamente, a Igreja Catlica realiza ataques ao

    Espiritismo atravs de seus sermes e documentos de oposio nova religio (SANTOS, 2004,

    p.17).

    O perodo de implantao do Espiritismo no Rio de Janeiro coincide com projetos

    polticos que buscavam construir a imagem do Brasil como um pas moderno e civilizado, sendo

    a capital do Imprio vista como uma cidade de progresso onde ocorriam grandes acontecimentos

    histricos, ou seja, era a partir do Rio de Janeiro que se projetavam mudanas que depois

    ecoariam para o restante do pas (GOMES, 2012, p. 158).

    O interesse demonstrado pelo Espiritismo no Rio de Janeiro fez com que a doutrina

    kardecista adentrasse nas altas rodas imperiais. Como exemplo, Araia6 cita uma ocasio na qual

    a Princesa Isabel solicitou ao escritor Joaquim Manuel de Macedo, autor de A Moreninha, adepto

    e pesquisador do Espiritismo, que descobrisse quem era seu protetor espiritual. Todavia, apesar

    de haver conquistado espaos nas altas rodas, a doutrina kardecista ainda era praticada s

    escondidas, em virtude do aumento da perseguio realizada pela Igreja Catlica. O Espiritismo

    em terras cariocas registrou seu maior avano a partir de 1873, ano no qual fundada a

    Sociedade de Estudos Espritas Grupo Confcio, cujo nome uma homenagem a um esprito

    que, anos antes, transmitira mensagens consideradas como de grande nvel moral em reunies

    6 Eduardo Araia jornalista, diretor de redao da Revista Planeta e autor do livro Espiritismo, doutrina de f e

    cincia.

  • 14

    realizadas por Sequeira Dias, no havendo, portanto, nenhum tipo de aluso ao antigo filsofo

    chins. Esse grupo o responsvel por traduzir as obras de Kardec para a lngua portuguesa,

    possibilitando que mais pessoas tivessem acesso s teses defendidas pela doutrina esprita.

    Dentre as primeiras obras traduzidas estavam O Livro dos Espritos, O Livro dos Mdiuns e O

    Cu e o Inferno. A importncia dessas tradues na disseminao das teses espritas pode ser

    medida pela converso do mdico Adolfo Bezerra de Menezes, ento catlico, ao Espiritismo,

    aps tomar contato com a doutrina atravs de uma dessas publicaes. (ARAIA, 1996, p.101-

    102).

    Em 1884 fundada, no Rio de Janeiro, a Federao Esprita Brasileira FEB, que em seu

    princpio, possua como premissa inicial ser uma referncia nacional para o movimento esprita,

    que se dissertinava (sic) em vrias partes do pas. (...) A Federao pretendia ser a representante

    do Espiritismo no Brasil (SANTOS, 2004, p.23). Contudo, Giumbelli contesta essa funo de

    representao do Espiritismo, tomando por base edies do jornal Reformador7 da poca. Para

    ele, a entidade no se propunha a representar grupos, mas a ser um instrumento de divulgao

    da doutrina esprita, congregando esforos de indivduos que eram convidados a ela se associar

    (GIUMBELLI, 1997, p.63). De acordo com este autor, a FEB s viria a assumir este papel de

    representao de grupos a partir de determinado momento, no qual obtm certo

    reconhecimento que torna possvel desempenh-lo (GIUMBELLI, 1997, p.63). Segundo

    Giumbelli, ser a partir de 1895, em funo da represso ao Espiritismo institudo pelo cdigo

    penal de 1890, que a FEB assumir a dupla misso, diante do conjunto dos grupos e dos adeptos

    espritas do Rio de Janeiro e mesmo do Brasil, de orient-los doutrinalmente e represent-los

    institucionalmente (GIUMBELLI, 1997, p.40).

    Com a proclamao da Repblica, em 1889, deu-se a instalao, no Brasil, de um Estado

    laico. Os espritas, que durante o Imprio eram atacados e perseguidos por rgos da imprensa e

    eram acusados por mdicos pela prtica ilegal da medicina e, at mesmo, de charlatanismo,

    defrontaram-se com um cenrio ainda mais rigoroso em relao ao Espiritismo, uma vez que o

    Cdigo Penal de 1890 estabelecia, atravs dos artigos 156, 157 e 158, severas punies queles

    que praticassem curandeirismo, charlatanismo e espiritismo (ARRIBAS, 2010, p.119-120):

    Art. 156. Exercer a medicina em qualquer de seus ramos, a arte dentria ou a

    farmcia: praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo

    animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos.

    7 Reformador o rgo oficial de imprensa da Federao Esprita Brasileira, tratando de assuntos dedicados ao

    Espiritismo, atuando em defesa e pela propaganda da doutrina esprita, com artigos escritos por colaboradores

    locais, contendo notcias sobre o movimento esprita no Brasil e em outros pases (Adaptado de GIUMBELLI, 1997,

    p.63).

  • 15

    Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilgios, usar de talisms e

    cartomancia, para despertar sentimento de dio ou amor, inculcar curas de molstias curveis ou incurveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade

    pblica. Pena: de priso celular de 1 a 6 meses e multa de 100$000 a 500$000

    Art. 158. Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo, para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substncia de qualquer dos

    reinos da natureza, fazendo, ou exercendo, assim, o ofcio do denominado

    curandeiro (ARRIBAS, 2010, p.120-121).

    Nesta nova conjuntura, os adeptos do kardecismo estavam sujeitos a sofrer judicialmente

    processos condenatrios, como de fato, ocorreu. A respeito desses artigos do Cdigo Penal,

    afirma Giumbelli:

    Como um crime contra a tranquilidade pblica, o espiritismo distingue-se de outros crimes em funo da entidade que se considera lesada pela sua prtica.

    No se trata, assim, de um crime contra a pessoa (...) No um crime contra o

    Estado (...) Nem, enfim, um crime contra o que podemos nos referir como instituies (famlia, moralidade, casamento) (...) O espiritismo um crime de consequncias pblicas, como o so as falsificaes de documentos (...), os

    incndios provocados e os atentados envolvendo os meios de transporte (...) o

    uso de substncias venenosas, a alterao de medicamentos e a falsificao de comestveis (...). (...) Ou seja, o que est em foco menos a preciso da

    entidade lesada e mais um ato em suas virtualidades. Nesse sentido, esses

    crimes, por sua definio, aproximam-se das contravenes, que ocupam um lugar especfico no cdigo penal e abrangem disposies sobre as loterias, os

    jogos de azar, o porte de armas, a constituio de sociedades secretas, a

    mendicncia e a vadiagem, entre outras coisas. Diferentemente do crime um delito, um fato consumado a contraveno era definida como prtica perigosa pelos danos que tinha a possibilidade de causar. (GIUMBELLI, 1997, p.81)

    (Grifo original do autor).

    Cabe aqui uma ressalva. A palavra espiritismo citada no Cdigo Penal de 1890 no se

    referia exclusivamente doutrina elaborada por Allan Kardec, mas tambm a outros tipos de

    prticas e crenas assim entendidas como espiritismo, a exemplo das religies afro-brasileiras,

    das quais a doutrina kardecista sempre esforou-se em diferenciar-se em busca de definir uma

    identidade prpria, ao enfatizar sua origem europeia e, portanto, superior (SILVA, F., 2005,

    p.88-89).

    Vilhena afirma que nesse perodo ps-abolicionista, fazia-se fundamental para os homens

    brancos e cultos estabelecerem diferenciaes de tudo aquilo que pudesse ser relacionado ao

    mundo da

    (...) negritude, ento vinculado ao que dissesse respeito falta de cultura,

    irracionalidade, ao desregramento dos costumes, incapacidade para o trabalho,

  • 16

    s supersties, ao charlatanismo, ao politesmo, invocao de entidades

    espirituais ligadas ao mal e demonaco (VILHENA, 2008, p.85).

