1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

download 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

of 30

Transcript of 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    1/30

    1

    Simetria e Entropia: Sobre A Noo de Estrutura de Lvi-Strauss1

    Mauro W. B. de Almeida

    Em um artigo famoso mas pouco compreendido, Lvi-Strauss define as noes de estrutura

    e de modelos, e afirma a importncia dessas noes para as cincias sociais. Encontramos

    ali as noes de "grupo", de "estrutura topolgica" e de "estrutura de ordem", a distino

    entre modelos mecnicos e a de modelos estatsticos, e uma classificao das cincias

    sociais (a histria, a sociologia, a etnografia e a etnologia) a partir dessas noes. Trata-se

    de "cientificismo" depois abandonado? No, porque o uso dessas noes no smente

    permanece em sua obra posterior, como elas envolvem algumas das idias mais bsicas de

    Lvi-Strauss sobre as sociedades e seu movimento histrico. verdade que Lvi-Straussutiliza metafricamente essas noes, de maneira que no adianta buscar nos seus textos as

    definies precisa para eles. Em vez disso, guiado por um esforo consciente de combinar

    sempre sensibilidade e razo, desrespeitando a moderna separao entre "cincias do

    esprito" e "cincias da natureza", Lvi-Strauss expressou algums de seus temas centrais.

    Um deles a importncia das simetrias como propriedades comuns natureza e mente

    humana. O segundo a viso da histria como perda de simetrias. Esses temas encontram-

    se entremeados em suas anlises de mitos e de parentesco, mas tambm no domnio da arte,na msica e na pintura. Curiosamente, os projetos formulado por Lvi-Strauss no seu artigo

    sobre "A Noo de Estrutura em Antropologia", bem como no "Pensamento Selvagem" e

    outros trabalhos no mesmo esprito, embora sejam vistos por muitos como ultrapassados,

    1 Publicado na Revista de Antropologia, vol. 42 n.1 e 2, 1999, pp. 163-198. a traduo ligeiramenterevisada de M. Barbosa de Almeida, "Symmetry and Entropy: Mathematical Metaphors in the Work of Lvi-Strauss". Current Anthropology vol. 31, no 4, agosto outubro 1999, pp. 367-385.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    2/30

    2

    encontram-se em pleno vigor fora do mainstream da Antropologia, em disciplinas como a

    neurocincia, a etnocincia e a teoria de sistemas auto-organizativos.

    1. Modelos, estruturas e mquinas

    O estruturalismo de Lvi-Strauss evoca habitualmente a lingustica e o contato com

    Roman Jakobson nos Estados Unidos durante a dcada de 40 [2]. Menos ateno se d

    reiteirada aluso de Lvi-Strauss s origens botnica, zoolgica e geolgica das intuies

    iniciais que levaram ao estruturalismo, e para as quais a fonologia teria apenas fornecido

    uma formulao clara e distinta [3]. Uma das referencias explcitas de Lvi-Strauss a uma

    obra de biologia a um livro de D'Arcy Thompson, publicado primeiro em l9l8 e, depois de

    ignorado pela corrente principal da biologia darwinista, reeditado em l942. A dcada de 40

    era de fato um ambiente favorvel s idias herticas de D'Arcy Thompson, cujo programa

    poderia ser assim resumido: buscar na matemtica a chave da unidade perceptvel na

    diversidade infinita das formas naturais e comparar tais formas estudando as transformaes

    que as ligam entre si [4].

    H outros exemplos do clima intelectual desses anos e que so tambm pertinentes para se

    entender a formulao das idias de Lvi-Strauss. A caracterizao da diferena entre

    modelos mecnicos e modelos estatsticos, to importante no pensamento lvi-straussiano,

    e retirada diretamente do livro Ciberntica, do matemtico Norbert Wiener no qual a

    2 Cf. prefacio de C. Lvi-Strauss a Six leons sur le son et le sens, de Roman Jakobson, Paris, Les Editions deMinuit, l976. Republicado em C. Lvi-Strauss. Le Regard Eloign. Paris, Plon, 1983, Chap. IX, pp. l91-201.Jakobson observava que os conceitos linguisticos no eram simplesmente "aplicados" por Lvi-Strauss, masganhavam novo significado (C. Lvi-Strauss e Didier Eribon. De pres et de loin. Paris, Editions Odile Jacob,l988.

    3 C. Lvi-Strauss. Tristes tropiques. Paris, Plon. pp. 43 e ss. C. Lvi-Strauss e D. Eribon. De Pres et de loin,p. 156.

    4 D'Arcy Thompson. On Growth and Form. Cambridge, Cambridge University Press, l961 [l9l7; 2a ediol942]. Cf. Lvi-Strauss. Anthropologie Structurale, Paris, Plon, l958, p. 358. O artigo que traz a referncia datado de l956, e a edio de On Growth and Form citada de l952.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    3/30

    3

    Ciberntica era fundada como cincia, bem como a distino entre histria estacionria e

    histria cumulativa: ambos os contrastes (que aparecem em obras dos anos cinquenta como

    os captulos metodolgicos deAntropologia Estrutural, e emRaa e Histria) equivalem

    oposio traada por Wiener entre a mecanica newtoniana e a mecnica de

    Gibbs/Boltzmann [5]. Similar em estilo era a contribuio com que Shannon, na mesma

    poca, fundava a Teoria da Comunicao, vista por muitos, juntamente com a Ciberntica,

    como um aval a esperana de emprestar aos estudos de fatos humanos a eficcia e o rigor

    da cincia fsica [6]. sabido que, ao caracterizar a noo de modelo, o paradigma de Lvi-

    Strauss so definies de terceiro livro fundador dos anos 40, aquele em que o matemtico

    John von Neumann e o economista Oskar Morgenstern criam a Teoria dos Jogos aplicadaao comportamento humano [7]. No absurdo lembrar que a construo da Teoria dos

    Jogos apia-se na distino bsica entre jogos a duas pessoas e jogos a n pessoas, anloga

    que Lvi-Strauss traou entre a troca restrita e a troca generalizada, enquanto que a

    distino entre jogos de soma nula (aqueles onde algum s pode ganhar s custas do outro)

    e jogos de soma no nula (aqueles onde vrios jogadores podem ganhar simultaneamente)

    evoca o contraste entre sociedades frias e quentes, entre rito e jogo, e entre estruturas

    elementares e estruturas complexas de parentesco [

    8

    ].

    5 Norbert Wiener. Cibernetica. Sao Paulo, Editora Poligono, l971 [l948]. N. Wiener. Cibernetica eSociedade. Sao Paulo, Editora Cultrix, l973 [The Human Use of Human Beings, 1 ed. l950; 2 ed. revistal954].6 Claude E. Shannon. The Mathematical Theory of Communication, The University of Illinois Press,l952[l950]. Wiener era ctico quanto a tais esperancas (Wiener, op. cit., prefacio a 1. ed. e cap. VIII), e Lvi-Strauss concordava com ele (Anthropologie Structurale pp. 63-65). Na obra de Lvi-Strauss as noescibernticas de feedback, controle e equilbrio no desempenham nenhum papel, em contraste com aimportncia que adquirem em Bateson ( G. Bateson, Mente e Natureza, Francisco Alves, l986 [Mind and

    Nature: A Necessary Unity, l979], esp. cap. IV).7 J. Von Neumann e Oskar Morgenstern. Theory of Games and Economic Behavior. Princeton UniversityPress, l980 [l944]. Lvi-Strauss, AS, pp. 328-329.8 Ha mais de um paralelo na construo das obras de Lvi-Strauss e de Von Neumann/Morgenstern. Ambaspossuem uma primeira parte ("troca restrita" ou entre duas metades, "jogo a duas pessoas" respectivamente) euma segunda parte ("troca generalizada" ou entre n classes, "jogo a n pessoas"). As "Estruturas Elementares"foram pensadas por Lvi-Strauss como um primeiro momento da teoria, que seria continuada pelas "EstruturasComplexas". Ora, para as "Estruturas Elementares" Lvi-Strauss encontrou uma soluo completa; para"Estruturas Complexas" no encontrou nunca tal soluo. Von Neumann elucidou completamente os "jogos aduas pessoas" (jogo de redistribuio ou troca), enquanto os "jogos a n pessoas" no possuem uma soluogeral. Quanto a analogia entre ritual (= estruturas elementares = historia estacionaria) e jogos de soma zero(aqueles em que um jogador s pode ganhar se o outro perder) por um lado, e entre jogo ( = estruturascomplexas = historia cumulativa) por outro (aqueles onde dois jogadores podem ganhar ao mesmo tempo, ou

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    4/30

    4

    A noo de "grupo de transformaes ", que caracterizada no livro de Wiener e em

    capitulo clebre de D'Arcy Thompson [9], foi aplicada a fenmenos da arte e da vida na

    obra do grande matematico Hermann Weyl, intitulada Simetria, publicada em Princeton em

    l951 [10]. Finalmente, o grupo que se assinava Nicolas Bourbaki comeca a publicar nos

    anos quarenta uma reconstruo de toda a matematica sob uma orientao explicitamente

    estrutural. Andr Weil, um dos avatares de Nicolas Bourbaki, foi o autor do "Apndice

    Matemtico s Estruturas Elementares do Parentesco" [11].

