2014. VIDAL, Fabiano. Em Torno Do Nosso Lar -Uma Analise Das Controversias Produzidas No Movimento...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
CENTRO DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DAS RELIGIES
EM TORNO DO NOSSO LAR:
UMA ANLISE DAS CONTROVRSIAS PRODUZIDAS NO MOVIMENTO ESPRITA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias das Religies como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias das Religies por FABIANO CESAR DE MENDONA VIDAL. Orientadora: Prof. Dr. Dilaine Soares Sampaio Co-orientadora: Prof. Dr. Iracilda Cavalcante de Freitas Gonalves.
JOO PESSOA-PB
2014
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V648e Vidal, Fabiano Cesar de Mendona.
Em torno do Nosso Lar: uma anlise das
controvrsias produzidas no movimento esprita /
Fabiano Cesar de Mendona Vidal.-- Joo Pessoa, 2014.
99f. : il.
Orientadora: Dilaine Soares Sampaio
Coorientadora: Iracilda Cavalcante de Freitas
Gonalves
Dissertao (Mestrado) - UFPB/CE
1. Cincias das religies. 2. Espiritismo. 3. Nosso
Lar - controvrsias.
UFPB/BC CDU: 279.224(043)
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Dedico este trabalho minha famlia, em
especial aos meus desencarnados
queridos: Vicente Ferrer de Mendona,
Dalva Pessoa de Mendona, Francisco de
Assis Vidal e Julieta Pinto Vidal (in
memoriam).
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AGRADECIMENTOS
Clara Betania de Souza e Maria do Carmo F. Beleza, do arquivo de obras raras da
Federao Esprita Brasileira (FEB), que gentilmente disponibilizaram, em formato digital,
edies raras de Reformador, alm da Resenha Histrica Cronolgica do livro Nosso Lar.
CAPES pela bolsa de estudos obtida durante todo o perodo do Mestrado, e sem a qual no
teria sido possvel a concretizao deste trabalho, que implicou em diversas leituras de
variadas fontes de pesquisa.
Ao Programa de Ps-Graduao em Cincias das Religies da Universidade Federal da
Paraba e toda sua equipe de professores, em especial Maria Lcia Abaurre, Iracilda
Gonalves e Dilaine Soares Sampaio, grandes incentivadoras do presente trabalho.
LIHPE Liga de Pesquisadores do Espiritismo, pela sugesto de leituras que em muito
enriqueceram o contedo deste trabalho.
Associao de Divulgadores do Espiritismo do Rio de Janeiro (ADE-RJ), cujo presidente
Sergio Fernandes Aleixo foi de fundamental importncia para uma melhor compreenso dos
embates doutrinrios que se fazem presentes no movimento esprita brasileiro.
Aos amigos Anderson Santiago, Artur Felipe Ferreira, Davidson Mangueira, Edileide
Bezerra, Joo Arnaldo Nunes, Maria das Graas Cabral, Maria Ribeiro, Magali Fernandes
Oliveira, Nivia Rosa, Rose Ribas, Snia Cristina Pinto e Karla Sousa pelo interesse e apoio
demonstrados.
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SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................................06
1. CONTEXTUALIZANDO O NOSSO LAR: O ESPIRITISMO NO BRASIL..............08
1.1 A imortalidade e o ps-morte no Espiritismo.....................................................................17
1.2 Nosso Lar: da obra medinica s telas do cinema..............................................................22
1.3 Nosso Lar: o filme .............................................................................................................38
2. NOSSO LAR E O MOVIMENTO ESPRITA: DISCURSOS TRANSVERSOS............42
2.1 O discurso de Jean Baptiste Roustaing...............................................................................46
2.2 O discurso de Emanuel Swedenborg .................................................................................63
2.3 O discurso de contemporneos ..........................................................................................68
2.4 As controvrsias em torno do Nosso Lar nos discursos de grupos espritas no
Facebook..................................................................................................................... ..............73
3. O NOSSO LAR E O DISCURSO KARDEQUIANO: MAPEANDO AS
CONTROVRSIAS ............................................................................................................ ...79
3.1 Consideraes finais...........................................................................................................87
REFERNCIAS.......................................................................................................................90
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RESUMO
O presente trabalho possui um olhar histrico-antropolgico, de carter essencialmente
bibliogrfico, e tem por inteno abordar as controvrsias existentes no Movimento Esprita
entre a obra de Allan Kardec e Nosso Lar, obra de Francisco Cndido Xavier cujo autor
espiritual Andr Luiz. Pretendendo recuperar as controvrsias que se estabeleceram no
momento do surgimento da obra, foram utilizadas edies de Reformador, uma das principais
e mais antigas publicaes espritas no Brasil. Para demonstrar a atualidade da temtica,
foram tambm analisadas as controvrsias presentes em grupos espritas no Facebook que
envolvem o Nosso Lar. O trabalho, ao tomar como inspirao as ideias de Bruno Latour
acerca das controvrsias, rastreia os atores que possibilitaram, em nosso entendimento, uma
reelaborao original do Espiritismo kardecista no Brasil. Embora as obras de Allan Kardec
sejam utilizadas como base doutrinria, seus princpios sero revisitados por Bezerra de
Menezes e Chico Xavier, cujos trabalhos sero fundamentais na origem de um espiritismo
brasileira conforme as ideias defendidas por Sandra Jacqueline Stoll.
Palavras chave: Espiritismo, controvrsias, Nosso Lar.
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ABSTRACT
The present work has a historical-anthropological perspective, it is essentially bibliographical
and intends to address the existing controversies in the Spiritist Movement between Allan
Kardecs books and Francisco Cndido Xaviers book, Nosso Lar (Our Home, in
English), whose spiritual author is Andr Luiz. As we retrieved such controversies that were
present since the time Our Home was published, many issues of the magazine
Reformador were consulted once it is one of the oldest and most important Spiritist
publications in Brazil. In order to demonstrate the relevance of the subject, we also analyzed
the controversies within some spiritist groups on Facebook that involve the book Nosso
Lar (Our Home). This study, when using some of Bruno Latours ideas about
controversies, investigates the actors that enabled, in our view, an original re-elaboration work
of Kardecist Spiritism in Brazil. Although Allan Kardecs books are used as the doctrinal
basis, their principles were revisited by Bezerra de Menezes and Chico Xavier, whose works
were essential in the origin of a Brazilian Spiritism, according to the ideas defended by
Sandra Jacqueline Stoll.
Keywords: Spiritism, controversies, Our Home.
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1. INTRODUO
H cerca de seis anos decidi conhecer mais profundamente a doutrina esprita
elaborada por Allan Kardec, pois considerava seu contedo doutrinrio divulgado pela
mdia e imprensa escrita algo um tanto vago. A leitura das obras kardequianas despertou
meu interesse pelo tema, e dei continuidade a estas com a obra Nosso Lar, romance
medinico psicografado pelo mdium Francisco Cndido Xavier, de autoria atribuda ao
esprito Andr Luiz.
Despertou-me a ateno em Nosso Lar teses que no se encontravam nas obras de
Kardec. Decidi, ento, me aprofundar ainda mais nas leituras acerca do Espiritismo, e
encontrei, para minha surpresa, vrias controvrsias a respeito de temas que poderiam, ou
no, serem aceitas como verdades doutrinrias espritas.
A partir dessa constatao, nasceu a ideia de estudar esse jogo de vozes existente no
movimento esprita, com o objetivo de compreender suas razes e como essas
controvrsias ajudaram a moldar o espiritismo brasileira como o conhecemos hoje.
Com essa finalidade, este trabalho se prope a discutir as controvrsias existentes
entre a obra de Kardec e o Nosso Lar, de Francisco Cndido Xavier, tomando por
inspirao o conceito de controvrsia de Bruno Latour (2012) e utilizando a metodologia
de anlise do discurso de Michel Foucault (2011) para compreender a produo do
discurso da doutrina, seus modos de legitimao e rejeio.
Para atingir esse objetivo, foi realizada uma seleo de obras de autores espritas e
acadmicos, a fim de nos aprofundarmos no discurso produzido pelos adeptos do
Espiritismo e de seus autores espirituais, em nosso caso, Andr Luiz, sujeito-narrador da
colnia espiritual Nosso Lar. Portanto, foi-nos necessrio estudar, alm das obras de Allan
Kardec e Andr Luiz, autores reconhecidos como de renome no movimento esprita, a
exemplo de Jos Herculano Pires, Sergio Fernandes Aleixo, Heigorina Cunha, Nazareno
Tourinho, Krishnamurti Carvalho Dias, Marlene Nobre e Suely Caldas Schubert, que no
s discutiram a temtica das colnias espirituais, como demais assuntos a ela relacionados.
Dentre os acadmicos, destacamos Emerson Giumbelli, Clia da Graa Arribas, Fbio Luiz
da Silva, Iracilda Cavalcanti de Freitas e Maria ngela Vilhena.
Nesse levantamento, foi realizada pesquisa tambm na internet, com o intuito de
perceber a vivacidade ou no da temtica abordada, em funo da necessidade de
confirmar a hiptese de que a discusso em torno do Nosso Lar pelos espritas encontrava-
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se viva. Deparamo-nos, pois, com a realidade de que as controvrsias entre as obras de
Allan Kardec e o Nosso Lar, de Andr Luiz, assim como a produo de discursos a ela
relacionados, encontra-se quase que em tempo real na internet, onde a localizamos com
relativa facilidade em redes sociais no Facebook, em blogs e at mesmo em vdeos no
Youtube, fato que, em nossa viso, comprova a atualidade e a vivacidade do objeto de
estudo desta pesquisa. Desse modo, entendo que ela pode dar sua parcela de contribuio
no entendimento da produo destes discursos atravs das controvrsias produzidas pelo
movimento esprita, geralmente dividida entre os adeptos mais tendentes ao movimento
religioso (e que comumente so denominados de msticos) e aqueles mais identificados
com a dita face cientfica da doutrina esprita (tambm identificados como ortodoxos).
No que se refere estruturao do trabalho, no primeiro captulo abordo a chegada
do Espiritismo no Brasil, a perseguio nova doutrina pela Igreja Catlica e o esforo
empreendido por adeptos como Luiz Olympio Telles de Menezes, Bezerra de Menezes e
Chico Xavier para legitimar a doutrina kardecista em seu carter religioso. Discuto ainda
os conceitos de imortalidade e ps-morte conforme entendido pelo kardecismo e a
trajetria de sucesso do livro Nosso Lar, lanado na dcada de 1940 at a sua verso
cinematogrfica na dcada de 2000.
No segundo captulo abordo os discursos transversos do movimento esprita a partir
do Nosso Lar, assim como a influncia de autores como Emanuel Swedenborg e Jean
Baptiste Roustaing, este ltimo contemporneo de Allan Kardec, nas teses apresentadas
pelo autor espiritual Andr Luiz no best seller de Chico Xavier. Analiso ainda a construo
de discursos empreendidos pela Federao Esprita Brasileira e adeptos favorveis ou
contrrios s teses apresentadas na obra Nosso Lar.