    Assim, adeptos do Espiritismo kardecista renem-se posteriormente com o Ministro da

    Justia, Campos Sales, a quem reivindicaram mudanas no novo Cdigo Penal, em uma tentativa

    que se mostrou frustrada. O relator do cdigo, Joo Batista Pinheiro, explicou-se aos kardecistas,

    argumentando que o texto remetia s prticas do que era considerado por baixo espiritismo,

    termo que seria utilizado para referir-se s crenas afro-brasileiras (ARRIBAS, 2010, p.121).

    A partir de ento, o termo baixo espiritismo ser utilizado para denominar prticas que

    estariam fora do mbito do espiritismo organizado (SANTOS, 2004, p.55) e associado

    criminalizao das prticas espritas, vigentes em tal perodo (GIUMBELLI, 2003, p.249).

    Para Arribas, apesar da explicao do relator do cdigo, os espritas estariam sendo

    enquadrados como causadores de problemas no que se referia ao rtulo de Sade Pblica, uma

    vez que alguns deles alegavam realizar curas fsicas e morais atravs da homeopatia e da

    aplicao de passes magnticos atravs da imposio de mos. De acordo com esta autora, tais

    prticas espritas iam de encontro com a autonomizao dos poderes da esfera mdica, categoria

    que reivindicava para si o monoplio da cura. Arribas destaca ainda casos em que espritas foram

    enquadrados por prticas de explorao da credulidade pblica, pois teriam obtido fins lucrativos

    atravs das mesmas. De acordo com esta autora, esses fatos ocorriam como consequncia de um

    perodo histrico em que haviam, em diferentes nveis,

    As preocupaes de controlar, de conter, de mapear e de classificar, preocupaes ligadas ao objetivo do governo de instituir uma nova ordem

    urbana, fator necessrio para a realizao do progresso. Alm disso, esses

    processos eram o resultado do realamento de uma tambm recente noo de pblico, que ajudou a promover a legalizao da represso queles cujas aes

    iam contra o seu contedo (ARRIBAS, 2010, p.122) (Grifos originais da

    autora).

    Anterior a Arribas, Maggie considera que a promulgao do novo cdigo penal brasileiro

    em 1942 marcou a definitiva deslegitimao das prticas identificadas ao candombl e

    macumba, pois o termo espiritismo retirado do texto legal, pressupondo que kardecistas e

    umbandistas estivessem livres de condenaes" (MAGGIE, 1992 Apud SAMPAIO, 2010,

    p.20); Para Giumbelli, o novo cdigo penal diferia do seu antecessor de 1890 por no condenar

    especificamente nenhuma crena ou saber. Pelo contrrio, buscava definir prticas que causariam

    em prejuzo, real ou virtual, propiciado sade pblica (GIUMBELLI,1997, p.219).

  • 17

    Arribas especula que poderia estar acontecendo uma utilizao dos espritas como bodes

    expiatrios numa tentativa de diminuio da oposio praticada pelo Catolicismo ao novo

    regime, causada em funo da separao entre a Igreja e o Estado (ARRIBAS, 2010, p.122).

    Mesmo com o advento do sculo XX, a imprensa continua a realizar denncias contra

    centros espritas e terreiros que sofrem com inquritos e batidas policiais, sob a acusao de

    exerccio ilegal da Medicina, em virtude do receiturio aplicado por alegados espritos, que iam

    da aplicao de passes magnticos utilizao de garrafadas, ervas e razes, dentre outras

    sugestes de curas, aos pacientes que os procuravam. Apesar da perseguio aos espritas pelo

    aparato oficial permanecer, ainda assim a doutrina esprita continua a expandir-se e a incomodar

    a Igreja Catlica, visivelmente consternada pelo trnsito religioso de seus fiis, que tambm

    procuravam por centros espritas, o que ameaava a sua hegemonia no Brasil (VILHENA, 2008,

    p.87).

    De acordo com Prandi, enquanto o Espiritismo se institucionalizava era ao mesmo tempo

    acusado pelos catlicos de esconder uma nova religio atrs de uma falsa cincia. De um lado,

    os kardecistas realizavam experincias pblicas como supostas materializaes de espritos; por

    outro, seus opositores oriundos do Catolicismo tentavam desmascarar uma alegada farsa dos

    seguidores de Kardec (PRANDI, 2012, p.60).

    Mesmo acusada de farsa pelos catlicos, a doutrina de Allan Kardec j se encontrava bem

    difundida pelo Brasil, e atingira certo status em termos de reconhecimento e legitimidade sociais,

    sobretudo em decorrncia de sua filantropia e da presena de gente de prestgio em suas

    fileiras (PRANDI, 2012, p.63).

    A respeito da configurao que tomaria a doutrina esprita no Brasil, Stoll questiona se

    esta seria uma distoro do Espiritismo francs, apresentando-se como uma nova cincia, ou, ao

    contrrio, uma reconstruo original na qual assume um matiz perceptivelmente catlico na

    medida em que incorpora sua prtica um dos valores centrais da cultura religiosa ocidental: a

    noo crist de santidade (STOLL, 2003, p.61). Para esta autora que utiliza como inspirao

    ideias apresentadas por Clifford Geertz na obra Observando El Islam, o Espiritismo

    brasileira no seria uma distoro do original surgido na Frana, mas uma reelaborao, tese

    defendida tambm por Fbio Luiz da Silva. Vejamos:

    O Espiritismo no Brasil no um simples desvio de uma doutrina racional de origem europeia e que sofreu uma contaminao do mgico e do mstico, graas

    a uma predisposio do povo brasileiro para o maravilhoso. uma reconstruo

    original influenciada pela formao cultural brasileira que j possua elementos que foram reinterpretados pelo Espiritismo, assim como ele foi reinterpretado

    por estes mesmos elementos: crenas indgenas, africanas e populares de origem

  • 18

    europeia. Dessa forma, acreditamos no ser possvel ao Espiritismo manter uma

    pureza, para onde quer que fosse difundido (SILVA, F., 2005, p.32).

    Apesar do argumento da reconstruo defendida por Stoll e Silva, Prandi ressalta que as

    teses mais importantes do Espiritismo de Allan Kardec (...) foram preservadas na constituio do

    que viria a ser o Espiritismo no Brasil. Dentre estas teses esto: a aceitao da comunicao

    com os mortos, atravs de pessoas que servem de intermedirios entre os mundos fsico e

    espiritual os mdiuns , capazes de se comunicar tanto pela forma escrita (psicografia), quanto

    pela falada (psicofonia); a reencarnao como forma de atingir o estado de esprito puro, no qual

    no mais necessrio voltar a habitar mundos fsicos; e a pluralidade das existncias, esta ltima

    trata da evoluo do esprito atravs de encarnaes em diferentes globos (planetas) (PRANDI,

    2012, p.39).

    A reelaborao do Espiritismo kardecista no Brasil, de matiz perceptivelmente catlico

    (STOLL, 2003, p.61), no se limitar a essa tentativa da construo de um discurso conciliatrio

    entre as doutrinas catlica e esprita, mas tambm aos conceitos de imortalidade e ps-morte

    elaborados por Allan Kardec durante a implantao e desenvolvimento da doutrina esprita, que

    sero revistos posteriormente em obras psicografadas por Chico Xavier, como Cartas de uma

    morta e Nosso Lar, que daro origem a um Espiritismo brasileira conforme as teses de Stoll.

