1488

19
Poder local e turismo social António Teixeira Fernandes As sociedades contemporâneas, no seu processo de desenvolvimento, vêm promovendo progressivamente tempos mais dilatados de lazer, no tempo cada vez mais libertado do trabalho. Se as sociedades industriais acentuam a ética do trabalho - tanto burguesa como marxista -, as sociedades pós-- industriais confrontam-se com o tempo livre. De anseio, na libertação da tirania e da opressão do trabalho, este tempo converte-se em crescente  problema, tão complexa vem sendo a sua gestão. Neste mesmo processo de gestão do social, se situa o turismo social. 1. O turismo vem-se tornando uma actividade característica da época moderna. Como realidade pluri-dimensional do mundo de hoje, é o resultado natural da convergência de diversos factores, estreitamente relacionados entre si. Aparece associado ao desenvolvimento tecnológico dos transportes e das comunicações. Este desenvolvimento, ao mesmo tempo que introduz uma generalizada mobilidade das pessoas, abre ao consumo uma maior quantidade de bens e de serviços. Assiste-se, em simultâneo, ao aumento generalizado dos tempos livres, com a socialização da prática das férias entendida como exigência de cidadania. A libertação do trabalho é contemporânea de novas formas de organização social e política. As sociedades actuais tendem a preocupar-se tanto com o lazer como com o trabalho. Na busca de novas modalidades de ocupação do tempo livre, surge uma forte indústria do lazer, apoiada em redes nacionais e internacionais de informação e de comunicação, em resultado do desenvolvimento tecnológico dos transportes.  9 

Transcript of 1488

  • Poder local e turismo social

    Antnio Teixeira Fernandes

    As sociedades contemporneas, no seu processo de desenvolvimento, vm promovendo progressivamente tempos mais dilatados de lazer, no tempo cada vez mais libertado do trabalho. Se as sociedades industriais acentuam a tica do trabalho - tanto burguesa como marxista -, as sociedades ps--industriais confrontam-se com o tempo livre. De anseio, na libertao da tirania e da opresso do trabalho, este tempo converte-se em crescente problema, to complexa vem sendo a sua gesto. Neste mesmo processo de gesto do social, se situa o turismo social.

    1. O turismo vem-se tornando uma actividade caracterstica da poca moderna. Como realidade pluri-dimensional do mundo de hoje, o resultado natural da convergncia de diversos factores, estreitamente relacionados entre si.

    Aparece associado ao desenvolvimento tecnolgico dos transportes e das comunicaes. Este desenvolvimento, ao mesmo tempo que introduz uma generalizada mobilidade das pessoas, abre ao consumo uma maior quantidade de bens e de servios.

    Assiste-se, em simultneo, ao aumento generalizado dos tempos livres, com a socializao da prtica das frias entendida como exigncia de cidadania. A libertao do trabalho contempornea de novas formas de organizao social e poltica. As sociedades actuais tendem a preocupar-se tanto com o lazer como com o trabalho. Na busca de novas modalidades de ocupao do tempo livre, surge uma forte indstria do lazer, apoiada em redes nacionais e internacionais de informao e de comunicao, em resultado do desenvolvimento tecnolgico dos transportes.

    9

  • Antnio Teixeira Fernandes

    Com o aumento dos tempos livres e a cada vez maior socializao das frias, impe-se a organizao social do lazer, com o crescente investimento em tal sector. Perante os diversificados nveis de posse econmica, os poderes polticos, nomeadamente o poder autrquico, so chamados a proporcionar s camadas sociais mais carenciadas consumos que tradicionalmente eram reservados aos estratos sociais favorecidos. Trata-se de estender aos negativamente privilegiados o que tem sido apenas acessvel aos positivamente privilegiados.

    Estes factores, directamente ligados ao turismo, inscrevem-se, por sua vez, em tendncias sociais de maior alcance. As sociedades actuais esto particularmente voltadas para a busca de uma sempre maior qualidade de vida. No passado vivia-se sob o signo da privao relativa. O seu principal objectivo residia na obteno dos meios econmicos indispensveis sobrevivncia dos indivduos. As sociedades actuais buscam particularmente a cultura, os valores e a qualidade de vida. Desenvolve-se e alarga-se, por outro lado, a prtica da participao social e cultural, considerada como inerente vida democrtica.

    2. Neste contexto das hodiernas sociedades, emergem diferentes modalidades de turismo.

    2.1. Nas classes mdias e superiores, o turismo realiza-se de forma individualizada ou em grupos muito restritos. Este turismo, individualizado e autnomo, constri o seu prprio percurso. Obedecendo pouco s normas impostas pelas agncias de turismo, bastante "indisciplinado" nas suas escolhas e nos seus horrios, em obedincia a critrios que lhe so prprios. Trata-se de um turismo romntico, de cariz elitista, e, dado o capital escolar e simblico dos seus actores, bastante reflexivo e cultural.

    O turista das classes mdias e superiores, com o capital simblico de que dispe, e que se dedica a visitar cidades histrico-monumentais, tende a valorizar os aspectos educativos, histricos e culturais, acima das dimenses ldicas da viagem, embora no as postergando. No que vem, esforam-se por decifrar a mensagem, ao mesmo tempo que lhe atribuem outras mensagens e sentidos.