    Uma ideia basica que atravessa o fascnio de Lvi-Strauss com essas vertentes de ponta na

    reflexo cientfica dos anos quarenta a nfase na construo de modelos como o modo de

    produo de conhecimento por excelncia. Essa perspectiva, que j estava presente na

    geometria dos gregos -- e lembremos que no segundo prefcio Crtica da Razo Pura,

    Kant atribua a ela o sucesso das cincias da natureza desde Galileu -- , se via oferecida

    nesses anos ao campo da ao humana pelos ento nascentes modelos de ao econmica e

    poltica (Teoria dos Jogos), de comportamento comunicativo (Teoria da Informao) e de

    funcionamento de sistemas vivos e pensantes (Ciberntica). possivel pensar hoje que von

    Neumann/Morgenstern, Shannon, Wiener e Lvi-Strauss estavam fundando na mesma

    perder ao mesmo tempo), vale lembrar que jogos de soma zero, economicamente falando, so fenomenos dedistribuio, enquanto enquanto jogos de soma nao-zero implicam em produo ou degradao (AS, p.328-329;La Pense Sauvage).9 A distino entre grupos "contnuos" e "discretos" a principal diferena entre os modelos que D'ArcyThompson e Lvi-Strauss, respectivamente, utilizam. Essa distino frequente em Lvi-Strauss, que tende aassociar "discreto" a cultural, e "contnuo" a natural, e reiteirando assim a distino entre "fonologia" e"fontica". Cf, J.M. Benoist (org.)L'Identit, Paris, Bernard Grasset, l977, p. 332. Ver por exemplo C. Lvi-Strauss. L'Homme Nu, Paris, Plon, l971, p. 605.10 Hermann Weyl trata da unidade profunda e surpreendente entre fenomenos estudados pela matematica e afisica (teoria da relatividade, mecanica quantica, teoria das equaes) e fenomenos da biologia e da arte -- emtermos da Teoria dos Grupos ( Hermann Weyl. Symmetry. Princeton University Press, l952.)11 Lvi-Strauss chamou a ateno para a maioria dessas influncias (Wiener, Shannon, von Neumann) eevidentemente teve contato direto com Andre Weil, bastando ler as notas do artigo "A Noo de Estrutura emEtnologia", e o artigo menos conhecido e da mesma poca sobre matemticas e as cincias humanas. O"Apndice" de Weil/Bourbaki includo nas Estruturas Elementares do Parentesco originou uma pequenaliteratura matemtica (Lvi-Strauss, L'Homme Nu, p. 567-8). Agradeo a Antonio Galves por ter-meintroduzido a essa literatura, presenteando-me no incio dos anos 70 com o texto de um curso de ArtibanoMicali. Esse texto continha um artigo de Pierre Samuel com a aplicao da teoria dos grupos teoria dossistemas de casamento.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    5/30

    5

    epoca e convergentemente teorias da comunicao social sob a forma, respectivamente, de

    modelos de jogos, dilogos, comandos e trocas.

    Havia contudo um trao mais geral presente na viso da atividade cientfica, alm de seu

    carter de construo de modelos. Era a idia de que a atividade cientifica consistiria na

    busca de invariantes revelados ao nvel dos modelos, mais do que no estudo de

    propriedades de objetos. Talvez o exemplo mais marcante dessa idia seja a revoluo

    estruturalista que ocorreu na matematica e cujas origens estao em fins do sculo XIX.

    Enquanto desde a antiguidade os objetos principais do matemtico haviam sido os nmeros,

    as grandezas e as figuras, entes vistos como possuindo propriedades dadas que caberia

    apenas investigar, ao longo do sculo XIX emerge a noo de que a essncia da matemtica

    "o estudo das relaes entre objetos que no so mais (voluntariamente) conhecidos e

    descritos a no ser por algumas de suas propriedades, precisamente aquelas que colocamos

    como axiomas na base de sua teoria". 12 Assim, a exemplo do que ocorre com as geometrias

    no-euclideanas, as matemticas se reconhecem como estudo de estruturas que regem as

    relaes entre objetos. Uma mesma estrutura pode ento aplicar-se a diferentes objetos

    empricos. A teoria dos grupos -- uma estrutura que expressa matematicamente a noo de

    invarincia numa famlia de objetos -- a ferramente bsica dessa perspectiva. Criada nasegunda metade do sculo XIX, havia sido aplicada no inicio do sculo XX geometria,

    teoria da relatividade, mecanica quantica, biologia e arte. Foi mrito de Lvi-Strauss

    introduzir seu esprito no mbito das cincias humanas.

    Os anos 40 so o momento de aplicao dessa matemtica a um novo campo, o das

    mquinas algortmicas. Tais mquinas surgem primeiro como conceito - no como

    hardware palpvel, mas como modelos ideais de processos de trabalho com signos para

    produzir outros signos: como mquinas de Post e mquinas de Turing, que representam

    formalmente a propria estrutura genrica de clculo; que podem virtualmente calcular tudo

    12 Nicolas Bourbaki, lments d'histoire des mathmatiques, Paris, Hermann, 1960, pg. 33.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    6/30

    6

    que calculvel [13]. Promessa virtual, pois, de modelar no apenas comportamentos

    especiais, mas o prprio pensamento em sua dimenso algortmica. Mas para os que

    sonhavam com a noo de inteligncia artificial desde ento, todo pensamento seria

    algortmico. A noo de maquina ganha assim um novo estatuto, deixando de ser sinnimo

    de um autmato cartesiano desprovido de raciocnio prprio, e necessitando de uma alma

    em separado para se tornar humano. Hoje, a idia de uma alma mecnica, ou de mquina

    inteligente, perdeu sua estranheza. Estamos afinal acostumados a ouvir que o inconsciente

    uma mquina significante; que romances policiais so mquinas de ler; que gramticas so

    maquinas de produzir sentenas; sem falar nas mquinas desejantes e, claro, nas mquinas

    de suprimir o tempo [14

    ]. Contudo essas maquinas so fundamentalmente heterogas entresi.

    A relao entre estruturas (que so construes mentais) e mquinas reais (que precisam

    obedecer a leis do mundo real) envolve uma oposio que um dos temas de Lvi-Strauss

    nem sempre notado. Neste artigo, simetria e entropia so os termos dessa oposio, local de

    13 Uma mquina de Turing (ou, em formulao semelhante mas independente, uma mquina de Post) umaparato com contm um leitor de fita e que pode encontrar-se em vrios estados. A fita que imaginada comoem princpio infinita contm casas marcadas com smbolos ou vazias. A cada estado da mquinacorrespondem instrues sobre a ao da mquina ao ler uma casa da fita. As aes podem ser: mover a fitapara a direita ou para a esquerda, alterar uma marca lida (ou apag-la, ou escrev-la numa casa vaga), e mudarde estado. Somar dois e trs significa ento apresentar ao leitor da mquina duas marcas separadas por umvazio e mais tres marcas: a mquina conclui a operao mostrando cinco marcas contguas, e assumindo oestado "fim". Uma operao mais complexa consistiria em apresentar mquina Hamlet, obtendo dela umatraduo de Hamlet para o portugus. A noo de que mquinas desse tipo contm a essncia de qualquerclculo conhecida como a tese de Church (cf. Richard L. Espstein e Walter A. Carnielli, Computability:Computable Functions, Logic, and the Foundations of Mathematics, Pacific Grove: Wadsworth &

    Brooks/Cole Advanced Books & Software, 1989.14 J. Lacan, Ecrits I, Paris, Editions Le Seuil, l966. Esp. pp. 58-75,"La lettre vole". T. Narcejac, Unemachine a lire: le roman policier. Paris, Denoel/Gonthier, l975, pp. 223 e ss. N. Chomsky. SyntaticStructures, La Hague, Nouton, l957. G. Deleuze e F. Guattari, L'Anti-Oedipe. C. Lvi-Strauss, Le Cru et leCuit. O otimismo da dcada de 1950 quanto inteligncia artificial encontra-se muito abalado cinquenta anosdepois, depois que mesmo as tarefas inteligentes mais simples como o reconhecimento de imagens,mostraram-se muito menos tratveis do que se imaginava. Para uma discusso recente dos modeloscomputacionais da inteligncia, ver Zsolt L. Kovcs, O Crebro e a sua Mente: Uma Introduo Neurocincia Computacional, So Paulo, Ed. Acadmica, 1997. Ver tambm, para a histria desses modelos,do mesmo autor,Redes Neurais Artificiais: Fundamentos e Aplicaes, So Paulo, Collegium Cognitio, 1996.O fsico matemtico Penrose e o filsofo John Searle rejeitam decididamente a noo de intelignciacomputacional (onde computacional significa aqui uma mquina de Turing).

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    7/30

    7

    uma contradio inconcilivel. O olhar distanciado e triste, paradoxalmente marcado pela

    obssesso com a invarincia e pela certeza da perecibilidade da forma, busca suplantar essa

    contradio insolvel, sem resolv-la jamais.

    2. Estruturas

    A matematica foi reconstruda por Bourbaki a partir da noo de estrutura. Na ontologia

    bourbakista, objetos no tem propriedades intrinsecas. Nela, cada universo e formado de

    duas coisas: objetos e, separadamente, relaes construdas sobre eles. Estruturas so

    modos de construir relaes ou operaes entre objetos. Bourbaki destaca algumas poucas

    estruturas elementares que so a base de todo o edificio matemtico: as estruturasalgbricas, as estruturas de ordem e as estruturas topolgicas [15]. Cada uma delas encerra

    um "modo de usar" ou, se se quiser, um "modo de pensar" objetos. Isso nos da um roteiro

    para acompanhar a construo de modelos na obra de Lvi-Strauss, e tambm para perceber

    que o estruturalismo uma lista de ontologias bsicas.

    Um conjunto de objetos uma estrutura particularmente simples. Dado um conjunto inicial

    de objetos, podemos especificar um subconjunto, e assim a noo de objetos com certa

    propriedade. Numa estrutura de propriedades, respondemos a perguntas sobre objetos --

    para cada objeto do conjunto de base, dizemos se ele pertence ou no ao subconjunto em

    questo (isto : ele tem ou no uma propriedade). Refinando esse princpio chegamos a

    classificaes. Toda propriedade induz uma classificao binria: ela divide o conjunto de

    15 N. Bourbaki. Elements de Mathematique, Livre I, Theorie des Ensembles, Captulo 4. Structures. Paris,

    Hermann, (2. ed.), pp. 68-76. A definio muito complexa na aparncia reduz-se a dois passos. Primeiro, umaestrutura formada por construes com conjuntos -- isso d o que podemos chamar de "ontologia" oudomnio de objetos possveis (conjuntos de coisas, pares de coisas, etc.). Depois, uma estrutura requer leis querestringem esse domnio de objetos possveis (especificando por exemplo que pares so aceitveis). Umaestrutura ento um domnio ontolgico de seres possveis, munido de uma ou mais leis que restringem essaspossibilidades (os axiomas da estrutura). No preciso saber nada sobre objetos que formam os conjuntos;basta conhecer os axiomas da estrutura. As consideraeshistoricas de Bourbaki so particularmentepertinentes para se compreender a dificuldade de antropologos como Radcliffe-Brown com a noo deestrutura: "Surtout il a ete assez difficile ... de se liberer de l'impression que les objets mathematiques noussont "donnes" avec leur structure..."(p. 73). N. Bourbaki, Elements de Mathematiques, Livre I. Theorie desEnsembles. Fascicule des Resultats. Paris, Hermann. Sobre as "estruturas-me": N. Bourbaki, "L'Architecturedes Mathmatiques", in Lionnais, F.Le (org.)Les Grands Courants de la Pense Mathematique. Paris, AlbertBlanchard, l962 (2. ed.), pp. 35-47.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    8/30

    8

    base em dois subconjuntos, o dos objetos que satisfazem a propriedade e os que no a

    satisfazem. Franois Lorrain elaborou em detalhe a noo Lvi-Straussiana de uma "lgica

    das oposies binrias".