    1.1 A imortalidade e o ps-morte no espiritismo

    De acordo com Silva, as obras espritas que apresentam uma descrio da vida aps a

    morte do corpo fsico representam uma vontade de dizer algo sobre como a vida no mundo

    espiritual. Com esse objetivo, foram produzidos termos e/ou imagens que pudessem ser

    assimilados pelos leitores destas obras. Segundo este autor, o homem religioso do passado,

    anterior poca em que o pensamento cientfico passa a ditar os limites existentes entre o que

    era real ou imaginrio, no era capaz de conceber um lugar sem a presena da divindade. Desta

    forma, o cu, o espao acima de ns, necessitaria ser preenchido com algo, um lugar que

    deveramos ir aps a morte o paraso (SILVA, F., 2007, p.17-19).

    Para a doutrina esprita, a morte como o aniquilamento de tudo no existe, e,

    consequentemente, no deve ser temida por seus adeptos. Os princpios espritas afirmam que o

    esprito, aps romper sua ligao com o corpo fsico mantm sua forma, individualidade,

    aptides e percepes. As crenas do Espiritismo trazem implcitas uma significao de ausncia

    do temor da morte, atravs da certeza da inexistncia da morte. A doutrina de Allan Kardec

  • 19

    ressignifica, por assim dizer, as noes de cu, inferno e purgatrio. Rompe tambm com a

    concepo de espaos determinados para a vida aps a morte, estabelecendo que o mundo

    espiritual encontra-se espalhado por todo o universo. Para o Espiritismo, as penas s quais os

    espritos estavam condenados j no eram mais eternas, reduzindo-as a penas morais que

    poderiam ser quitadas atravs de sucessivas reencarnaes (SILVA, E., 1993, p.177).

    Com estas concepes, a emergente doutrina esprita oferece aos homens do sculo XIX

    uma nova forma de entender o inevitvel fenmeno da morte biolgica, provendo-lhes respostas

    para suas insatisfaes e desconfortos a respeito desta temtica, apresentando um discurso de

    continuidade e imortalidade. Como consequncia dessa viso,

    Kardec ordena para a sociedade de seu tempo o mundo natural e social,

    integrando-o em uma cosmologia que abrange dimenses fsicas e metafsicas nas quais cada evento particular est em relao com todos os outros, formando

    assim uma realidade coerente, dotada de sentido, que oferece justificativas para

    a existncia humana em situaes dadas. Dessa maneira, estamos diante da formulao de uma metafsica, uma cosmologia, uma ontologia, uma teodicia

    (VILHENA, 2008, p.59).

    Segundo Corra, o homem possui um desejo de onipotncia que se traduz na vontade de

    existir sempre, uma busca da possibilidade do renascimento dos mortos que assumir, nos

    domnios do pensamento e da cultura, status de um dado universal, ou seja, um desejo que

    continua arraigado nas profundezas do ser do homem at os dias atuais. De acordo com este

    autor, a crena na sobrevivncia ou a f na imortalidade so decorrentes da persistncia do

    traumatismo da morte que pode, inclusive, acarretar na destruio da alegria do viver (CORRA,

    2008, p.41-42). Crer em uma vida aps a morte seria, para este autor,

    Uma astcia qual o homem recorre, para dissolver o medo e o horror da morte, e que a esta se juntar outra, a crena no duplo, que pode ser denominado de fantasma, esprito, alma, e at como sombra do corpo, estando presente nas mais diversas culturas, folclores e doutrinas esotricas (CORRA, 2008, p.43-44).

    Ainda de acordo com Corra, o Espiritismo a expresso mais marcante das crenas

    arcaicas no duplo - ao afirmar a existncia de um mundo invisvel em que vivem as almas dos

    homens que um dia j viveram na Terra, ou mesmo em outros planetas. (CORRA, 2008, p.46).

    De acordo com Silva, nas obras de Allan Kardec inexistem descries de uma vida ps-

    morte semelhante s descritas nos livros de Chico Xavier, a exemplo do Nosso Lar. Segundo este

    autor, as obras kardequianas so muito mais textos de reflexo filosfica do que de literatura,

  • 20

    trao este evidenciado na obra O Cu e o Inferno ou a Justia divina segundo o Espiritismo.

    Neste livro integrante da codificao esprita, em sua primeira parte, Allan Kardec rev

    princpios catlicos sobre o cu, inferno, purgatrio, anjos e demnios. Na segunda, Kardec traz

    aos adeptos relatos de espritos desencarnados divididos de acordo com sua situao na

    erraticidade8: felizes, sofredores, suicidas, criminosos, etc. Os depoimentos trazidos pelos

    espritos se resumem explicao do que ocorre em funo do desprendimento da alma (esprito

    encarnado) do corpo fsico, as perturbaes geradas devido a esta separao e entrada nesta

    nova condio de existncia. Mesmo nesses exemplos relatados por Kardec, no possvel

    encontrar quaisquer referncias s cidades espirituais popularizadas mais tarde nos textos

    psicografados por Chico Xavier (SILVA, F., 2007, p.71).

    Para Silva, faz-se necessrio destacar a posio assumida por Allan Kardec de inspirao

    iluminista e que se contrape ao materialismo, crena que prega nada existir aps a morte do

    corpo fsico. Ao analisar as consequncias negativas para a sociedade e seus sujeitos decorrentes

    da tese materialista de que nada existe aps a morte do corpo, Kardec se mostra decepcionado

    pelo fato das religies no terem conseguido impor-se sobre esta temtica. Para o codificador da

    doutrina esprita, o Espiritismo oferece sustentao cientfica crena na alma e na vida aps a

    morte, sendo esta posio doutrinria uma consequncia da observao de fatos materiais e

    positivos (SILVA, F., 2007, p.72).

    Em relao s concepes de cu e inferno, Allan Kardec considera que estas estariam

    mais diretamente ligadas s condies morais dos espritos, o que lhes possibilitaria ter

    percepes diferenciadas da vida espiritual, ou seja, as condies morais que determinaro seu

    grau de felicidade ou infelicidade, e no o estado de um lugar determinado ou circunscrito no

    qual se encontram:

    Nessa imensidade sem limites, onde, pois, est o cu? Est por toda parte; nada

    o cerca nem lhe serve de limites. (...) Quanto pequena e mesquinha a doutrina

    que circunscreve a Humanidade num imperceptvel ponto do espao, que no-la mostra comeando em um instante dado para acabar (...). (...) Quanto, ento,

    estreita a ideia que ela d da grandeza, do poder e da bondade de Deus!

    (KARDEC, 2008, p.22-23).

    Lon Denis, destacado filsofo adepto do Espiritismo, corrobora a opinio de Allan

    Kardec acerca das concepes de cu e inferno:

    8Erraticidade, na acepo que lhe atribuem os espritas, significa o tempo que aguarda o esprito "desencarnado"

    uma nova reencarnao.

  • 21

    Segundo algumas doutrinas religiosas, a Terra o centro do Universo, e o cu

    arredonda-se como abbada acima de ns. na sua parte superior, dizem, que

    se assenta a morada dos bem-aventurados, e o inferno, habitao dos rprobos, prolonga suas sombrias galerias nas entranhas do prprio globo. A Cincia

    Moderna, de acordo com o ensino dos espritos, mostrando-nos o Universo

    semeado de inumerveis mundos habitados, trouxe um golpe mortal a essas

    teorias. O cu est em toda parte; em toda parte o incomensurvel, o insondvel, o infinito; em toda parte um formigamento de sis e de esferas, dentre os quais

    nossa Terra apenas nfima unidade (DENIS, 2008, p.227).