No terceiro captulo trato, com mais nfase, das controvrsias existentes no
movimento esprita brasileiro a partir do Nosso Lar, realizando a cartografia das
controvrsias seguindo o modelo de Bruno Latour (2012). Com esse intuito, selecionamos
duas temticas causadoras de grandes debates entre os adeptos do Espiritismo: a existncia
das colnias espirituais e as necessidades e sofrimentos dos espritos na vida ps-morte.
Em seguida tecemos as consideraes finais buscando demonstrar que os atores
envolvidos nas controvrsias que permeiam o movimento esprita brasileiro ajudaram a
moldar um Espiritismo brasileira conforme as ideias de Sandra Jacqueline Stoll (2003).
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1. CONTEXTUALIZANDO O NOSSO LAR: O ESPIRITISMO NO BRASIL
No pretendo, neste trabalho, reapresentar a histria do Espiritismo em seus pormenores,
pois considero que esta temtica j foi devidamente abordada tanto por autores acadmicos como
Aubre & Laplantine (1990) e Emerson Giumbelli (1997) quanto por adeptos como Arthur
Conan Doyle (1995) e Dalmo Duque dos Santos (2010) 1
. Desta forma, abordarei aqui apenas o
que concernente ao objeto de estudo.
Prandi (2012) ressalta que, anterior a Allan Kardec, a possibilidade de comunicao com
os espritos prosperavam mundo afora durante o decorrer do sculo XIX, fato este que atraiu o
interesse de variados grupos de pessoas, interessadas na experimentao cientfica desses
fenmenos e a comprovar a existncia de vida aps a morte (PRANDI, 2012, p.21). Um dos
fatos mais importantes ocorridos neste perodo foram as experincias vividas pela famlia Fox
em Hydesville, Estados Unidos, no ano de 1848. As filhas do casal John D. Fox e Margareth
Fox, Katherine, de onze anos, e Margaret, de catorze, se tornaram protagonistas de um episdio
tido por Prandi como o incio do espiritismo (PRANDI, 2012, p.21), embora ainda estivesse
distante deste ter um corpo doutrinrio constitudo. Os fenmenos presenciados pela famlia Fox
consistiam de vibraes, pancadas no assoalho, coisas que deslizavam e raspavam, sem nenhum
motivo aparente (COELHO, 1982, p.81).
De acordo com o relato de Conan Doyle (1995), foi na noite de 31 de maro de 1848 que
Kate Fox desafiou a fora invisvel a repetir as batidas que ela dava com os dedos (DOYLE,
1995, p.75), tendo sua provocao imediatamente respondida na forma de golpes. No tardou
para que a notcia se espalhasse e uma comisso de investigao foi organizada para um jogo de
perguntas e respostas com a inteligncia invisvel. Obtiveram as informaes de que a
inteligncia que se manifestava era um esprito de algum assassinado naquela residncia, aos
trinta e um anos de idade por motivos relacionados a dinheiro, e cujo corpo fora enterrado numa
adega. O alegado esprito comunicante tambm revelara o nome de seu assassino (DOYLE,
1995, p.76).
Na concepo de Dalmo Duque dos Santos (2010),
Os seres de Hydesville eram espritos, seres inteligentes que estavam invadindo
a Terra com a clara inteno de causar espanto e curiosidade. A estratgia deles
era mexer com a imaginao popular, causar um choque no senso comum das
1AUBRE, Marion. A mesa, o livro e os espritos: gnese, evoluo e atualidade do movimento social esprita
entre Frana e Brasil. GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma histria da condenao e legitimao
do espiritismo; DOYLE, Arthur Conan. A Histria do Espiritismo; SANTOS, Dalmo Duque. Nova Histria do
Espiritismo Dos precursores de Kardec a Chico Xavier.
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pessoas e sacudir toda a estrutura de conhecimentos teolgicos e cientficos
dominantes no mundo contemporneo (SANTOS, D., 2010, p.14).
Ainda de acordo com este autor, os seres de outro mundo que se comunicavam atravs
do fenmeno das mesas girantes, que teve como consequncia a elaborao da doutrina esprita
ou Espiritismo na Frana, buscavam chamar a ateno para diversos assuntos pendentes h
sculos, no campo do conhecimento filosfico e religioso (SANTOS, D., 2010, p.18). Este
fenmeno o fato impulsionador para que Allan Kardec desse incio s suas pesquisas a respeito
deste acontecimento, muito comum no pas, no ano de 1853, e que era considerado por grande
parte da sociedade da poca como um entretenimento:
O fenmeno ocorria quando pessoas se colocavam ao redor de uma mesa, em
cima da qual punham as mos. Levantando um dos ps, a mesa dava uma pancada equivalente a uma determinada letra que servia ao esprito comunicante
para formar palavras (VIDAL, 2013, p.12).
Porm, apenas em 1854 que o pedagogo Hippolyte Lon Denizard Rivail ter seu
primeiro contato com as mesas girantes, atravs de um colega da Sociedade de Magnetistas, de
nome Fortier, ocasio em que inicia seus estudos acerca do fenmeno (KARDEC, 2003, p.15).
Sua concluso de que as comunicaes recebidas atravs das mesas estavam muito alm do
conhecimento social e cultural dos participantes das sesses. Foi neste perodo que afirma ter
recebido, atravs de um esprito denominado Verdade, a revelao de que seria o responsvel
pela codificao de uma nova doutrina. Os espritos ainda teriam lhe revelado seu nome - Allan
Kardec - em uma encarnao anterior como druida, assinatura que, mais tarde, utilizou como
pseudnimo no lanamento de O Livro dos Espritos, ocorrido em 18 de abril de 1857.
A chegada da doutrina esprita no Brasil se d em consequncia das estreitas ligaes
entre intelectuais de ambos os pases. rgos da imprensa brasileira, a exemplo de o Jornal do
Commercio do Rio de Janeiro e o Dirio de Pernambuco de Recife, alm de O Cearense, de
Fortaleza, do destaque sobre os fenmenos medinicos que ocorriam nos Estados Unidos e na
Europa (ARRIBAS, 2010, p.53).
Santos destaca que por muitas dcadas, desde sua chegada ao Brasil, o Espiritismo
cresceu num ambiente maciamente catlico. Nesta poca, segunda metade do sculo XIX, a
Igreja Catlica, que possua o status de religio oficial do pas, conforme estabelecido no artigo
5 da Constituio Brasileira, encontrava-se em um momento conflituoso com o Imprio
(SANTOS, 2004, p. 15).
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Todavia, o mesmo artigo que dava religio catlica esse status permitia, com algumas
restries, a possibilidade de instalao de outras religies em solo brasileiro. Assim, seus
adeptos praticavam a sua f quase que na clandestinidade, de forma discreta, sem poder
promov-la, atrair novos adeptos e tampouco realizar suas prticas em lugares marcados por
qualquer tipo de identificao externa.
Os primeiros grupos destinados ao estudo dos princpios espritas no Brasil surgem no
Rio de Janeiro (1865) e Salvador (1873), sendo constitudos por membros da colnia francesa
instalada na Corte, alm de integrantes das elites e classes mdias locais, dentre os quais se
destacavam intelectuais, mdicos, engenheiros e militares (STOLL, 2003, p.49).
O principal modo de divulgao do Espiritismo, em solo brasileiro, ocorreu atravs da
literatura: Les temps sont arrivs, de 1860 e autoria de Casemir Lieutaud, publicado em francs e
Echos de Alm-Tmulo, cujo lanamento ocorreu na Bahia em julho de 1869.
Segundo Stoll, poca do lanamento destas obras, Allan Kardec ainda estava envolvido
com alguns dos seus principais ttulos doutrinrios, que no tardaram a chegar ao Brasil,
traduzidos para o portugus2 (STOLL, 2003, p.50). Reginaldo Prandi destaca que, poca da
formao do Espiritismo,
A Frana era o pas que mais servia ao Brasil como referncia cultural, artstica,
filosfica e cientfica. As poucas livrarias brasileiras vendiam, sobretudo, livros publicados na Frana, e at obras escritas por brasileiros eram editadas naquele
pas (PRANDI, 2012, p.47).
De acordo com este autor, o sucesso das ideias de Allan Kardec apresentadas em O Livro
dos Espritos foi imediato, fato que chamou a ateno do jornalista Paulo Barreto, mais
conhecido por Joo do Rio, que mais tarde publicou, em livro, uma srie de reportagens sobre as
religies praticadas na ento capital federal, As religies do Rio (1904), obra compreendida por
Prandi como um repositrio de preconceito e intolerncia contra as crenas que surgiam em um
Brasil em que o Catolicismo reinava como religio oficial e era a nica tolerada (PRANDI,
2012, p.47). No caso do Espiritismo, Joo do Rio relata que havia, na sociedade baixa pessoas
credulamente enganadas por traficantes que apresentavam uma mistura de feitiaria com
catolicismo e que, entre os adeptos de classes de gente educada havia os frvolos e tolos dos
quais o espiritismo cientfico deles se serve para triunfar... (JOO, 2006, p.269). Porm, se faz
interessante ressaltar que, em determinada passagem de seu texto acerca da temtica esprita,
2 Stoll se equivoca quanto data de lanamento do Echos de Alm-Tmulo. Para esta autora, seu lanamento ocorreu
na Bahia em 1865, porm este peridico teve seu lanamento em julho de 1869, portanto, Allan Kardec, que havia
falecido a 31 de maro do mesmo ano, no conheceu o peridico brasileiro.
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Joo do Rio oferece um amplo espao para a reproduo de um discurso de Leopoldo Cirne3
sobre os princpios bsicos do Espiritismo kardecista, deixando suas crticas mais pesadas s
prticas do baixo espiritismo, que acompanhou durante oito dias ao lado do amigo e Marechal
Ewerton Quadros, primeiro presidente da Federao Esprita Brasileira (JOO, 2006, p.282):
(...) Alm dos raros grupos onde se procede com relativa honestidade, os desbriados e os velhacos so os seus agentes. Os mdiuns exploram a
credulidade, as sesses mascaram coisas torpes e de cada um desses viveiros de
fetichismo a loucura brota e a histeria surge (...) (JOO, 2006, p.283).