    Dado um conjunto inicial de objetos, uma ordem um conjunto de pares sujeitos a certas

    restries: assim, por exemplo, que se o par (a, b) pertence ordem, e a e b so diferentes,

    ento (b,a) no pertence ordem. Isto : se numa ordem dada a domina b, ento b no pode

    dominar a (a no ser que sejam o mesmo objeto, j que um objeto domina a si mesmo).

    Numa estrutura de ordem, respondemos a perguntas sobre pares de objetos: para cada dois

    objetos distintos como a e b, uma estrutura de ordem deve responder se vale (a,b) ou se

    vale (b,a), ou se a e b so incomparveis. No seu livro sobre o Pensamento Selvagem est

    presente o interesse por estruturas de ordem.

    Dado um conjunto inicial de objetos, uma operao (algbrica) um conjunto de pares

    onde o primeiro termo um par de objetos (os termos da operao), e o segundo um

    objeto (o resultado da operao). Somar e multiplicar so operaes nesse sentido.

    Combinar movimentos ao caminhar tambm uma operao. Numa estrutura algbrica,

    respondemos a perguntas do seguinte tipo: dado um par qualquer, queremos saber qual o

    objeto resultante. Dado um par de objetos (a,b) obtemos um terceiro objeto c. Uma

    transformao um objeto. Dadas duas transformaes contnuas ou discretas (permutaes

    nesse caso) queremos saber qual a transformao resultante. Dadas duas relaes de

    parentesco, queremos obter a relao resultante. Uma intuio notvel de Lvi-Strauss e de

    Andr Weil foi tratar as regras de parentesco como permutaes de classes de descendncia

    [16]. Simetrias so transformaes.

    As estruturas topolgicas so, por assim dizer, modelos da noo de proximidade, no

    mesmo sentido em que estruturas de ordem modelam escolhas, e estruturas algbricas

    modelam operaes. Num conjunto munido de uma topologia, para cada objeto sabemos

    quais so suas vizinhancas, digamos assim. Dados dois objetos (a, b), em uma topologia

    16 As principais anlises "algbricas" de Lvi-Strauss, aps "L'Analyse structurale en linguistique et enanthropologie" (C. Lvi-Strauss, Anthropologie Structurale, Paris, Plon, l958 [ publicado inicialmente eml945], pp. 37-62, esto em Les Structures elementaires de la Parent, Paris, Mouton, l971, 2. ed.[1. ed.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    9/30

    9

    (mtrica) sabemos qual a distncia entre eles. Com a topologia ganham sentido noes de

    incluso, proximidade, fronteira, limite, continuidade e descontinuidade.

    Enquanto as estruturas de ordem do forma noo de tempo e as estruturas algbricas

    formalizam a noo de movimentos espaciais, a topologia refina ambas essas noes,

    injetando-lhes a linguagem da proximidade. Nas Mithologiques reencontramos grupos

    (estruturas algebricas) e reticulados (estruturas de ordem), mergulhados agora em

    espacos onde emergem formas surpreendentes como as fitas de Moebius e as garrafas de

    Klein, centrais entre as metforas deA Oleira Ciumenta.

    Na obra de Lvi-Strauss, lgebra, ordem e topologia se sucedem, numa sequncia que

    corresponde a publicaes decisivas, respectivamente, sobre parentesco, classificaes e

    mitologia. No foi inteno de Lvi-Strauss, contudo, levar adiante de maneira sistemtica

    um programa kantiano "sem sujeito transcendental" onde as estruturas-me da matemtica

    tomassem o papel do espao e do tempo como formas a priori da sensibilidade. O que

    Lvi-Strauss fez foi usar o material etnogrfico que vai de termos de parentesco a mitos

    indgenas passando por regras de cozinha para construir estruturas sensveis, maneira do

    que ocorre na msica. claro que Lvi-Strauss assim o primeiro exemplo de bricoleur

    [17].

    l949]. Esse livro contm um catlogo de exemplos de grupos finitos de pequena dimenso, suas fatoraes emsubgrupos e suas representaes por equaes sociologicas.17 Outros seguiram as pistas deixadas por tantalizantes estruturas selvagens construdas por Lvi-Strauss,

    elaborando teorias precisas. Cf. Pierre Samuel ("Uma aplicao da teoria dos grupos: grupos de permutaes eregras de casamento em algumas sociedades primitivas", em Artibano Micali, Elementos de Algebra, Rio deJaneiro, Instituto de Matematica Pura e Aplicada, l967), Franois Lorrain, Reseaux Sociaux et ClassificationsSociales - Essai sur l'Algebre et la Geometrie des Structures Sociales, Paris, Hermann, l975. C. Gregory,(Gifts and Commodities, Cambridge, Cambridge University Press, l983), Paul Ballonoff e Thomas Duchamp,"Graphs and Operators of Marriage Theory", em P.A.Ballonoff, Mathematical Foundations of SocialAnthropology, Paris, Mouton, l976, pp. 23-44); e Jean Petitot. "Approche morphodynamique de la formulecanonique du mythe", L'Homme 106-107, avril-sept. l988, XXVIII (2-3), pp. 24-50. E antroplogos comoFranoise Hritier (F. Heritier. L'exercice de la parent, Paris, Editions du Seuil, l981, chap. 1) e EduardoViveiros de Castro e poucos outros. Consequencias curiosas podem resultar de se variarem os axiomas debase. Em EEP Lvi-Strauss alude, por exemplo, a um sistema de casamento formado de duas metadesendogamicas (EEP l971: 233), que emergem numa estrutura "nao-morganiana" que exija uma "exopratica" deparentesco (nesse caso, uma exofilia) mas no necessariamente uma exogamia.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    10/30

    10

    Assim, permaneceu habitando a interface entre o mundo sensivel e o mundo inteligivel,

    numa juno persistente de mincia empirica e senso esttico na qual termos como

    "transformaes ", "inversos", "espacos n-dimensionais", "algebras de Boole", "garrafas de

    Klein", "grupos" comparecem como instrumentos metafricos e concretos para construir

    por bricolagem estruturas s vezes elusivas em suas implicaes exatas. Mas se no no

    uso efetivo da matematica, quer como programa, quer como tecnica, e sim no estilo, em

    que reside ento a relao entre Lvi-Strauss e a matemtica? Trata-se de mera meno, de

    flerte verbal com a linguagem da moda, como sugeriu Kroeber a respeito do termo

    "estrutura"?

    Ha algo mais aqui. No estilo lvi-straussiano os tropos matemticos e fsicos tem um peso

    forte. Expressam idias bsicas sobre a sociedade humana, e para Lvi-Strauss mesmo

    essencial que essas metforas venham da fsica e da matemtica, j que entre essas idias

    est a de que a ordem humana se prolonga na ordem da natureza. H duas metforas

    bsicas: uma, baseada na idia de grupo de transformaes, e cuja essncia a existncia de

    simetria; outra, baseada na idia de mquina, e cuja essncia a noo de irreversibilidade.

    A primeira relaciona-se com o olhar distante: no limite, um olhar que no se situa em

    nenhum lugar. A segunda relaciona-se com os tristes trpicos: com a passagem do tempo ecom a irrupo inevitvel da desordem [18].

    3. O Olhar Distanciado

    Quando localizamos um ponto no espaco, atribumos a ele coordenadas: a longitude e a

    latitude, digamos assim. Para atribuir coordenadas, precisamos partir de uma origem: de um

    ponto privilegiado sobre todos os demais.

    Um filsofo procurou sintetizar o recado de Lvi-Strauss afirmando que o estruturalismo

    no inventou estruturas: apenas dispensou pontos privilegiados na descrio de uma

    18 A rigor, simetria opor-se-ia a assimetria, como atemporalidade a temporalidade; conservao opor-se-ia aentropia, como reversibilidade a irreversibilidade; discreto/continuo; global/local; vida/morte.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    11/30

    11

    estrutura [19]. A anlise anlise estrutural do espaco, nesse sentido, foi levada a cabo com a

    matematica moderna, que deve ser capaz de dispensar por completa a adoo de um sistema

    de coordenadas particular para a descrio das propriedades de figuras. Seus teoremas

    devem "livres de coordenadas". Para realizar esse programa, perdemos a localizao nica

    de um ponto no espao. Em compensao, preservaremos as relaes entre esse ponto e

    outros. Podemos chamar a essas relaes de invariantes. 20

    Os invariantes assim preservados quando abandonamos um sistema de coordenadas

    especfico so o que chamamos de propriedades estruturais. Na geometria, uma reta

    permanece reta, qualquer que seja o sistema de coordenadas empregado. Deixa de ter

    sentido, porem, a descrio de uma reta como sendo vertical.21 necessrio ento, atravs

    da ideia de transformao, aprender a traduzir mutuamente as "observaes" da reta

    realizadas em diferentes sistemas de coordenadas -- de tal forma que a existncia dessas

    transformaes que assegura a possibilidade de falar na identidade de objetos.22 Surge aqui

    outra implicao. Pois as transformaes podem ser pensadas tanto como mudancas de

    posio de uma "reta" num sistema de coordenadas especfico, como mudanas no prprio

    sistema de coordenadas. Torna-se em certo sentido impossvel distinguir entre movimentos

    de um objeto e movimentos do observador. H um relativismo essencial implicado naatitude estrutural.