    Para Silva, a inexistncia de relatos de uma vida espiritual materializada nas obras destes

    autores estaria relacionada forma pela qual a doutrina esprita reavaliou as noes de cu,

    inferno e purgatrio de acordo com suas prprias concepes, rompendo com as antigas

    teogonias que pregavam a existncia de espaos fechados e determinados para a vida espiritual.

    O Espiritismo segue de acordo com a lgica e as descobertas astronmicas e determina a

    inexistncia desses lugares ao afirmar que o mundo espiritual estava espalhado pelo Universo,

    deslocando, assim, o centro e as dimenses espirituais, e suas noes de moradas em esferas ou

    espaos celestiais escalonados como consequncia dos merecimentos religiosos na vida (SILVA,

    E., 1999, p.43).

    Segundo Silva, a inexistncia de descries como as de anjos, muralhas, rvores e rios

    nas obras kardequianas se deve ao fato de que a concepo do alm, proposta por Kardec, est

    baseada em uma valorizao da cincia como meio de evitar antigos modos de imaginar a vida

    aps a morte: circunscrita e de forma material (SILVA, F., 2007, p. 75). Em sua anlise, afirma

    que o codificador do Espiritismo mostra-se desconfiado em relao a descries materiais do

    alm. Longe estamos, portanto, de algum que aceita qualquer informao (SILVA, F., 2007,

    p.78).

    Faz-se importante ressaltar que os homens sempre possuram um sentimento de que sua

    vida teria um fim, mesmo que essa conscincia no fosse clara; de acordo com Corra, esta

    conscincia de finitude um fato universal (CORRA, 2008, p.23). Para este autor, os homens

    primitivos, como o de Neanderthal, tinham por hbito colocar seus mortos em sepulturas,

    cuidado este que, com o passar do tempo, se transformaria em ritos e pompas que conduziam a

    uma exaltao coletiva ou tornavam tal rito uma experincia sagrada (CORRA, 2008, p.24).

    Segundo Corra, ser a partir do surgimento das civilizaes arcaicas que os homens

    passam a fazer uso da morte, referindo-se a ela atravs da utilizao de termos como sono,

    um novo nascimento, doena, malefcio e entrada no mundo dos antepassados. Ainda de

    acordo com este autor, o traumatismo da morte era to grande e importante que promoveu o

  • 22

    surgimento da ideia de continuao da vida sob outras formas. Entretanto, s mais tarde surgiu a

    ideia de imortalidade que se tornaria universal (CORRA, 2008, p.25).

    Antes de Allan Kardec (1804-1869), outros pensadores se dedicaram temtica da

    imortalidade da alma, como o filsofo grego Scrates, citado pelo prprio Kardec em O

    Evangelho segundo o Espiritismo ao lado de Plato como precursores da ideia crist e do

    Espiritismo. Posteriormente, o mstico sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), considerado

    por Arthur Conan Doyle como uma grande autoridade em Fsica e Astronomia ir se

    confrontar com a questo do ps-morte e a realidade com a qual os homens viriam a encontrar no

    denominado plano espiritual (DOYLE, 1995, p.34). De acordo com Ferrater Mora (2001,

    p.2800), Swedenborg dedicou-se por muitos anos pesquisa cientfica e tcnica, das quais

    comearia a duvidar no ano de 1743 para, em 1747, abandonar o cargo de assessor do Real

    Colgio de Minas com o objetivo de dedicar-se plenamente s suas especulaes cientfico-

    religiosas. Aos cinquenta e seis anos, Swedenborg afirmou que fora designado pelo prprio

    Senhor, que a ele teria aparecido em uma viso no ano de 1744, conclamando-o a se tornar o

    porta-voz do sentido espiritual da Bblia. Para atingir essa finalidade, teriam-lhe sido abertos os

    segredos dos cus. A partir deste acontecimento, Swedenborg alega ter experimentado viagens

    a outros planos e dimenses espirituais; ocasies onde teria conhecido os pormenores da vida

    ps-morte e conversado com espritos, elaborando aps estas vivncias uma nova doutrina9 onde

    descortina para os vivos o destino espiritual dos mortos (SILVA, E., 1999, p.11).

    De acordo com Swedenborg, no cu existem sociedades onde os anjos vivem como os

    homens, e, portanto, necessitam de habitaes que estariam de acordo com o estado de vida de

    cada um deles: magnficas para os que esto em um estado mais digno e menos magnficas para

    os que esto em um estado inferior. Descreve a existncia nessas habitaes de cmaras, salas e

    quartos, assim como de trios, jardins, bosques, campos e palcios (SWEDENBORG, 2005, 91-

    93).

    Diante deste breve exposto a respeito da figura de Emanuel Swedenborg, podemos

    deduzir uma provvel popularidade de suas ideias, fato este que levar Allan Kardec a criticar

    suas teses principais em sua Revista Esprita10

    de novembro de 1859.

    Como possvel perceber, Allan Kardec, ao elaborar a doutrina esprita, fortemente

    influenciada pelo positivismo reinante no sculo XIX, rompe com antigas formas de entender o

    alm, a exemplo das cidades espirituais relatadas por Swedenborg, por consider-las como teses

    9 Esta nova doutrina elaborada por Swedenborg se tornaria conhecida como doutrinas para a Nova Igreja ou Doutrinas Celestes. 10 Tratarei no captulo 2 com mais detalhes acerca da anlise realizada por Allan Kardec a respeito das teses de

    Emanuel Swedenborg sobre o ps-morte na Revista Esprita de novembro de 1859.

  • 23

    oriundas do misticismo e sobrenatural11

    , conceitos dos quais pretende blindar a doutrina

    esprita por ele elaborada e compreendida como uma cincia de observao e doutrina

    filosfica (KARDEC, 2009, p.10), evitando, assim, as descries materializadas do alm

    existentes.

    1.2 Nosso lar: da obra medinica s telas do cinema

    no incio do sculo XX que nasce, em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, Francisco

    Cndido Xavier (1910-2002), aquele que, anos mais tarde, assumir o papel de mdium esprita e

    ter atuao significativa para a legitimao do Espiritismo em seu carter religioso no Brasil.

    Oriundo de famlia catlica, Chico Xavier teria experimentado sua primeira manifestao de

    mediunidade ainda aos quatro anos, quando intervm em uma conversa entre seus pais, sobre o

    aborto sofrido por uma vizinha. Chico Xavier interrompeu o dilogo entre ambos e explicou a

    causa do aborto: O que houve foi um problema de nidao inadequada do ovo, de modo que a

    criana adquiriu posio ectpica. Questionado sobre o significado das palavras nidao e

    ectpica, respondeu que no sabia s havia repetido o que teria escutado de uma voz (ARAIA,

    2007, p.15).

    Apesar de haver relatado vises de espritos e de escutar as vozes destes em muitos

    momentos de sua vida, s em 1927, aos dezessete anos, Chico Xavier ir abandonar suas crenas

    catlicas e ingressar na doutrina esprita. O fato que o leva a tomar tal deciso foi uma doena

    contrada por sua irm Maria Xavier, cujo tratamento pela medicina convencional no vinha

    obtendo sucesso. Dentre os sintomas apresentados, estavam delrios, xingamentos, suores frios,

    contores. Seu pai, sem maiores opes de tratamento, e apesar de catlico, resolve lev-la a

    um casal de amigos espritas, Jos Hermnio Percio e Carmem. O casal, ao receber Maria em

    sua casa, teria identificado um esprito obsessor como a causa dos problemas. Realizando uma

    sesso cuja prtica teraputica incluiu a administrao de passes, preces e doutrinao do alegado

    esprito obsessor, o casal conseguiu afast-lo. Chico Xavier, que nessa ocasio, j nutria certa

    curiosidade pela doutrina esprita, resolveu conhec-la melhor lendo dois livros de Allan Kardec:

    O Livro dos Espritos e O Evangelho segundo o Espiritismo (ARAIA, 2007, p.20).