O Espiritismo que desde sua chegada ao Brasil, em fase anterior proclamao da
Repblica, foi perseguido pela religio oficial do Imprio, o Catolicismo, necessitou realizar um
grande esforo na busca de sua legitimao em solo brasileiro. Considero a primeira tentativa
nesse sentido a criao, no ano de 1869, em Salvador, do peridico O cho de Alm-Tmulo,
primeira publicao esprita em solo brasileiro que apresentava por objetivo a divulgao dos
princpios bsicos da doutrina esprita, enfatizando sempre a necessidade de estud-la para uma
melhor compreenso. Seu idealizador, o jornalista Luiz Olympio Telles de Menezes, que reuniu
seus companheiros do Grmio de Estudos Espirticos da Bahia (ARRIBAS, 2010, p.63),
defendia a tese de que para ser esprita seus adeptos no necessitavam abandonar o Catolicismo,
religio oficial do pas, uma vez que considerava o Espiritismo uma filosofia de vida, uma
conduta moral, que podia conviver, nesse momento, com o Catolicismo (GOMES, 2012,
p.155).
Ubiratan Machado destaca que Luiz Olympio fora criado em uma famlia catlica e que,
por isso, no admitia a possibilidade de separar-se da Igreja de Roma, fazendo sempre questo de
declarar-se como esprita e catlico, opo que causava ento espanto, revolta, indignao
(MACHADO, 2010, p.13).
De acordo com Fernandes, essa opo de Luiz Olympio em associar o Espiritismo
Kardecista ao Catolicismo ocorreu, provavelmente, com a inteno de proteger-se para no ser
identificado como adversrio da religio oficial do Estado (FERNANDES, 2010, p.60).
Todavia, essa opo realizada por Telles de Menezes no parece ter encontrado
ressonncia em solo francs. Em correspondncia enviada pela Societ Anonyme parts
3 Leopoldo Cirne nasceu na Paraba em 13 de abril de 1870 e considerado pela Federao Esprita Brasileira,
instituio da qual foi presidente aps a morte de Bezerra de Menezes em 11 de abril de 1900, um dos maiores
vultos do Espiritismo brasileiro. Foi o responsvel pela traduo dos livros No Invisvel e Cristianismo e
Espiritismo, ambos de autoria de Lon Denis. Faleceu no Rio de Janeiro em 31 de julho de 1941 (Adaptado da
biografia disponvel no site da Federao Esprita Brasileira. Disponvel em:
. Acesso em 26 nov.2013).
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d'intrts Capital Variable de la Caisse gnrale et centrale du Spiritisme4, datada de 11 de
outubro de 1869 e assinada por Armand Thodore Desliens5 ao peridico esprita brasileiro,
havia elogios iniciativa brasileira na difuso do Espiritismo, mas tambm crticas acerca de
certas passagens, umas relativas aos dogmas religiosos(FERNANDES, 2010, p.64) e outra que
considerava que
(...) O Espiritismo no deve adstringir-se a nenhuma forma religiosa
determinada; , e deve permanecer uma filosofia progressiva e tolerante, abrindo seus braos a todos os deserdados, qualquer que seja sua nacionalidade
e a crena religiosa a que pertenam (FERNANDES, 2010, p.64).
Mesmo diante dessa declarada inteno de Telles de Menezes em conciliar Espiritismo e
Catolicismo, a doutrina esprita no escapou dos ataques da Igreja Catlica, que a 25 de julho de
1867, publica uma pastoral assinada pelo Arcebispo baiano D. Manuel Joaquim da Silveira,
enfatizando a necessidade de censurar e combater o Espiritismo (GOMES, 2012, p.157). As
causas que levaram ao Catolicismo combater enfaticamente a doutrina esprita foram:
(...) O Espiritismo se implantou no que era ento o ncleo dominante da
populao catlica; criou bases slidas no perodo final do Imprio; beneficiou-se da retrao que o Catolicismo vivia, uma vez que este ia perdendo a relao
privilegiada que mantinha com o Estado, no Brasil. Ocorriam conflitos entre a
administrao do Imprio e a hierarquia catlica, como na Questo Religiosa (1872-1875) que resultou na condenao de dois bispos. Ao mesmo tempo, as
elites polticas do pas debatiam a proposta de separar a Igreja do Estado
(SANTOS, 2004, p.17).
Diante desse cenrio, Santos considera que no mbito estritamente religioso das ltimas
dcadas do sculo XIX, era o Espiritismo a ameaa religiosa mais visvel para a hierarquia
catlica (SANTOS, 2004, p.17). Em 24 de agosto de 1871, Olympio Telles de Menezes realiza,
juntamente ao Vice-Presidente da Bahia, Dr. Francisco Jos da Rocha, a primeira tentativa de
reconhecimento oficial do Espiritismo. O requerimento entregue pedia aprovao dos estatutos e
autorizao para o funcionamento do que seria a Sociedade Esprita Brasileira. Este no seria um
empreendimento fcil, por duas razes: primeiro, a Constituio do Imprio que permitia a
coexistncia de outras religies apenas para o culto domstico ou particular; segundo, o decreto
2.711, de 19 de dezembro de 1860 que determinava que a aprovao por parte do governo de
4 Sociedade Annima sem fins lucrativos de Capital Varivel da Caixa Geral e Central do Espiritismo. 5 O contedo da missiva de A. Desliens para Luiz Olympio Telles de Menezes foi reproduzida na ntegra na Revista
Esprita de novembro de 1869, ano dcimo segundo. Traduo de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro:
Federao Esprita Brasileira, 2005.
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qualquer sociedade religiosa no-catlica deveria ser submetida para a aprovao do Ordinrio,
D. Manoel Joaquim da Silveira, com quem Telles de Menezes polemizara alguns anos antes
(MACHADO, 1983, p.98).
Tentando escapar da reprovao do Ordinrio, a Sociedade Esprita do Brasil lanou mo
de um subterfgio ao apresentar-se, em seus estatutos, como associao literria e beneficente.
A estratgia no obtm sucesso e sua aprovao negada. Em seu parecer, o Arcebispo
argumenta que o Espiritismo era um atentado formal contra a f catlica, e que uma doutrina
que possua por objetivo contrariar a religio do Estado, s poderia ser contra esse mesmo
Estado (MACHADO, 1983, p.98).
Machado considera essa reprovao por parte do Arcebispo Dom Manoel Joaquim da
Silveira instalao da Sociedade Esprita do Brasil como a primeira grande vitria da Igreja
Catlica sobre o Espiritismo na Bahia. Com a derrota, houve um desnimo generalizado entre os
espritas. A partir deste acontecimento, a capital esprita do Brasil desloca-se de Salvador para o
Rio de Janeiro, capital do Imprio, local de grandes agitaes (MACHADO, 1983, p.98).
A doutrina esprita de Allan Kardec estabelece-se no Rio de Janeiro, na dcada de 1870,
onde comea a organizar seu movimento. Novamente, a Igreja Catlica realiza ataques ao
Espiritismo atravs de seus sermes e documentos de oposio nova religio (SANTOS, 2004,
p.17).
O perodo de implantao do Espiritismo no Rio de Janeiro coincide com projetos
polticos que buscavam construir a imagem do Brasil como um pas moderno e civilizado, sendo
a capital do Imprio vista como uma cidade de progresso onde ocorriam grandes acontecimentos
histricos, ou seja, era a partir do Rio de Janeiro que se projetavam mudanas que depois
ecoariam para o restante do pas (GOMES, 2012, p. 158).
O interesse demonstrado pelo Espiritismo no Rio de Janeiro fez com que a doutrina
kardecista adentrasse nas altas rodas imperiais. Como exemplo, Araia6 cita uma ocasio na qual
a Princesa Isabel solicitou ao escritor Joaquim Manuel de Macedo, autor de A Moreninha, adepto
e pesquisador do Espiritismo, que descobrisse quem era seu protetor espiritual. Todavia, apesar
de haver conquistado espaos nas altas rodas, a doutrina kardecista ainda era praticada s
escondidas, em virtude do aumento da perseguio realizada pela Igreja Catlica. O Espiritismo
em terras cariocas registrou seu maior avano a partir de 1873, ano no qual fundada a
Sociedade de Estudos Espritas Grupo Confcio, cujo nome uma homenagem a um esprito
que, anos antes, transmitira mensagens consideradas como de grande nvel moral em reunies
6 Eduardo Araia jornalista, diretor de redao da Revista Planeta e autor do livro Espiritismo, doutrina de f e
cincia.
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realizadas por Sequeira Dias, no havendo, portanto, nenhum tipo de aluso ao antigo filsofo
chins. Esse grupo o responsvel por traduzir as obras de Kardec para a lngua portuguesa,
possibilitando que mais pessoas tivessem acesso s teses defendidas pela doutrina esprita.
Dentre as primeiras obras traduzidas estavam O Livro dos Espritos, O Livro dos Mdiuns e O
Cu e o Inferno. A importncia dessas tradues na disseminao das teses espritas pode ser
medida pela converso do mdico Adolfo Bezerra de Menezes, ento catlico, ao Espiritismo,
aps tomar contato com a doutrina atravs de uma dessas publicaes. (ARAIA, 1996, p.101-
102).
Em 1884 fundada, no Rio de Janeiro, a Federao Esprita Brasileira FEB, que em seu
princpio, possua como premissa inicial ser uma referncia nacional para o movimento esprita,
que se dissertinava (sic) em vrias partes do pas. (...) A Federao pretendia ser a representante
do Espiritismo no Brasil (SANTOS, 2004, p.23). Contudo, Giumbelli contesta essa funo de
representao do Espiritismo, tomando por base edies do jornal Reformador7 da poca. Para
ele, a entidade no se propunha a representar grupos, mas a ser um instrumento de divulgao
da doutrina esprita, congregando esforos de indivduos que eram convidados a ela se associar
(GIUMBELLI, 1997, p.63). De acordo com este autor, a FEB s viria a assumir este papel de
representao de grupos a partir de determinado momento, no qual obtm certo
reconhecimento que torna possvel desempenh-lo (GIUMBELLI, 1997, p.63). Segundo
Giumbelli, ser a partir de 1895, em funo da represso ao Espiritismo institudo pelo cdigo
penal de 1890, que a FEB assumir a dupla misso, diante do conjunto dos grupos e dos adeptos
espritas do Rio de Janeiro e mesmo do Brasil, de orient-los doutrinalmente e represent-los
institucionalmente (GIUMBELLI, 1997, p.40).
Com a proclamao da Repblica, em 1889, deu-se a instalao, no Brasil, de um Estado
laico. Os espritas, que durante o Imprio eram atacados e perseguidos por rgos da imprensa e
eram acusados por mdicos pela prtica ilegal da medicina e, at mesmo, de charlatanismo,
defrontaram-se com um cenrio ainda mais rigoroso em relao ao Espiritismo, uma vez que o
Cdigo Penal de 1890 estabelecia, atravs dos artigos 156, 157 e 158, severas punies queles
que praticassem curandeirismo, charlatanismo e espiritismo (ARRIBAS, 2010, p.119-120):
Art. 156. Exercer a medicina em qualquer de seus ramos, a arte dentria ou a
farmcia: praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo
animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos.