    2.2. Diferente o turismo popular e de massa. Este turismo mais passivo, com obedincia a percursos pr-determinados pelos agentes que o promovem. Se o turismo elitista diferencia socialmente, o turismo social de massa tende a uniformizar, tornando acessvel o que antes era sinal de distino. Na medida em que possa provocar uma igualizao social, o turismo social conduz sua revalorizao. No se est, no entanto, perante um turismo cultural, no seu sentido mais rico. A anlise do turismo histrico, voltado para

    10

  • Poder local e turismo social

    o patrimnio, vem revelando que nele muito fraca a incorporao do significado dos monumentos visitados1. Ele consistir, sobretudo em formas de entretenimento e de evaso. O turismo social, surgindo com a massificao do turismo, no alcana, contudo, sempre os seus verdadeiros objectivos. O turismo das classes inferiores, sem os capitais simblicos prprios das classes superiores, parece estar mais voltado para os aspectos ldicos2. O turista limita-se, neste caso, quase sempre a olhar, imerso como est na cultura da imagem e do visual.

    2.3. Os dados fornecidos pela Direco-Geral do Turismo mostram que a grande maioria dos portugueses, com mais de 15 anos, vem gozando de frias. Um nmero considervel f-lo fora da residncia. Est em crescimento o volume daqueles que escolhem um destino no estrangeiro. A finalidade mais assinalada para o seu uso consiste no descanso e na recuperao de foras. Esse objectivo encontrado por muitos na fruio do sol, do vero e da praia. Outros buscam-no no contacto com pessoas de outras regies, ou ainda no divertimento e na contemplao de paisagens agradveis. Menor a percentagem dos que preferem a visita aos monumentos histricos e aos edifcios mais relevantes. Os monumentos constituem um elemento de rememorizao do passado, exercendo uma enorme seduo sobre os turistas, pela sua arquitectura e pela sua esttica. Na medida em que do expresso ao passado histrico local, actuam tambm, em especial para os habitantes do meio em que se situam, como marcas de identidade. Os museus e as galerias, esses so, para o grande turismo como o turismo social, stios perifricos e marginalizados. H um consumo do diferenciado turismo, de acordo com os diversos actores sociais.

    3. A revalorizao do patrimnio e o encanto que ele produz inserem-se numa tendncia geral que consiste na necessidade sentida hoje pelas pessoas de recordar, de comemorar, prpria de sociedades que passam por crises de identidade. A busca de identidade leva revalorizao do significado do passado e das suas expresses temporalizadas no espao.

    Tal preocupao aparece ligada ao interesse pela histria e pela tradio que, por vezes, tem a ver com a ambivalncia do presente e a incerteza quanto ao futuro. A crise de identidade ocorre numa poca marcada pela ambiguidade

    1 Carlos Fortuna, "As cidades e as entidades - patrimnios, memrias e narrativas sociais",

    in Cultura e Rconomia, Lisboa, Instituto de Cincias Sociais, 1995, pp. 209-230; Carlos Fortuna,Identidades, Percursos, Paisagens Culturais, Oeiras, Celta, 1999.

    2 A. Sauvageot, Voirs et Savoirs. Esquisse d'une Sociologie du Regard, Paris, PUF, 1994.

    11

  • Antnio Teixeira Fernandes

    do existente e pelo risco que o acompanha. Esta situao prpria da moder-nidade tardia faz valorizar produtos histricos tornados objecto de consumo.

    A valorizao do patrimnio histrico-monumental constitui uma caracterstica das sociedades actuais, configurada sob a forma de busca dos vestgios do passado, da procura de razes e do reviver da memria colectiva3. A procura do passado, ao mesmo tempo que com ele se produz uma certa ruptura, conserva-o em funo do futuro, dando fundamento e sentido presente necessidade de identidade.

    O patrimnio , na verdade, um servio prestado memria colectiva. Entendendo que "o progresso gordo e ancho: no cabe onde quer que esteja um monumento", Alexandre Herculano considera os monumentos como sendo "das cousas mais poticas e sanctas da ptria". A dimenso colectiva da memria reforada pela vontade actual de constante celebrao e comemorao. Georges Duby afirma que "a nossa sociedade sente-se inquieta. O simples facto de ela se voltar resolutamente para a sua memria prova disso. Os franceses nunca comemoraram tanto. Todas as semanas se festeja aqui ou alm o aniversrio de qualquer coisa. Se nos agarramos assim memria dos acontecimentos ou dos grandes homens da nossa histria tambm para recuperarmos confiana. portanto porque est oculta no fundo de ns uma inquietao, uma angstia". As cidades, na promoo da sua prpria identidade, tendem a oferecer imagens de marca, formadas pela combinao da tradio e da inovao, atravs do que Ulrich Beck e Anthony Giddens designam por "destradicionalizao" 4. Por este conceito, entende-se a conservao inovadora da tradio. As polticas do patrimnio so postas ao servio do imaginrio colectivo do presente e do futuro. A destradicionali-zao realizada pelos poderes polticos nas cidades de hoje, preocupados com a produo de imagens de marca, no pode significar, por isso, a eliminao da tradio, do passado, ou da memria, porque isso conduziria sua prpria auto-destruio. Nem os indivduos, nem as cidades, nem os pases podem existir sem memria. Sem esta, no haveria conscincia de si e identidade.

    3 Franois Choay, UAllgorie du Patrimoine, Paris, Seuil, 1996; M. Guillaume, La

    Politique du Patrimoine, Paris, Galile, 1980; Grard Noiriel, La Tyrannie du National, Paris, Calmann-Lvy, 1991; Alos Riegl, Le Culte Moderne des Monuments, Paris, Seuil, 1984; Antnio Firmino da Costa, Sociedade de Bairro, Oeiras, Celta, 1999.

    4 Alexandre Herculano, Opsculos, Tomo VI, Lisboa, Livraria Bertrand, s/d, pp. 19 e 23; Georges Duby, Ano 1000 Ano 2000. No Rasto dos Nossos Medos, Lisboa, Teorema, 1997, p. 13; Ulrich Beck e Anthony Giddens, Modernizao Reflexiva, Oeiras, Celta, 2000, pp. VII e 97-101.