    Chico Xavier ento comunica ao padre Sebastio Scarzello, que o acompanhava desde

    criana em Pedro Leopoldo, sua deciso em deixar a doutrina catlica para ingressar no

    Espiritismo. De acordo com Oliveira (2009, p. 28), o contexto do Espiritismo no Brasil seria, a

    partir da dcada de 1930, fortemente influenciado pela figura de Chico Xavier, cuja produo

    11 Este raciocnio ser aprofundado no captulo 3.

  • 24

    medinica teria ampla divulgao por parte da Federao Esprita Brasileira FEB, que se

    utilizaria do mdium como agente do enfoque doutrinrio daquela instituio, mais voltada para

    o aspecto religioso da doutrina esprita. Dessa forma, a FEB pretendia reforar sua ascendncia

    como rgo unificador do movimento esprita no Brasil, atravs do carisma de Chico Xavier e da

    comercializao das obras medinicas psicografadas por ele. A Federao Esprita Brasileira

    pretendia, com isso, constituir-se como referncia religiosa autnoma (LEWGOY, 2004, p. 13).

    Chico Xavier inicia sua produo bibliogrfica medinica com um livro que causou

    grande polmica, O Parnaso de Alm-Tmulo (1932), uma coletnea de 59 poemas assinados por

    poetas falecidos ilustres, como, por exemplo, Augusto dos Anjos. Outras obras importantes desse

    perodo (que compreende os anos 30 e incio dos 40) so os romances de Emmanuel, mentor

    espiritual do mdium, que narra episdios do incio da era crist, e Brasil, Corao do Mundo,

    Ptria do Evangelho, atribudo ao esprito do autor Humberto de Campos, que interpreta a

    histria do Brasil sob a tica esprita (LEWGOY, 2004, p. 26).

    Em carta enviada ao ento presidente da Federao Esprita Brasileira, Wantuil de

    Freitas, Chico Xavier afirma que Emmanuel o alertara de que algumas autoridades espirituais

    desejavam trazer pginas com o objetivo de despertamento; a inteno era possibilitar o

    conhecimento de certos aspectos da vida que nos espera no outro lado. O autor espiritual

    incumbido desse objetivo, Andr Luiz, se apresenta a Chico Xavier em 1941, de acordo com

    Schubert12

    , com o objetivo de sintonizar-se com o mdium, e passa a acompanhar Chico Xavier

    em todas suas tarefas e conversaes; Em 1943, Andr Luiz d incio produo de Nosso Lar,

    cujo lanamento ocorre em 1944 (SCHUBERT, 2010, p.88-89).

    Nosso Lar foi escrito durante o perodo em que o Espiritismo buscava sua legitimao no

    campo religioso brasileiro, no contexto histrico da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),

    poca na qual o Brasil sofria ataques de submarinos alemes, fato que leva o pas a fechar

    acordos econmicos e militares com os Estados Unidos, e a entrar no conflito (SOUZA,W., s.d.,

    p.26). Para os espritas, Nosso Lar possui como objetivo principal apresentar ao mundo a

    realidade do alm-tmulo. De acordo com Stoll, os adeptos do Espiritismo consideram a

    descrio da vida espiritual, contida nesta obra e relatada pelo sujeito-narrador Andr Luiz, como

    12 Suely Caldas Schubert, natural de Carangola, MG, adepta do Espiritismo, dedica-se s atividades que envolvem a

    temtica da mediunidade e da divulgao da doutrina esprita. Em 1986, fundou com um grupo de companheiros, a

    Sociedade Esprita Joanna de ngelis, em Juiz de Fora, e diretora do Departamento de Mediunidade da Aliana

    Municipal Esprita dessa cidade. autora de nove livros acerca da temtica esprita, sendo dois deles editados pela

    Federao Esprita Brasileira: Obsesso/Desobsesso: Profilaxia e Teraputica (1981) e Testemunhos de Chico

    Xavier (1986). um dos nomes de destaque entre os oradores e intelectuais espritas. (Adaptado do site do Centro

    Esprita Francisco Xavier dos Santos. . Acesso em 25

    nov.2013).

  • 25

    a principal contribuio desse autor espiritual em relao a esta temtica considerada pouco

    explorada por Allan Kardec em seus livros (STOLL, 2003, p.105).

    A personagem principal do livro o mdico desencarnado13 Andr Luiz (nome

    fictcio), que relata suas descobertas e impresses acerca de uma colnia espiritual.

    Nosso Lar uma obra dividida em cinquenta captulos curtos, onde o autor espiritual

    Andr Luiz busca introduzir conceitos espritas como a existncia de uma vida ps-morte atravs

    da descrio dessa mesma existncia em uma cidade (ou colnia) espiritual. Esta descrio, de

    acordo com Gonalves, constituda por jogos de verdade usados para sedimentar as verdades

    espritas sobre a existncia de vida no plano espiritual e, ao mesmo tempo, convencer os leitores

    da autenticidade desses princpios (GONALVES, 2011, p.186) (Grifos originais da autora).

    Souza destaca duas caractersticas da obra: o abuso do emprego da comoo emocional e

    a forma cerimoniosa ou teatral comumente associada forma de interpretao realizada por

    atores de filmes mudos e doses homeopticas de mensagens e valores cristos ao longo dos

    captulos. Para este autor, as perguntas realizadas por Andr Luiz a outros personagens ao longo

    da obra faz referncia forma pela qual Allan Kardec elabora O Livro dos Espritos, com

    perguntas e respostas (SOUZA, s.d., p.42).

    Do captulo um ao sete, possvel identificar que o autor espiritual Andr Luiz passa por

    um momento de adaptao, uma vez que fora resgatado do Umbral para o Nosso Lar. Na

    colnia, recebe esclarecimentos acerca de sua nova condio de vida e acredita ser a paisagem do

    Nosso Lar uma melhorada cpia da Terra.

    A partir do oitavo at o dcimo segundo captulo, teremos a descrio da vida cotidiana

    da colnia. Andr Luiz passa a conhecer suas particularidades, descobre a existncia de outras

    colnias espirituais como a de Alvorada Nova e absorve novos conhecimentos sobre o Umbral,

    zona purgatorial onde habitara por oito anos.

    Andr Luiz descobre a importncia e a necessidade do trabalho em prol do prximo e

    como so os relacionamentos entre os espritos habitantes do Nosso Lar entre o dcimo terceiro

    captulo e o vigsimo segundo. Descobre tambm a existncia do bnus-hora, espcie de salrio

    que pode ser utilizado para entretenimento ou aquisio de uma casa prpria.

    Entre os captulos vinte e trs e trinta e trs, Andr Luiz toma conhecimento da ecloso

    da Segunda Guerra Mundial na Terra e recebe orientaes sobre as atividades que poder

    empreender em Nosso Lar. Inicia seus trabalhos nas cmaras de retificao como auxiliar de

    13 Este termo utilizado pelos espritas para se referir aos espritos cujos corpos fsicos faleceram, e que, portanto,

    regressaram para o mundo espiritual, no possuindo mais vnculos com os corpos materiais que deixaram.

  • 26

    limpeza e toma conhecimento de perturbaes do esprito provocadas por sentimentos de

    vingana e apego matria.