7 Reformador o rgo oficial de imprensa da Federao Esprita Brasileira, tratando de assuntos dedicados ao
Espiritismo, atuando em defesa e pela propaganda da doutrina esprita, com artigos escritos por colaboradores
locais, contendo notcias sobre o movimento esprita no Brasil e em outros pases (Adaptado de GIUMBELLI, 1997,
p.63).
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Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilgios, usar de talisms e
cartomancia, para despertar sentimento de dio ou amor, inculcar curas de molstias curveis ou incurveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade
pblica. Pena: de priso celular de 1 a 6 meses e multa de 100$000 a 500$000
Art. 158. Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo, para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substncia de qualquer dos
reinos da natureza, fazendo, ou exercendo, assim, o ofcio do denominado
curandeiro (ARRIBAS, 2010, p.120-121).
Nesta nova conjuntura, os adeptos do kardecismo estavam sujeitos a sofrer judicialmente
processos condenatrios, como de fato, ocorreu. A respeito desses artigos do Cdigo Penal,
afirma Giumbelli:
Como um crime contra a tranquilidade pblica, o espiritismo distingue-se de outros crimes em funo da entidade que se considera lesada pela sua prtica.
No se trata, assim, de um crime contra a pessoa (...) No um crime contra o
Estado (...) Nem, enfim, um crime contra o que podemos nos referir como instituies (famlia, moralidade, casamento) (...) O espiritismo um crime de consequncias pblicas, como o so as falsificaes de documentos (...), os
incndios provocados e os atentados envolvendo os meios de transporte (...) o
uso de substncias venenosas, a alterao de medicamentos e a falsificao de comestveis (...). (...) Ou seja, o que est em foco menos a preciso da
entidade lesada e mais um ato em suas virtualidades. Nesse sentido, esses
crimes, por sua definio, aproximam-se das contravenes, que ocupam um lugar especfico no cdigo penal e abrangem disposies sobre as loterias, os
jogos de azar, o porte de armas, a constituio de sociedades secretas, a
mendicncia e a vadiagem, entre outras coisas. Diferentemente do crime um delito, um fato consumado a contraveno era definida como prtica perigosa pelos danos que tinha a possibilidade de causar. (GIUMBELLI, 1997, p.81)
(Grifo original do autor).
Cabe aqui uma ressalva. A palavra espiritismo citada no Cdigo Penal de 1890 no se
referia exclusivamente doutrina elaborada por Allan Kardec, mas tambm a outros tipos de
prticas e crenas assim entendidas como espiritismo, a exemplo das religies afro-brasileiras,
das quais a doutrina kardecista sempre esforou-se em diferenciar-se em busca de definir uma
identidade prpria, ao enfatizar sua origem europeia e, portanto, superior (SILVA, F., 2005,
p.88-89).
Vilhena afirma que nesse perodo ps-abolicionista, fazia-se fundamental para os homens
brancos e cultos estabelecerem diferenciaes de tudo aquilo que pudesse ser relacionado ao
mundo da
(...) negritude, ento vinculado ao que dissesse respeito falta de cultura,
irracionalidade, ao desregramento dos costumes, incapacidade para o trabalho,
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s supersties, ao charlatanismo, ao politesmo, invocao de entidades
espirituais ligadas ao mal e demonaco (VILHENA, 2008, p.85).
Assim, adeptos do Espiritismo kardecista renem-se posteriormente com o Ministro da
Justia, Campos Sales, a quem reivindicaram mudanas no novo Cdigo Penal, em uma tentativa
que se mostrou frustrada. O relator do cdigo, Joo Batista Pinheiro, explicou-se aos kardecistas,
argumentando que o texto remetia s prticas do que era considerado por baixo espiritismo,
termo que seria utilizado para referir-se s crenas afro-brasileiras (ARRIBAS, 2010, p.121).
A partir de ento, o termo baixo espiritismo ser utilizado para denominar prticas que
estariam fora do mbito do espiritismo organizado (SANTOS, 2004, p.55) e associado
criminalizao das prticas espritas, vigentes em tal perodo (GIUMBELLI, 2003, p.249).
Para Arribas, apesar da explicao do relator do cdigo, os espritas estariam sendo
enquadrados como causadores de problemas no que se referia ao rtulo de Sade Pblica, uma
vez que alguns deles alegavam realizar curas fsicas e morais atravs da homeopatia e da
aplicao de passes magnticos atravs da imposio de mos. De acordo com esta autora, tais
prticas espritas iam de encontro com a autonomizao dos poderes da esfera mdica, categoria
que reivindicava para si o monoplio da cura. Arribas destaca ainda casos em que espritas foram
enquadrados por prticas de explorao da credulidade pblica, pois teriam obtido fins lucrativos
atravs das mesmas. De acordo com esta autora, esses fatos ocorriam como consequncia de um
perodo histrico em que haviam, em diferentes nveis,
As preocupaes de controlar, de conter, de mapear e de classificar, preocupaes ligadas ao objetivo do governo de instituir uma nova ordem
urbana, fator necessrio para a realizao do progresso. Alm disso, esses
processos eram o resultado do realamento de uma tambm recente noo de pblico, que ajudou a promover a legalizao da represso queles cujas aes
iam contra o seu contedo (ARRIBAS, 2010, p.122) (Grifos originais da
autora).
Anterior a Arribas, Maggie considera que a promulgao do novo cdigo penal brasileiro
em 1942 marcou a definitiva deslegitimao das prticas identificadas ao candombl e
macumba, pois o termo espiritismo retirado do texto legal, pressupondo que kardecistas e
umbandistas estivessem livres de condenaes" (MAGGIE, 1992 Apud SAMPAIO, 2010,
p.20); Para Giumbelli, o novo cdigo penal diferia do seu antecessor de 1890 por no condenar
especificamente nenhuma crena ou saber. Pelo contrrio, buscava definir prticas que causariam
em prejuzo, real ou virtual, propiciado sade pblica (GIUMBELLI,1997, p.219).
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Arribas especula que poderia estar acontecendo uma utilizao dos espritas como bodes
expiatrios numa tentativa de diminuio da oposio praticada pelo Catolicismo ao novo
regime, causada em funo da separao entre a Igreja e o Estado (ARRIBAS, 2010, p.122).
Mesmo com o advento do sculo XX, a imprensa continua a realizar denncias contra
centros espritas e terreiros que sofrem com inquritos e batidas policiais, sob a acusao de
exerccio ilegal da Medicina, em virtude do receiturio aplicado por alegados espritos, que iam
da aplicao de passes magnticos utilizao de garrafadas, ervas e razes, dentre outras
sugestes de curas, aos pacientes que os procuravam. Apesar da perseguio aos espritas pelo
aparato oficial permanecer, ainda assim a doutrina esprita continua a expandir-se e a incomodar
a Igreja Catlica, visivelmente consternada pelo trnsito religioso de seus fiis, que tambm
procuravam por centros espritas, o que ameaava a sua hegemonia no Brasil (VILHENA, 2008,
p.87).
De acordo com Prandi, enquanto o Espiritismo se institucionalizava era ao mesmo tempo
acusado pelos catlicos de esconder uma nova religio atrs de uma falsa cincia. De um lado,
os kardecistas realizavam experincias pblicas como supostas materializaes de espritos; por
outro, seus opositores oriundos do Catolicismo tentavam desmascarar uma alegada farsa dos
seguidores de Kardec (PRANDI, 2012, p.60).
Mesmo acusada de farsa pelos catlicos, a doutrina de Allan Kardec j se encontrava bem
difundida pelo Brasil, e atingira certo status em termos de reconhecimento e legitimidade sociais,
sobretudo em decorrncia de sua filantropia e da presena de gente de prestgio em suas
fileiras (PRANDI, 2012, p.63).
A respeito da configurao que tomaria a doutrina esprita no Brasil, Stoll questiona se
esta seria uma distoro do Espiritismo francs, apresentando-se como uma nova cincia, ou, ao
contrrio, uma reconstruo original na qual assume um matiz perceptivelmente catlico na
medida em que incorpora sua prtica um dos valores centrais da cultura religiosa ocidental: a
noo crist de santidade (STOLL, 2003, p.61). Para esta autora que utiliza como inspirao
ideias apresentadas por Clifford Geertz na obra Observando El Islam, o Espiritismo
brasileira no seria uma distoro do original surgido na Frana, mas uma reelaborao, tese
defendida tambm por Fbio Luiz da Silva. Vejamos:
O Espiritismo no Brasil no um simples desvio de uma doutrina racional de origem europeia e que sofreu uma contaminao do mgico e do mstico, graas
a uma predisposio do povo brasileiro para o maravilhoso. uma reconstruo
original influenciada pela formao cultural brasileira que j possua elementos que foram reinterpretados pelo Espiritismo, assim como ele foi reinterpretado
por estes mesmos elementos: crenas indgenas, africanas e populares de origem
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europeia. Dessa forma, acreditamos no ser possvel ao Espiritismo manter uma
pureza, para onde quer que fosse difundido (SILVA, F., 2005, p.32).
Apesar do argumento da reconstruo defendida por Stoll e Silva, Prandi ressalta que as
teses mais importantes do Espiritismo de Allan Kardec (...) foram preservadas na constituio do
que viria a ser o Espiritismo no Brasil. Dentre estas teses esto: a aceitao da comunicao
com os mortos, atravs de pessoas que servem de intermedirios entre os mundos fsico e
espiritual os mdiuns , capazes de se comunicar tanto pela forma escrita (psicografia), quanto
pela falada (psicofonia); a reencarnao como forma de atingir o estado de esprito puro, no qual
no mais necessrio voltar a habitar mundos fsicos; e a pluralidade das existncias, esta ltima
trata da evoluo do esprito atravs de encarnaes em diferentes globos (planetas) (PRANDI,
2012, p.39).
A reelaborao do Espiritismo kardecista no Brasil, de matiz perceptivelmente catlico
(STOLL, 2003, p.61), no se limitar a essa tentativa da construo de um discurso conciliatrio
entre as doutrinas catlica e esprita, mas tambm aos conceitos de imortalidade e ps-morte
elaborados por Allan Kardec durante a implantao e desenvolvimento da doutrina esprita, que
sero revistos posteriormente em obras psicografadas por Chico Xavier, como Cartas de uma
morta e Nosso Lar, que daro origem a um Espiritismo brasileira conforme as teses de Stoll.
1.1 A imortalidade e o ps-morte no espiritismo
De acordo com Silva, as obras espritas que apresentam uma descrio da vida aps a
morte do corpo fsico representam uma vontade de dizer algo sobre como a vida no mundo
espiritual. Com esse objetivo, foram produzidos termos e/ou imagens que pudessem ser
assimilados pelos leitores destas obras. Segundo este autor, o homem religioso do passado,
anterior poca em que o pensamento cientfico passa a ditar os limites existentes entre o que
era real ou imaginrio, no era capaz de conceber um lugar sem a presena da divindade. Desta
forma, o cu, o espao acima de ns, necessitaria ser preenchido com algo, um lugar que
deveramos ir aps a morte o paraso (SILVA, F., 2007, p.17-19).
