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ANAIS
CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E
SOCIEDADE DO UNILASALLE
GT – A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO E A TUTELA DOS CONSUMIDORES
CANOAS, 2015
905
AS RELAÇÕES DE CONSUMO, O DESCASO E A LEGITIMAÇÃO DAS REDES DIGITAIS COMO SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR
Gustavo David Araújo Freire
Ivison Sheldon Lopes Duarte
RESUMO: É notório que o respeito legal ao consumidor não é uma filosofia incorporada por muitas empresas de maneira que direitos sejam tidos como inexistentes e deveres sejam descumpridos. Diante do descaso enfrentado, os consumidores têm adotado práticas emergentes afirmativas capazes de exercer pressão sobre as organizações, a partir do uso das redes digitais, no contexto das Tecnologias da Informação e Comunicação. O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre as práticas dos consumidores/usuários ocorrentes nas fanpages da Claro, Oi, Tim e Vivo, operadoras de telefonia fixa, móvel e internet. De natureza quantitativa e sob a abordagem exploratória, a análise do objeto investigado se constitui na forma de um estudo de caso do tipo múltiplo, tendo por base a observação indireta intensiva, consoante o viés da observação não participante. O estudo verifica que o consumo, pensado como algo eminentemente social, correlativo e ativo, na atual conjuntura das Tecnologias da Informação e Comunicação, tem alterado as relações entre as empresas e os consumidores na economia da sociedade em rede, concorrendo para a prática do exercício da cidadania e ratificando a Era dos Direitos. Palavras-chave: Relações de consumo; Código de defesa do consumidor; Tecnologias da informação e comunicação.
1 INTRODUÇÃO - SOCIEDADE DE CONSUMO E DIREITOS DO CONSUMIDOR
Os direitos sociais historicamente surgem no século XIX e XX na esteira
das lutas de classe em resposta à opressão operada pelo capitalismo durante a
revolução industrial. Com o crescente empobrecimento da classe operária, fez-se
necessário exigir do Estado uma atuação positiva, para diminuir o abismo social
criada pelo capitalismo do laisser-faire. Dessa maneira e com um conjunto de
transformações econômicas, sociais e políticas, passa-se do Estado Individualista
para o Estado de Bem-Estar Social.
Tal realidade evolutiva fez emergir grandes facilidades para o consumidor,
906
desde o comércio e o transporte até o ramo das telecomunicações que fez
estreitar a comunicação entre as pessoas. Diante do surgimento da informática,
das telecomunicações e da biotecnologia cogita-se o surgimento de uma Terceira
Revolução Industrial (BARBOSA, 2003). Diferentemente das duas outras
revoluções, as quais estavam intrinsecamente relacionadas, sobretudo, ao
processo de produção centrado na propriedade privada de bens, a informação,
enquanto produto intangível e amparada pelas tecnologias da informação e
comunicação (TICs), é o cerne do desenvolvimento e a mola propulsora das
transformações na contemporaneidade.
De acordo com Dowbor (2002), a transformação social tem acontecido de
maneira tão ampla que gera uma sociedade do conhecimento, tal quais as
sociedades agrárias, fundamentadas no controle da terra, e a sociedade
industrial, estruturada sob o controle dos meios de produção. Trata-se de uma
sociedade em rede que tem como sustentáculo as TICs. Assim, a comunicação
passa a ser percebida como “[...] o eixo central das transformações estruturais
tanto na economia como na política” (DOWBOR, 2002, p. 23).
O desenvolvimento da internet como tecnologia da comunicação, cujo
objetivo era estabelecer uma rede de comunicação com base na troca de pacotes
entre protocolos compatíveis entre si, representa bem esse contexto. Do projeto
embrião da Internet – Resource Sharing Computer Network (Arpanet), em 1969 –
ao seu estado atual de uso, os anos 1990 se transformaram, de vez, na ‘década
da internet’ com o desenvolvimento do aplicativo World Wide Web1 (WWW), ou
simplesmente Web (CARVALHO, 2006). Isso porque o mundo dos negócios se
apropriou da internet – inicialmente se fazia de interesse máximo acadêmico e
militar – com vista no seu objetivo-fim, a geração de lucros. Dessa forma, a
privatização da internet em 1995 e os usos comerciais, inicialmente, exerceram
grande influência sobre o seu formato.
“Atividades econômicas, sociais, políticas, e culturais essenciais por todo o
planeta estão sendo estruturadas pela Internet e em torno dela, como por outras 1 A aplicação www “[...] organizava o teor dos sítios da Internet por informação, e não por
localização, oferecendo aos usuários um sistema fácil de pesquisa para procurar as informações desejadas.” (CASTELLS, 1999, p. 88). Permitindo assim, a difusão da internet na sociedade em geral e uso pelos não-iniciados.
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redes de computadores.” (CASTELLS, 2003, p. 8). A internet é, conforme Bolaño
e Vieira (2012, p. 5), “[...] um espaço de convergência para a toda a produção
cultural industrializada, para o comércio em geral e também para os indivíduos e
grupos sociais, como grande plataforma de comunicação. De maneira incisiva, o
uso da internet pelas organizações transforma maneira delas se relacionarem em
todas as instâncias2 – seja com os consumidores ou outras empresas, e ainda
outros públicos de interesse. Além de transformar os processos organizacionais
internos – seja nos fluxos operacionais ou de produção e sua relação com os
mercados financeiros.
Na tendência de um modelo de inovação aberta frente à forte
competitividade que vinha se instaurando no cenário mercadológico desde o fim
da década de 1980, muitas organizações passaram a se constituir na internet.
Inicialmente ocorreu como um movimento de elevação da marca do ambiente
offline para o online, cujo objetivo era o estabelecimento da comunicação
institucional e se fazer presente na web. Para Kalakota e Robinson (2002), essa
seria a primeira fase de impacto do e-commerce - isto é, o comércio de
transações comerciais, compras e vendas de produtos e/ou serviços - na internet,
que se deu a partir do uso comercial da web até o ano de 1997. Período esse
marcado pelos sites estáticos.
As transações comerciais de compra e venda através de empresas como a
Amazon e eBay, no meio digital, entre 1997 e 2000, demarcam a segunda fase de
impacto do e-commerce. Um adendo a ser levado em consideração é que, em
2001, 80% das transações feitas na Web foram business-to-business (de negócio
para negócio), caracterizando o surgimento de uma economia não “[...]
ponto.com, mas uma economia interconectada com um sistema nervoso
eletrônico.” (CASTELLS, 2003, p. 57). Dessa maneira, é notório indícios de um
movimento de reorganização dos processos e transações organizacionais no
âmago das empresas e no relacionamento com os compradores e fornecedores
2 As nomenclaturas business-to-consumer (B2C) ebusiness-to-business (B2B) são usadas para
evidenciar o relacionamento entre a organização e o consumidor e a organização e outra organização, respectivamente, na internet. Nessa linha de pensamento sugerir-se-á o uso da expressãobusiness-to-stakeholders (B2S) para identificar o relacionamento entre a organização e os públicos de interesse (Governos, concorrentes, imprensa, sindicatos, entre outros).
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da cadeia produtiva.
A terceira fase teria sido estabelecida em 2000 e estaria voltada a verificar
como a internet influenciaria na lucratividade. Para além da compreensão de
aumentar a receita bruta, a lucratividade estaria mais voltada para o aumento das
margens totais, levando em consideração as aplicações e os processos de uma
organização na realização de uma transação de negócios – o chamado e-
business. Trata-se de “uma estratégia global de redefinição dos antigos modelos
de negócios, com o auxílio de tecnologia, para maximizar o valor do cliente e os
lucros.” (KALAKOTA; ROBINSON, 2002, p. 24). Um exercício de aprender na
prática qual o modelo de negócio mais adequado ao sistema organizacional,
tendo em vista a impossibilidade de uma “receita” pronta em decorrência das
especificidades de cada negócio.
Ocorre que o desenvolvimento veio com um preço: as tecnologias da
comunicação estreitaram as relações pessoais, o comércio cresceu ao ponto de
não ter como finalidade o bem estar dos consumidores, mas tão somente o lucro,
o que fez surgir a necessidade de normas que protegessem aqueles.
As normas que regulam e protegem os consumidores da relação com os
detentores do capital, os fornecedores, são um marco na adoção de medidas que
preservem a dignidade daqueles. Tais prevêem uma prestação adequada dos
serviços colocados à disposição dos consumidores, protegendo-os dos abusos
postos em prática pelo sistema capitalista e pela livre iniciativa das relações de
consumo.
Hodiernamente, a conectividade por meio da rede mundial de
computadores implicou em uma dinâmica e rapidez maior da relação entre
consumidores e empresas, desenvolvendo uma sociedade baseada em
informação e globalização de meios de produção cultural e econômico. Passa-se
de uma sociedade tradicional de consumo para uma sociedade em rede que
impacta no conteúdo jurídico dessas relações intersubjetivas. O caráter
regulatório e protecionista do ordenamento pátrio de proteção ao consumidor
torna-se insuficiente para as novas formas de interações possíveis entre
consumidores e empresas por meio do uso da internet.