    H dois modos de conceber o programa estrutural. Um, imaginar como descries mudam

    com a mudanca de sistemas de coordenadas -- e buscar propriedades das descries que so

    invariantes sob essas mudanas. o caminho do etnogrfo que se translada de um sistema

    19 F. Derrida. A Escritura e a Diferenca. So Paulo, Editora Perspectiva, l97 .20 Esse procedimento frequente na anlise estrutural de Lvi-Strauss. Em lugar de concentrar a ateno em"objetos dados com suas propriedades" (por exemplo, o "tio materno" e a propriedade de ser "duro" ou"suave"), a ateno se volta para os invariantes de relaes (por exemplo, as relaes "irmo da me"/"filhoda irm", de um lado, e "marido da me"/"filho da esposa" tm "sinais opostos".21 Pensemos no artigo "Raa e Histria", onde Lvi-Strauss discute a noo de que a histria tem um sentido euma orientao absolutos e intrnsecos. Em vez disso, diz Lvi-Strauss, os eventos histricos podem ganharuma direo apenas depois que estabelecemos um sistema de coordenadas: para os europeus, a coordenadatecnolgica, permitindo uma ordem linear na histria, mas excluindo outras coordenadas possveis, tais comoo conhecimento teolgico, a sutileza nas artes do corpo e assim por diante.22 Essa idia de identidade, e a noo associada de objetividade, assenta-se assim na possibilidade de traduo(um forma de transformao) entre diferentes sistemas de significado. Ela discutida tambm no artigo"Guerras Culturais e Relativismo Antropolgico" (no prelo Revista Brasileira de Cincias Sociais).

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    12/30

    12

    de coordenadas para outro. Outro, observar, num mesmo sistema de coordenadas, como

    objetos se transformam preservando, porm, um ar de familia. o caminho do etnlogo que

    constri modelos comparativos. No caso dos mitos, a primeira perspectiva leva o

    observador a se colocar no interior de uma mitologia particular, atribuindo-lhe sentido

    porque, ao fazer a translao, o observador-etngrafo antes de mais nada procurou

    identificar as coordenadas locais e situar-se a partir delas.23 A segunda perspectiva levaria a

    caracterizar ento os invariantes numa familia de mitos que se transformam permanecendo

    no entanto mutuamente inteligveis ("comunicam-se entre si"). 24

    As simetrias de um quadrado so representadas pelo grupo de transformaes que o

    deixam invariante (rotaes de 90 graus em torno do centro compem um subgrupo desse

    grupo). Que significa porem dizer que o quadrado permanece invariante? Isso inclui o

    quadrado que vemos (talvez seja a forma de uma mesa ) de distncias e ngulos diversos na

    sala, ou numa foto em miniatura, ou talvez deformado numa pintura surrealista? A resposta

    que a cada um desses sistemas de transformaes temos uma noo de invarincia e de

    identidade, e a cada uma delas h um grupo associado de transformaes.

    Coloquemo-nos numa situao idealizada, onde vemos o quadrado do alto. Se girarmos a

    figura em torno de seu centro, em rotaes de 90 graus, o resultado ser uma figura

    indistinguvel da original. Se mantivermos uma diagonal fixa e refletirmos o quadrado em

    torno dela, obteremos ainda uma figura idntica. Rotaes e reflexes descrevem simetrias

    que deixam o quadrado invariante num primeiro sentido. Imaginemos agora que o quadrado

    seja movido no plano. Esses movimentos levam a um novo grupo de transformaes , no

    qual se preservam todas as dimenses originais do quadrado, o qual se preserva como

    "objeto rigido", que no perde seus ngulos e sua rea. Essa identidade prxima que

    ligamos noo de objeto fsico.

    Podemos ir mais longe, e no apenas girar, refletir e deslocar o quadrado, mas tambm

    ampli-lo ou encolh-lho, e alm disso permitir mudanas regidas pelas leis da perspectiva

    (estamos no mbito da geometria projetiva). O resultado a famlia de objetos que

    23 Um exemplo dado pela perspectiva de Joana Overing face cosmologia dos Piaroa.24 a perspectiva adotada frequentemente por Eduardo Viveiros de Castro.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    13/30

    13

    reconhecemos perceptualmente como um mesmo quadrado, ao observ-lo em movimento,

    ao olhar uma pintura ou filme. Essa noo de identidade associada ao grupo de

    transformaes da geometria projetiva essencial para que reconheamos objetos na

    experincia diria como os mesmos. Isso no tudo, porque podemos dispensar a rigidez

    das retas e admitir versoes surrealistas do quadrado nas qual ele se transforma

    insensivelmente em uma verso mole do quadrado original, e talvez vire um objeto

    informe; contudo, distinguiremos esse objeto informe mas sem buracos de uma rosca.

    Dessa forma, o quadrado mole torna-se idntico a uma panqueca, mas distinto de um pudim

    de leite (daqueles que tm um buraco no meio). Essa ltima noo de identidade a que se

    associa s transformaes topolgicas. Esse alis um pequeno esboo de histria da arte,at o surrealismo -- pois o cubismo, rasgando objetos, e colando-os arbitrariamente, destroi

    a invariancia topologica, ultimo resquicio da conservao da forma. O programa de

    investigao e entao: estudar as simetrias do objeto, inserindo-o em grupos de

    transformao. 25

    H porem outro modo de encarar essas mesmas transformaes . Ao girar o quadrado (no

    grupo inicial) supomos que nos (observador) estamos imoveis. Mas como sabemos que no

    somos nos que giramos? Quando o quadrado e ampliado ou reduzido, podemos representara situao como uma outra classe de movimento no sistema de referencia. O mesmo vale

    para os outros grupos de transformao: trata-se entao de estudar as simetrias entre

    observadores possveis, inserindo-os em grupos de transformao. A noo de uma familia

    de invarincia de objetos associa-se a uma noo dual de uma familia de invarincia de

    observadores. 26

    25 Para os observadores europeus o sistema de referncia cultural era fixo, e fenmenos (e.g. mitologias,modos de casamento, etc) de diferentes povos giravam em torno deste sistema com um movimento aparentefrequentemente caprichoso ou inexplicvel. O trabalho comparativo, seja sobre mitologias, seja sobresistemas de casamento, destaca invariantes estruturais entre esses diferentes fenmenos, evidenciados pelaconstruo de modelos adequados.

    26 Antes de aprender a "transformar" as observaes de sistemas (e.g. mitologias, modos de casamento), foipreciso "transformar" os referenciais - deslocando-se o observador ao longo do mundo. As transformaes(sistemas de casamento, mitologias, que se integram em um grupo de transformaes apreensvel peloobservador imvel; um observador que se translada para outros sistemas de referncia, e neles apreende umsistema de casamento e uma mitologia como "sua") correspondem construo de modelos comparativos e construo de etnografias, respectivamente.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    14/30

    14

    Essa maneira de pensar foi formulada a respeito da geometria por um matematico cujo

    nome se encontra com frequencia nos escritos de Lvi-Strauss: Felix Klein, o das "garrafas

    de Klein" da Oleira Ciumenta, e tambem do "grupo de Klein"(27). Foi desenvolvida, entre

    outros, por Hermann Weyl (28), e tornou-se um lugar-comum em varios dominios da cincia

    contemporanea. Como diz o biologo Jacques Monod:

    "Havia uma ambio platonica na busca sistematica de invariantes anatonomicos a que

    se devotaram os grandes naturalistas do seculo XIX apos Cuvier e Goethe. Os biologos

    modernos deixam as vezes de fazer justica ao genio dos homens que, por tras da variedade

    impressionante de morfologias e modos de vida de seres vivos, conseguiram identificar, se

    no uma 'forma unica', pelo menos um numero finito de arquetipos anatomicos, cada um

    dos quais invariante no interior do grupo que caracteriza" [29].

    Foi precisamente nessa tradio de busca da forma como invariante no interior de um grupo

    de transformaes que D'Arcy Thompson escreveu sua obra ja mencionada, que o sovietico

    Vladimir Propp analisou centenas de contos populares russos [30], e que Lvi-Strauss

    escreveu as Estruturas Elementares do Parentesco e asMitolgicas.

    Convm, antes de passar s implicaes mais gerais desse programa, ressaltar a atitude face

    a multiplicidade e identidade que nele esto contidas . A identidade no dita de objetos

    ou de substncias. Ela relaciona-se a propriedades relacionais. A definio de Weyl para

    27 Felix Klein, "Das Erlanger Program", em F. Klein, Gesammelte Mathematische Abhandlungen, PrimeiroVolume, Berlin, Julius Springer, l921 (l872), pp. 460-497.("Propriedades geomtricas so caracterizadasatravs de sua invarincia face s transformaes do grupo fundamental" p. 463).28 Hermann Weyl. The Classical Groups. Princeton, Princeton University Press, l946 (l939), pp. 13-23("Klein`s Erlanger Program").29 Jacques Monod. Chance and Necessity, Fontana Books, l974 [Le hasard et la necessite, Paris, Editions duSeuil, l970], capitulo 6. Essa citao foi escolhida ao acaso entre inumeras outras, e corresponde bem aoespirito do celebrado capitulo de On Growth and Form intitulado: "On the tehory of transformations or thecomparison of related forms" (D'Arcy Thompson, On Growth and Form, Cambridge, Cambridge UniversityPress, l983:pp. 268-325.Cf. C. Lvi-Strauss, Mythologiques/ L'Homme Nu, Paris, Plon, l971, p. 604-6. Nafisica : "The important things in the world appear as the invariants ... of these transformations... The growth ofthe use of transformation theory ... is the essence of the new method in theoretical physics" (Paul Dirac, Theprinciples of Quantum Mechanics, Oxford , Clarendon Press, l987[l930]. Richard Feynman, The Character ofPhysical Law, Cambridge (Mass.), M.I.T. Press, l965.30 Vladmir Propp. A Morfologia do Conto.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    15/30

    15

    simetria: algo que podemos fazer a uma coisa (uma transformao) conservando algo.

    Descrever a identidade de um objeto entao equivalente a descrever suas simetrias, isto , o

    grupo de transformaes a que pertence.