Para a doutrina esprita, a morte como o aniquilamento de tudo no existe, e,
consequentemente, no deve ser temida por seus adeptos. Os princpios espritas afirmam que o
esprito, aps romper sua ligao com o corpo fsico mantm sua forma, individualidade,
aptides e percepes. As crenas do Espiritismo trazem implcitas uma significao de ausncia
do temor da morte, atravs da certeza da inexistncia da morte. A doutrina de Allan Kardec
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ressignifica, por assim dizer, as noes de cu, inferno e purgatrio. Rompe tambm com a
concepo de espaos determinados para a vida aps a morte, estabelecendo que o mundo
espiritual encontra-se espalhado por todo o universo. Para o Espiritismo, as penas s quais os
espritos estavam condenados j no eram mais eternas, reduzindo-as a penas morais que
poderiam ser quitadas atravs de sucessivas reencarnaes (SILVA, E., 1993, p.177).
Com estas concepes, a emergente doutrina esprita oferece aos homens do sculo XIX
uma nova forma de entender o inevitvel fenmeno da morte biolgica, provendo-lhes respostas
para suas insatisfaes e desconfortos a respeito desta temtica, apresentando um discurso de
continuidade e imortalidade. Como consequncia dessa viso,
Kardec ordena para a sociedade de seu tempo o mundo natural e social,
integrando-o em uma cosmologia que abrange dimenses fsicas e metafsicas nas quais cada evento particular est em relao com todos os outros, formando
assim uma realidade coerente, dotada de sentido, que oferece justificativas para
a existncia humana em situaes dadas. Dessa maneira, estamos diante da formulao de uma metafsica, uma cosmologia, uma ontologia, uma teodicia
(VILHENA, 2008, p.59).
Segundo Corra, o homem possui um desejo de onipotncia que se traduz na vontade de
existir sempre, uma busca da possibilidade do renascimento dos mortos que assumir, nos
domnios do pensamento e da cultura, status de um dado universal, ou seja, um desejo que
continua arraigado nas profundezas do ser do homem at os dias atuais. De acordo com este
autor, a crena na sobrevivncia ou a f na imortalidade so decorrentes da persistncia do
traumatismo da morte que pode, inclusive, acarretar na destruio da alegria do viver (CORRA,
2008, p.41-42). Crer em uma vida aps a morte seria, para este autor,
Uma astcia qual o homem recorre, para dissolver o medo e o horror da morte, e que a esta se juntar outra, a crena no duplo, que pode ser denominado de fantasma, esprito, alma, e at como sombra do corpo, estando presente nas mais diversas culturas, folclores e doutrinas esotricas (CORRA, 2008, p.43-44).
Ainda de acordo com Corra, o Espiritismo a expresso mais marcante das crenas
arcaicas no duplo - ao afirmar a existncia de um mundo invisvel em que vivem as almas dos
homens que um dia j viveram na Terra, ou mesmo em outros planetas. (CORRA, 2008, p.46).
De acordo com Silva, nas obras de Allan Kardec inexistem descries de uma vida ps-
morte semelhante s descritas nos livros de Chico Xavier, a exemplo do Nosso Lar. Segundo este
autor, as obras kardequianas so muito mais textos de reflexo filosfica do que de literatura,
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trao este evidenciado na obra O Cu e o Inferno ou a Justia divina segundo o Espiritismo.
Neste livro integrante da codificao esprita, em sua primeira parte, Allan Kardec rev
princpios catlicos sobre o cu, inferno, purgatrio, anjos e demnios. Na segunda, Kardec traz
aos adeptos relatos de espritos desencarnados divididos de acordo com sua situao na
erraticidade8: felizes, sofredores, suicidas, criminosos, etc. Os depoimentos trazidos pelos
espritos se resumem explicao do que ocorre em funo do desprendimento da alma (esprito
encarnado) do corpo fsico, as perturbaes geradas devido a esta separao e entrada nesta
nova condio de existncia. Mesmo nesses exemplos relatados por Kardec, no possvel
encontrar quaisquer referncias s cidades espirituais popularizadas mais tarde nos textos
psicografados por Chico Xavier (SILVA, F., 2007, p.71).
Para Silva, faz-se necessrio destacar a posio assumida por Allan Kardec de inspirao
iluminista e que se contrape ao materialismo, crena que prega nada existir aps a morte do
corpo fsico. Ao analisar as consequncias negativas para a sociedade e seus sujeitos decorrentes
da tese materialista de que nada existe aps a morte do corpo, Kardec se mostra decepcionado
pelo fato das religies no terem conseguido impor-se sobre esta temtica. Para o codificador da
doutrina esprita, o Espiritismo oferece sustentao cientfica crena na alma e na vida aps a
morte, sendo esta posio doutrinria uma consequncia da observao de fatos materiais e
positivos (SILVA, F., 2007, p.72).
Em relao s concepes de cu e inferno, Allan Kardec considera que estas estariam
mais diretamente ligadas s condies morais dos espritos, o que lhes possibilitaria ter
percepes diferenciadas da vida espiritual, ou seja, as condies morais que determinaro seu
grau de felicidade ou infelicidade, e no o estado de um lugar determinado ou circunscrito no
qual se encontram:
Nessa imensidade sem limites, onde, pois, est o cu? Est por toda parte; nada
o cerca nem lhe serve de limites. (...) Quanto pequena e mesquinha a doutrina
que circunscreve a Humanidade num imperceptvel ponto do espao, que no-la mostra comeando em um instante dado para acabar (...). (...) Quanto, ento,
estreita a ideia que ela d da grandeza, do poder e da bondade de Deus!
(KARDEC, 2008, p.22-23).
Lon Denis, destacado filsofo adepto do Espiritismo, corrobora a opinio de Allan
Kardec acerca das concepes de cu e inferno:
8Erraticidade, na acepo que lhe atribuem os espritas, significa o tempo que aguarda o esprito "desencarnado"
uma nova reencarnao.
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Segundo algumas doutrinas religiosas, a Terra o centro do Universo, e o cu
arredonda-se como abbada acima de ns. na sua parte superior, dizem, que
se assenta a morada dos bem-aventurados, e o inferno, habitao dos rprobos, prolonga suas sombrias galerias nas entranhas do prprio globo. A Cincia
Moderna, de acordo com o ensino dos espritos, mostrando-nos o Universo
semeado de inumerveis mundos habitados, trouxe um golpe mortal a essas
teorias. O cu est em toda parte; em toda parte o incomensurvel, o insondvel, o infinito; em toda parte um formigamento de sis e de esferas, dentre os quais
nossa Terra apenas nfima unidade (DENIS, 2008, p.227).
Para Silva, a inexistncia de relatos de uma vida espiritual materializada nas obras destes
autores estaria relacionada forma pela qual a doutrina esprita reavaliou as noes de cu,
inferno e purgatrio de acordo com suas prprias concepes, rompendo com as antigas
teogonias que pregavam a existncia de espaos fechados e determinados para a vida espiritual.
O Espiritismo segue de acordo com a lgica e as descobertas astronmicas e determina a
inexistncia desses lugares ao afirmar que o mundo espiritual estava espalhado pelo Universo,
deslocando, assim, o centro e as dimenses espirituais, e suas noes de moradas em esferas ou
espaos celestiais escalonados como consequncia dos merecimentos religiosos na vida (SILVA,
E., 1999, p.43).
Segundo Silva, a inexistncia de descries como as de anjos, muralhas, rvores e rios
nas obras kardequianas se deve ao fato de que a concepo do alm, proposta por Kardec, est
baseada em uma valorizao da cincia como meio de evitar antigos modos de imaginar a vida
aps a morte: circunscrita e de forma material (SILVA, F., 2007, p. 75). Em sua anlise, afirma
que o codificador do Espiritismo mostra-se desconfiado em relao a descries materiais do
alm. Longe estamos, portanto, de algum que aceita qualquer informao (SILVA, F., 2007,
p.78).
Faz-se importante ressaltar que os homens sempre possuram um sentimento de que sua
vida teria um fim, mesmo que essa conscincia no fosse clara; de acordo com Corra, esta
conscincia de finitude um fato universal (CORRA, 2008, p.23). Para este autor, os homens
primitivos, como o de Neanderthal, tinham por hbito colocar seus mortos em sepulturas,
cuidado este que, com o passar do tempo, se transformaria em ritos e pompas que conduziam a
uma exaltao coletiva ou tornavam tal rito uma experincia sagrada (CORRA, 2008, p.24).
Segundo Corra, ser a partir do surgimento das civilizaes arcaicas que os homens
passam a fazer uso da morte, referindo-se a ela atravs da utilizao de termos como sono,
um novo nascimento, doena, malefcio e entrada no mundo dos antepassados. Ainda de
acordo com este autor, o traumatismo da morte era to grande e importante que promoveu o
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surgimento da ideia de continuao da vida sob outras formas. Entretanto, s mais tarde surgiu a
ideia de imortalidade que se tornaria universal (CORRA, 2008, p.25).
Antes de Allan Kardec (1804-1869), outros pensadores se dedicaram temtica da
imortalidade da alma, como o filsofo grego Scrates, citado pelo prprio Kardec em O
Evangelho segundo o Espiritismo ao lado de Plato como precursores da ideia crist e do
Espiritismo. Posteriormente, o mstico sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), considerado
por Arthur Conan Doyle como uma grande autoridade em Fsica e Astronomia ir se
confrontar com a questo do ps-morte e a realidade com a qual os homens viriam a encontrar no
denominado plano espiritual (DOYLE, 1995, p.34). De acordo com Ferrater Mora (2001,
p.2800), Swedenborg dedicou-se por muitos anos pesquisa cientfica e tcnica, das quais
comearia a duvidar no ano de 1743 para, em 1747, abandonar o cargo de assessor do Real
Colgio de Minas com o objetivo de dedicar-se plenamente s suas especulaes cientfico-
religiosas. Aos cinquenta e seis anos, Swedenborg afirmou que fora designado pelo prprio
Senhor, que a ele teria aparecido em uma viso no ano de 1744, conclamando-o a se tornar o
porta-voz do sentido espiritual da Bblia. Para atingir essa finalidade, teriam-lhe sido abertos os
segredos dos cus. A partir deste acontecimento, Swedenborg alega ter experimentado viagens
a outros planos e dimenses espirituais; ocasies onde teria conhecido os pormenores da vida
ps-morte e conversado com espritos, elaborando aps estas vivncias uma nova doutrina9 onde
descortina para os vivos o destino espiritual dos mortos (SILVA, E., 1999, p.11).