    Andr Luiz d continuidade ao seu processo de aprendizado do cotidiano da colnia ao

    receber esclarecimentos sobre temticas como caridade (perdo), casamento e repouso na

    espiritualidade, o que narrado entre o trigsimo quarto e o quadragsimo captulo. Busca ainda

    saber em que situao deixou sua famlia na Terra.

    Do captulo quarenta e um at o de nmero quarenta e cinco, tem-se o uso da Segunda

    Guerra Mundial como pano de fundo para a abordagem dos conceitos de trevas e esperana.

    Mostra ainda os habitantes do Nosso Lar realizando estudos do Evangelho de Jesus.

    Finalmente, nos ltimos cinco captulos, Andr Luiz aprende sobre a reencarnao como

    possibilidade de correo de erros do passado; testemunha a comunicao de uma pessoa

    encarnada com um esprito prestes a reencarnar e obtm permisso para visitar a famlia que

    deixara na Terra. Ao retornar a seu antigo lar, encontra sua ex-esposa casada com outro homem.

    Supera o sentimento inicial de cimes e pede auxlio a este, que se encontrava enfermo. Por tal

    atitude, ao regressar para o Nosso Lar, Andr Luiz recebe do Ministro Clarncio, o ttulo de

    cidado do Nosso Lar.

    H, no movimento esprita, uma controvrsia sobre a real identidade14

    de Andr Luiz na

    encarnao pregressa. De acordo com Marlene Nobre, presidente da Associao Mdico-Esprita

    do Brasil (AME), uma das razes para o ocultamento de sua identidade

    Deveu-se ao movida na Justia contra Chico Xavier e a Federao Esprita Brasileira (FEB), pela famlia de Humberto de Campos, que pleiteava parte da

    renda dos livros escritos pelo ilustre literato atravs do mdium (NOBRE, 2011,

    p.10).

    Outras razes so apontadas por Nobre para explicar este fato, so: poca do

    lanamento do Nosso Lar (1944), a famlia de Andr Luiz (esposa e filhos) ainda encontravam-

    se vivos, e procurou-se evitar um mal-estar e uma nova luta15

    em relao a direitos autorais, o

    14 De acordo com o jornalista Luciano dos Anjos, a verdadeira identidade de Andr Luiz lhe fora confirmada pelo

    mdium Chico Xavier, que lhe pediu segredo. Anos mais tarde, Luciano dos Anjos declara ser o mdico Faustino

    Esposel, nascido em Braslia em 10 de agosto de 1888 e catedrtico de neurologia na Faculdade Fluminense de Medicina e falecido na capital federal em 16 de setembro de 1931, com a idade de 43 anos, a verdadeira identidade

    do autor espiritual Andr Luiz. Dentre outros nomes especulados no movimento esprita encontravam-se os de

    Carlos Chagas, Miguel Couto, Osvaldo Cruz ou Francisco de Castro. (ANJOS, Luciano dos. O verdadeiro Andr

    Luiz. Disponvel em: < http://www.grupodosoito.com.br/subpaginas/faustino.htm>. Acesso em 04 out.14). 15 O caso "Humberto de Campos" ocorreu no ano de 1944, quando a viva do renomado escritor, em conjunto com

    os filhos do casal, deram entrada na Justia com uma ao declaratria contra a Federao Esprita Brasileira (FEB)

    e o mdium Francisco Cndido Xavier. Na concepo da famlia, as obras psicografadas pelo mdium tendo por

    autor espiritual Humberto de Campos lhes causavam prejuzos financeiros, pois estes possuam contrato com os

    editores da W.M. Jackson, e solicitavam Justia que determinasse a autoria das obras medinicas atravs de provas

  • 27

    que poderia, segundo ela, prejudicar at mesmo a atuao psicogrfica de Chico Xavier; por

    outro lado, Emmanuel, alegado mentor espiritual do famoso mdium mineiro, afirmara que cabia

    a Andr Luiz esquecer o que havia sido em sua ltima existncia na Terra, terminando uma etapa

    de sua histria com o lanamento do livro para, a partir da, dar incio a outra (NOBRE, 2011,

    p.10).

    Esta nova etapa de vida de Andr Luiz na espiritualidade tem incio em um local

    denominado pelo autor espiritual de Umbral, um espao determinado e circunscrito

    equivalente ao purgatrio catlico, regio em que esto os espritos considerados inferiores.

    Aps passar por oito anos de muitos sofrimentos (incluindo sensaes fsicas como fome e sede),

    Andr Luiz reza a Deus para sair daquele lugar, no que posteriormente atendido e levado por

    uma equipe espiritual para a colnia denominada Nosso Lar.

    De acordo com o relato de Andr Luiz, Nosso Lar uma colnia habitada por mais de um

    milho de espritos, sua organizao e as tarefas nela desempenhadas por seus habitantes so

    bastante semelhantes s realizadas pelos encarnados 16 no mundo fsico. Sua fundao ,

    localizada acima da cidade do Rio de Janeiro, teria ocorrido no sculo XVI, a partir de iniciativa

    de portugueses desencarnados no Brasil. A administrao do local cabia a um Governador

    assessorado por setenta e dois auxiliares, distribudos em seis ministrios: da Regenerao, do

    Auxlio, da Comunicao, do Esclarecimento, da Elevao e da Unio Divina, cada um

    possuindo atribuies especficas.

    Nosso Lar, a exemplo de modernos condomnios fechados, uma colnia protegida por

    uma grande muralha possuidora de baterias de proteo magntica, cuja funo seria a de

    proteg-la de espritos considerados como inferiores e que poderiam prejudicar a harmonia local.

    Alm desse sistema de proteo, seus habitantes tambm usufruiriam de uma modalidade de

    transporte denominado de aerbus, uma espcie de grande carro ou nibus suspenso do solo a

    uma altura de cinco metros, mais ou menos, e repleto de passageiros, constitudo de material

    flexvel, de enorme comprimento, ligado a fios invisveis em razo do grande nmero de antenas

    no toldo (SOUZA, L., 2011, p.81).

    Alm de ser uma colnia cujo objetivo prestar auxlio espiritual aos espritos que nela

    chegam, Nosso Lar tambm se caracteriza por ser um local de trabalho, onde seus habitantes

    cientficas. Requeriam ainda o recolhimento das obras em caso negativo e a determinao a quem pertenceria os

    direitos autorais das obras medinicas: famlia ou FEB. A Justia considerou a ao inepta em razo do fato de que, ao morrer, o indivduo deixa de possuir direitos civis, e que direitos autorais herdveis estariam limitados s

    obras produzidas pelo autor no perodo anterior sua morte. Para mais informaes, ver a tese de doutorado de

    Alexandre Caroli Rocha, O caso Humberto de Campos: autoria literria e mediunidade (2008). 16 Encarnados o termo utilizado pelos adeptos do Espiritismo para designar os espritos que deixam momentaneamente o mundo espiritual para viverem em um corpo fsico.

  • 28

    devem desenvolver tarefas em prol de seu prximo. Com essa finalidade, os trabalhadores da

    colnia devem dedicar oito horas por dia de esforos de trabalhos edificantes. De acordo com

    as regras da governadoria, relatadas por Andr Luiz, o limite de oito horas dirias de trabalho s

    pode ser excedido em at quatro horas. Os trabalhos realizados so desenvolvidos nos

    ministrios da colnia ou, at mesmo, nas indstrias de preparao de sucos, tecidos e artefatos

    que empregam aproximadamente cem mil desencarnados (LUIZ, 2008, p.169).