    Para Leibniz, um mundo em que as relaes espaciais entre objetos fossem identicas s que

    valem em nosso mundo -- exceto que direita e esquerda fossem invertidas, ou que todos os

    tamanhos fossem multiplicados por dois, ou que tudo fosse deslocado por uma translao --

    seria indistinguivel do nosso mundo, mesmo para Deus: em outras palavras, esses mundos

    seriam de fato um e mesmo mundo. Contra Newton, Leibniz foi assim um estruturalista

    radical [31], ou um precursor de um raciocinio relativista, o que e equivalente. Para Weyl, a

    noo de grupo de transformao torna-se mesmo equivalente noo de identidade.32

    Queremos voltar a Lvi-Strauss mostrando como essa concepo leva a uma forma peculiar

    de relativismo antropolgico. Nos grupos de transformao tratados pela Antropologia

    Estrutural objetos so, por exemplo, sistemas de parentesco e mitos. Transformaes so

    simetrias que levam de um mito a outro, de um sistema de parentesco a outro. Objetos

    ainda mais gerais foram sugeridos em O Pensamento Selvagem: transformaes ligando

    sociedades distintas, ou sub-sistemas delas, e operando sobre sistemas cognitivos,

    economicos, estticos. J em l945 Lvi-Strauss tratou "tomos de parentesco" de um

    conjunto de sociedades distintas como parte de um nico grupo de transformaes.

    Sob essa perspectiva, no h objetos privilegiados. Qualquer mito pode ser o ponto de

    partida para a obteno do grupo inteiro de transformaes. As propriedades relevantes so

    justamente aquelas igualmente vlidas ao longo dessas transformaes . Em certo sentido,

    portanto, essas so as propriedades vlidas em todos os sistemas de referncia: as que no

    dependem da posio do observador, de sua escala de medida, de sua orientao, de seus

    valores. O estruturalismo descreve invarincia nos objetos ou, dualmente, invarincia entre

    observadores.

    31 W. Leibniz, Correspondencia com Clark, Terceira Carta, #4-5, Quarta Carta. O objetivo o raciocinio erademolir a noo de espaco absoluto de Newton. A realizao dessa demolio exigiu a teoria da relatividade[P.S. cabem ressalvas aqui.]32 Herman Weyl, The Theory of Groups and Quantum Mechanics, Dover Publications. Cf. captulo III(pargrafo 1, "Grupos de Transformao"), pp. 110-112.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    16/30

    16

    O estruturalismo , sob esse ponto de vista, relativista, mas no no sentido do relativismo

    cultural que afirma o carater irredutvel das diferencas culturais (cada cultura bebeu de uma

    agua distinta). -o antes num sentido analogo ao que fisicos tem em mente ao falar de

    relatividade de uma teoria fisica. Pois, nesse sentido, relatividade no implica em declarar

    que "tudo e relativo" (cada observador teria "suas leis" irredutiveis), mas, ao contrario, em

    identificar o grupo das transformaes que permite expressar o que invariante. [33] Os

    invariantes de uma teoria so preservados em todo sistema de referncia. Sem invariantes

    sob alguma traduo reina o solipsismo, no o relativismo. Traduzem-se assim as

    observaes feitas de um "ponto de vista" em observaes feitas de outro "ponto de vista", e

    mantendo a forma (se no o fraseado) de ambas as observaes (seria como relacionar asobservaes do quadrado visto de diferentes angulos). [34] A diversidade torna-se

    compativel com a unidade.

    Levando essa idia ao extremo, chegamos a uma tese mais geral. As propriedades que

    caracterizam a mente humana so invariantes ao longo das transformaes que levam de

    uma sociedade a outra. Tais transformaes so reversveis e nos conservam no domnio do

    humano, e nessa medida constituem um grupo. No h origem, nem sentido, nem escala

    privilegiada para a humanidade. A natureza humana radica, por assim dizer, num grupo detransformaes.

    Essa idia explica a metfora do olhar distanciado. Esse olhar no se localiza em nenhum

    lugar privilegiado. Dai decorre uma tarefa conferida aos antropologos, na medida em que

    estes se preocupem em caracterizar a noo de humanidade: descrever o grupo de

    transformaes que a deixa invariante. papel do antropologo descrever, livre de um

    sistema de referencia particular, o grupo de transformaes que expressaria -- ao exibir as

    33 "... the relativity of any physical theory expresses itself in the group of transformations which leave the lawsof the theory invariant and which therefore describe symmetries, for example of the space and time arenas ofthese theories." (W. Rindler. Essential Relativity, Berlin, Springer Verlag, l977, pp. 1-2)34 Sobre invariantes: "... l'ethnologie contemporaine s'applique a decouvrir et a formuler (...) lois d'ordre dansplusiers registres de la pensee et de l'activite humaines. Invariantes a traves les epoques et les cultures, ellesseules pouvront permettre de surmonter l'antinomie apparente entre unicite de la condition humaine, et lapluralite apparemment inepuisable des formes sous lesquelles nous l'apprehendons" (Le Regard Eloignee, p.62).

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    17/30

    17

    possibilidades do espirito humano a posteriori -- uma construo precisa da noo de

    humanidade, sem apelo a um sujeito transcendental.35

    4. Tristes Trpicos

    Resta a segunda metfora, a da mquina. Pareceria que h apenas uma metfora, j que

    estruturas podem ser descritas como mquinas. Uma estrutura algbrica , digamos, seria

    uma mquina que recebe como entrada dois objetos e da como sada um objeto (essa

    analogia entre a viso Bourbakista das estruturas matemticas e a construo de autmatos

    detalhadamente explorada no interessante livro Ciberntica, de R. Ashby). Estruturas de

    ordem seriam mquinas de escolher. Estruturas topolgicas seriam mquinas de medir. Masessas mquinas, como as mquinas de Turing e de Post, so por um lado algoritmos da

    mente, e por outro atos de trabalho. Na segunda acepo, precisam se enraizar na matria.

    Lvi-Strauss est bem consciente das implicaes. O essencial numa estrutura de grupo de

    transformaes e que as transformaes no tem direo privilegiada. Tanto o universo de

    Newton como o de Einstein podem ser descritos em termos de grupos de transformaes

    que abrangem sua trajetria temporal. Isso significa que podem funcionar para frente e para

    trs. Neles, a ordem do tempo pode ser invertida sem alterar a estrutura: no sentido de queum observador no poderia notar violaes das leis da fisica num sistema solar, por

    exemplo, que andasse em sentido contrrio ao nosso. O tempo no tem a direo

    privilegiada. Em termos leibnizianos, nem Deus poderia estabelecer a direo "correta" do

    tempo em universos newtonianos e einsteinianos, assim como no poderia distinguir a

    esquerda da direita. Os universos newtonianos-einsteinianos, na terminologia de Lvi-

    Strauss, so modelos "mecnicos". Sao universos de simetria no apenas espacial mas

    tambem temporal: onde, em certo sentido, espao e tempo se equivalem, ou seja, onde o

    tempo pensado espacialmente (poderiamos lembrar aqui que as transformaes

    matematicas que D'Arcy Thompson introduz para relacionar formas da natureza entre si no

    35 Sem esquecer, porm, do ponto anteriormente enfatizado: que o ponto de vista "distanciado" (o que v osistema de transformaes como um todo, "de longe") dual ao ponto de vista "localizado" (no qual oobservador que se coloca como parte de um grupo de transformaes). Assim, um "olhar distanciado" sobremuitas realidades humanas possvel sob a condies de numerosos "olhares localizados", cada umfocalizado em um universo humano. Um o dual do outro.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    18/30

    18

    so representaes de processos evolutivos, aos quais, alis, D'Arcy Thompson

    notoriamente indiferente em seu livro).

    De fato, Lvi-Strauss usou explicitamente essa ideia, no texto anti-racistaRaa e Histria,

    para argumentar contra uma interpretao evolutiva da diversidade humana. Cada sociedade

    e equivalente as demais se os modelos que atualiza so transformaes reversveis dos

    modelos das demais. A noo de progresso, como a de movimento, no absoluta: como

    quando andamos num trem, a noo de movimento depende do sistema de coordenadas

    selecionado [36].

    Mas Lvi-Strauss foi o primeiro a reconhecer e a destacar a existncia de mudanas no-

    reversveis nas suas grandes obras sobre sistemas de parentesco e sobre mitos, bem como

    em numerosas passagens secundrias sobre fenmenos estticos. Os sistemas de troca

    generalizada da sia estariam nos limites de uma ruptura alm da qual entramos no

    domnio de sistemas de tipo estatstico exemplificados nas sociedades camponesas

    europeias. Sistemas de parentesco de tipo Crow-Omaha esto na transio de modelos

    mecnicos para modelos estatsticos -- assim como os sistemas de maisons cognaticamente

    transmitidas, objeto de estudos recentes de Lvi-Strauss. Assim, ao passar da Austrlia para

    a sia e desta para a Europa, transitamos de modelos de troca restrita para modelos de troca

    generalizada e destes para modelos estatsticos: da simetria para a assimetria, de

    transformaes reversveis para transformaes irreversveis; do discreto para o contnuo;

    do global para o local. Estruturas de parentesco morrem.

    Tambem os mitos morrem. Um mito que se transforma em outros respeita os invariantes do

    grupo de transformaes a que pertence at que se cansa. Como ondas que a pedra criou

    no lago: a forma circular se amortece com a distncia e com o tempo, at deixar de ser

    distinguivel no movimento da gua sob a brisa da manh [37].

    36 A metafora relativistica esta em "Raca e Historia" (Anthropologie Structurale Deux, pp. 397-8), publicadooriginariamente em l952, e e retomada em "Raca e Cultura" (Le Regard Eloigne, Paris, Plon, l983, pp. 29-30.,(Le Regard Eloigne, p. 30), escrito em l971.37 "Comment meurent les mythes" (Anthopologie Structurale Deux, l973, pp. 301-318 [l973].C. Lvi-Strauss,Mythologiques/L'Origine des Manieres de Table, Paris, Plon, l968, p. 106.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    19/30

    19

    Eis a implicao da metfora da mquina. Uma maquina pra com o tempo. A energia

    inicial perdida por atrito. A termodinmica surgiu com o estudo da eficincia das

    mquinas, e sua lei mais clebre sela esse estudo dizendo precisamente que no existe

    mquina perptua. 38 assim natural que a termodinmica d o tom estilstico de um livro

    intitulado Tristes Tropicos. A entropia de um sistema fechado e sempre crescente. Em

    outros termos, sua estrutura se degrada. Mas o universo, do qual fazem parte a vida e o

    pensamento, um sistema fechado. O mundo cultural moderno tornou-se ele prprio

    fechado: aldeia global sem fronteiras com um exterior. A vida, os mitos, as classificaes,

    os sistemas de casamento, mas tambm a pintura e a msica, perdem estrutura, so

    irrupes transitrias [39

    ]. Sao flutuaes temporrias no lago, um por do sol deslumbrantee passageiro [].