De acordo com Swedenborg, no cu existem sociedades onde os anjos vivem como os
homens, e, portanto, necessitam de habitaes que estariam de acordo com o estado de vida de
cada um deles: magnficas para os que esto em um estado mais digno e menos magnficas para
os que esto em um estado inferior. Descreve a existncia nessas habitaes de cmaras, salas e
quartos, assim como de trios, jardins, bosques, campos e palcios (SWEDENBORG, 2005, 91-
93).
Diante deste breve exposto a respeito da figura de Emanuel Swedenborg, podemos
deduzir uma provvel popularidade de suas ideias, fato este que levar Allan Kardec a criticar
suas teses principais em sua Revista Esprita10
de novembro de 1859.
Como possvel perceber, Allan Kardec, ao elaborar a doutrina esprita, fortemente
influenciada pelo positivismo reinante no sculo XIX, rompe com antigas formas de entender o
alm, a exemplo das cidades espirituais relatadas por Swedenborg, por consider-las como teses
9 Esta nova doutrina elaborada por Swedenborg se tornaria conhecida como doutrinas para a Nova Igreja ou Doutrinas Celestes. 10 Tratarei no captulo 2 com mais detalhes acerca da anlise realizada por Allan Kardec a respeito das teses de
Emanuel Swedenborg sobre o ps-morte na Revista Esprita de novembro de 1859.
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oriundas do misticismo e sobrenatural11
, conceitos dos quais pretende blindar a doutrina
esprita por ele elaborada e compreendida como uma cincia de observao e doutrina
filosfica (KARDEC, 2009, p.10), evitando, assim, as descries materializadas do alm
existentes.
1.2 Nosso lar: da obra medinica s telas do cinema
no incio do sculo XX que nasce, em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, Francisco
Cndido Xavier (1910-2002), aquele que, anos mais tarde, assumir o papel de mdium esprita e
ter atuao significativa para a legitimao do Espiritismo em seu carter religioso no Brasil.
Oriundo de famlia catlica, Chico Xavier teria experimentado sua primeira manifestao de
mediunidade ainda aos quatro anos, quando intervm em uma conversa entre seus pais, sobre o
aborto sofrido por uma vizinha. Chico Xavier interrompeu o dilogo entre ambos e explicou a
causa do aborto: O que houve foi um problema de nidao inadequada do ovo, de modo que a
criana adquiriu posio ectpica. Questionado sobre o significado das palavras nidao e
ectpica, respondeu que no sabia s havia repetido o que teria escutado de uma voz (ARAIA,
2007, p.15).
Apesar de haver relatado vises de espritos e de escutar as vozes destes em muitos
momentos de sua vida, s em 1927, aos dezessete anos, Chico Xavier ir abandonar suas crenas
catlicas e ingressar na doutrina esprita. O fato que o leva a tomar tal deciso foi uma doena
contrada por sua irm Maria Xavier, cujo tratamento pela medicina convencional no vinha
obtendo sucesso. Dentre os sintomas apresentados, estavam delrios, xingamentos, suores frios,
contores. Seu pai, sem maiores opes de tratamento, e apesar de catlico, resolve lev-la a
um casal de amigos espritas, Jos Hermnio Percio e Carmem. O casal, ao receber Maria em
sua casa, teria identificado um esprito obsessor como a causa dos problemas. Realizando uma
sesso cuja prtica teraputica incluiu a administrao de passes, preces e doutrinao do alegado
esprito obsessor, o casal conseguiu afast-lo. Chico Xavier, que nessa ocasio, j nutria certa
curiosidade pela doutrina esprita, resolveu conhec-la melhor lendo dois livros de Allan Kardec:
O Livro dos Espritos e O Evangelho segundo o Espiritismo (ARAIA, 2007, p.20).
Chico Xavier ento comunica ao padre Sebastio Scarzello, que o acompanhava desde
criana em Pedro Leopoldo, sua deciso em deixar a doutrina catlica para ingressar no
Espiritismo. De acordo com Oliveira (2009, p. 28), o contexto do Espiritismo no Brasil seria, a
partir da dcada de 1930, fortemente influenciado pela figura de Chico Xavier, cuja produo
11 Este raciocnio ser aprofundado no captulo 3.
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24
medinica teria ampla divulgao por parte da Federao Esprita Brasileira FEB, que se
utilizaria do mdium como agente do enfoque doutrinrio daquela instituio, mais voltada para
o aspecto religioso da doutrina esprita. Dessa forma, a FEB pretendia reforar sua ascendncia
como rgo unificador do movimento esprita no Brasil, atravs do carisma de Chico Xavier e da
comercializao das obras medinicas psicografadas por ele. A Federao Esprita Brasileira
pretendia, com isso, constituir-se como referncia religiosa autnoma (LEWGOY, 2004, p. 13).
Chico Xavier inicia sua produo bibliogrfica medinica com um livro que causou
grande polmica, O Parnaso de Alm-Tmulo (1932), uma coletnea de 59 poemas assinados por
poetas falecidos ilustres, como, por exemplo, Augusto dos Anjos. Outras obras importantes desse
perodo (que compreende os anos 30 e incio dos 40) so os romances de Emmanuel, mentor
espiritual do mdium, que narra episdios do incio da era crist, e Brasil, Corao do Mundo,
Ptria do Evangelho, atribudo ao esprito do autor Humberto de Campos, que interpreta a
histria do Brasil sob a tica esprita (LEWGOY, 2004, p. 26).
Em carta enviada ao ento presidente da Federao Esprita Brasileira, Wantuil de
Freitas, Chico Xavier afirma que Emmanuel o alertara de que algumas autoridades espirituais
desejavam trazer pginas com o objetivo de despertamento; a inteno era possibilitar o
conhecimento de certos aspectos da vida que nos espera no outro lado. O autor espiritual
incumbido desse objetivo, Andr Luiz, se apresenta a Chico Xavier em 1941, de acordo com
Schubert12
, com o objetivo de sintonizar-se com o mdium, e passa a acompanhar Chico Xavier
em todas suas tarefas e conversaes; Em 1943, Andr Luiz d incio produo de Nosso Lar,
cujo lanamento ocorre em 1944 (SCHUBERT, 2010, p.88-89).
Nosso Lar foi escrito durante o perodo em que o Espiritismo buscava sua legitimao no
campo religioso brasileiro, no contexto histrico da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
poca na qual o Brasil sofria ataques de submarinos alemes, fato que leva o pas a fechar
acordos econmicos e militares com os Estados Unidos, e a entrar no conflito (SOUZA,W., s.d.,
p.26). Para os espritas, Nosso Lar possui como objetivo principal apresentar ao mundo a
realidade do alm-tmulo. De acordo com Stoll, os adeptos do Espiritismo consideram a
descrio da vida espiritual, contida nesta obra e relatada pelo sujeito-narrador Andr Luiz, como
12 Suely Caldas Schubert, natural de Carangola, MG, adepta do Espiritismo, dedica-se s atividades que envolvem a
temtica da mediunidade e da divulgao da doutrina esprita. Em 1986, fundou com um grupo de companheiros, a
Sociedade Esprita Joanna de ngelis, em Juiz de Fora, e diretora do Departamento de Mediunidade da Aliana
Municipal Esprita dessa cidade. autora de nove livros acerca da temtica esprita, sendo dois deles editados pela
Federao Esprita Brasileira: Obsesso/Desobsesso: Profilaxia e Teraputica (1981) e Testemunhos de Chico
Xavier (1986). um dos nomes de destaque entre os oradores e intelectuais espritas. (Adaptado do site do Centro
Esprita Francisco Xavier dos Santos. . Acesso em 25
nov.2013).
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a principal contribuio desse autor espiritual em relao a esta temtica considerada pouco
explorada por Allan Kardec em seus livros (STOLL, 2003, p.105).
A personagem principal do livro o mdico desencarnado13 Andr Luiz (nome
fictcio), que relata suas descobertas e impresses acerca de uma colnia espiritual.
Nosso Lar uma obra dividida em cinquenta captulos curtos, onde o autor espiritual
Andr Luiz busca introduzir conceitos espritas como a existncia de uma vida ps-morte atravs
da descrio dessa mesma existncia em uma cidade (ou colnia) espiritual. Esta descrio, de
acordo com Gonalves, constituda por jogos de verdade usados para sedimentar as verdades
espritas sobre a existncia de vida no plano espiritual e, ao mesmo tempo, convencer os leitores
da autenticidade desses princpios (GONALVES, 2011, p.186) (Grifos originais da autora).
Souza destaca duas caractersticas da obra: o abuso do emprego da comoo emocional e
a forma cerimoniosa ou teatral comumente associada forma de interpretao realizada por
atores de filmes mudos e doses homeopticas de mensagens e valores cristos ao longo dos
captulos. Para este autor, as perguntas realizadas por Andr Luiz a outros personagens ao longo
da obra faz referncia forma pela qual Allan Kardec elabora O Livro dos Espritos, com
perguntas e respostas (SOUZA, s.d., p.42).
Do captulo um ao sete, possvel identificar que o autor espiritual Andr Luiz passa por
um momento de adaptao, uma vez que fora resgatado do Umbral para o Nosso Lar. Na
colnia, recebe esclarecimentos acerca de sua nova condio de vida e acredita ser a paisagem do
Nosso Lar uma melhorada cpia da Terra.
A partir do oitavo at o dcimo segundo captulo, teremos a descrio da vida cotidiana
da colnia. Andr Luiz passa a conhecer suas particularidades, descobre a existncia de outras
colnias espirituais como a de Alvorada Nova e absorve novos conhecimentos sobre o Umbral,
zona purgatorial onde habitara por oito anos.
Andr Luiz descobre a importncia e a necessidade do trabalho em prol do prximo e
como so os relacionamentos entre os espritos habitantes do Nosso Lar entre o dcimo terceiro
captulo e o vigsimo segundo. Descobre tambm a existncia do bnus-hora, espcie de salrio
que pode ser utilizado para entretenimento ou aquisio de uma casa prpria.
Entre os captulos vinte e trs e trinta e trs, Andr Luiz toma conhecimento da ecloso
da Segunda Guerra Mundial na Terra e recebe orientaes sobre as atividades que poder
empreender em Nosso Lar. Inicia seus trabalhos nas cmaras de retificao como auxiliar de
13 Este termo utilizado pelos espritas para se referir aos espritos cujos corpos fsicos faleceram, e que, portanto,
regressaram para o mundo espiritual, no possuindo mais vnculos com os corpos materiais que deixaram.
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limpeza e toma conhecimento de perturbaes do esprito provocadas por sentimentos de
vingana e apego matria.
Andr Luiz d continuidade ao seu processo de aprendizado do cotidiano da colnia ao
receber esclarecimentos sobre temticas como caridade (perdo), casamento e repouso na
espiritualidade, o que narrado entre o trigsimo quarto e o quadragsimo captulo. Busca ainda
saber em que situao deixou sua famlia na Terra.
Do captulo quarenta e um at o de nmero quarenta e cinco, tem-se o uso da Segunda
Guerra Mundial como pano de fundo para a abordagem dos conceitos de trevas e esperana.