    12

  • Poder local e turismo social

    O interesse do poder local pelo patrimnio resulta de vrios factores. O patrimnio torna-se um elemento importante na promoo nacional e internacional, alm de servir intuitos econmicos da regio, pelo turismo que atrai. , porventura, para algumas regies, a actividade mais vivel em termos econmicos, pelo desenvolvimento sustentvel que promove. Desde que se procura explorar os recursos endgenos, torna-se, de imediato, um importante factor de desenvolvimento. Aparece, ainda, frequentemente associado a actividades sociais e culturais, exercendo influncia sobre o futuro.

    Contribui, alm disso, para a promoo da memria colectiva das populaes locais. A busca de referenciais identitrios posta ao alcance dos prprios residenciais do meio, assim como dos seus visitantes, na medida em que a identidade se constri na relao com o outro. Os valores culturais so transformados, nessa medida, em processo sustentvel de desenvolvimento, ao mesmo tempo que, por sua mediao, se opera a perpetuao da herana cultural. A diversidade da cultura torna-se uma enorme riqueza, com uma multiplicidade de valncias.

    Compreende-se, de harmonia com esta perspectiva, o interesse posto na recuperao do patrimnio, com os seus monumentos, os seus inventrios e as suas comemoraes. Este interesse tanto maior quanto mais se assiste, nas zonas pri-urbanas de Lisboa e do Porto, a um intenso processo de desca-racterizao do meio. O cuidado com a preservao do patrimnio, resulta do facto de ele ser uma marca da identidade colectiva. O patrimnio confere s cidades e s vilas um cenrio particular que excita a fantasia popular. O passado uma das dimenses de singularidade do lugar, traduzida nas "instituies de memria" e na cultura do quotidiano dos lugares. As atenes tendem a direccionar-se para a memria em tempos de ruptura da continuidade histrica. Jean Duvignaud pergunta-se se "a histria no resulta de uma construo cristalizada por um grupo estabelecido para se defender contra a eroso permanente da mudana, enquanto a memria postula a mudana de perspectivas e o seu relativismo recproco?"5. A memria produz um processo de destradicionalizao, enquanto reconstruo do passado. A busca da identidade dos lugares a busca do passado enquanto elemento da identidade actual.

    Num tempo de crise das identidades, as runas, os monumentos e as diversas "instituies de memria" como so designados, por Pierre Nora, os

    5 Pierre Nora, "Entre mmoire et histoire", in Les Lieux de Mmoire, Vol. 1, Paris,

    Gallimard, 1984; Jean Duvignaud, Prefcio a Maurice Halbwachs, Mmoire Colective, Paris, PUF, 1968, p. XIII.

    13

  • Antnio Teixeira Fernandes

    museus, os arquivos, as bibliotecas e os monumentos, servem de poderosas marcas identitrias para as pessoas. A busca de referenciais identitrios contempornea da crise do modelo iluminista do progresso, com o seu exagerado optimismo no futuro6. Se o Iluminismo estava voltado para o progresso e para o futuro, no para o passado, as sociedades de hoje procuram antes viver o presente, porque o futuro se tornou incerto. Anthony Giddens fala do "esvaziamento do tempo". Ora, a revalorizao do passado despertada ao mesmo tempo que redobrado o interesse pela memria dos lugares. A memria colectiva perdida no tempo recuperada no espao. Investir na recuperao da memria colectiva oferecer referenciais identitrios s pessoas. Os mecanismos da construo da memria colectiva so, de facto, os mesmos da construo das identidades. Pela fruio esttica que produz e pelo apaziguamento dos espritos e das conscincias que cria, o contacto com o patrimnio desencadeia um processo de reencantamento do mundo, provocando uma ligao de continuidade na existncia.

    Os monumentos, os museus, os santurios, assim como os grandes centros comerciais, constituem-se, deste modo, em lugares de deambulao, espaos ritualizados onde a existncia se liberta da inrcia e da banalidade do dia-a-dia. Revestem-se, de ordinrio, de um carcter festivo, isto , de uma dimenso de transgresso e de excesso. H uma transgresso do quotidiano dos turistas e quase sempre uma transgresso do sentido oficial atribudo aos objectos.

    No basta, porm, revalorizar o passado. H que produzir, em cada momento, a memria do futuro. O olhar histrico definido igualmente pelo olhar presente que se lana sobre o que, no presente, se constri. E o olhar presente sobre o patrimnio que se edifica deve servir no s a recuperao do passado como ainda a memria e a identidade do futuro.

    A busca da natureza constitui um outro plo de ateno, no s pela admirao que desperta, em resultado da sua fora telrica, mas ainda pela reaco que cria em relao poluio que grassa por toda a parte. As paisagens grandiosas e os ecomuseus so, por isso, facilmente transformados em objectos de consumo turstico que oferecem aos que os visitam encantamento e admirao. No menos importante o turismo rural, cuja promoo poder competir tambm s autarquias.

    6 Jacques Le Goff, Histoire et Mmoire, Paris, Gallimard, 1997; Anthony Giddens, La

    Constituition de Ia Socit, Paris, PUF, 1987.

    14

  • Poder local e turismo social

    As paisagens revestem-se de um valor cultural a partir do momento em que so humanizadas atravs de sucessivas intervenes histricas do homem. Precisam, nessa medida, de ser devidamente conservadas. A ecomuseologia entendida por Georges Henri Rivire como um espelho onde a populao se contempla para a se reencontrar, espelho que oferece igualmente aos seus visitantes para melhor se fazer compreender, mediante o seu trabalho, as suas condutas e a sua intimidade7. Ela tende a mostrar as prprias razes das populaes e o processo do seu contnuo desenvolvimento.