A exposição do consumidor às informações e aos conteúdos massificados
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e preparados por empresas significa uma maior vulnerabilidade originária desse
ambiente virtual, ao mesmo tempo em que existe a facilidade de acesso a
produtos e serviços de maior qualidade e menor preço, aumentando a
competitividade das empresas o que atrai esses ciberconsumidores a eleger o
meio virtual como a forma mais cômoda e econômica de satisfazer suas
necessidades consumeristas. Ciberconsumidor ou consumidor 2.0 é o termo utilizado em analogia ao uso da Web 2.0 onde este novo consumidor utiliza-se da Internet para construir conteúdo na rede, formando opinião e dialogando com a sociedade ao exigir das empresas uma comunicação bidirecional. Em face disso, o ciberconsumidor já não assiste passivo as imposições do mercado, uma vez que produz informações sobre determinado produto ou serviço e consome esse conteúdo ao analisar os dados disponibilizados no ambiente virtual antes de efetuar uma compra ou transação comercial na Internet. (SANTOS, 2012, p. 3).
O legislador encontra-se diante de uma evolução tecnológica que impõe
modificação da legislação para servir ao desiderato social, porém o processo
legislativo não parece ser célere suficiente para dar a resposta esperada pela
sociedade no tempo em que as relações intersubjetivas se aprimoram, assim, o
consumidor passa a situação de hipossuficiente diante da lacuna legal deixada
pela normatização.
As normas de proteção ao consumidor têm uma intima ligação com a
segunda dimensão dos direitos fundamentais, que prega uma atuação positiva do
Estado, prevalecendo os direitos sociais, culturais e econômicos, em
contraposição aos ideais de estado negativo do liberalismo. O direito do
consumidor se encaixa nos ideais sociais, pois, pauta-se pela prevalência de uma
maior proteção a uma categoria hipossuficiente, os consumidores. Interpretando
essa ideia, podemos visualizar que as normas de proteção ao consumidor
surgiram para propor o nivelamento dos pólos nas relações de consumo,
equilíbrio esse expressamente previsto no art. 4º, III da Lei 8078/90.
O CDC estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem
pública e interesse social, atendendo ao artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição
Federal de 1988: o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
Um consumidor lesado que ao adquirir um produto/serviço de determinada
910
organização estará respaldado pela Lei supracitada, e contará com o poder
público3 para solução do caso.
Diante do respaldo legal aos consumidores, muitas empresas implantaram
o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) – canal específico para a
constituição de elogios, sugestões, reclamações, críticas, cobranças – como meio
de relacionamento com os clientes, sobretudo, como sendo a primeira instância
para solução de problemas e falhas decorrentes do processo de compra. As
instâncias posteriores relacionam-se às apelações do consumidor aos
instrumentos do poder público.
Segundo Zülzke (1997), os SACs tornam-se setores essenciais para evitar
que as insatisfações e problemas transformem-se em custosas e desgastantes
pendências judiciais em termos de imagem e recursos financeiros. Além, de tentar
restringir os problemas apenas à empresa – conforme os moldes do tradicional
SAC -, evitando a evasão de informações que por ventura venham causar
maiores danos a sua imagem. Uma postura ética de compromisso da organização
para com o consumidor sem a necessidade de intervenção de órgãos
reguladores.
Embora muitas empresas adotem o SAC como meio de comunicação com
o público consumidor, é fato que não o adotam, plenamente, como instância
moderadora de soluções e correções de defeitos e falhas apresentadas no
produto ou serviço. Sendo necessário, em muitos casos, a exemplo das empresas
de telefonia fixa e móvel, o Estado, as agências e os órgãos reguladores
intervirem no funcionamento do atendimento ao consumidor, ordenando como
proceder, em decorrência do elevado número de reclamações.
Apesar do respaldo das leis e dos regulamentos criados, que tratam dos
direitos e das garantias do consumidor, não é raro vermos práticas
desrespeitosas por parte de algumas empresas ferindo a boa-fé do consumidor.
3 O poder público disponibiliza, dentre outros, os seguintes instrumentos de apoio ao consumidor,
conforme o artigo 5º da lei de nº 8.078: assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente; instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público; delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo, e; Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo.
911
Uma postura que fere a imagem institucional e coloca em risco a sobrevivência da
organização num universo mercadológico altamente competitivo.
O caráter protecionista da legislação consumerista encontra barreiras
impostas pela dinâmica de acesso dentro da internet, posto que o princípio
norteador dentro da rede é de liberdade, ausente pressuposto de imposição
jurídica, passando à uma relação pautada na demanda mercadológica.
O ambiente liberal e livre dos conteúdos que trafegam pelo sistema virtual
impõe sua própria regulamentação, atrelada a normas sociais não
necessariamente jurídicas, onde o consumidor e usuário interagem com as
empresas através de sites de compras institucionalizados, mas também através
de perfis em redes sociais, surgindo problemas quanto à responsabilidade das
empresas fornecedoras e das empresas gerenciadoras das redes sociais.
A prática de condutas danosas utilizando da tecnologia como meio de
perpetrar o ato vilipendioso é o novo desafio da legislação que busca manter o
caráter harmônico da sociedade, seja em ambiente virtual ou real. Assim como, a
salvaguarda da liberdade dos usuários e sua privacidade frente ao poderio
tecnológico das grandes empresas de e-commerce. No mundo contemporâneo, as transformações por que passam as relações entre o público e o privado, no consumo cultural cotidiano, apresentam um novo tipo de responsabilidade cívica. Se os governos e a esfera pública não cumprem, em termos ideais, com sua função de prover e proteger os cidadãos, esses buscam, cada vez mais, exercerem seus poderes políticos através da esfera privada, em que está inserido o consumo. (DOMINGUES, 2013, p. 37-38).
Nesse sentido, o descaso enfrentado pelos consumidores tem levado-os a
adotar um novo comportamento na atual conjuntura. As “[...] mudanças
tecnológicas, econômicas, e nas práticas sociais têm gerado novas oportunidades
nas quais os indivíduos têm desempenhado um papel mais ativo do que era
possível na economia industrial do século XX.” (KAUFMAN; ROZA, 2013, p. 36-
37).
Se antes as críticas, as impressões e os sentimentos eram compartilhados
em família, nas rodas de conversas entre amigos ou em conferências e encontros
- numa escala com mais público, hoje, os usos sociais da internet,
especificamente pelos consumidores, têm gerado práticas emergentes afirmativas
capazes de exercer pressão sobre as organizações. É notório um novo ritmo de
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interação no campo social, estabelecido em virtude, sobretudo, das tecnologias
da informação e comunicação (TICs).
Com a internet, ambientes como os sites de redes sociais (SRSs)
desenvolvidos com vistas a propiciar um espaço predominantemente relacional,
em muitos casos são utilizados pelo público consumidor como forma de
compartilhar sua experiência de compra, seja de ordem positiva ou negativa. E
ainda, constituir elogio, reclamação e/ou insatisfação em relação a um produto,
serviço e/ou processo de uma dada organização. Uma lógica própria da razão de
existência do serviço de atendimento ao consumidor.
2 NOVAS LEGISLAÇÕES PARA NOVOS PARADIGMAS
Com a evolução da sociedade de consumo vieram os riscos de dano, as
relações de massa e a maior circulação de produtos fizeram prevalecer frente à
qualidade dos produtos e serviços, ocasionando danos aos consumidores. Em
decorrência da realidade das relações de consumo, o Estado reagiu elencando os
deveres dos fornecedores em garantir a igualdade de acesso aos bens de
consumo, informação e segurança pautado na dignidade dos cidadãos,
priorizando a prevenção, mas garantindo também o ressarcimento e indenização
em caso de dano.
Diante do novo panorama introduzido pela internet e o comércio eletrônico,
o direito brasileiro supriu as lacunas jurídicas interpretando as relações
econômicas virtuais aplicando o Código Civil, quando pertinente, tratando os
contratos virtuais como contratos tradicionais de direito civil. O meio eletrônico é apenas um novo suporte para a contratação que mantém os princípios do direito privado, notadamente do direito das obrigações. [...] Os conceitos de obrigação, consentimento, objeto de contrato, liberdade de contratar, necessidade de informação clara etc., continuam válidos e de utilidade e uso inegáveis. (SCHERKERKEWITZ, 2014, p. 61).
Pode-se destacar que os princípios norteadores das relações privadas no
direito brasileiro são utilizados quando da interpretação contratual dos acordos
realizados em ambiente virtual, concomitante, nos casos de relações
consumerista, aplicar-se-á o Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
913
Ocorre que, mesmo com a aplicação da legislação já existente, esta torna-
se insuficiente para abarcar o universo de novas possibilidades envolvidas nas
interações entre os usuários da internet, mostrando a necessidade de atualização
do sistema jurídico.
Como fruto desse debate que visa a modificação das normas para
regulamentar as relações dos usuários brasileiros no ambiente de internet, foi
promulgado em 23 de abril de 2014 a lei nº 12.965 pelo governo federal,
conhecida como Marco Civil da Internet, buscando traçar parâmetros normativos
fixos de proteção dos usuários, regulamentação das transmissões de dados e
ofertas de serviços virtuais.
A criação de uma nova espécie normativa dentro do ordenamento pátrio
demanda uma modificação sistêmica que deve evitar as contradições entre as
normas, presumindo uma ausência de antinomias, para que a recepção da nova
lei não gere desarmonia sistêmica. Logo, o Marco Civil foi pautado em privilegiar a
liberdade que é característica primordial do ambiente de internet e pedra
fundamental das interações entre particulares, consubstanciado no princípio da
Neutralidade da Rede, significando que as informações que trafegam na rede
devem ser tratadas de forma igualitária, sem obstacularização dos provedores de
acesso. Isso garantiria a acessibilidade dos usuários por impedir que exista
censura de conteúdo pelos provedores de acesso.