    A noo de entropia d um sentido nico ao tempo. O tempo flui no sentido da perda da

    estrutura, da perda de informao, da perda de beleza. O paraso estruturalista da

    diversidade se v ameaado pelo pecado termodinmico. Transformaes miticas e de

    parentesco, encarnados na matria, ganham uma flecha temporal. Passamos da matemtica

    leibniziana fisica da era industrial -- ou, para usar uma expresso de Lvi-Strauss, da

    diferena oposicional diferena histrica: a razo que as transformaes do espirito

    devem enraizar-se na matria, subordinando-se assim a leis que regem mquinas reais. Ha

    entao uma flecha do tempo, mas essa flecha no aponta para o positivo, e sim para o

    negativo. O que o evolucionismo de Leslie White vira como progresso (o aumento da

    quantidade de energia extraida per capita) ao contrrio degradao: diminuio da

    38 Sobre as relaes entre o "trabalho" dos fsicos e dos economistas, bem como entre este e as mquinas naera industrial, ver Jean-Pierre Maury, Carnot et la machine vapeur, Paris, Presses Universitaires de France,1986. E tambm Franois Vatin, Le travail: Economie et Physique, 1780-1830, Paris, Presses Universitairesde France,1993.39 "... la pensee mythique (...) ne semble jamais satisfaite d'apporter une seule reponse a un probleme: sitotformulee, cette reponse s'insere danas un jeu de transformations ou toutes les autres reponses possibless'engendrent ensemble ou sucessivement (...) jusqu'a ce que les ressources de cette combinatoire sedegradent, ou qu'elles soient simplement epuisees" (Le Regard Elignee, pp.232/3). Sobre pintura, artesanato eespecies naturais: "... On peut craindre qu'il en soit de lui comme de ces especes vegetales et animales quel'homme, dans son aveuglement, aneantit les unes apres les autres" (Le Regard Eloigne, p. 343).

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    20/30

    20

    diversidade per capita (menos linguagens, menos religies, menos sistemas de parentesco,

    menos estilos estticos, menos espcies naturais, menos animais e plantas), como acontece

    quando uma floresta tropical arde para alimentar caldeiras ou bois -- transformando xams e

    guerreiros em mo-de-obra barata, amores-perfeitos em eucaliptos, informao em energia.

    Os tristes tropicos so assim no apenas o campo predileto para a observao in situ de

    mitos e sistemas de casamento, mas tambm da ao dos processos de degradao

    contemporaneos -- que geram carne, energia, minerios e valor que uma metrpole absorve

    para enriquecer a quantidade de mensagens que circulam em seu interior, um mundo novo

    dotado de um estilo unico, "moderno" e "ps-moderno" [40]. O universos sociais e

    biolgicos, galxias e cristais, caminham para um estado absorvente. A histria tem

    atratores. Regida pelo acaso de movimentos de bbado, caminha contudo para estados que

    aparecem como a "meta da histria" em retrospecto -- porque as vias alternativas foram

    destruidas. Ao faze-lo, apagam-se os rastros das transformaes que expressam as

    possibilidades da natureza humana. No apenas uma concha ou uma flor, uma sociedade ou

    uma floresta, mas especies eticas, gneros de atitudes perante a vida, famlias de tcnicas

    corporais, filos de conhecimentos e de prazeres -- com as simetrias que os revelam como

    parte do mesmo padro com que a mente funciona. Ironicamente, e a propria especiehumana o antidoto perverso para a diversidade da qual ela uma das manifestaes (41).

    Uma analogia pode ser apropriada, como pausa. Os marxistas da chamada Escola de

    Frankfurt, por caminhos completamente diversos, chegaram a um pessimismo similar,

    paradoxal porque vindo na esteira do entusiamo marxista pelo mundo novo prometido

    desde o iluminismo. Esse pessimismo ambiguo, porque combinado a entusiamo de

    40 C. Lvi-Strauss, Tristes Tropiques, Paris, Plon, l955, pp. 48-55 e p. 374. O por do sol o fecho em C. Lvi-Strauss, Mythologiques,IV, L'Homme Nu, Paris, Plon, l971. pp. 620-1: "Cette image [ ... les phases d'uncoucher de soleil] n'est pas celle de l'humanite meme et, par dela l'humanite, de toutes les manhifestations dela vie: oiseaux, papillons, coquillages et autres animaux, plantes avec leurs fleurs, dont l'evolution developpeet diversifie les formes, mais toujours pour que'elles s'abolissent et qu'a la fin, de la nature, de la vie, del'homme, de tous ces ouvrages subtils et raffines que sont les langues, les institutions sociales, les coutumes,les chefs-d'ouvres de l'art et les mythes, quand ils auront tire leurs dernjjiers feux d'artifice, rien ne subsiste? "(C. Lvi-Strauss. L'Homme Nu, p. 620-1).41 A configurao das nuvens no ceu o a ilustrao de Wiener para a irreversibilidade. N. Wiener,Cibernetica, cap. 1 [p. 58 da ed. brasileira, Sao Paulo, Perspectiva, l971]. N. Wiener, Cibernetica e Sociedade[The Human Use of Human Beings], Sao Paulo, Editora Cultrix, pp. 31-40.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    21/30

    21

    bricoleur voltado para o passado, mais claro em Benjamim, e permite melhor um paralelo

    com Lvi-Strauss. Colagem no primeiro caso; bricolagem no segundo. Benjamim pensava

    poeticamente e valorizava a metafora como o dom maior da linguagem [42]. Lvi-Strauss ja

    comparou toda sua analise mitologica a uma vasta metafora da beleza musical. No lhe e

    estranha a idia benjaminiana de preservar, num momento ameaado pelo perigo, a imagem

    miniaturizada de uma herana humana sem garantia de futuro.43 A sugesto pode ser

    expressa em palavras clebres de Benjamin:

    "Onde aparece para nos uma cadeia de acontecimentos ele -- o anjo da histria -- v uma

    nica catstrofe que continua a amontoar destroos sobre destroos e os arroja a seus ps.

    O anjo gostaria de se deter, despertar os mortos e reunir o que foi despedaado. Mas est

    soprando uma tempestade no Paraso e impele-o irresistivelmente para o futuro a que volta

    suas costas, enquanto o monte de runas a sua frente cresce em direo ao ceu" [44].

    5. Maquinas de Anular o Tempo

    A irreversibilidade no apenas um operador melanclico que marca limites analise

    estrutural. Vista como quebra de uma simetria, um aspecto essencial do espirito com que

    Lvi-Strauss trabalha com sistemas de parentesco e mitos. Simetria e assimetria fazem partede um par dialetico. A ordem no um modo natural: antes um artificio onde se mostra

    ativa uma possibilidade: pois a formaode galaxias, de cristais, de formas vivas e de

    neurnios so exemplos de ilhas de simetrizao num oceano de entropia.

    verdade que Lvi-Strauss foi aqui corrigido por uma ortodoxia estruturalista: foi o caso

    de Rodney Needham, reclamando uma distino clara entre determinismo e aleatoriedade,

    42 Cf. Anthropologie Structurale Deux, p. 365 e ss. Lvi-Strauss permite nesse artigo uma comparao comRosa Luxemburgo -- particularmente na reedio recente de suas ideias na forma de uma critica ao "modo depredao" caracteristico do sistema mundial. Para uma vio contrastante do papel da entropia cultural nomundo moderno, E. Gellner, Nation and Nationalism, Londres, Basil Blackwell, l983. Sobre a iluo de"diversidade" gerada na cultura urbana moderna, ver "New York post- et prefiguratif", Le Regard Eloigne, pp.344-356.43 "La disparition d'une espece quelconque creuse un vide, irreparable a notre echelle, dans le systeme de lacreation"Le Regard Eloignee, 374."44 Walter Benjamin, Magia e Tecnica, arte e politica. Ensaios sobre literatura e historia da cultura. ObrasEscolhidas, volume 1. Sao Paulo, Editora Brasilisense, l985.pp. 222 e ss.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    22/30

    22

    e de Louis Dumont, reclamando um primado igualmente inambiguo do global sobre o

    local. Esses autores viram na ascese conceitual -- radicalizando a simetria e o holismo -- a

    soluo para a critica empirista de Edmund Leach, David Maybury-Lewis e outros. Lvi-

    Strauss no tomou porm partido nem de uma ortodoxia simetrizante (onde, na forma de

    uma verso mentalista do estruturalismo, as estruturas reinariam expressas em regras

    inambiguas), nem de uma ortodoxia holista (onde as estruturas resultam de uma totalidade

    preexistente).

    Lvi-Strauss enveredou em vez disso pelas trilhas metafricas de uma geometria local e de

    uma temporalidade irreversvel -- explorando ento seu papel inquietante na tentativa,

    talvez sempre ilusria, de obter simetrias globais. Afinal, havia o exemplo da msica, onde

    a irrupo da assimetria e da imprevisibilidade so parte essencial da beleza. Lvi-Strauss

    tomou a msica como paradigma bsico em seu primeiro artigo sobre a analise mitica, e

    no por acaso. Havia para continuar com as metaforas da fsica, a sugestao de Wiener, de

    estudar fenmenos estatisticos com a prpria teoria dos grupos: em outras palavras, buscar

    invariantes em fenomenos essencialmente temporais.

    Ao contrario do que ocorre com os modelos mecanicos, dominio da simetria, onde

    dispomos de textos programticos detalhados de Lvi-Strauss, os modelos estatsticos (onde

    aparecem irreversibilidade, quebra da simetria) no foram tratado oficialmente por Lvi-

    Strauss. Esto dispersos em passagens das Estruturas Elementares do Parentesco (a

    transiode estruturas elementares para estruturas complexas), em passagens das

    Mitologicas (transio de mitos para romances), e, de maneira especial, abrindo como que

    uma nova era, no segundo prefacio s Estruturas Elementares do Parentesco, texto que, de

    certo modo, toma o lugar -- como primeiro de uma serie de textos publicados em obras

    como A Via das Mascaras, O Olhar Distanciado, Palavras Dadas, e em textos como

    Historia e Etnologia -- de prefcio a uma edio virtual de Antropologia Estrutural:

    Estruturas Complexas.