    A ecomuseologia promove, na verdade, o avivar da memria das populaes, mediante a recuperao de elementos que marcam a sua actividade, como os moinhos e as oficinas artesenais. Mas, para alm desta musealizao, h a dinamizao cultural das actividades que serviram de base ao desenvolvimento do meio. Nelas se preserva e reflecte a memria local e regional, com os seus saberes, as suas actividades e o seu patrimnio. Ela insere-se na continuidade do tempo e provoca o interesse pelos prprios valores. Alm dos objectos de arte, as expresses da vida quotidiana so necessrias compreenso futura da identidade dos grupos sociais passados e presentes.

    Numa sociedade em que a ecologia adquire uma particular importncia, para alm das cidades histricas e dos monumentos, a natureza constitui-se, do mesmo modo, em objecto de consumo turstico. Assumem, desde ento, particular relevncia os eco-museus e os stios considerados mais paradisacos.

    4. Compete aos poderes pblicos a promoo da reabilitao do patrimnio, enquanto espao de turismo. Este desempenha, em tal contexto, um lugar e uma funo relevantes. uma particular manifestao cultural e poltica da modernidade, sobretudo da modernidade tardia, que concretiza o desejo de evaso e o prazer emocional das pessoas, pela atenuao dos constrangimentos da vida quotidiana, ainda que, por vezes, de forma transitria e efmera.

    As sociedades actuais so dadas em espectculo e, desse modo, apresentam nveis variados de reencantamento. So reencantadas nos seus diversos elementos pela poltica do turismo, enquanto oferta de referenciais identitrios, e so reencantadas ainda pelo olhar do turista. Existe uma dupla fonte de reencantamento. Uma resulta da valorizao do patrimnio por parte

    7 La Musologie selon Georges Henri Rivire, Paris, Bordas, 1989.

    15

  • Antnio Teixeira Fernandes

    das entidades competentes, a outra uma consequncia do olhar que nele repousa.

    As prticas de turismo podem obedecer assim a uma de duas orientaes: a busca de prazer ou a busca de cultura. As duas orientaes encontram-se frequentemente associadas. O turismo um factor de satisfao emocional, de libertao e de autonomia individual. Existe, nomeadamente no turismo social, uma fuga rotina do quotidiano e aos seus constrangimentos. Pelo turismo, entra-se em ambincia de festa, caracterizada pela transgresso. A transgresso reenveste as pessoas em autonomia e em liberdade.

    As prticas do turismo social tendem a ser essencialmente expressivas, permitindo a manifestao de sentimentos, de gostos e de preferncias. Segundo Georg Simmel, a cidade estimula intensamente as pessoas. O turista divaga, nesse contexto, ao sabor da "estimulao dos sentidos". Entrar na cultura urbana permite uma teatralizao do quotidiano, com a multiplicao e a excitao das emoes. Os monumentos e os ambientes urbanos so um mundo de sensaes. Opera-se a suspenso de todos os cdigos normativos, oferecendo-se a fruio intensa e extraordinria de bens e servios culturais. Por algum tempo, permitida a fuga ao quotidiano residencial e de trabalho ou de ocupao, e suspendem-se as obrigaes dirias. H nele uma transgresso simblica das convenes sociais da vida diria e da sua rotina.

    O turismo social cria, alm disso, a sensao de um certo nivelamento social, ao permitir o acesso aos lugares de elite. Este nivelamento social , no entanto, ilusrio, efmero e transitrio, como transitria e fugaz a deambulao turstica. bastante semelhante sensao criada no pobre passeante pelas ruas de uma cidade que pra a observar as roupas luxuosas expostas numa boutique de luxo e, mais adiante, a admirar extasiado as jias exibidas na vitrine de uma qualquer ourivesaria. Desde que o turismo se torna objecto de consumo de massa, passa a desempenhar a funo, ainda que ilusria, de um certo nivelamento social.

    O turismo de elite, esse diferenciador. diferenciador desde logo na sua origem, enquanto productor de objectos que se constituem ulteriormente em bens de consumo de massa. ainda diferenciador na medida em que investe em modalidades de turismo que se distanciam das formas comuns do turismo de massa. o caso do turismo que se traduz na sada para o estrangeiro, na aventura dos safaris e na busca dos lugares exticos. A generalizao do turismo social, tornado fenmeno de massa, tende a criar, nas camadas sociais mais elevadas, um sentimento elitista. O que para elas passa a ser socialmente distinto ser o no se deixar confundir com o turista normal, com a recusa de tal imagem.

    16

  • Poder local e turismo social

    O turismo social proporciona, de qualquer modo, um encontro com o universo cultural. O problema est em saber como se processa esse encontro, se se trata de uma mera evaso ou de uma real incorporao cultural dos monumentos visitados e das paisagens que o turista encontra na sua deambulao.

    5. Aos diferentes actores e consumidores de turismo, com os produtos que lhes so, de ordinrio, oferecidos, esto subjacentes diversos interesses, obedecendo cada um deles sua prpria lgica.

    5.1. As agncias de turismo procuram converter o turismo em objecto de consumo generalizado, promovendo uma apropriao dos bens do turismo e a sua adaptao experincia e ao grau de satisfao das diferentes camadas sociais. As comunicaes e os modelos de organizao da actividade turstica criam as condies para uma fcil passagem do predomnio da viagem individualizada de membros ou pequenos grupos de famlia mais abastados ao turismo colectivo de massa. A massifcao do turismo e a intensificao dos seus fluxos nacionais e internacionais so responsveis pelo aumento da atraco pelas cidades histricas e pelos monumentos. A indstria deste turismo tende a incidir fundamentalmente sobre a cultura hedonista, quer como manifestao de sentimentos e de gostos, quer como vivncia subjectiva dos elementos culturais que so oferecidos em observao. Trata-se de um turismo fundamentalmente sensorial e passional.