Destacam-se ainda os princípios da Liberdade de Expressão e da
Privacidade, este já com assento constitucional, onde sua irradiação para o
ordenamento civil não é novidade do Marco, apenas sua aplicação nos casos de
judicialização das demandas oriundas de fatos ocorridos no ambiente virtual
constituirá inovação legal. Dessa forma, passa-se a ser uma preocupação do
Judiciário a interpretação das relações virtuais como forma de garantir o respeito
aos Direitos Humanos e à Constituição, na medida em que deverá passar a se
preocupar com casos de uso indevido dos ambientes virtuais como chats, e-mails
e redes sociais para a prática de ilícitos civis.
Importante ainda ressaltar que as iniciativas do poder público em monitorar
e promover a tutela do ambiente de internet demandaram ações posteriores como
a criação do Comitê Gestor de Internet no Brasil (CG1.br) através do Portaria
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Interministerial 147 de 31 de Maio de 1995, com modificação pelo Decreto
Presidencial 4.829 de 03 de Setembro de 2003, com o objetivo de coordenar e
integrar todas as iniciativas relacionadas a serviços de internet no país,
procurando sempre prezar pela qualidade técnica da oferta e disseminação com
inovação dos serviços.
A liberdade ensejada pela ausência de regras no ambiente virtual causam
um fenômeno que coloca em destaque o usuário frente à liberdade de uma
democracia, não regulamentada pelo poder estatal, em espaços criados por
empresas, tais como os sites de redes sociais, e.g. Facebook, Twitter, etc. Esse
modelo de democracia virtual resulta em processos de ativismo, hodiernamente
chamado de ciberativismo, para promover mudanças no mundo real.
Diante desse novo modelo de exercício da cidadania democrática em
ambientes controlados por empresas, temos o exercício da autotutela nas
relações de consumo. Tal fenômeno ocorre por empresas que procuram criar
perfis institucionais em sites de relacionamentos e redes sociais controladas por
outras empresas, assim, temos um ambiente que é regido prioritariamente pelo
acordo de políticas de aceitação/recusa dos parâmetros contratuais extralegais.
O consumidor/usuário que opta por entrar em uma rede social aceita um
contrato de prestação de serviço a título gratuito que possibilitará sua
comunicação com outros usuários e empresas. Nesse modelo de contrato,
conseguimos ver claramente as características de um contrato de adesão
consumerista, onde não existe a possibilidade de debate sobre cláusulas, apenas
opera-se sua aceitação total ou recusa total.
Outra característica importante, é que a sanção e fiscalização é promovida
pela empresa que gerencia o site da rede social, assim se o usuário é atacado por
comentários jocosos, ou sente-se agredido de alguma forma, deverá procurar
denunciar o comentário/conteúdo segundo a política de cada rede social. Ocorre
que, nem todos os perfis cadastrados pertencem a pessoas naturais. Como forma
de se aproximar de seus clientes, muitas empresas criam perfis oficiais nas redes
sociais e disponibilizam equipe técnica para receber reclamações, ao modelo de
Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).
Em que pese os SACs possuírem legislação própria, Decreto Presidencial
915
n. 6523/2008, tal legislação não pode ser aplicada aos contatos realizados no
ambiente virtual de páginas de redes sociais, posto que a dinâmica é totalmente
diferente das reclamações realizadas via números telefônicos 0800. Então, estar-
se-ia diante de uma nova forma de autotutela relacionado aos ambientes virtuais,
fora do mundo jurídico.
Claramente vislumbra-se que a relação formada pelos
usuários/consumidores que procuram solucionar seus problemas pela via do
ativismo em redes digitais, especificamente nos sítios eletrônicos de redes
sociais, estão inseridos no contexto de uma sociedade em rede, termo utilizado
pela primeira vez por Stein Braten (BRATEN, 1981, P. 115), retomado por Jan
Van Dijk (VAN DIJK, 2012) e difundido por Manuel Castells (CASTELLS, 2010). A Sociedade em Rede, como Van Dijk a vê, pode explicar um novo tipo de sociedade onde as relações sociais são organizadas no âmbito da tecnologias mediáticas que formam uma rede de comunicação em vez de redes tipificadas pelas relações sociais face a face. Essa lógica organizacional diferente dá origem a diferentes capacidaes em rede da sociedade da informação: o conceito de sociedade da informação concentra-se na substancial transformação dos processsos sociais, enquanto o conceito de sociedade em rede examina as formas de organização dos processos sociais. (MOLINARO e SARLET, 2014, p.30).
Pode-se concluir que as interações realizadas em ambientes de redes
sociais nas páginas de empresas não estão dentro dos padrões conhecidos pela
legislação como formas de acesso do consumidor aos fornecedores. Elas
demonstram que, na sociedade em rede, a atualização do sistema normativo não
acompanha as necessidades que são plasmadas nas relações que ocorrem em
sítios eletrônicos, como o retromencionado, deixando o consumidor em uma
situação de desamparo legal, ao alvedrio das normas criadas pelas empresas de
redes sociais, bem como pelas empresas fornecedoras acessadas.
O campo discricionário da internet nessas modalidades de relações,
aproxima-se de um modelo de autotutela, onde a empresa gerenciadora da rede
social cria as normas e as aplica de acordo com sua política de acesso, passando
a também controlar a sanção. Quanto à empresa fornecedora que é alvo da
reclamação, esta passa a controlar os meios de acesso à informação, sua forma
de resposta e os critério de acesso dos consumidores, importando em uma
916
diminuição da liberdade de acesso à informação e ferindo o princípio
consumerista da informação clara.
Logo, como a ideia de princípio esta ligada diretamente a todo o sistema
dogmático, ao se transgredir um princípio que é inspirador da norma e orientador
de sua interpretação, o dano causado é maior, pois se contraria todo um sistema
normativo. Conforme será demonstrado, as relações entre os
consumidores/usuários que buscam resolução de seus problemas através dos
canais de redes sociais, em fanpages de empresas/fornecedoras, não possui
efetividade, e estando fora da normatividade jurídica acaba por tratar o
consumidor com descaso e servindo-se apenas como uma estratégica de
marketing promocional.
3 ESTUDO DE CASO DAS OPERADORAS CLARO, OI, TIM E VIVO
A investigação de natureza quantitativa e qualitativa é construída sob a
abordagem descritiva e explicativa do fenômeno, que, para fins de análise,
configura-se como um estudo empírico, com a finalidade comparativa das
realidades evidenciadas nas fanpages das operadoras Claro, Oi, Tim e Vivo.
O estudo fora constituído pelas documentações indireta – correspondendo
à pesquisa bibliográfica e à pesquisa documental realizada através dos canais
oficiais da empresa e de informações consultadas na web acerca das operadoras,
e direta – sendo caracterizada pela observação indireta intensiva da plataforma,
do tipo ‘não participante’ (LAKATOS; MARCONI, 1991).
A investigação empírica do objeto em questão se dá por meio do estudo de
caso, pois este se “[...] volta para indivíduos, grupos ou situações particulares
para se realizar uma indagação em profundidade que possa ser tomada como
exemplo” (SANTAELLA, 2001, p. 73). O estudo de caso, conforme Merriam
(1998), possui intrinsecamente quatro características essenciais, que são
substanciais para a interpretação do fenômeno, a saber: particularidade,
descrição, heurística e indução.
A escolha das empresas de telefonia fixa, móvel e internet - Claro, Oi, Tim
e Vivo, se deu a partir da verificação de que essas operadoras estão no topo do
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ranking de reclamações junto aos órgãos de defesa do consumidor e do site
reclame aqui. Neste site, a lista das empresas mais reclamadas apresenta a
seguinte configuração:
Quadro 1 - Empresas mais reclamadas no site Reclame Aqui4
Mais reclamadas nos últimos 30 dias Mais reclamadas nos últimos 12 meses
Posi
ção
4º Claro 7.325
Posi
ção
5º Claro 58.639
5º Oi 6.641 3º Oi 67.551
7º Tim 5.512 7º Tim 48.008
3º Vivo 8.828 2º Vivo 78.836
Fonte: Adaptado do site Reclame Aqui. Disponível em:
<www.reclameaqui.com.br>. Acesso em: 29 mar. 2015.
Com o propósito de verificar pontos de consonância e divergência acerca
do conteúdo produzido pelos consumidores das quatro empresas, optamos por
realizar um estudo de caso múltiplo. Pontuamos, a seguir, o nome das páginas e
seus respectivos endereços.
• Claro Brasil: <https://www.facebook.com/clarobrasil>;
• Oi Oficial: <https://www.facebook.com/OiOficial>;
• Tim Brasil: <https://www.facebook.com/timbrasil>;
• Vivo: <https://www.facebook.com/vivo>.
A observação do fenômeno nas fanpages se concentrou no conteúdo
produzido pelos consumidores ou usuários que foram publicados como
comentário nas postagens emitidas pelas operadoras em sua própria timeline.
Convém mencionar que há outras duas formas de entrar em contato com a
empresa através da fanpage - mas que não foram levadas em consideração, a
saber:
1. Por meio da área conhecida como inbox – apenas quem tem acesso às
conversações é o consumidor ou usuário e empresa, pois o diálogo
4 Recorte das operadoras de telefonia fixa, móvel e internet, Claro, Oi, Tim e Vivo. As reclamações
incidem sobre os seguintes serviços: Claro celular e Tv; Oi móvel, fixo, internet e Tv; Tim Celular; e Vivo celular, fixo, internet e Tv.