    Retomemos a distino Lvi-Straussiana entre modelos mecnicos e modelos estatisticos.

    Nos modelos mecanicos Lvi-Straussianos, estados, em numero finito, so transformados

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    23/30

    23

    em outros estados "mecanicamente", isto e, sem escolha possivel, como na

    interpretaodada por Needham para a noo de "sistemas prescritivos"[45]. Se o sistema

    abandona um estado ele pula, num salto discreto, para outro estado, numa transio

    determinada por regras: como a virgindade, digamos assim, o incesto e uma questo de

    tudo ou nada. Analogamente, a cor branca ou preta. Podemos agora precisar a importancia

    da no ambiguidade(ou, se quisermos, de processos que convertem escalas continuas em

    intervalos descontinuos): elas permitem inverter uma operao. Assim, o fato de que a

    transformaco entre um estado e outro seja parte de um grupo significa que a transformao

    pode ser invertida, sem perda das distines originais. Dois estados distintos levam a dois

    estados distintos. Vamos agora mergulhar essa ideia numa situaoque nos permitira passar,quase insensivelmente, para os casos onde, ao contrrio, as distines so abolidas e a

    ambiguidade se introduz irremedivelmente [46].

    Imaginemos uma caixa dividida em duas metades, que rotulamos de A e B. No estado

    inicial, ha n objetos no compartimento A, e zero objetos no compartimento B. Essa e uma

    representao de um estado discreto, que pode ser lido como uma mensagem de tipo

    sim/no, ou (1,0). Ao contr rio, num estado em que os objetos estivessem igualmente

    espalhados entre os compartimentos A e B, teramos uma representao de um estado

    contnuo, que pode ser lido como uma mensagem borrada que nos diz apenas talvez\talvez,

    ou (0.5, 0.5). Para percebermos melhor a relao entre essas duas situaes convm

    imaginar que h uma porta comunicando os compartimentos A e B da nossa caixa. Na

    primeira situao, a do estado discreto, essa porta est sempre fechada. Na segunda situao,

    45 Rodney Needham. Structure and Sentiment. Chicago, l962. Louis Dumont. "Introduction", Deux Theoriesd'Antrhropologie Sociale. Paris, Mouton, l971: "On ne peut pas tirer une formule holiste d'une rgle locale",diz Dumont (p. 124).46 Lvi-Strauss costuma utilizar uma formulao diferente: modelos mecanicos estao "na escala doobservador", e modelos estatisticos estao "fora da escala do observador" (provavelmente Lvi-Strauss retirouessa formulao de Wiener). O ponto, porem, e o mesmo: em modelos "fora de escala" e impossivel aplicarregras determinadas a objetos individuais, seja porque ha objetos demais ( cujas interaesmultiplas tornam oproblema intratavel: problema de n corpos da mecanica classica, problema geral dos jogos a n pessoas), sejaporque os objetos o pequenos demais e a observao interfere em seu comportamento (caso quantico, estudode pequenos grupos).

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    24/30

    24

    essa porta est sempre aberta. Nessa segunda situao, mais cedo ou mais tarde, os objetos

    se espalham entre os compartimentos A e B, deixando a caixa num estado cinzento que

    talvez flutue ligeiramente, e talvez ate drasticamente durante fraes da eternidade, mas

    permanece na maior parte do tempo no estado cinzento.

    As maquinas do primeiro tipo descrevem comportamentos que, segundo uma interpretao

    durkheiminana, seriam governados pela "solidariedade mecanica" (grosseiramente falando,

    cada indivduo "conheceria seu lugar"). As m quinas do segundo tipo descrevem ento

    comportamentos que, segundo a mesma interpretao, seriam desgorvernados pela

    "anomia".

    Tais mqinas de segundo tipo descreveriam, voltando metafora inicial,o comportamento

    de moleculas que andam ao acaso nos compartimentos, ricocheteando em suas paredes, e

    acidentalmente cruzando uma porta aberta. Nestas maquinas anarquicas a entropia atinge

    um maximo.

    Em minha opiniao foi uma importante realizao teorica de Lvi-Strauss perceber que os

    dois tipos de maquina acima descritos fazem parte, essencialmente, de uma mesma famlia.

    Modelos "prescritivos" (maquinas conservadoras), modelos com "preferencias" (maquinas

    liberais), e modelos "complexos" (maquinas anarquicas) no correspondem a esferas

    ontologicas. Correspondem a distintos modos de descrever uma mesma realidade. Um

    modelo, se nos lcito recordar noes lvi-straussianas, no modela diretamente a

    realidade, e sim uma estrutura que captura nesta invariantes. Uma maquina poderia

    representar uma serie de observaes passadas: e como, em certo sentido, opera a anlise

    construida por Franoise Hritier, seguindo uma sugestao de Lvi-Strauss, no com duas

    metades, mas com um numero bem maior de "compartimentos". Nesse caso, verificou-se

    que, a despeito da ausencia de regras mecanicas operando a curto prazo, um efeito global

    apareceu a longo prazo, na forma de um fechamento de ciclos de casamentos. Mas nada nos

    impede de considerar tais maquinas como representaode sociedades cujos individuos

    incluem estrategias e acaso em seu comportamento (como os atores sociais na teoria dos

    jogos de von Neumann), sendo contudo guiados por um vies que e o que gera, a longo

    prazo, uma curvatura no espao genealogico.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    25/30

    25

    Voltaremos a esse ponto adiante. Por enquanto, ressaltamos um outro.

    Que e o seguinte: modelos mecanicos tornam-se, com essa ressalva,casos particulares de

    maquinas markovians [47]. No caso em que, para cada classe X, ha uma unica classe Y tal

    que a probabilidade de que X obtenha mulheres em Y e igual a um ( com a

    condioadicional de que duas classes no obtenham esposas na mesma classe), a matriz da

    maquina markoviana torna-se formalmente identica a matriz de uma permutacao, no

    importando se e vista como registro de observaes ou como modelo mental. Ao longo do

    tempo todos os estados so discretos, igualmente possiveis. Se pensarmos cada classe com

    uma cor, no caso de modelos mecanicos, o mapa permaneceria com as cores iniciais

    claramente distintas. No caso oposto, a longo prazo as cores se dispersarao por todas as

    aldeias, e mapa se tornara cinzento, por assim dizer.

    Ha maquinas reversiveis e maquinas irreversiveis.

    O que e a irreversibilidade? O modelo da caixa com duas metades fornece uma resposta.

    Digamos que o numero de objetos seja igual a quatro. Ha 16 mundos possiveis em que

    quatro objetos se distribuem por duas metades. Desses, apenas um corresponde a

    distribuioinicial ( p p p p / - ), e um a distribuioinversa ( - / p p p p). Os modelos

    mecanicos so aqueles que ou mantem a distribuio inicial discreta, ou permitem a

    transio para a distribuio discreta inversa. Por outro lado, quatro mundos possiveis

    correspondem a distribuiopreferencial (p p p / p), e quatro mundos possveis

    correspondem distribuio preferencial oposta (p/ p p p ). E seis mundos possiveis

    correspondem a distribuioanarquica (p p / p p). A concluso e que os estados discretos

    so simplesmente os menos numerosos entre os mundos possiveis. Mas se a maquina no

    tem restries ou preferencias, ela tendera a passar por todos os mundos possiveis, com

    igual frequencia. Como ha mais mundos possiveis desorganizados do que discretos, na

    maior parte do tempo o sistema ser um mundo desorganizado. essa a ideia basica da

    irreversibilidade: sistemas passam de estados improvaveis para estados mais provaveis.

    Chamamos de entropia uma medida da probabilidade do estado em que o sistema se

    47 C. Shannon, The Mathematical Theory of Communication, p. 45 et passim.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    26/30

    26

    encontra. Podemos ento parafrasear o que acabou de ser dito da seguinte maneira: um

    sistema passa de estados de baixa entropia para estados de entropia alta.

    A existencia de tempo irreversvel e exatamente tal passagem. Sente-se o tempo passar

    porque, exceto em intervalos fugazes chamados de flutuaes , a entropia aumenta. Se

    assim, a existncia de m quinas reversveis, isto , mquinas que preservam alguma

    simetria, requer o congelamento da entropia, ou seja, a imobilizao do aumento da

    irreversibilidade. Sem essa violao no existiria vida nem cultura.

    O fsico James Clerk Maxwell representou essa violao antropomorficamente como um

    demonio postado na porta de comunicaoentre os dois compartimentos. O demonio fecha

    ou abre a porta [48], dependendo do que v. Em outras palavras, o Demonio de Maxwell

    guiado por informao. Ele utiliza tal informao para preservar estados improvveis.

    Assim, pode fechar a porta na maioria das vezes em que um objeto procura escapar do

    compartimento A para B, e abrir a porta na maioria dos casos em que um objeto procura

    voltar de B para A. Dessa forma, ele mantm o compartimento A "marcado", e o

    compartimento B "no marcado". Preservando assim um estado discreto e improv vel, o

    demnio impede o aumento da entropia. Demonios de Maxwell so maquinas de suprimir o

    tempo na unica forma pela qual sua direoe reconhecivel: o aumento da desordem, ou

    entropia.