    O turismo promovido pelos diferentes operadores privados tem em vista a comercializao de bens e servios do turismo. Os operadores privados so essencialmente inspirados por motivos econmicos, tendendo a experincia turstica que oferecem a ser totalmente mercantilizada, privilegiando o elemento ldico da encenao e do encantamento.

    Esta indstria do turismo procura vender experincias e proporcionar nveis de satisfao aos seus consumidores reais e potenciais, lanando no comrcio as cidades e os monumentos, a natureza e as paisagens, os costumes e os sentimentos. A lgica de tais agncias obedece s leis do mercado de venda de bens e de servios. Com a subida do nvel de vida, vem-se operando uma certa democratizao do acesso ao turismo. A sua indstria no faz mais do que promover a venda de experincias, sensaes e estilos de vida. Trata-se predominantemente de uma actividade de evaso.

    Mercantilizadas as prticas de turismo, eles tendem a contentar-se, em simultneo, com a sua expresso formal e artificial. As sociedades actuais so caracterizadas pelo predomnio do visual. O percurso turstico passa a ser normalmente um percurso visual. As cidades e os monumentos so frudos na sua mera dimenso esttica.

    17

  • Antnio Teixeira Fernandes

    5.2. Diverso deve ser o papel que so chamadas a desempenhar as autarquias no desenvolvimento do turismo social, porque outros devem ser os seus objectivos. O poder local pode contar-se, em certas circunstncias, entre os agentes de dinamizao do mercado de turismo. O problema consiste em saber qual a estratgia por ele seguida. Os poderes pblicos certamente no podero ser operadores de turismo do mesmo modo que os demais operadores neste domnio.

    5.2.1. O poder local no pode esquecer a funo de evaso que possui o turismo, libertando-o embora da sua mercantilizao. Os que no detm recursos no necessitam, menos do que os outros, de se libertarem de tenses e constrangimentos. Talvez mais do que eles, precisam, face s frequentes amarguras da vida, de tempos de suspenso do seu quotidiano.

    5.2.2. Mas uma das primeiras preocupaes do poder local, no que diz respeito ao turismo social, deve consistir em tornar acessvel aos seus residentes o prprio patrimnio. Este objectivo realiza-se normalmente atravs de visitas culturais. O conhecimento do que prprio, operado mediante a visita a monumentos, bibliotecas, arquivos, isto , a todas as instituies de memria, faz desenvolver a conscincia da prpria identidade, e o interesse e o respeito pelo que seu, abrindo para o reconhecimento do diferente. -se tanto mais capaz de perceber o que estranho quanto mais se conhece o que seu e vice-versa.

    A busca do diferente, que uma caracterstica do turismo, deve ser posta ao servio das identidades pela dialctica que cria entre identidade e identizao. A identidade, enquanto conhecimento de si e sentimento de pertena, alimentada pela identizao, enquanto conhecimento e sentimento do diferente. O turismo acompanhado, em tal perspectiva, da procura dos valores e da identidade das populaes que so visitadas. Ele serve a preservao dos valores culturais que so a sua marca de identidade. No deixam, contudo, de despertar ainda nos visitantes, de forma dialctica, a conscincia de si, no contraste com o diferente.

    5.2.3. Mas os poderes locais devem converter tambm o turismo em prtica democrtica. A preocupao passa, desde ento, da simples fruio esttica, que o turismo normal proporciona, a uma fruio artstica.

    O turismo pelas autarquias promovido no pode contentar-se com a mera encenao externa, tem que promover a autenticidade dos ambientes tursticos. Tal promoo implica a democratizao da cultura, entendida em termos de fcil acesso ao consumo cultural. Pela democratizao da cultura, os elementos culturais reservados s elites e camadas sociais superiores tornam-se acessveis a todos os cidados. A realizao deste objectivo exige a

    18

  • Poder local e turismo social

    superao da lgica dos operadores tursticos, voltados para a mercantilizao dos produtos, e da lgica dos prprios turistas, interessados no entretenimento que o visual proporciona, em ordem a uma verdadeira democratizao da cultura.

    Mas o olhar do turista, imerso numa cultura do visual ou da imagem, no sinnimo de ver, no se identificando o olhar com o ver. S ser possvel ver na medida em que se compreende. Se democrtico o olhar, no o ser necessariamente o ver, e muito menos ainda o compreender. Segundo Georg Simmel, "em circunstncias ordinrias, impossvel que um grande nmero de pessoas tenham a mesma impresso visual. Pelo contrrio, um nmero ilimitado de pessoas pode ter a mesma impresso auditiva. Que se compare o pblico de um museu com o pblico de um concerto"8. H tantas formas de ver quantas as capacidades diferenciadas e diferenciadoras de compreender, embora todos possam lanar o olhar sobre as mesmas coisas.

    Mais do que a observao do que se v, fazendo-se apelo ao visual, ser necessrio desenvolver a compreenso para o ver, privilegiando o conhecimento sobre o visual. De facto, acaba-se por ver somente o que se compreende. As cidades antigas e os monumentos apresentam um valor e um sentido que ultrapassam cada elemento que as compe e as vontades e intencionalidades de quem as criou. Do seu conjunto, resulta "uma beleza nova e involuntria" que atinge um grau mais ou menos elevado de charme9. O todo adquire uma significao esttica e artstica que no possuem as suas partes singulares. Entrelaam-se, nas cidades, os tempos, os estilos e os modos de vida. E essa beleza total no apreensvel ao simples olhar.

    Os poderes pblicos no se podero satisfazer com os objectivos da indstria do turismo, que se interessa apenas com a manipulao do significado histrico dos monumentos, em ordem satisfao pessoal dos turistas. Tm de se tornar agentes de cultura.