918
acontece numa área privada. Fato este que nos impossibilitou de incluir tal
ambiente na delimitação temporal;
2. No espaço intitulado de publicação – a operadora ativa tal recurso de
maneira que o consumidor ou usuário possa entrar em contato com a
empresa. O conteúdo fica visível para todos que acessarem a página. No
entanto, apenas as operadoras Claro, Oi e Tim liberaram tal dispositivo,
sendo inviável a investigação em tal espaço porque a Vivo seria excluída
das análises.
A investigação do fenômeno circunscrito aconteceu entre os meses de
fevereiro e março de 2015, cujos detalhes estão dispostos na tabela a seguir.
Tabela 1 – Tempo de maturação das postagens na Fan Page
Data da
Postage
m
1
5/02
1
6/02
1
7/02
1
8/02
1
9/02
2
0/02
2
1/02
2
2/02
2
3/02
2
4/02
Data
final da
coleta
2
4/02
2
5/02
2
6/02
2
7/02
2
8/02
0
1/03
0
2/03
0
3/03
0
4/03
0
5/03
Fonte: Pesquisador, 2015.
A definição da delimitação temporal – período em que o fenômeno
circunscreve no tempo (GIL, 2002), de dez dias (de 15/02 a 24/02) levou em
consideração dois aspectos:
1. A investigação trata-se de um estudo de caso múltiplo - quatro empresas
que possuem mais de um milhão de fãs, cada, havendo um elevado índice
de postagem dos consumidores ou usuários;
2. Estipulamos o tempo de dez dias, contando a partir da data de publicação
do post, para que a maturação dos fluxos acontecesse. Dessa maneira,
acreditamos ser um prazo razoável para que a empresa se posicionasse
diante dos comentários postados pelos consumidores ou usuários e o
pudéssemos compreender o fenômeno com veemência.
919
O universo da pesquisa constituiu os sujeitos que possuem perfil no site de
rede social Facebook e a amostragem se caracterizou como sendo probabilística.
Convém mencionar que preferimos analisar todo o conteúdo coletado dentro dos
recortes temporal e espacial supracitados (LAKATOS; MARCONI, 1991).
O Gráfico 1, a seguir, demonstra o quantitativo de postagens realizadas
pelas operadoras em suas respectivas fanpages.
Gráfico 1 - Número de postagens realizadas pelas operadoras no recorte da
pesquisa
Fonte: Pesquisador, 2015.
Conforme o Gráfico acima, as quatro empresas não realizaram postagens
diárias regularmente, sendo a operadora Claro a que mais publicou, com uma
média de 0,9 publicações. A Tim apresenta uma média de 0,5 publicações e as
operadoras Oi e Vivo são as que menos postaram, com uma média de 0,3, cada.
O número máximo de publicações/dia foi de duas postagens, sendo proferidas
pelas empresas Claro e Tim.
O tipo de conteúdo dos posts produzido pelas operadoras versam entre:
informações sobre produtos e/ou serviços; divulgação de produtos e/ou serviços;
e, entretenimento ou conteúdo diverso.
O montante de conteúdo postado pelos consumidores ou usuários nas
fanpages das quatro operadoras foi da ordem de 3.813 mensagens, sendo
distribuído da seguinte forma:
Quadro 2 - Quantitativo de postagens dos consumidores ou usuários
Consumidores ou usuários da Quantitativo de %
012
15/…
16/…
17/…
18/…
19/…
20/…
21/…
22/…
23/…
24/…
Quantitativodepostagensdasoperadoras
CLARO
OI
TIM
920
operadora comentários
Claro 1.460 38%
Oi 502 13%
Tim 1.134 30%
Vivo 717 19%
Fonte: Pesquisador, 2015.
O quadro 2 demonstra que as fanpages que recebera mais comentários
são das operadoras Claro e Tim, correspondendo a 38% e 30%, respectivamente.
Isso pode estar associado ao fato das duas operadoras serem as que mais
postaram no período da pesquisa. As fanpages das empresas Vivo e Oi são as
que apresentam as menores taxas, 19% e 13%, respectivamente. Vale salientar
que estas empresas são as que menos publicaram.
Verificamos, para além do quantitativo de comentários, o tipo de conteúdo
proferido pelos consumidores/usuários nas postagens das operadoras.
Gráfico 2 – Tipos de comentários emitidos pelos consumidores/usuários por
operadora
Fonte: Pesquisador, 2015.
De acordo com o Gráfico acima, os comentários dos
consumidores/usuários foram classificados em: informação/dúvida; reclamação;
921
elogio/sugestão; comentários sobre o post; insulto, alerta ou ironia; outros. As
realidades das quatro operadoras são muito parecidas, pois, majoritariamente, os
conteúdos são do tipo reclamação – comumente em relação aos serviços
prestados. No que concerne a este tipo, a página da empresa Claro apresenta o
montante de 57%, a Oi 62%, a Vivo 53% e a Tim 34%. Aparentemente esta última
operadora estaria numa situação muito diferente das outras, no entanto, 24% do
conteúdo postado na sua página são do tipo insulto, alerta ou ironia. Com isso, os
índices somados chegam a 58% do total de comentários.
Acerca dos comentários queixosos, as operadoras estabeleceram um
primeiro contato na seguinte porcentagem: Claro – 11%; Oi – 49%; Tim – 0%;
Vivo – 21%. Diante disso, percebemos que a Tim não interage com os
consumidores/usuários através da sua fanpage. A Claro e a Vivo até dão uma
resposta ao consumidor/usuário, mas bem abaixo do que poderia se esperar de
uma organização que preza pelo consumidor. Já a operadora Oi é a empresa que
mais dá uma primeira resposta aos consumidores/usuários, aproximando-se da
faixa de 50%.
Em se tratando ainda do conteúdo do tipo insulto, alerta ou ironia, as
operadoras Claro, Oi e Vivo encontram-se num patamar parecido, pois
apresentam, respectivamente, os índices de 15%, 17% e 17%. Diante disso,
percebemos que a Tim é a operadora mais insultada pelos consumidores.
A porcentagem de consumidores/usuários que recorrem às páginas das
empresas para tirar dúvidas e/ou solicitar informações é inexpressiva, a saber: 4%
correspondente a Claro, 7% relativo a Oi, 3% condizente a Tim e 6% referente a
Vivo. Ante aos anseios dos consumidores/usuários, a Claro deu uma primeira
resposta a 17% dos que entraram em contato, a Oi atendeu, aparentemente, a
50% das solicitações, a Tim não deu nenhum tipo de resposta e a Vivo deu algum
feedback a 39% dos apelos.
Inexpressiva também é a porcentagem de consumidor/usuário que profere
elogios e dá sugestões às operadoras, pois corresponde a apenas 1% na página
da Claro, 3% na fanpage da Oi, 4% na página da Tim e 2% na Vivo.
Com exceção da Tim (14%), os comentários dos consumidores/usuários
relacionados ao conteúdo das postagens das empresa Claro (4%), Oi (3%) e Vivo
922
(5%) são mínimos. Convém mencionar que a Tim se destacou das outras
operadoras por ter publicado conteúdo que vai além de anúncios publicitários,
postando material sobre tecnologia e assunto de entretenimento.
O tipo de conteúdo intitulado de Outro compreende comentários como:
menção a outros usuários; autopromoção; divulgação de serviços e organizações;
e conteúdos sem cunho lógico com a postagem. Diante disso, a página da Claro
apresentou a porcentagem de 19%, a Oi, 8%, a Tim, 22% e a Vivo, 17%.
A partir da leitura das informações sobre as operadoras nas suas próprias
fanpages e do código de conduta identificamos que a presença da Claro e da Oi
no Facebook é de cunho informativo, isto é, comportamento centrado na emissão
de conteúdo. Já o discurso da Tim e da Vivo nos leva a identificar uma postura do
tipo informativo-interativo, ou seja, além de usar o espaço para publicar conteúdo
as operadoras evidenciam que o ambiente também é de trocas para com o
usuário, podendo este recorrer à empresa através da página. No entanto, a Vivo
assume uma postura contraditória, pois o espaço Publicação está desativado,
impedindo o usuário de entrar em contato através de tal via. Vale salientar que,
dessa forma, a empresa, estrategicamente, isenta-se de dar feedback
publicamente ao usuário.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade de consumo evoluiu para um novo estágio através do avanço
tecnológico capitaneada pela rede mundial de computadores. As transmissões de
informação e a interatividade direcionaram o consumo para uma nova era de
autoregulamentação e pouca interferência estatal. Porém esse novo paradigma
mitigou a proteção do consumidor, relativizando a responsabilidade das empresas
que mantém fanpages em sites de relacionamentos.
As novas formas de sociabilidade modificaram as antigas formas de
relacionamento, engendrando situações diferenciadas para a interação. Uma
lógica que não isentou as relações mercadológicas – as relações entre as
organizações e a sociedade.
923
Observa-se que, mesmo os usuários da internet legitimando a autotutela no
caso de reclamações em espaços virtuais, o poder público ainda não deu a
devida importância para esse canal de atendimento ao consumidor, sendo silente
em sua obrigação de disciplinar normativamente para evitar o mau uso do canal.
Pode-se verificar no presente estudo que as empresas ainda não disponibilizam
uma resposta efetiva aos reclames dos consumidores, tratando suas fanpages
como mais um espaço de anúncio publicitário, ofertas, divulgações de serviços.
Uma postura puramente mercadológica.