    O trabalho desenvolvido por estes espritos remunerado. A cada hora de trabalho,

    adquirido um bnus-hora, espcie de dinheiro que circula na colnia espiritual equivalente a

    uma ficha de servio. Cada trabalhador recebe setenta e dois bnus-horas por semana que

    podem ser gastos em entretenimento, em intercesses17

    e, at mesmo, com a finalidade de

    adquirir uma casa prpria no valor de trinta mil bnus-horas (LUIZ, 2008, p.133). De acordo

    com a personagem Laura, na colnia nada existe sem preo e que para receber indispensvel

    dar alguma coisa. (...) Somente podero rogar providncias e dispensar obsquios os portadores

    de ttulos adequados (LUIZ, 2008, p.144) (Grifo nosso).

    Para Bordieu, as relaes de transao no mbito religioso se estabelecem com base em

    diferentes interesses que iro constituir o princpio da dinmica do campo religioso. Segundo

    este autor, em uma sociedade dividida em classes (assim como a de Nosso Lar), a estrutura dos

    sistemas de representaes e prticas religiosas prprias aos diferentes grupos ou classes,

    contribui para a perpetuao e para a reproduo da ordem social (...) ao contribuir para

    consagr-la, ou seja, sancion-la e santific-la (BORDIEU, 2005, p.50; 52-53). Stoll destaca

    que a representao do plano espiritual apresentada na obra de Andr Luiz

    No encontrada apenas na literatura medinica de Chico Xavier. No sabemos

    se o fato de Nosso Lar ter sido a primeira obra do gnero inspirou outras, do

    mesmo tipo, que se seguiram. De qualquer forma, o que se constata que os textos psicografados por outros mdiuns espritas reiteram muitas dessas

    imagens (STOLL, 2003, p.111).

    Silva afirma que obras com as caractersticas apresentadas por Nosso Lar no eram

    comuns entre aquelas consideradas como espritas no Brasil e que, apesar de quela poca j

    existir um livro intitulado Cartas de uma morta, psicografado pelo mdium Chico Xavier,

    supostamente ditado pelo esprito de sua me, Maria Joo de Deus, o livro de Andr Luiz teve a

    17 Andr Luiz d um exemplo da relao entre bnus-horas e a intercesso em benefcio de outrem em Nosso Lar ao

    citar o caso de uma me que recorre a Clarncio, Ministro do Auxlio, para que este intercedesse em favor de seus

    dois filhos, sendo ento questionada por Clarncio sobre quantos bnus-horas esta possuiria a favor de sua

    pretenso. O Ministro do Auxlio deixa claro que aqueles que no cooperam com trabalho na colnia, no recebem

    cooperao como retorno (LUIZ, 2008, p.90).

  • 29

    recepo de novidade, pois antes desta primeira obra andreluizina18

    , a ideia do alm era bastante

    vaga, sendo por isso considerada como um avano em relao obra de Kardec (SILVA, F.,

    2007, p.126). Porm, conforme afirma Silva, mesmo entendido como um possvel avano em

    relao codificao de Allan Kardec, muitos adeptos receberam a revelao contida em Nosso

    Lar com reservas, mesmo pelos que a publicaram, no caso, a Federao Esprita Brasileira.

    Para essa afirmao, Silva baseia-se em artigos publicados em Reformador (SILVA, F., 2007,

    p.127).

    Para uma melhor compreenso do impacto provocado no movimento esprita brasileiro

    pelas concepes de ps-morte reveladas por Nosso Lar, destacamos um artigo de Reformador

    de maro de 1942, assinada por Heitor Luz apenas dois anos antes do lanamento da obra de

    Chico Xavier que viria se tornar um best-seller, no qual seu autor refuta a existncia de lugares

    circunscritos no plano espiritual:

    (...) Como tais prises [refere-se ao inferno e purgatrio] no existem, visto que

    fora da terra, s h inumerveis outros orbes e o espao infinito onde todos eles

    se movem, segue-se que a evoluo dos seres se tem de operar ou nos planetas, ou nos espaos que os rodeiam, ou seja: em planos diversos, inferiores e

    superiores, onde o esprito labora por adquirir a perfeio a que todos se

    destinam. (...) No h lugares circunscritos, de penas ou de gozos, quais

    seriam, se reais, o cu, o purgatrio e o inferno das religies dogmticas. E no

    h, porque a pureza e a impureza dos sentimentos, factores dos gozos e dos

    sofrimentos do esprito, esto em seu ntimo, no no ambiente em que ele

    vive. (...) Cu, inferno e purgatrio so meras invenes dos homens, bem como a salvao unicamente pela f, sem as obras; so creaes humanas contrarias

    ao que se encontra nos Evangelhos. Esta a verdade, fora da qual tudo so

    doutrinas fantasiosas, imaginadas pelos homens que, no seu comodismo, para no se darem ao esforo de trabalhar o seu ntimo, no sentido da evoluo

    espiritual, pretenderam estabelecer um meio fcil de escalar a bemaventurana e

    entraram a espalhar teorias contrarias s verdades evanglicas (LUZ, 1942,

    p.63). (Grifo nosso)

    Estas consideraes do articulista esto em conformidade com o que pregam as teses da

    doutrina esprita apresentadas por Allan Kardec. Tratam da evoluo do esprito atravs de um

    vis reencarnacionista, onde o esprito ter a oportunidade de gradualmente atingir a perfeio

    vivendo nos planetas ou nos espaos que o rodeiam. At ento, no existe na literatura

    kardecista uma obra que contenha uma descrio da vida do esprito no alm-tmulo.

    18Embora o termo andreluizina(s) como modo de referir-se s teses apresentadas por Andr Luiz tenha suscitado

    algumas dvidas quanto ao seu emprego neste trabalho, esta expresso utilizada em vrias publicaes espritas

    para referir-se s teses apresentadas por este autor espiritual e, por isso, decidimos adot-lo para melhor

    compreenso.

  • 30

    Em fevereiro de 1945, ou seja, aps o lanamento do livro Nosso Lar, encontra-se, no

    peridico Reformador, um artigo que consideramos de grande relevncia para mensurarmos o

    impacto provocado pelas revelaes da obra do esprito Andr Luiz.

    A ao de todo homem, neste mundo, precisa de um motor poderoso: a crena.

    Esta crena, porm, necessita de um alvo indestrutvel, em que se apie: a certeza numa vida futura, que recolha as consequncias de todos os seus atos.

    Mas, a noo dessa existncia vindoura , para 99% dos crentes, vaga, oscilante

    ou, mesmo, absurda. A esse respeito, a humanidade viveu sempre no escuro. (...) H milhares de anos, os homens que meditam vem pedindo, no fundo dos

    seus coraes, uma resposta a estas perguntas: Como so realmente os lugares

    para onde vamos? Como seremos e o que acontece a de verdadeiro? Como nos devemos preparar para essa vida nova? Que precisamos fazer? Como nos

    conduzirmos? (...) A obra medinica de Francisco Cndido Xavier, o honrado e

    desprendido mdium mineiro, est reservado papel saliente e considervel na

    histria da evoluo das grandes ideias diretoras do esprito e da conduta humanos. A parte mais recente versa sobre a vida nos planos astrais adjacentes

    Terra. Tal o objeto de Cartas de uma Morta, Reportagens de Alm-Tmulo, e agora, Nosso Lar e Mensageiros. (...) Persuadimo-nos de que Nosso Lar e Os Mensageiros, como descrio de uma das muitas colnias de um dos planos do espao, so as revelaes mais completas e sistemticas que j se

    fizeram at hoje. (...) Neste sentido, os trabalhos de Chico Xavier desdobram ao olhar espiritual um novo mundo (...) (MENDONA, 1945, p.38-39).

    possvel perceber, a partir deste momento, a construo nas pginas de Reformador de

    um novo discurso, este legitimador da descrio da vida aps a morte relatada em Nosso Lar.