Mostra ainda os habitantes do Nosso Lar realizando estudos do Evangelho de Jesus.
Finalmente, nos ltimos cinco captulos, Andr Luiz aprende sobre a reencarnao como
possibilidade de correo de erros do passado; testemunha a comunicao de uma pessoa
encarnada com um esprito prestes a reencarnar e obtm permisso para visitar a famlia que
deixara na Terra. Ao retornar a seu antigo lar, encontra sua ex-esposa casada com outro homem.
Supera o sentimento inicial de cimes e pede auxlio a este, que se encontrava enfermo. Por tal
atitude, ao regressar para o Nosso Lar, Andr Luiz recebe do Ministro Clarncio, o ttulo de
cidado do Nosso Lar.
H, no movimento esprita, uma controvrsia sobre a real identidade14
de Andr Luiz na
encarnao pregressa. De acordo com Marlene Nobre, presidente da Associao Mdico-Esprita
do Brasil (AME), uma das razes para o ocultamento de sua identidade
Deveu-se ao movida na Justia contra Chico Xavier e a Federao Esprita Brasileira (FEB), pela famlia de Humberto de Campos, que pleiteava parte da
renda dos livros escritos pelo ilustre literato atravs do mdium (NOBRE, 2011,
p.10).
Outras razes so apontadas por Nobre para explicar este fato, so: poca do
lanamento do Nosso Lar (1944), a famlia de Andr Luiz (esposa e filhos) ainda encontravam-
se vivos, e procurou-se evitar um mal-estar e uma nova luta15
em relao a direitos autorais, o
14 De acordo com o jornalista Luciano dos Anjos, a verdadeira identidade de Andr Luiz lhe fora confirmada pelo
mdium Chico Xavier, que lhe pediu segredo. Anos mais tarde, Luciano dos Anjos declara ser o mdico Faustino
Esposel, nascido em Braslia em 10 de agosto de 1888 e catedrtico de neurologia na Faculdade Fluminense de Medicina e falecido na capital federal em 16 de setembro de 1931, com a idade de 43 anos, a verdadeira identidade
do autor espiritual Andr Luiz. Dentre outros nomes especulados no movimento esprita encontravam-se os de
Carlos Chagas, Miguel Couto, Osvaldo Cruz ou Francisco de Castro. (ANJOS, Luciano dos. O verdadeiro Andr
Luiz. Disponvel em: < http://www.grupodosoito.com.br/subpaginas/faustino.htm>. Acesso em 04 out.14). 15 O caso "Humberto de Campos" ocorreu no ano de 1944, quando a viva do renomado escritor, em conjunto com
os filhos do casal, deram entrada na Justia com uma ao declaratria contra a Federao Esprita Brasileira (FEB)
e o mdium Francisco Cndido Xavier. Na concepo da famlia, as obras psicografadas pelo mdium tendo por
autor espiritual Humberto de Campos lhes causavam prejuzos financeiros, pois estes possuam contrato com os
editores da W.M. Jackson, e solicitavam Justia que determinasse a autoria das obras medinicas atravs de provas
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que poderia, segundo ela, prejudicar at mesmo a atuao psicogrfica de Chico Xavier; por
outro lado, Emmanuel, alegado mentor espiritual do famoso mdium mineiro, afirmara que cabia
a Andr Luiz esquecer o que havia sido em sua ltima existncia na Terra, terminando uma etapa
de sua histria com o lanamento do livro para, a partir da, dar incio a outra (NOBRE, 2011,
p.10).
Esta nova etapa de vida de Andr Luiz na espiritualidade tem incio em um local
denominado pelo autor espiritual de Umbral, um espao determinado e circunscrito
equivalente ao purgatrio catlico, regio em que esto os espritos considerados inferiores.
Aps passar por oito anos de muitos sofrimentos (incluindo sensaes fsicas como fome e sede),
Andr Luiz reza a Deus para sair daquele lugar, no que posteriormente atendido e levado por
uma equipe espiritual para a colnia denominada Nosso Lar.
De acordo com o relato de Andr Luiz, Nosso Lar uma colnia habitada por mais de um
milho de espritos, sua organizao e as tarefas nela desempenhadas por seus habitantes so
bastante semelhantes s realizadas pelos encarnados 16 no mundo fsico. Sua fundao ,
localizada acima da cidade do Rio de Janeiro, teria ocorrido no sculo XVI, a partir de iniciativa
de portugueses desencarnados no Brasil. A administrao do local cabia a um Governador
assessorado por setenta e dois auxiliares, distribudos em seis ministrios: da Regenerao, do
Auxlio, da Comunicao, do Esclarecimento, da Elevao e da Unio Divina, cada um
possuindo atribuies especficas.
Nosso Lar, a exemplo de modernos condomnios fechados, uma colnia protegida por
uma grande muralha possuidora de baterias de proteo magntica, cuja funo seria a de
proteg-la de espritos considerados como inferiores e que poderiam prejudicar a harmonia local.
Alm desse sistema de proteo, seus habitantes tambm usufruiriam de uma modalidade de
transporte denominado de aerbus, uma espcie de grande carro ou nibus suspenso do solo a
uma altura de cinco metros, mais ou menos, e repleto de passageiros, constitudo de material
flexvel, de enorme comprimento, ligado a fios invisveis em razo do grande nmero de antenas
no toldo (SOUZA, L., 2011, p.81).
Alm de ser uma colnia cujo objetivo prestar auxlio espiritual aos espritos que nela
chegam, Nosso Lar tambm se caracteriza por ser um local de trabalho, onde seus habitantes
cientficas. Requeriam ainda o recolhimento das obras em caso negativo e a determinao a quem pertenceria os
direitos autorais das obras medinicas: famlia ou FEB. A Justia considerou a ao inepta em razo do fato de que, ao morrer, o indivduo deixa de possuir direitos civis, e que direitos autorais herdveis estariam limitados s
obras produzidas pelo autor no perodo anterior sua morte. Para mais informaes, ver a tese de doutorado de
Alexandre Caroli Rocha, O caso Humberto de Campos: autoria literria e mediunidade (2008). 16 Encarnados o termo utilizado pelos adeptos do Espiritismo para designar os espritos que deixam momentaneamente o mundo espiritual para viverem em um corpo fsico.
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devem desenvolver tarefas em prol de seu prximo. Com essa finalidade, os trabalhadores da
colnia devem dedicar oito horas por dia de esforos de trabalhos edificantes. De acordo com
as regras da governadoria, relatadas por Andr Luiz, o limite de oito horas dirias de trabalho s
pode ser excedido em at quatro horas. Os trabalhos realizados so desenvolvidos nos
ministrios da colnia ou, at mesmo, nas indstrias de preparao de sucos, tecidos e artefatos
que empregam aproximadamente cem mil desencarnados (LUIZ, 2008, p.169).
O trabalho desenvolvido por estes espritos remunerado. A cada hora de trabalho,
adquirido um bnus-hora, espcie de dinheiro que circula na colnia espiritual equivalente a
uma ficha de servio. Cada trabalhador recebe setenta e dois bnus-horas por semana que
podem ser gastos em entretenimento, em intercesses17
e, at mesmo, com a finalidade de
adquirir uma casa prpria no valor de trinta mil bnus-horas (LUIZ, 2008, p.133). De acordo
com a personagem Laura, na colnia nada existe sem preo e que para receber indispensvel
dar alguma coisa. (...) Somente podero rogar providncias e dispensar obsquios os portadores
de ttulos adequados (LUIZ, 2008, p.144) (Grifo nosso).
Para Bordieu, as relaes de transao no mbito religioso se estabelecem com base em
diferentes interesses que iro constituir o princpio da dinmica do campo religioso. Segundo
este autor, em uma sociedade dividida em classes (assim como a de Nosso Lar), a estrutura dos
sistemas de representaes e prticas religiosas prprias aos diferentes grupos ou classes,
contribui para a perpetuao e para a reproduo da ordem social (...) ao contribuir para
consagr-la, ou seja, sancion-la e santific-la (BORDIEU, 2005, p.50; 52-53). Stoll destaca
que a representao do plano espiritual apresentada na obra de Andr Luiz
No encontrada apenas na literatura medinica de Chico Xavier. No sabemos
se o fato de Nosso Lar ter sido a primeira obra do gnero inspirou outras, do
mesmo tipo, que se seguiram. De qualquer forma, o que se constata que os textos psicografados por outros mdiuns espritas reiteram muitas dessas
imagens (STOLL, 2003, p.111).
Silva afirma que obras com as caractersticas apresentadas por Nosso Lar no eram
comuns entre aquelas consideradas como espritas no Brasil e que, apesar de quela poca j
existir um livro intitulado Cartas de uma morta, psicografado pelo mdium Chico Xavier,
supostamente ditado pelo esprito de sua me, Maria Joo de Deus, o livro de Andr Luiz teve a
17 Andr Luiz d um exemplo da relao entre bnus-horas e a intercesso em benefcio de outrem em Nosso Lar ao
citar o caso de uma me que recorre a Clarncio, Ministro do Auxlio, para que este intercedesse em favor de seus
dois filhos, sendo ento questionada por Clarncio sobre quantos bnus-horas esta possuiria a favor de sua
pretenso. O Ministro do Auxlio deixa claro que aqueles que no cooperam com trabalho na colnia, no recebem
cooperao como retorno (LUIZ, 2008, p.90).
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recepo de novidade, pois antes desta primeira obra andreluizina18
, a ideia do alm era bastante
vaga, sendo por isso considerada como um avano em relao obra de Kardec (SILVA, F.,
2007, p.126). Porm, conforme afirma Silva, mesmo entendido como um possvel avano em
relao codificao de Allan Kardec, muitos adeptos receberam a revelao contida em Nosso
Lar com reservas, mesmo pelos que a publicaram, no caso, a Federao Esprita Brasileira.
Para essa afirmao, Silva baseia-se em artigos publicados em Reformador (SILVA, F., 2007,
p.127).