Os espaços criados ou utilizados pelas operadoras de telefonia Claro, Oi,
Tim e Vivo nas redes sociais, que seriam para relacionamento com o consumidor,
são subutilizados, demonstrando uma incapacidade de gerenciamento dos
reclames e anseios dos consumidores/usuários. Assim, a promessa de
estabelecer as redes sociais como mais um canal de interação não é cumprido
em sua excelência. Dessa forma, estariam por perder o real valor de uma
sociedade em rede que possibilite a troca de informações, experiências,
solucionando problemas antes que se tornem demandas efetivas em órgãos de
proteção ao consumidor, ou mesmo no judiciário.
Essa cultura de reprodução de modelos tradicionais de atendimento ao
consumidor, onde a empresa ignora o desiderato e as queixas, não se coaduna
mais com as exigências da sociedade contemporânea, passando a ser um
demérito profissional. Os consumidores e usuários fazem uso das redes sociais
nas suas relações com as empresas como, também, uma possibilidade de
atendimento aos seus anseios. Um comportamento que legitima o espaço para tal
uso, cabendo às empresas se adequarem às novas demandas, pois as narrativas
almejam a conquista da individualidade e autogoverno. Compreendo assim, uma
forma de micropoder.
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924
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925
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926
A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO E A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO NA SOCIEDADE DE CONSUMO
Carla Froener Ferreira,
RESUMO: O objetivo geral é responder o questionamento: como a gestação de substituição é tratada frente ao desejo de ter filhos na sociedade de consumo? O artigo possui como objetivos específicos: analisar o desejo de ter filhos na sociedade de consumo, verificar as técnicas de reprodução assistida com ênfase na gestação de substituição, explorar o turismo reprodutivo e o comércio da gestação substitutiva, estudar a regulamentação do tema no Brasil. A metodologia empregada é a pesquisa bibliográfica. O desejo de ter filhos tem sido explorado na sociedade atual, cenário em que as técnicas de reprodução humana assistida tornaram-se um negócio lucrativo em expansão. A sociedade voltada para o consumo, capaz de explorar todo e qualquer tipo de desejo humano de maneira econômica, considera a criança gerada como um bem a ser comercializado. Nesse contexto, mesmo que proibido em muitos países, emergiu um mercado de fertilização e de maternidade substitutiva. No Brasil, não há legislação dispondo sobre o assunto, sendo que a única regulamentação existente advém da Resolução nº 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina. Tratar-se de uma pesquisa em andamento, de modo que as conclusões estão em construção. PALAVRAS-CHAVE: Sociedade de Consumo; Gestação de Substituição; Turismo Reprodutivo; Fragmentação do Direito; Direito e Sociedade. ABTRACT: The overall goal is to answer the question: how surrogate motherhood is treated front of the desire to have children in the consumer society? The article has the following specific objectives: to analyze the desire to have children in the consumer society, to verify the assisted reproduction techniques with emphasis on surrogate motherhood, to explore the reproductive tourism and trade of surrogate motherhood, to study the subject regulation in Brazil. The methodology used is the bibliographical research. The desire to have children has been explored in the current society, in this scenario, the assisted human reproduction techniques have become a expanding lucrative business. The society is dedicated to consumption, able to explore any kind of human desire in an economic way, considers the child generated as an asset to be sold. In this context, even though banned in many countries, has emerged a fertilization and surrogate motherhood market. In Brazil, there is no legislation providing for the issue, and the only existing regulation comes from Resolution No. 2,013 / 2013 of the Federal Council of Medicine. Refers to an ongoing study, and the findings are under construction.
927
KEYWORDS: Consumer Society; Surrogate Motherhood; Reproductive Tourism; Law Fragmentation; Law and Society.
1 INTRODUÇÃO
A reprodução humana assistida e a gestação de substituição são
procedimentos de grande repercussão nas discussões éticas e jurídicas. Por
envolverem um dos sentimentos mais valiosos, o desejo de ter filhos, tornaram-se
alvo da sociedade voltada ao consumo, capaz de explorar todo e qualquer tipo de
vontade humana de maneira econômica. As novas tecnologias reprodutivas,
aliadas ao fenômeno da globalização, transformaram-se em um negócio lucrativo
e em expansão no mundo inteiro. Mesmo que proibido em muitos países, fez
emergir o comércio de fertilização e de maternidade substitutiva.
Nessa linha, desenvolve-se a presente pesquisa, que possui como tema o
estudo da gestação de substituição inserida em uma sociedade voltada para o
consumo e com um direito fragmentado. A importância do trabalho justifica-se
pela necessidade de discussão sobre o tema, ainda pouco debatido e estudado.
Busca-se explorar o seguinte questionamento: como a gestação de substituição é
tratada frente ao desejo de ter filhos na sociedade de consumo? Além do objetivo
geral que é investigar o problema de pesquisa, o artigo possui como objetivos
específicos: analisar o desejo de ter filhos na sociedade de consumo, verificar as
técnicas de reprodução humana assistida com ênfase na gestação de
substituição, estudar o turismo reprodutivo e o comércio da gestação substitutiva,
explorar a regulamentação da gestação de substituição no Brasil e analisar alguns
casos envolvendo o comércio da gestação de substituição sob os efeitos da atual
sociedade de consumo.
O método científico eleito para a pesquisa é o dedutivo, que procede do
geral para o particular. A ideia é estudar primeiramente a reprodução humana
assistida na sociedade de consumo e o comércio da gestação de substituição,
para depois focar no contexto brasileiro. A pesquisa é de modalidade exploratória,
uma vez que busca proporcionar uma maior familiaridade com o tema. Como
procedimento técnico, foi escolhida a pesquisa bibliográfica, utilizando-se autores
928
que examinam questões como a globalização, o ser humano tratado como um
objeto e a exploração comercial das técnicas de reprodução assistida, em
especial da gestação de substituição.
O desenvolvimento do artigo está estruturado em três partes. No primeiro
capítulo, será feita uma análise do desejo de ter filhos na sociedade de consumo.
O propósito será estabelecer de que maneira o desejo de filiação é influenciado
pelo desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida diante de uma
sociedade voltada ao consumo. No segundo capítulo, será abordado o turismo
reprodutivo e o comércio da gestação de substituição, investigando-se como
prospera o mercado mundial da reprodução, formado por agências e
intermediadores que oferecem aos interessados não apenas clínicas que realizam
o procedimento, mas um conjunto de serviços associados. Por fim, o terceiro
capítulo tratará sobre a regulação da gestação de substituição (ou a sua
ausência) no contexto brasileiro, analisando-se a Resolução nº 2.013/2013 do
Conselho Federal de Medicina.
2 O DESEJO DE TER FILHOS NA SOCIEDADE DE CONSUMO
A reprodução humana é uma exigência comum em todas as sociedades,
sendo, nas palavras de Héritier (2000. p. 103), um desejo e dever de
descendência. Não transmitir a vida seria como romper com uma cadeia e impedir
a si mesmo o status de ancestral. Assim, seja por um dever de manter a linhagem
ou por um desejo de formar família, ao longo dos séculos, a reprodução é vista
como o destino do ser humano. Neste contexto, a infertilidade era vista como um
problema social, frequentemente contornado pelo instituto da adoção.
Os avanços tecnológicos do século XX reconfiguraram as relações entre
(in)fertilidade, medicina e sociedade. Nos anos 80, a infertilidade passou a ser
enfrentada como um problema de saúde, para qual se recorre à ciência médica
em busca de solução (DINIZ, 2002. p. 01). Correa (2003. p. 32) defende a ideia
de que a não satisfação do desejo de ter filhos, considerando toda a tecnologia e
os medicamentos existentes, torna-se quase uma patologia. Dessa forma, a
pessoa que possui um problema de infertilidade e não busca resolvê-lo ou
929
simplesmente decide não ter filhos é vista como fora dos “padrões” da sociedade
atual.
Ocorre que as mudanças sociais e culturais das últimas décadas acabaram
por afetar o perfil reprodutivo da população. A propagação do uso de métodos
contraceptivos aliada à tendência atual de priorizar a realização profissional e a
estabilidade financeira foram fatores que fizeram com que se adiasse, em pelo
menos uma década, a idade em que as mulheres decidem engravidar. Outra
causa que contribui para a gravidez tardia é o aumento do número de divórcios,
tendo em vista ser comum que, com a formação de uma nova união, nasça a
vontade de ter novos filhos (FONSECA; HOSSNE; BARCHIFONTAINE, 2009. p.
236). Pesquisas do Ministério da Saúde sobre a proporção de nascidos por idade
materna apontam que o número de mulheres que engravidaram com idade acima
de 30 anos está aumentando, principalmente se considerar o primeiro filho para
as que possuem mais anos de estudo. Segundo o levantamento, o percentual de
mães na faixa etária de 30 anos cresceu de 22,5% em 2000 para 30,2% em 2012.
Outra constatação interessante é que entre as mulheres com maior nível de
escolaridade (12 anos ou mais de estudos), o nascimento do primeiro filho
acontece após a mãe completar 30 anos (45,1%) (BRASIL, 2014).
Desse modo, fatores sociais e metabólicos, ocasionam um número cada
vez maior de mulheres que gostariam de ter filhos, mas não produzem mais
óvulos em quantidade ou qualidade suficiente para que a gestação ocorra de
forma natural. Por outro lado, também pode surgir o desejo de ter filhos nas
famílias monoparentais e nas uniões homoafetivas, casos em que não há
necessariamente um problema que impeça tais pessoas de procriar, mas sim a
falta de um parceiro do sexo oposto para fornecer o material genético. Nessas
situações, a utilização de óvulos e espermatozóides doados se apresenta como
única opção para alcançar a maternidade ou paternidade tão sonhada
(FONSECA; HOSSNE; BARCHIFONTAINE, 2009. p. 236). A solução para estas
pessoas é buscar a intervenção médica, com as técnicas de “Reprodução
Humana Assistida”, conceito a ser analisado a seguir.