    6. Para que o turismo social, de simples acto visual de entretenimento, se converta em actividade cultural, h que atender distino entre a fruio esttica e a fruio artstica. A fruio esttica est associada capacidade de se maravilhar. A fruio artstica, essa passa pela educao do gosto e da sensibilidade em relao s obras de arte. O gosto esttico e o gosto artstico

    8 Georg Simmel, "Essai sur Ia sociologie des sens", in Sociologie et pistmologie, Paris, PUF, 1981, p. 233.

    9 Georg Simmel, Philosophie de Ia Modernit, Paris, Payot, 1989, p. 254.

    19

  • Antnio Teixeira Fernandes

    no se encontram igualmente distribudos no interior da sociedade. Na esttica popular, h a participao individual do espectador no espectculo, atitude que tem a ver com a sua sensibilidade. A apreciao artstica, essa depende dos capitais possudos, isto , da cultura prpria de cada um, em virtude da sua formao escolar e cultural. As classes sociais distinguem-se, quer quanto disposio para a avaliao esttica e artstica dos objectos, quer quanto capacidade de criao das prprias obras artsticas.

    A cultura superior, ou erudita, constituda pelo nvel mais elaborado e pela expresso mais alta de verdade e de beleza, de pensamento e de arte. a cultura mais rica de contedo e de forma. Quanto aos seus produtores e consumidores, duplamente de elite, enquanto obra da superior capacidade criadora do homem e obra de compreenso, em especial, para as camadas elevadas da sociedade.

    Ao lado da cultura altamente elaborada, h a que vivenciada pelas camadas inferiores da sociedade. A cultura popular a que criada pela prpria populao nos seus sistemas de relao social, assim como a cultura aceite e consumida pelos indivduos na sua vida quotidiana. Ela traduz a sensibilidade e a mentalidade dos diversos meios sociais, as suas crenas, as suas ideias e os seus hbitos mentais. Trata-se de uma cultura essencialmente vivida.

    Estes dois tipos de cultura coexistem actualmente com a chamada cultura de massa, cultura produzida de forma industrial e caracterizada pelo nivelamento e pela mobilidade. uma cultura que no destri aqueles nveis de diferenciao.

    Subjacentes aos diversos olhares e actos de ver esto estes diferentes tipos de cultura. Segundo E. Kant, a relao a nica das representaes que no pode ser dada pelos objectos, mas unicamente pelos sujeitos. O filsofo alemo distingue entre o "juzo esttico" e o "juzo de conhecimento". Os juzos estticos so "juzos de gosto" que, por sua vez, so "juzos singulares". Neste caso, "quer-se submeter o objecto aos seus prprios olhos, como se o seu prazer dependesse da sensao"10. A unidade e a beleza dos objectos acabam por no se encontrar neles mesmos, mas no esprito que os olha. o que acontece quando se observam as cidades antigas, onde a justaposio de todos os elementos, da natureza e do esprito, do passado que se insere no presente sem ruptura de continuidade, acaba por despertar a fruio esttica e a fruio artstica. O passado torna-se visvel e legvel com uma fora

    10 E. Kant, Critique de Ia Faculte de Juger, Paris, Aubier, 1995, pp. 103, 194 e 199. 20

  • Poder local e turismo social

    irresistvel a partir do momento em que a cultura acaba por dominar a natureza. So olhares diferentes, os que captam o esttico e o artstico.

    Por detrs de cada obra de arte, se desenham uma vontade e uma sensibilidade, uma concepo determinada do mundo e da vida, que no se do a conhecer de forma espontnea e igual para todos. S na medida em que a sensibilidade e a mensagem que a arte exprime se tornam apreensveis pela sensibilidade e pelo esprito de quem as observa, ela capaz de revelar a arte de fazer a vida possvel, na sua possvel beleza.

    A distino entre fruio esttica e fruio artstica, sendo a primeira normalmente prpria das camadas populares e a segunda especfica das camadas positivamente privilegiadas, conduz a uma outra distino, a distino entre democratizao da cultura e democratizao da capacidade de fruio da cultura. A competncia para se poder fruir do gosto artstico est concentrada, quer no campo artstico, quer no espao social. O desapossessamento do gosto artstico na grande maioria da populao correlativo da sua concentrao nas camadas sociais que possuem a sensibilidade e o gosto artsticos. A percepo artstica exige uma capacidade prpria que tem de ser adquirida. Pressupe uma educao formal.

    A democratizao da cultura, enquanto acesso aos consumos culturais, no pode deixar de passar, consequentemente, por uma democracia cultural, em que se d espao a todas as expresses culturais, tanto no que diz respeito sua criao como ao seu consumo. Mas uma democratizao cultural que pretenda implantar uma verdadeira democracia cultural, para alm de atender aos contedos e aos espaos da sua apresentao, tem de agir sobre os factores que geram a desigualdade das disposies estticas e das disposies artsticas, de forma a proporcionar a capacidade do gosto esttico e do gosto artstico em todas as camadas sociais, alterando as condies estruturais da sua diferenciao. No haver uma relativa homogeneizao das disposies artsticas sem um indispensvel desenvolvimento social e sem uma suficiente formao no campo da arte, operada mediante uma educao formal ou uma convivncia com as obras de arte. Em causa est a formao e o alargamento dos pblicos.

    7. O poder autrquico, ao procurar converter o turismo em prtica democrtica, ter correlativamente de se preocupar com o desenvolvimento, em todos os cidados, das capacidades que possibilitem o consumo do que oferecido pelo turismo, com o indispensvel gosto esttico, mas ainda com o suficiente gosto artstico. A capacidade esttica e a capacidade artstica de fruio dos monumentos uma funo da educao da sensibilidade e do

    21

  • Antnio Teixeira Fernandes

    gosto do belo e da arte. A educao do gosto uma educao de cultura para a cultura.