Para uma melhor compreenso do impacto provocado no movimento esprita brasileiro
pelas concepes de ps-morte reveladas por Nosso Lar, destacamos um artigo de Reformador
de maro de 1942, assinada por Heitor Luz apenas dois anos antes do lanamento da obra de
Chico Xavier que viria se tornar um best-seller, no qual seu autor refuta a existncia de lugares
circunscritos no plano espiritual:
(...) Como tais prises [refere-se ao inferno e purgatrio] no existem, visto que
fora da terra, s h inumerveis outros orbes e o espao infinito onde todos eles
se movem, segue-se que a evoluo dos seres se tem de operar ou nos planetas, ou nos espaos que os rodeiam, ou seja: em planos diversos, inferiores e
superiores, onde o esprito labora por adquirir a perfeio a que todos se
destinam. (...) No h lugares circunscritos, de penas ou de gozos, quais
seriam, se reais, o cu, o purgatrio e o inferno das religies dogmticas. E no
h, porque a pureza e a impureza dos sentimentos, factores dos gozos e dos
sofrimentos do esprito, esto em seu ntimo, no no ambiente em que ele
vive. (...) Cu, inferno e purgatrio so meras invenes dos homens, bem como a salvao unicamente pela f, sem as obras; so creaes humanas contrarias
ao que se encontra nos Evangelhos. Esta a verdade, fora da qual tudo so
doutrinas fantasiosas, imaginadas pelos homens que, no seu comodismo, para no se darem ao esforo de trabalhar o seu ntimo, no sentido da evoluo
espiritual, pretenderam estabelecer um meio fcil de escalar a bemaventurana e
entraram a espalhar teorias contrarias s verdades evanglicas (LUZ, 1942,
p.63). (Grifo nosso)
Estas consideraes do articulista esto em conformidade com o que pregam as teses da
doutrina esprita apresentadas por Allan Kardec. Tratam da evoluo do esprito atravs de um
vis reencarnacionista, onde o esprito ter a oportunidade de gradualmente atingir a perfeio
vivendo nos planetas ou nos espaos que o rodeiam. At ento, no existe na literatura
kardecista uma obra que contenha uma descrio da vida do esprito no alm-tmulo.
18Embora o termo andreluizina(s) como modo de referir-se s teses apresentadas por Andr Luiz tenha suscitado
algumas dvidas quanto ao seu emprego neste trabalho, esta expresso utilizada em vrias publicaes espritas
para referir-se s teses apresentadas por este autor espiritual e, por isso, decidimos adot-lo para melhor
compreenso.
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Em fevereiro de 1945, ou seja, aps o lanamento do livro Nosso Lar, encontra-se, no
peridico Reformador, um artigo que consideramos de grande relevncia para mensurarmos o
impacto provocado pelas revelaes da obra do esprito Andr Luiz.
A ao de todo homem, neste mundo, precisa de um motor poderoso: a crena.
Esta crena, porm, necessita de um alvo indestrutvel, em que se apie: a certeza numa vida futura, que recolha as consequncias de todos os seus atos.
Mas, a noo dessa existncia vindoura , para 99% dos crentes, vaga, oscilante
ou, mesmo, absurda. A esse respeito, a humanidade viveu sempre no escuro. (...) H milhares de anos, os homens que meditam vem pedindo, no fundo dos
seus coraes, uma resposta a estas perguntas: Como so realmente os lugares
para onde vamos? Como seremos e o que acontece a de verdadeiro? Como nos devemos preparar para essa vida nova? Que precisamos fazer? Como nos
conduzirmos? (...) A obra medinica de Francisco Cndido Xavier, o honrado e
desprendido mdium mineiro, est reservado papel saliente e considervel na
histria da evoluo das grandes ideias diretoras do esprito e da conduta humanos. A parte mais recente versa sobre a vida nos planos astrais adjacentes
Terra. Tal o objeto de Cartas de uma Morta, Reportagens de Alm-Tmulo, e agora, Nosso Lar e Mensageiros. (...) Persuadimo-nos de que Nosso Lar e Os Mensageiros, como descrio de uma das muitas colnias de um dos planos do espao, so as revelaes mais completas e sistemticas que j se
fizeram at hoje. (...) Neste sentido, os trabalhos de Chico Xavier desdobram ao olhar espiritual um novo mundo (...) (MENDONA, 1945, p.38-39).
possvel perceber, a partir deste momento, a construo nas pginas de Reformador de
um novo discurso, este legitimador da descrio da vida aps a morte relatada em Nosso Lar.
Uma das estratgias a nfase na honradez e credibilidade do mdium Chico Xavier, e a outra,
uma relao de obras cujo contedo seria condizente com o apresentado pelo esprito Andr
Luiz. Conforme Mendona,
(...) A matria comeou a ser tratada, entre outros, por Dante, Swedenborg,
Lavater e outros. O segundo desdobrava-se e via por si mesmo e Lavater
invocava os espritos. Surgiram, em 1883, os Ensinos Espiritualistas, mensagens recebidas, na Inglaterra, pelo Reverendo Stainton Moses, de altos
espritos. O ano de 1913 foi extraordinrio para aquele pas: surgiram, ali,
ditados por desencarnados de luz, alguns deles mestres notveis, aos mdiuns Elsa Barker e ao Reverendo G. Vale Owen, respectivamente, as Cartas do outro mundo e A Vida alm do Vu. (...) Inclui-se tambm, nesse objetivo, a famosa obra medinica e cosmognica de Pietro Ubaldi (Itlia) A Grande Sntese, bem como A Nova Revelao, de Conan Doyle (MENDONA, 1945, p.39).
De acordo com Schubert, Nosso Lar um trabalho totalmente novo, no se tratando de
mensagens avulsas ou romances. Para esta autora, a obra de Andr Luiz um trabalho
cientfico apresentado de forma romanceada, sendo seu sujeito-narrador uma espcie de
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reprter do mundo espiritual, trazendo informaes sobre a vida no alm,19 trabalho que
continuar em outras obras, posteriormente intituladas de Srie Andr Luiz - A vida no mundo
espiritual: Missionrios da Luz (1945), Obreiros da Vida Eterna (1946), No Mundo Maior
(1947), Libertao (1949), Entre a Terra e o Cu (1954), Nos Domnios da Mediunidade (1955),
Ao e Reao (1957), Evoluo em Dois Mundos (1958), Mecanismos da Mediunidade (1960)
e E a Vida Continua (1968). (CABRAL, 2005, p.01).20
Schubert destaca que Nosso Lar no o primeiro livro a revelar a existncia das
colnias espirituais. Essa concepo remonta a 1744, com o j citado mstico sueco Emanuel
Swedenborg em seu livro O Cu e o Inferno (no confundir com a obra posterior e de mesmo
ttulo de Allan Kardec). Para ela, Andr Luiz vem confirmar todo o relato de Swedenborg,
duzentos anos depois. Ainda de acordo com Schubert, a recepo do movimento esprita ao
Nosso Lar
(...) Foi uma surpresa grande. A maioria [dos adeptos] aceitou bem, mas uma minoria achou que era uma fantasia de Chico, que Andr Luiz no existia, com
crticas bastante ferinas e com aspectos que prejudicaram muito o Chico, que
estava acima dessas coisas, assim como Andr Luiz, que disse vamos prosseguir, e veio em seguida a obra Os Mensageiros. O que houve de crtica, depois esses mesmos crticos acabaram aceitando e admitindo, pois a lgica
muito grande, tudo muito racional, tudo muito bem explicado, o que no poderia ser de outra maneira, pois como Jesus bem disse, h muitas moradas na
casa do pai, no captulo XIV de Joo (BASTIDORES ESPIRITUAIS DO
FILME NOSSO LAR, 2012).
De acordo com declarao de Marlene Nobre feita ao programa televisivo Verdade e
Luz21
, Nosso Lar foi eleita a obra mais importante do sculo XX referente quelas psicografadas
por Chico Xavier, ocasio na qual procurou justificar o interesse das pessoas por este livro:
Talvez por ser uma obra pedaggica, que mostra uma cidade e como ela
semelhante com a vida na Terra, o que a torna mais palatvel. Com essa obra,
Andr Luiz muda a forma pela qual encarada a vida espiritual. E muda
mesmo, porque uma nova verso do que ocorre quando fechamos os olhos na matria e os reabrimos no mundo espiritual.
19 Bastidores espirituais do filme Nosso Lar. Entrevista com Suely Caldas Schubert. 30'06". Disponvel em:
. Acesso em 27 nov. 2012. 20CABRAL, Joo Batista. Obras de Andr Luiz pela ordem cronolgica. Disponvel em: . Acesso em 07 set. 2013. 21
Marlene Nobre fala sobre as revelaes feitas pelo mdium Chico Xavier a respeito da nova era e sobre a vida na
Colnia Nosso Lar. Entrevista com Marlene Nobre. 5206. Disponvel em: . Acesso em 26/12/2012.
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Gonalves argumenta que podemos creditar a aceitao das teses andreluizinas pelo
movimento esprita brasileiro ao fato de que
Pela tcnica medinica de escrita, constituem-se os discursos da literatura medinica, uma produo, tambm, complementar. Esse processo de produo
discursiva permite, tambm, que a doutrina seja atualizada e renovada pela
voz dos espritos. A mediunidade psicogrfica , pois, considerada, pelos adeptos do Espiritismo, como a principal fonte de introduo de novos objetos
e, tambm, da reformulao dos j existentes. (GONALVES, 2012, p.95).
Porm, como enfatizou Schubert, nem todos os adeptos do Espiritismo se convenceram
do relato sobre a vida aps a morte do corpo fsico revelada por Andr Luiz. Para este segmento
de adeptos, as teses andreluizinas s poderiam ser aceitas como verdades doutrinrias se
houvessem sido confirmadas pelo Controle Universal do Ensino dos Espritos (CUEE),
metodologia criada por Allan Kardec que visava justamente estabelecer regras para a seleo de
mensagens medinicas que poderiam ou no ser aceitas como verdades da doutrina esprita. Essa
metodologia estabeleceu que para uma verdade ser aceita pela doutrina esprita, esta s teria
validade se fosse constatada em vrios lugares, atravs de diversos mdiuns, que no
mantivessem contato entre si. Fora desse critrio, toda comunicao dever ser considerada
como uma opinio particular do esprito comunicante (VIDAL, 2013, p.6).
, portanto, atravs da aplicao do "Controle Universal do Ensino dos Espritos", que
Allan Kardec seleciona os enunciados que faro parte daquele conjunto de ideias, em meio
grande disperso de enunciados que circundavam em torno daquele processo discursivo, o que
o fez optar pelo recurso da observao das regularidades discursivas (GONALVES, 2010, p.
41). Temos, portanto, a adoo, por parte de Kardec, de um tipo de procedimento de controle de
discursos que permite regular o discurso esprita e, consequentemente, a produo das verdades a
serem adotadas pelo Espiritismo. Segundo Foucault, esse modo de ao trata
De determinar as condies de seu funcionamento, de impor aos indivduos que
os pronunciam certo nmero de regras e assim de no permitir que todo mundo
tenha acesso a eles. (...) Ningum entrar na ordem do discurso se no satisfazer a certas exigncias ou se no for, de incio, qualificado para faz-lo
(FOUCAULT, 2011, p.36).
Conforme Gonalves, o Espiritismo constri suas verdades a partir de um conjunto de
enunciados os quais, ao tratar de objetos como a vida, morte, esprito, imortalidade, dentre outras
temticas, tornam-se imanentes sua religiosidade. Ainda segundo a autora, a doutrina esprita
possui um conjunto de discursos que formam seu campo discursivo a partir de uma regularidade
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que as identifica como tal. So discursos que definem um saber especfico sobre o divino, o