Para que ocorra o processo de reprodução humana são necessárias
células sexuais ou germinativas (gametas) femininas e masculinas, as quais são
930
denominadas, respectivamente, óvulos e espermatozóides. Durante o período
fértil da mulher, uma forma primária do óvulo é liberada do seu órgão de origem
(ovário), seguindo em direção ao útero. No modo natural, a fecundação ocorre
quando um espermatozóide encontra o óvulo sem a intervenção médica, dando
início a uma complexa seqüência de eventos moleculares coordenados (MOORE;
PERSAUD, 2008. p. 32). Quando este procedimento não acontece naturalmente,
seja por um problema feminino, masculino ou pela falta de parceiro do sexo
oposto (homossexuais ou solteiros), torna-se necessário recorrer às técnicas de
reprodução humana assistida. Nesse contexto, ao analisar os meios de
reprodução, Héritier (2000, p. 98) afirma que é possível sofisticar as formas de
família, mas não se poderá inventar novos modos de procriação, pois sempre
será imprescindível a diferença de sexos, ou seja, pode-se excluir o
relacionamento físico, mas não o processo de fusão de gametas do homem e da
mulher.
O marco mundial para a reprodução humana assistida ocorreu em julho de
1978, na Inglaterra, com o nascimento de Louise Brown, conhecida como o
primeiro bebê de proveta. No Brasil, a reprodução assistida tem sua primeira
experiência humana em outubro de 1984, quando nasce Ana Paula Caldeiras, na
cidade de Curitiba, com o emprego da técnica de fertilização in vitro (REDE
FEMINISTA DE SAÚDE, 2003. p. 11). Passados mais de trinta anos da
introdução do procedimento médico revolucionário no Brasil, o tema ainda é
objeto de grandes discussões médicas, éticas e, sobretudo, jurídicas, devido
principalmente à ausência de norma regulamentadora.
A reprodução humana assistida pode ser definida como o “conjunto
heterogêneo de técnicas que auxiliam o processo de reprodução humana no
campo da concepção, no caso da esterilidade feminina e masculina” (REDE
FEMINISTA DE SAÚDE, 2003. p. 14). Assim, seria a intervenção do homem no
processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas com
problemas de infertilidade ou esterilidade satisfaçam o desejo de ter filhos
(MALUF, 2010. p. 153). Sobre os objetivos deste procedimento, Tamanini (2004.
p. 88) declara que a reprodução assistida parte do pressuposto de que é
necessário que a ciência ajude a natureza a restabelecer sua capacidade
931
reprodutiva. Hoje, o conceito deve ser interpretado de maneira mais abrangente,
de modo a englobar não apenas casos de saúde, mas também situações de
natureza social, típicas do mundo contemporâneo. Diante dos novos modelos de
família, devem também ter acesso às técnicas de reprodução assistida as
pessoas solteiras e os casais homossexuais para os quais, devido à falta de um
parceiro ou porque são do mesmo sexo, torna-se necessário o uso de meios
artificiais de concepção.
Entre as principais técnicas de reprodução assistida, é possível citar a
Inseminação Artificial, a Fertilização in Vitro e a Injeção Intracitoplasmática de
Espermatozóide. A Inseminação Artificial é o processo no qual o médico introduz
no útero o espermatozóide previamente coletado, fazendo com que o encontro
entre óvulo e espermatozóide ocorra dentro do corpo da mulher. A Fertilização in
Vitro, por sua vez, consiste na técnica segundo a qual os óvulos e os
espermatozóides são coletados e fecundados em um recipiente externo, para
somente depois serem implantados no útero feminino. Já a Injeção
Intracitoplasmática de Espermatozóide é um método semelhante à fertilização in
vitro, pois a fecundação também ocorre em um recipiente fora do corpo da mulher
para após ser implantado no útero, a diferença é que nesta técnica um único
espermatozóide é injetado diretamente no citoplasma de um óvulo maduro, sendo
muito utilizada em caos de homens que produzem poucos espermatozóides
(MOORE; PERSAUD, 2008. p. 36). Dependendo da origem do material genético,
a reprodução poderá ser homóloga ou heteróloga. No primeiro caso, os gametas
utilizados para a fecundação artificial são do casal interessado na procriação,
enquanto que no segundo, devido à impossibilidade de um ou ambos em
fornecerem os seus próprios gametas, estes serão obtidos a partir de doadores.
Uma forma de aplicação das técnicas de reprodução humana assistida é a
“gestação ou maternidade de substituição”, também denominada de “doação
temporário do útero” e conhecida popularmente como “barriga de aluguel5”. Nesse
5 Entende-se incorreto o emprego da denominação “barriga de aluguel” no Brasil, uma vez que o
termo “aluguel” pressupõe uma contraprestação pecuniária e a Resolução nº 2.013/13 do CFM proíbe expressamente a utilização deste procedimento para fins comerciais e auferimento de lucros.
932
procedimento, a mulher que deseja ter um filho, mas não pode realizar o ciclo da
gestação, ou o casal homossexual, beneficiando-se da fertilização in vitro,
transfere o embrião ao útero de uma outra mulher que realizará a gestação
(REDE FEMINISTA DE SAÚDE, 2003. p. 17). Caso a idealizadora do projeto não
consiga fornecer o óvulo ou trate-se de um casal homossexual, o material
genético pode ser de doação. Dessa forma, poderá haver até três mulheres
intituladas mães: a gestante (mãe biológica), a doadora do material genético (mãe
genética) e a autora do projeto de maternidade (mãe socioafetiva ou intencional)
(ARAÚJO; VARGAS; MARTEL, 2014. p. 485).
Um aspecto importante da utilização das técnicas de reprodução humana
assistida e que possui destaque na pesquisa é a sua inserção no sistema
capitalista e na ideia de sociedade de consumo. Nas últimas décadas, a
intervenção médica na reprodução humana tornou-se um negócio em expansão,
no qual participam instituições médicas, como clínicas e hospitais, agenciadores e
intermediários, bem como doadores de material genético e mulheres que gestam
e dão à luz (IKEMOTO, 2009. p. 281-282). De acordo com reportagem do sítio da
revista Time (2014), somente no ano de 2012, o comércio no setor movimentou
cerca de 3,5 bilhões de dólares nos Estados Unidos. Já é possível identificar a
formação de grandes conglomerados empresariais de serviços de fertilidade, que
aliam ao mesmo tempo técnicas médicas e comerciais, como a propaganda, para
conquistar clientes e posições no mercado (IKEMOTO, 2009. p. 280).
Esse mercado da fertilidade é potencializado pela configuração da nossa
sociedade atual, classificada como “de consumo”. A sociedade de consumo é
aquela que predomina a compra e venda de mercadorias produzidas de maneira
massificada como principal atividade econômica. Uma das principais
características dessa sociedade é a “objetificação”, pela qual as relações
humanas deixam de ser focadas nos sujeitos e passam a ser centralizadas nos
objetos (BAUDRILLARD, 2011. p. 13). Segundo Bauman (2008. p. 26), as
mercadorias não exigem reciprocidade, sendo moldadas ao bel-prazer de um
sujeito onipotente, incontestado e desobrigado. Como um sistema econômico
capitalista baseado no consumo necessita de um movimento constante de
mercadorias para gerar riqueza, os sujeitos-consumidores são bombardeados
933
com estímulos para consumirem cada vez mais, o que gera um ciclo efêmero de
aquisição, uso e descarte, que se repete indefinidamente (BAUMAN, 2008. p.
111; p. 128), em busca por uma felicidade ilusória e insaciável (BAUDRILLARD,
2011. p. 21). Todos os valores concretos e naturais viram formas produtivas e
fontes de lucro (BAUDRILLARD, 2011. p. 63). O desejo humano passa a ser
colonizado pela economia, tornado-se sua força motriz. Na sociedade de
consumo não existe a formação de vínculos duradouros, os atritos são resolvidos
de maneira rápida e simples, pelo descarte da mercadoria defeituosa, imperfeita
ou não satisfatória e pela troca por uma nova e aperfeiçoada (BAUMAN, 2008, p.
31). Como resultado desse processo, o próprio sujeito acaba sendo objetificado e
o ser humano transformado em mercadoria.
Se a sociedade de consumo é capaz de explorar qualquer tipo de desejo
humano de maneira econômica, não é diferente no que diz respeito ao desejo de
ter filhos e a procura pelas técnicas reprodutivas. O próprio termo “desejo de ter
filhos” possui um caráter mercantilista, conforme crítica de Correa (2003. p. 32),
ao entender que o verbo “ter”, geralmente relacionado à posse de objetos, indica
uma possível objetificação da criança, similar a aquisição de um item de
consumo.
Em entrevistas realizadas com casais que iniciam o tratamento para a
fertilidade, Tamanini (2003. p. 125-127) verifica que após um longo período de
tentativas de gravidez frustradas há um grande desgaste da relação afetiva e
sexual, que é acentuado pela cobrança familiar. Nesse contexto, enquanto
produto a ser consumido, as novas técnicas de reprodução assistida são
vendidas, propagandeadas e percebidas pelos destinatários como uma solução
mágica não apenas para os problemas causados pela ausência de filhos, mas
também como um mecanismo capaz de restabelecer a relação conjugal. Com
isso, manipula-se, sempre com um viés econômico, as expectativas do paciente-
consumidor, que busca capturar, ingenuamente, um ideal de felicidade
inacessível, processo típico da sociedade de consumo.