    Sem esta educao, fica-se ao sabor da manipulao operada pela indstria do turismo, interessada na sua explorao econmica, ou da mera fruio esttica dos turistas, medida dos seus gostos, que so uma funo do seu crescimento em humanidade. As cidades monumentais confrontam-se hoje com a tenso entre a individualizao e o carcter local do seu significado e a universalizao das suas narrativas e discursos. A escolha dos sentidos tende actualmente a ser individual, com o crescente individualismo da sociedade. Tal individualismo na fruio das coisas ser tanto mais acentuado quanto menor for a educao do gosto esttico e do gosto artstico. Na verdade, segundo J. Baudrillard, "na representao imaginria, as massas flutuam algures entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, um stock de social e de energia social"11. Torna-se indispensvel uma educao do gosto esttico e do gosto artstico para a implantao da democracia cultural, objectivo que no pode deixar de ser acompanhado da superao do individualismo extremado, que tende a pulverizar as buscas e as escolhas de sentido.

    No turismo social, fcil que a fruio esttica seja experienciada somente sob a forma de festa, como tendencialmente se configura a fuga e a transgresso que ele comporta. A partir da educao do gosto artstico, ser possvel a captao do sentido das coisas. Feito mera sensao esttica, o turismo no ser mais do que uma simples transgresso, isto , sada do quotidiano. No turismo social, existe, de facto, uma fraca incorporao da mensagem artstica dos monumentos visitados, tendendo o turista divagar ao sabor do que G. Simmel designa por uma estimulao dos sentidos.

    A transformao do turismo social em prtica democrtica est, por isso, associada valorizao das suas componentes educativas e culturais. Esta uma exigncia de cidadania que os poderes pblicos no podem negligenciar. A cidadania afirma-se, em extenso, na salvaguarda dos direitos do homem, direitos sociais e direitos culturais. Todos os cidados, independentemente do seu nvel social, tm direito ao consumo cultural. Este direito passa, antes de mais, pelo gosto e pelo amor do que seu, do que pertence ao patrimnio comum local. O turismo investe na cidadania, atravs do acesso a uma diversidade de bens, servios e produtos da cultura da prpria sociedade. Mas

    11 Jean Baudrillard, A VOmbre des Majorits Silencieuses ou Ia Fin du Social, Paris,

    Denol/Gonthier, 1982, p. 8.

    22

  • Poder local e turismo social

    o exerccio desta cidadania, implica a capacidade de fruio desse consumo na sua total autenticidade, como produto cultural em si mesmo, e no como mero pretexto para a evaso. Tal capacidade faz com que ao entretenimento - que tambm inerente ao turismo - se junte a cultura. O visual ento completado pelo racional, tornando-se o olhar compreensivo. As esculturas talvez mais sublimes de Miguel Angelo so, em nosso entender, as que se encontram na Academia de Florena, em que o artista oferece formas humanas perfeitamente esculpidas a libertarem-se de blocos de mrmore de Carrara. Isso no captado pelos simples olhar. Aqui no pode haver mera fruio esttica, h entendimento artstico. Quem frui a arte, pelo entendimento, participa da produo da arte. Onde uns tendem a ver unicamente obras incompletas, como seriam aquelas esculturas, outros descobrem a arte na sua mxima perfeio. A diferena no deixa de ser bastante profunda.

    O turismo social serve a democracia e a cidadania, alargando os direitos culturais e tornando-os efectivos no seu consumo. O exerccio de tais direitos pressupe e educa para a aceitao da diferena e para o encontro com o universal. A mobilidade das pessoas coloca-as em contacto com outras expresses culturais e outros modos de vida, dando cidadania uma dimenso mais aberta e mais cosmopolita. A mobilidade generalizada nas sociedades actuais democratiza-se e torna-se, deste modo, um atributo da cidadania. O cosmopolitismo esttico e artstico desenvolve o esprito de tolerncia, que uma caracterstica importante das actuais democracias.

    8. Com a transformao do turismo social em vivncia de mais cidadania, pela afirmao dos direitos culturais, o poder local forado a reorientar as suas polticas neste domnio. As questes levantadas pela gesto do social, ligadas ao imperativo de tornar acessvel a todos os mesmos bens culturais, levam a investir na dinamizao scio-cultural. Trata-se de um sector de crescente ateno por parte, principalmente, dos responsveis urbanos. Ora, se no se opera uma verdadeira democratizao das capacidades de fruio da cultura, dado que o turismo actuado pelas suas agncias normais aparece como eminentemente mercantil e consumista, corre-se o risco de se estar perante uma simples oferta de passatempo para as camadas populares, afirmando-se um direito sem se conceder a capacidade para se usar convenientemente do seu contedo, caindo-se numa cidadania formal, vivida como entretenimento e como consumo passivo, e produtora, no mximo, de um efeito ilusrio de nivelamento e de participao.

    A cultura torna-se, cada vez mais, a condio da prpria existncia humana, no que esta tem de essencial, porque pela cultura que a existncia

    23

  • Antnio Teixeira Fernandes

    adquire a sua verdadeira significao e o sentido do prprio destino. na cultura que o homem encontra a sua razo de ser e de existir.

    Investir no homem - que constitui o objectivo central da poltica - investir na formao e na cultura. So estas que desenvolvem a capacidade de produzir o reencantamento do mundo e de viver em cidadania a democracia. Ora, se no se atende democratizao dos meios de fruio da cultura, o turismo no se constitui em verdadeira nova dimenso da cidadania. Esta s se alcana quando se cultiva tanto a sensibilidade esttica como a sensibilidade artstica. O'visual privilegia o consumo de imagens, enquanto a cultura leva descobertas dos sentidos. As pessoas, atravs dela, retiram dos lugares histricos e dos monumentos elementos com que procuram dar sentido a si prprias e ao mundo que as rodeia, pondo em aco a reflexividade social.