    Podemos imaginar os demnios de Maxwell como uma variedade de mecanismos -- seja

    repressao, conscincia coletiva, tradicao, votacao, constituies . Regras, tabus,

    preferencias, mapas, estilos e cosmologias so demonios de Maxwell[49]. Uma maquina

    anti-entropica restringe o universo dos mundos possiveis introduzindo restries no

    movimento de vai-e-vem de objetos, como ocorre precisamente com as regras de casamento

    e os tabus, em sociedades de pequena escala, ou como regras alfandegarias, sistemas

    48 Mais uma vez, N. Wiener. Cibernetica. Sao Paulo, Editora Poligono, l971, p. 87. Jacques Monod, Chanceand Necessity, cap. 51. Ilya Prigogine, La nouvelle alliance. Paris, Galimard, l979. Para uma abordagem maistenica, porem ainda lucida para o leitor geral desse e de outros temas fisicos tratados nesse artigo, as PhysicalLectures de Richard Feynman o ideais.49 Cf. M. Carneiro da Cunha, Antropologia do Brasil/Mito, Historia, Etnicidade. Sao Paulo, EditoraBrasiliense, l987 [l986], pp. 97-108, sobre a etnicidade, no como substancia, mas como operador depreservao da diversidade.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    27/30

    27

    educacionais, ou estilos, em sociedades de grande escala. Como na distribuiode vogais na

    poesia de Puskhin, que Markov primeiro estudou. Os demonios de Maxwell, regra como

    regra, vistos de maneira generalizada como uma classe de maquinas markovianas de

    entropia inferior a um, atuariam no apenas em dominios como o das estruturas elementares

    de troca -- economia, linguagem, parentesco --mas tambem no dominio generalizado de

    fronteiras culturais [50] , na forma de maquinas classificatorias e etnicas. Trata-se de manter

    objetos nas mesmas caixas (endom quinas, que incluem as maquinas etnicas) ou de manter

    objetos em caixas diferentes (exom quinas, que incluem as maquinas de casamento). A

    natureza dos objetos no e de fato invocada no modelos, e sim sua distribuicao. Assim,

    como na teoria da identidade etnica pos-Lvi-Straussiana, no so propriedades de objetosque os atribuem a uma ou a outra caixa, e sim, por assim dizer, criterios politicos: seja a

    deciso de um grupo A, seja o conflito entre essa deciso e a deciso do grupo B [51]. Mas

    no queremos forcar uma metafora .

    6. De Perto e de Longe

    Se demonios de Maxwell fossem perfeitamente eficientes a entropia poderia ser anulada.

    Maquinas perpetuas seriam possiveis, convertendo a diferenca perpetua em trabalho

    infindavel. Mas no e facil livrar-se do tempo. Wiener assim formulou o que acontece com

    um demonio de Maxwell: o demonio s pode atuar apos receber informacao, e a longo

    prazo "recebe um grande numero de pequenas impresses, ate cair numa certa vertigem, e

    ficar incapacitado de claras percepes ".

    O proprio demonio e parte do sistema que controla e esta assim tambem sujeito a entropia.

    Com o tempo ele deixa de discriminar, como um porteiro bebado, por influencia da

    50 Em "Raca e Historia", como parte de uma critica ao etnocentrismo, Lvi-Strauss critica a noo deprogresso -- do ponto de vista de sociedades que funcionam como maquinas de anular o tempo. Em "Raca eCultura", mostra que "maquinas etnicas" (que de fato so uma variante das maquinas de anular o tempo) soantientrpicas. Cf. E. Gellner, Nation and Nationalism, London, Basil Blacwell, l983.51 Cf. Manuela C. da Cunha. "Parecer sobre criterios de Identidade Etnica". Essa teoria da etnicidade, e claro,ilustra a oposio entre teorias "Lvi-Straussianas" e "relativistas" da cultura. Ela no supoe a"irredutibilidade" -- a no ser no sentido de que um fenomeno cultural no e irredutivel a um fenomenoeconomico ou fisiologico. Ja a ideia de "irredutibilidade" -- no sentido de que a linguagem de um grupo sociale impossivel de ser traduzida na linguagem de outro, como na hipotese de Whorf, e expresso radical doculturalismo -- e claramente descartada -- por razoes discutidas neste artigo.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    28/30

    28

    clientela com a qual esta em continuo contato, e no mais e capaz de vetar a entrada de

    fregueses indesejaveis. Talvez por no serem capazes, impunemente, de obter informacao,

    talvez por no serem capazes, sem custo, de se desfazerem da memoria inutil acumulada em

    seculos, os demonios de Maxwell morrem enquanto demonios de Maxwell.

    A durao de um demonio de Maxwell, se no e eterna, pode, ser prolongada, se ele e

    realimentado de fora [52]. como se seu discernimento tivesse que ser reforcado pela

    entrada de energia e de informao -- recriao simbolica, troca com vizinhos, canais de

    comunicaocom movimentos politicos externos (como em Que Fazer?, de Lenin, onde a

    organizaoproletaria vem de fora). Passamos a admitir o carater ou tatico ou estrategico

    de mecanismos de estabilidade, jamais naturais [53].

    Estruturas dissipativas, diz Prigogine, produzem organizaoa partir de flutuaes caoticas

    em sistemas que no estao em equilibrio. Mas essas maquinas antientropicas so podem

    funcionar localmente -- por que alimentadas de energia por uma fonte exterior. (O problema

    da sociedade moderna seria, digamos assim, ter eliminado o "exterior" que ate agora era

    formado por um conjunto de universos cosmologicos, sociologicos, tecnologicos e

    ecologicos diversificados.) Da metafora de um universo mecanico e global passamos a um

    universo markoviano e local -- para conservar a invariancia do primeiro face a ameaca

    permanente e insidiosa da desordem. Concluimos, apos essa digresso sobre a dialetica

    simetria/assimetria, com o tema global/local. Aqui cabe falar numa geometria diferencial.

    Um ciclista inclina suavemente o guidao da bicicleta. O efeito e a introduode uma

    curvatura em sua trajetoria. O ciclista precisa olhar para sua vizinhanca: para um mapa

    local. Ele precisa tambem passar continuamente para novos mapas em vizinhancas novas.

    Ele pode descrever um circulo, em certas condies : e poderiamos fornecer entao um

    52 Um par de artigos recentes indicam que a limitao basica no esta no processo de obteno da informao,e sim na necessidade que tem o demonio de descartar memoria inutil: de jogar o lixo das velhas impressoesfora. O demonio precisa ser ajudado a esquecer. Charles Bennet e Rolf Landauer, "The fundamental physicallimits to computation", Scientific American, 253(1), jul l985, pp. 38-46. Charles Bennet, "Demons, Enginesand the Second Law", Scientific American, 257(5), nov l987, pp. 88-96.53 Mauro W. B. de Almeida. "Dilemas da Razao Pratica". Anuario Antropologico 86, Ed. Universidade deBrasilia/Tempo Brasileiro, l988, 213-226.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    29/30

    29

    modelo global da trajetoria como "todos os pontos equidistantes do centro". O ciclista,

    porem, no olha para o centro (se o fizesse, provavelmente cairia da bicicleta): esse modelo

    global e nosso, e no dele. Nada garante que a curvatura imprimida a cada momente

    resultara no circulo geometrico.

    A passagem do local para o global e simples em situaes onde o espao apresenta uma

    "curvatura constante" localmente (como num circulo, onde todo ponto possui uma

    vizinhanca identicamente curvada). Mas trata-se justamente de saber, a partir de um fato

    local, se vale uma propriedade global. O espao pode ser irregular; ou pode ser impossivel

    apreende-lo em forma global [54]. A segunda ediodas Estruturas Elementares do

    Parentesco retoma argumentos que na primeira eram expressos em forma global e indicam

    como podem ser reformulados como argumentos de passagem do local para o global:

    passagem que, agora, e problematica. Uma propriedade global leva univocamente a

    propriedades locais: mas para que possamos passar de uma propriedade local (mesmo que

    ela seja valida em "toda parte") a uma propriedade global, e preciso pressupor propriedades

    do espao, como conectividade e compacidade (). Aes de poder e de

    manipulaodeformam a geometria na vizinhanca imediata. Assumem importancia, entao,

    as estrategias aleatorias e individuais, que, embora subordinadas a regras do jogo queprescrevem um conjunto finito de jogadas possiveis, podem amplificar flutuaes

    imperceptiveis transformando-as em casas reais e genealogias cognaticas que lutam contra

    o azar localmente, em processos estruturantes que evocam o fenomeno das "estruturas

    dissipativas" que Prigogine estuda.

    o objeto das pesquisas mais recentes de Lvi-Strauss. Nada impede que estrategias

    mistas possam ocorrer aqui (emprestando a terminologia da teoria dos jogos): caso em que

    se pode prever apenas que varias regras estarao em superposicao, embora empiricamente aobservaomostre sempre uma regra singular. Se pensamos a formaode formigueiros a

    partir de fenomenos locais, como no exemplo dado por Ilya Prigogine (), no podemos

    evitar a comparaocom os sistemas de casamento de sociedades indgenas das florestas

    54 Jean Petitot. "Local/global", "Sistemas de Referencia". Em Enciclopedia Einaudi, vol.4, Local/Global,Lisboa, Imprensa Nacional, l985, pp.11-89.

  • 7/29/2019 1999 Almeida Simetria e Entropia Na Obra de Levi Strauss Revista de Antropologia

    30/30

    30

    sul-americanas, onde o fenomeno da superposiode estados pode explicar ao mesmo

    tempo a existencia de varios modelos de casamento simultneos (indo da endogamia ao

    casamento por rapto, passando pela troca simetrica) (), e grupos locais onde cada um,

    flutuante e instavel, trata seu entorno como fonte de materia e informacao, para, "longe do

    equilibrio", converte-lo em ordem e continuidade internas: canibalismo estruturante ().

    Mitos se reencontram como particulas agregadas em nebulosas num ceu estrelado. So

    vemos aquelas poeiras miticas de nossa vizinhanca, e devemos nos contentar em entender

    tendencias que operam localmente, infletindo o espao mitico, e apontando para o fato de

    que ele talvez seja afinal visivel como um todo apenas para um observador virtual situado

    num ponto no infinito. A analise de mitos e necessariamente local. Prigogine tem razao

    acerca do estruturalismo de Lvi-Strauss: nele ordem e acaso, simetria e entropia, se

    interpenetram.

    Tambem utopias mudam de natureza: restariam entao, no lugar das utopias globais do

    seculo XIX, utopias locais, micro-estruturas, estilos simbolicos realimentados por por uma

    dialetica interior/exterior, sem garantia de permanencia.

    A simetria e fundamental no pensamento de Lvi-Strauss. Mas a simetria existe, por assim

    dizer, para ser quebrada. A simetria temporal e quebrada primeiro pela intervenode uma

    flecha temporal na forma de entropia. Essa primeira quebra de simetria tem como

    consequencia uma segunda quebra de simetria entre o global e o local. Mas e possivel dizer

    aqui das investigaes de Lvi-Strauss aquilo que ele disse da musica. Onde esperamos

    simetria, encontramos desordem. Terminamos assim com Blake. A contradio entre a

    simetria e o fogo que queima nas florestas da noite no pode ser abolida.

    FIM