Ainda em relação à questão econômica, na opinião de Diniz (2002. p. 02),
para os profissionais atuantes no campo da medicina reprodutiva, as técnicas
conceptivas têm como principal objetivo a produção de bebês, quando deveriam
934
ser vistas como um conjunto de ferramentas capazes de sanar a ausência
indesejada de filhos. A pesquisa sobre as causas da infertilidade ou da baixa
fecundidade seria pouco incentivada, já que o atual modelo de produção e
desenvolvimento econômico estimula a lógica do mercado capitalista e, portanto,
o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, uma vez que são muito
lucrativas (CARLOS; SCHIOCCHET, 2006. p. 250).
3 O TURISMO REPRODUTIVO E O COMÉRCIO DA GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
O crescente incentivo pela experiência da gestação somado ao invasivo
mercado do consumo leva muitas pessoas a uma busca sem medida de esforços
para atingir a tão sonhada filiação. Em muitos casos, quando as técnicas de
reprodução assistida não são suficientes para gerar um filho, seja por deficiência
de material genético do casal ou por impossibilidade da mulher realizar o ciclo da
gestação, acaba restando apenas a opção da doação temporária do útero. Nesse
cenário, além da contratação de clínicas médicas especializadas em fertilização,
alguns países permitem a opção de contratar uma doadora temporária de útero
profissional. Estas, são mulheres que se dispõe a gestar crianças para outras
pessoas mediante remuneração e classificam-se em dois tipos: aquelas que
apenas alugam seu corpo, sem formar vínculo genético com o futuro bebê,
denominadas gestantes de substituição gestacional; e aquelas que, além de
gestar a criança, também vendem os seus óvulos, havendo relação genética entre
elas, chamadas gestantes de substituição tradicional (RAGONÉ, 1998. p. 120).
Como em outras áreas de exploração econômica, a globalização criou um
fluxo transnacional de oferta de técnicas de fertilização e maternidade de
substituição, na qual é possível contratar o serviço em qualquer parte do mundo,
inclusive por meio do comércio eletrônico. O frequente deslocamento a outros
países em busca destes serviços dá-se por motivos diversos, sendo os principais:
menor custo no procedimento médico; oferta de tecnologia mais desenvolvida;
existência de um sistema jurídico permissivo garantindo um amplo acesso; maior
oferta de óvulos, espermas e úteros (IKEMOTO, 2009. p. 278). Ragoné (1998. p.
935
127) ainda aponta outro motivo relevante para a forte tendência de os casais
procurarem mães de substituição em outros países: acredita-se que a diferença
de raça e cultura acaba por afastar ainda mais as partes envolvidas no acordo,
dando um sentimento de maior segurança no cumprimento do contrato.
Dessa forma, a modalidade extrema do comércio global de fertilização e
maternidade de substituição tem sido conhecida como “turismo da fertilidade” ou
“turismo reprodutivo”. Este comércio consiste no desenvolvimento de um mercado
mundial de agências e intermediadores que oferecem aos interessados não
apenas clínicas que realizam o procedimento, mas um conjunto de serviços
associados, como documento de visto e passaporte, translado, reserva de
passagens aéreas e hotéis, bem como doadores de material genético ou
mulheres dispostas a alugar seu útero para gestar filhos a outros mediante
remuneração (IKEMOTO, 2009. p. 291).
Os países diferem em relação ao tratamento jurídico dado à
comercialização da gestação de substituição. Países como França, Holanda,
Alemanha e Espanha proíbem qualquer modalidade. Canadá, Reino Unido,
Tailândia e Bélgica, por sua vez, permitem apenas quando não há pagamento à
gestante. Já legislações que adotam um amplo comércio de maternidade
substitutiva podem ser encontradas na Índia, principal destino do turismo
reprodutivo. Existem ainda países nos quais a legislação varia de acordo com a
unidade territorial, como é o caso dos EUA e Austrália (THE TELEGRAPH, 2014).
O aumento da exploração comercial da gestação de substituição, muitas vezes de
natureza transnacional, aliada à ausência geral de regulamentação tem gerado,
nos últimos anos, uma série de casos problemáticos.
No ano de 2014, foi noticiado o caso do “Bebê Gammy”. O casal
australiano David e Wendy Farnell não podia ter filhos, e como no estado em que
vivem, Western Australia, o contrato de barriga de aluguel é proibido, eles
optaram por viajar à Tailândia, país cuja fiscalização é deficitária. Por meio de
uma agência, contrataram Pattharamon Janbua, de 21 anos, para gestar um filho
com material genético de ambos. A tailandesa que passava por dificuldades
financeiras aceitou o contrato por cerca de R$ 30.000,00. A mãe de substituição
deu à luz a um casal de gêmeos bivitelinos, sendo que o menino nasceu com
936
síndrome de down e um grave problema cardíaco. O caso tornou-se uma
polêmica mundial quando os pais biológicos levaram para a Austrália apenas a
menina saudável, abandonando Gammy, o bebê doente, que acabou ficando aos
cuidados da gestante de substituição. Após seis meses sem contato com o casal
australiano ou com a agência que intermediou a negociação e sem saber como
enfrentar o problema, a tailandesa procurou a imprensa. Em entrevista ao
programa Sixty Minutes Australia (2014), apesar de diversos registros, David
negou o abandono, porém confirmou que não entrava em contato com a mãe
substituta há meses e que esperava ganhar uma indenização da agência que
intermediou o contrato, pois era de sua responsabilidade verificar, por meio de
exames, que um dos fetos tinha problemas de saúde, de modo a realizar um
aborto em tempo hábil6.
No mesmo ano, também na Tailândia, foi noticiada a intrigante história de
Mitsutoki Shigeta, cidadão japonês que contratou serviços de fertilização para
gerar, pelo menos, 16 bebês no país. Shigeta tornou-se suspeito de tráfico de
pessoas após a descoberta da casa onde residia com 9 de seus filhos e algumas
babás. Mulheres jovens de regiões pobres da Tailândia eram contratadas para
maternidade de substituição, porém as razões para a criação desta “fábrica de
bebês” permanecem obscuras. Ao ser interpelada pela polícia, uma das clínicas
respondeu que Shigeta gostaria de ter uma família grande, tendo declarado que
desejava gerar cerca de 10 a 15 bebês por ano, até sua morte. Uma das mães de
substituição declarou aos investigadores que não era informado às contratadas se
os óvulos utilizados seriam delas próprias ou doados, o que as deixavam na
dúvida quanto à maternidade genética dos bebês. Informou, ainda, que seu único
contato com o japonês teria sido na assinatura do contrato de gestação. Shigeta
conseguiu fugir de Bangkok antes de ser preso e tem afirmado, por meio de seu
advogado, que lutará pela guarda das crianças (THE JAPAN TIMES, 2014).
4 A REGULAÇÃO DA GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO NO BRASIL 6 Na Tailândia o aborto é ilegal, principalmente pela forte influência da religião budista. Alguns
estados da Austrália, entre eles o do casal Farnell, permitem o aborto até a 20ª semana de gestação.
937
Apesar de um intenso debate legislativo no final dos anos 90 (DINIZ, 2000),
o Brasil ainda não possui uma legislação que verse sobre a gestação de
substituição e o uso de técnicas de reprodução humana assistida em geral. A
única regulamentação existente advém de resoluções do Conselho Federal de
Medicina, as quais apresentam um conjunto de normas éticas de conduta
dirigidas à classe médica. Assim, ao mesmo tempo em que as novas tecnologias
reprodutivas conduzem a fecundações antes impossíveis ou pouco prováveis,
abrem uma grande discussão a respeito da sua regulamentação. Na medida em
que o Poder Legislativo não consegue atingir um consenso e elaborar leis que a
regrem, resta à sociedade respaldar-se apenas nas normas éticas formuladas por
um conselho profissional. A primeira Resolução do Conselho Federal de Medicina
a tratar sobre o tema foi a de nº 1.358 de 1992. Esta, por sua vez, foi revogada
pela Resolução nº 1.957, publicada em 2010. Atualmente, vigora a Resolução nº
2.013 de 2013.
O Conselho Federal de Medicina estabelece, na Resolução nº 2.013/13,
que a doação temporária do útero pode ser utilizada “desde que exista um
problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora do material
genético” (VII). Um ponto importante ficou por conta da inclusão dos
relacionamentos homoafetivos como destinatários da maternidade de substituição
e demais técnicas de reprodução humana assistida (VII). Araújo, Vargas e Martel
(2014. p. 488) entendem que esta atitude permite o exercício livre e igualitário dos
direitos reprodutivos. Contudo, o regulamento estabelece expressamente que o
uso de tais técnicas deve “respeitar o direito da objeção da consciência do
médico”.