    Uma das estratgias a nfase na honradez e credibilidade do mdium Chico Xavier, e a outra,

    uma relao de obras cujo contedo seria condizente com o apresentado pelo esprito Andr

    Luiz. Conforme Mendona,

    (...) A matria comeou a ser tratada, entre outros, por Dante, Swedenborg,

    Lavater e outros. O segundo desdobrava-se e via por si mesmo e Lavater

    invocava os espritos. Surgiram, em 1883, os Ensinos Espiritualistas, mensagens recebidas, na Inglaterra, pelo Reverendo Stainton Moses, de altos

    espritos. O ano de 1913 foi extraordinrio para aquele pas: surgiram, ali,

    ditados por desencarnados de luz, alguns deles mestres notveis, aos mdiuns Elsa Barker e ao Reverendo G. Vale Owen, respectivamente, as Cartas do outro mundo e A Vida alm do Vu. (...) Inclui-se tambm, nesse objetivo, a famosa obra medinica e cosmognica de Pietro Ubaldi (Itlia) A Grande Sntese, bem como A Nova Revelao, de Conan Doyle (MENDONA, 1945, p.39).

    De acordo com Schubert, Nosso Lar um trabalho totalmente novo, no se tratando de

    mensagens avulsas ou romances. Para esta autora, a obra de Andr Luiz um trabalho

    cientfico apresentado de forma romanceada, sendo seu sujeito-narrador uma espcie de

  • 31

    reprter do mundo espiritual, trazendo informaes sobre a vida no alm,19 trabalho que

    continuar em outras obras, posteriormente intituladas de Srie Andr Luiz - A vida no mundo

    espiritual: Missionrios da Luz (1945), Obreiros da Vida Eterna (1946), No Mundo Maior

    (1947), Libertao (1949), Entre a Terra e o Cu (1954), Nos Domnios da Mediunidade (1955),

    Ao e Reao (1957), Evoluo em Dois Mundos (1958), Mecanismos da Mediunidade (1960)

    e E a Vida Continua (1968). (CABRAL, 2005, p.01).20

    Schubert destaca que Nosso Lar no o primeiro livro a revelar a existncia das

    colnias espirituais. Essa concepo remonta a 1744, com o j citado mstico sueco Emanuel

    Swedenborg em seu livro O Cu e o Inferno (no confundir com a obra posterior e de mesmo

    ttulo de Allan Kardec). Para ela, Andr Luiz vem confirmar todo o relato de Swedenborg,

    duzentos anos depois. Ainda de acordo com Schubert, a recepo do movimento esprita ao

    Nosso Lar

    (...) Foi uma surpresa grande. A maioria [dos adeptos] aceitou bem, mas uma minoria achou que era uma fantasia de Chico, que Andr Luiz no existia, com

    crticas bastante ferinas e com aspectos que prejudicaram muito o Chico, que

    estava acima dessas coisas, assim como Andr Luiz, que disse vamos prosseguir, e veio em seguida a obra Os Mensageiros. O que houve de crtica, depois esses mesmos crticos acabaram aceitando e admitindo, pois a lgica

    muito grande, tudo muito racional, tudo muito bem explicado, o que no poderia ser de outra maneira, pois como Jesus bem disse, h muitas moradas na

    casa do pai, no captulo XIV de Joo (BASTIDORES ESPIRITUAIS DO

    FILME NOSSO LAR, 2012).

    De acordo com declarao de Marlene Nobre feita ao programa televisivo Verdade e

    Luz21

    , Nosso Lar foi eleita a obra mais importante do sculo XX referente quelas psicografadas

    por Chico Xavier, ocasio na qual procurou justificar o interesse das pessoas por este livro:

    Talvez por ser uma obra pedaggica, que mostra uma cidade e como ela

    semelhante com a vida na Terra, o que a torna mais palatvel. Com essa obra,

    Andr Luiz muda a forma pela qual encarada a vida espiritual. E muda

    mesmo, porque uma nova verso do que ocorre quando fechamos os olhos na matria e os reabrimos no mundo espiritual.

    19 Bastidores espirituais do filme Nosso Lar. Entrevista com Suely Caldas Schubert. 30'06". Disponvel em:

    . Acesso em 27 nov. 2012. 20CABRAL, Joo Batista. Obras de Andr Luiz pela ordem cronolgica. Disponvel em: . Acesso em 07 set. 2013. 21

    Marlene Nobre fala sobre as revelaes feitas pelo mdium Chico Xavier a respeito da nova era e sobre a vida na

    Colnia Nosso Lar. Entrevista com Marlene Nobre. 5206. Disponvel em: . Acesso em 26/12/2012.

  • 32

    Gonalves argumenta que podemos creditar a aceitao das teses andreluizinas pelo

    movimento esprita brasileiro ao fato de que

    Pela tcnica medinica de escrita, constituem-se os discursos da literatura medinica, uma produo, tambm, complementar. Esse processo de produo

    discursiva permite, tambm, que a doutrina seja atualizada e renovada pela

    voz dos espritos. A mediunidade psicogrfica , pois, considerada, pelos adeptos do Espiritismo, como a principal fonte de introduo de novos objetos

    e, tambm, da reformulao dos j existentes. (GONALVES, 2012, p.95).

    Porm, como enfatizou Schubert, nem todos os adeptos do Espiritismo se convenceram

    do relato sobre a vida aps a morte do corpo fsico revelada por Andr Luiz. Para este segmento

    de adeptos, as teses andreluizinas s poderiam ser aceitas como verdades doutrinrias se

    houvessem sido confirmadas pelo Controle Universal do Ensino dos Espritos (CUEE),

    metodologia criada por Allan Kardec que visava justamente estabelecer regras para a seleo de

    mensagens medinicas que poderiam ou no ser aceitas como verdades da doutrina esprita. Essa

    metodologia estabeleceu que para uma verdade ser aceita pela doutrina esprita, esta s teria

    validade se fosse constatada em vrios lugares, atravs de diversos mdiuns, que no

    mantivessem contato entre si. Fora desse critrio, toda comunicao dever ser considerada

    como uma opinio particular do esprito comunicante (VIDAL, 2013, p.6).

    , portanto, atravs da aplicao do "Controle Universal do Ensino dos Espritos", que

    Allan Kardec seleciona os enunciados que faro parte daquele conjunto de ideias, em meio

    grande disperso de enunciados que circundavam em torno daquele processo discursivo, o que

    o fez optar pelo recurso da observao das regularidades discursivas (GONALVES, 2010, p.

    41). Temos, portanto, a adoo, por parte de Kardec, de um tipo de procedimento de controle de

    discursos que permite regular o discurso esprita e, consequentemente, a produo das verdades a

    serem adotadas pelo Espiritismo. Segundo Foucault, esse modo de ao trata

    De determinar as condies de seu funcionamento, de impor aos indivduos que

    os pronunciam certo nmero de regras e assim de no permitir que todo mundo

    tenha acesso a eles. (...) Ningum entrar na ordem do discurso se no satisfazer a certas exigncias ou se no for, de incio, qualificado para faz-lo

    (FOUCAULT, 2011, p.36).

    Conforme Gonalves, o Espiritismo constri suas verdades a partir de um conjunto de

    enunciados os quais, ao tratar de objetos como a vida, morte, esprito, imortalidade, dentre outras

    temticas, tornam-se imanentes sua religiosidade. Ainda segundo a autora, a doutrina esprita

    possui um conjunto de discursos que formam seu campo discursivo a partir de uma regularidade

  • 33

    que as identifica como tal. So discursos que definem um saber especfico sobre o divino, o