    9. O turismo desempenha assim diversas funes. Promove a fuga ao quotidiano, possibilita a busca do diferente, e proporciona o encontro com outros ambientes, estilos de vida e universos culturais. A sua prtica, accionada pelos poderes locais, serve ainda a democratizao da sociedade, alargando o espao da cidadania. Esta adquire, na verdade, uma nova dimenso, com a afirmao do direito cultura. H, pois, que inserir o turismo social no direito cultura. Diversos olhares esto presentes nesta actividade. Um o olhar dos residentes, outro o dos turistas, assim como outro ainda o olhar dos operadores de turismo. Os responsveis polticos devem atender a estes diferentes olhares, na elaborao das suas prprias polticas, neste sector de actividade.

    O turismo no pode ser visto de acordo com a exclusiva angulao econmica. Ao oferecer o consumo de produtos culturais, este turismo satisfaz objectivos econmicos visveis. em tal perspectiva que os poderes locais procuram frequentemente explorar tudo o que possa ser constitudo em turismo, sem excluir o turismo religioso.

    Para alm da sua dimenso econmica, o turismo torna-se um potente factor de democratizao e de alargamento da cidadania, pela afirmao dos direitos culturais em maior extenso. O turismo mercantilizado est voltado para o prazer. Ao que promovido pelos poderes pblicos compete-lhe privilegiar a cultura. Enquanto aquele turismo se inscreve numa cultura visual, este deve promover o entendimento.

    Se o poder local se distingue dos demais operadores econmicos neste domnio, pelos seus objectivos e pelas suas funes, tambm dever distinguir-se ainda quanto aos seus meios. O turismo pode ser promovido de forma autnoma pelos poderes pblicos, assumindo-se eles mesmos como

    24

  • Poder local e turismo social

    operadores, assim como pode ser desenvolvido atravs das associaes sociais e culturais sediadas no meio. Neste caso, ser a sociedade civil, com o apoio dos poderes polticos, a desenvolver actividades que mesma sociedade dizem respeito. Ser a democracia em exerccio, em obedincia ao princpio da subsidiaridade, que postula que o poder poltico deve fazer s aquilo que a sociedade se torna incapaz de realizar

    O poder poltico, porque factor importante na construo de mais democracia, no pode ser um redutor de participao, mas, ao contrrio, o seu multiplicador. Por seu intermdio, os agentes culturais do meio adquirem maior capacidade de interveno no processo de alargamento da democracia cultural, pela sua actuao na formao, entre a populao, das disposies potenciadoras de maior participao.

    Procedendo deste modo, o poder local actua como agente que desenvolve a cidadania, mas contendo-se na sua principal funo, a funo poltica. Compete-lhe dinamizar a sociedade, activando as suas diversas foras e agncias. O cumprimento desta funo essencial no o pode manter na passividade de mero papel fmanciador. No caso de no haver agncias capazes no meio, deve promover, ele mesmo e de forma autnoma, o turismo social. Desde que existam agncias adequadas, o seu apoio deve estar condicionado ao cumprimento de alguns objectivos a alcanar, como seja a formao indispensvel ao crescimento em cidadania e em participao cultural, associados ao turismo social.

    O turismo social no , nesta perspectiva, uma actividade episdica. Ele insere-se numa prtica mais alargada de continua participao em diversos domnios e da formao de pblicos. Ser apenas uma das suas dimenses, a que eventualmente est mais voltada para o exterior.

    10. O turismo social encontra, em concluso, uma das suas principais justificaes no direito cultura, como exigncia de cidadania nas sociedades democrticas. Todas as camadas sociais tm direito a um nvel de existncia e a uma qualidade de vida, compatveis com a sua dignidade de seres humanos.

    O turismo no poder, pois, ser encarado como algo excrescente, ligado apenas s camadas possidentes, antes uma exigncia de mais democracia. A igualdade cvica e social no de molde a autorizar a acumulao ilimitada, exigindo, ao contrrio, situaes em que as pessoas se considerem e se encontrem como iguais. Importa ter presente que o luxo, congruente com as sociedades fortemente hierarquizadas, torna-se incompatvel com a vida democrtica. O consumo generalizado do turismo entra nesta mesma lgica, contribuindo para uma participao alargada da cultura, sobretudo quando

    25

  • Antnio Teixeira Fernandes

    precedido de um esforo de desenvolvimento da capacidade de fruio esttica e artstica.

    Alguns grupos etrios e segmentos da populao merecem ser, em particular, considerados no turismo social. Esto neste caso os idosos. Com o alargamento da ps-vida activa, tem-se vindo a estender o tempo da inactividade. Os no-activos constituem um capital social normalmente no utilizado. Muitos indivduos, a partir dos 40/50 anos, desvinculados do mercado do trabalho, com cerca de metade da existncia ainda sua frente, necessitam de reinventar a vida, sob pena de ficarem margem da sociedade. Reinventar a vida, nestes grupos etrios cada vez mais heterogneos, ser criar formas de vivncia da cidadania. O turismo social, com os atributos que de acordo com a anlise que vem sendo desenvolvida deve ter, pode contribuir para a realizao desse objectivo humanitrio, de reinveno da vida.

    Quaisquer que sejam as camadas sociais ou os grupos etrios em causa, o turismo, na sua expresso mais plena, posto ao servio de uma pedagogia para a cidadania, do alargamento da participao, do exerccio dos direitos culturais e da extenso da prtica democrtica. Longe de ser um mero acto isolado, , desse modo, detonador e complemento de outros dinamismos e de outros movimentos. No um princpio, como no um fim. elemento na relao circular da necessria formao do homem e da complexa construo da sociedade.

    26