A Resolução impõe uma série de restrições à reprodução humana
assistida, no qual se inclui a prática da maternidade de substituição. É possível
interpretar o documento no sentido de permitir a doação de gametas ou embriões
quando um dos autores do projeto parental está impossibilitado de fornecer seu
próprio material genético, seja por um problema médico ou por se tratar de um
casal homoafetivo. Nessa modalidade de doação, deverá ser preservado o
anonimato no vínculo entre doadores e receptores (IV, 2). Além disso, há um
938
limite de idade entre os doadores: 35 anos para mulheres e 50 anos para homens
(IV, 3). A Resolução declara que as doadoras temporárias de útero (as mães
substitutas que gestaram a criança), deverão pertencer à família de um dos
autores do projeto parental, salvo autorização expressa do Conselho Regional de
Medicina, exigindo-se a consanguinidade de até quarto grau7 (VI, 1), respeitado o
limite de 50 anos de idade (VII, 2). É digno de nota o fato de que a norma anterior
(Resolução nº 1.957/2010) exigia que o útero pertencesse à pessoa com
parentesco de até segundo grau (VII, 1).
O documento em vigor dispõe que a doação de gametas, embriões e
úteros não poderá ter caráter lucrativo ou comercial (IV, 1; VII, 2), caracterizando-
se pela finalidade única de ajudar terceiros. É importante esclarecer que tal
dispositivo não exclui a exploração econômica do serviço médico de reprodução
humana assistida. O mandamento é dirigido exclusivamente aos doadores, que
estão proibidos de receberem dinheiro por terem participado do processo. Outra
restrição imposta pela Resolução e destinada às instituições médicas refere-se à
proibição da seleção de sexo ou características biológicas do futuro filho, exceto
quando servir para evitar doenças (I, 4).
A Resolução também estabelece a obrigação destas organizações de
manterem no prontuário dos pacientes registros sobre as gestações de
substituição com o objetivo de diminuir a possibilidade de futuros conflitos.
Primeiramente, é preciso a existência de um “termo de consentimento informado”
assinado por todas as partes envolvidas no procedimento médico (VII, 3). O
documento deverá compreender o conjunto de informações de caráter biológico,
jurídico, ético e econômico que envolverá a técnica empregada (I, 3; II, 1).
Também são obrigatórios esclarecimentos sobre os aspectos biopsicossociais do
ciclo gravídico-puerperal, os riscos inerentes à maternidade e a impossibilidade
de interrupção da gravidez, salvo em casos previstos em lei ou autorizados
judicialmente. Assim, trata-se de requisito indispensável para a realização de
qualquer procedimento, devendo o médico fornecer todas as informações
necessárias em linguagem clara e de fácil compreensão. Ademais, o profissional
7 Primeiro grau – mãe; Segundo grau – irmã e avó; Terceiro grau – tia; Quarto grau – prima.
939
deve estar apto a reconhecer se a usuária da técnica está expressando um
consentimento livre e consciente ou se a decisão é fruto de um estado emocional,
numa situação de vulnerabilidade (CARLOS; SCHIOCCHET, 2006. p. 254). No
prontuário ainda constará um relatório médico com o perfil psicológico da doadora
temporária do útero, atestando sua adequação clínica e emocional, assim como a
garantia de tratamento e acompanhamento médico à mãe que realizará a
gestação de substituição até a fase do puerpério.
Um aspecto importante da gravidez de substituição diz respeito à
elaboração e assinatura de um contrato entre os autores do projeto parental e a
doadora temporária de útero, estabelecendo a questão da filiação. Tal exigência
funda-se no fato de que, pelo procedimento tradicional, na Declaração de Nascido
Vivo emitida pelos hospitais após o parto, constará o recém-nascido como filho da
parturiente, neste caso a mulher que cedeu temporariamente o útero, e só após
um longo processo judicial poderá ser registrado pelos autores do projeto
parental. Ao se estudar a gestação de substituição muito se pensa sobre conflitos
positivos, ou seja, a possibilidade de a doadora temporária do útero não entregar
o bebê após o parto. Todavia, também são possíveis conflitos negativos, advindos
de situações como a morte de um dos autores do projeto parental, o divórcio, a
multiplicidade de fetos ou a presença de deficiência ou problemas de saúde na
criança, que causam o arrependimento e o eventual abandono do bebê
(ARAÚJO; VARGAS; MARTEL, 2014. p. 494), sendo esta mais uma justificativa à
relevância de um contrato e dos esclarecimentos prévios.
A partir desta breve análise, é possível verificar que o órgão de fiscalização
médica do Brasil autoriza a maternidade de substituição seguindo alguns
parâmetros. O principal deles, e que difere a situação brasileira de outros países,
é a proibição da venda da maternidade de substituição pela receptora, situação
também extensiva ao material genético. No entanto, por mais que a intenção do
Conselho Federal de Medicina seja claramente impedir a formação de um
comércio nesta área, não se pode ser ingênuo ao ponto de acreditar em um
completo altruísmo em uma sociedade contemporânea marcada pelo capitalismo
e individualismo. De acordo com Fonseca, Hossne e Barchifontaine (2009, p.
238), torna-se difícil vislumbrar que mulheres doadoras se submeterão a
940
tratamentos médicos custosos, com injeções de hormônios periódicas,
procedimentos cirúrgicos, riscos e efeitos colaterais, com a única intenção de
ajudar casais desconhecidos a gerarem um filho.
A evolução do capitalismo e a consolidação da sociedade de consumo no
contexto brasileiro conduzirá, certamente, à expansão do oferecimento deste tipo
de serviço por clínicas médicas. De outro lado, a fragilidade regulatória do cenário
nacional na área pode significar uma série de problemas sociojurídicos. Sob o
ponto de vista legal, apesar da aplicação dos aspectos gerais da legislação civil e
consumerista nas relações entre autores do projeto parental, empresas do ramo
da medicina e doadores, a regulação desta dinâmica triangular ainda permanece
obscura, principalmente quando surgem conflitos com particularidades específicas
da área.
Não apenas a existência de um mercado paralelo que envolve o
pagamento de mães substitutas e material genético causa preocupação, mas a
própria exploração comercial do serviço pelas clínicas médicas, permitida no
Brasil e autorizada pela Resolução. Neste contexto, Carlos e Schiocchet (2006. p.
255) argumentam que a mercantilização da procriação não pode ser defendida,
pois não é ético que a vida, ou peças biológicas que a geram, tenha status de
mercadoria. De acordo com as autoras (2006. p. 258), a forte lógica do mercado,
as construções ilusórias do filho programado e da cura para a infertilidade e o
esquecimento do baixo índice de sucesso dos procedimentos de fertilização,
aliados ao fato de os serviços serem oferecidos “quase que exclusivamente por
clínicas privadas, sem regulamentação legal e fiscalização governamental”
culminam em uma dinâmica de instrumentalização das mulheres e de seus
corpos.
Inseridas na discussão sobre a necessidade de uma legislação brasileira
voltada à regulamentação do comércio da maternidade de substituição, Tamanini
(2004. p. 76) e Buglione (2002. p.73) enfrentam com tom crítico a regulamentação
do tema por um código de conduta profissional de natureza privada e de ausente
suporte jurídico, uma vez que o poder de determinar os procedimentos e
estabelecer comportamentos éticos sobre o tema está reservado à classe médica.
Esta normatização não estatal, fenômeno também conhecido como fragmentação
941
do direito, pode representar a porta de entrada para uma regulação mais próxima
da sociedade, tendo em vista que foi elaborada por profissionais que detêm
profundo conhecimento do tema, todavia, também pode ser vulnerável a
cooptação de um determinado setor, no caso o médico, já que não enfrentou o
crivo democrático do processo legislativo. Um exemplo sobre este problema diz
respeito ao tratamento dado aos casais homossexuais. Apesar de sua inserção
ser uma novidade na norma, o documento demonstra preconceito ao atribuir à
concepção moral particular e à discricionariedade do médico o oferecimento do
serviço, ficando clara a incompletude da norma estabelecida unilateralmente por
um determinado segmento da sociedade.
O Brasil enfrentou recentemente um caso sobre o assunto, que envolveu
uma das maiores clínicas de reprodução humana do país e indicou o perigo da
ausência de regulação. Em 2009, Roger Abdelmassih, renomado médico
brasileiro atuante na área, foi acusado de abusar sexualmente de suas pacientes
(TERRA, 2009). Se já não bastasse as graves acusações, as investigações
apontaram para a existência da prática de uma série de procedimentos
irregulares, utilizados para garantir o sucesso do tratamento e o alto retorno
financeiro da clínica. Uma das técnicas relatadas envolveu o uso de óvulos e
material genético de terceiros, incluindo a mistura de DNA, sem qualquer
consentimento dos autores do projeto parental, em confronto à ética médica
(ÉPOCA, 2010). Recentemente, foi noticiada a condenação em primeiro grau do
médico em ação judicial movida por dois irmãos, nascidos da reprodução humana
assistida, que descobriram não ter relação genética com o suposto pai, que
participou do tratamento juntamente com a mãe (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014).
5 CONCLUSÕES
Conforme se percebe pelo desenvolvimento do presente artigo, as técnicas
de reprodução humana assistida como um todo e, em especial, a gestação de
substituição, necessitam urgentemente de regulação pelo direito brasileiro. O
desejo de ter filhos nunca foi tão explorado quanto na sociedade atual, em que as
técnicas de reprodução humana assistida não são mais vistas apenas como um
942
tratamento de saúde reprodutiva, mas, para além disso, tornaram-se um negócio
lucrativo em expansão. A sociedade voltada para o consumo, capaz de explorar
todo e qualquer tipo de desejo humano de maneira econômica, somada ao
fenômeno da globalização, passou a ver o bebê e a sua gestação como um bem
a ser comercializado. Propagou-se, assim, um mercado direcionado ao público
que deseja ter um filho, mas, por razões biológicas ou sociais, não consegue
atingir este sonho e opta pela gestação de substituição, buscando uma mãe
disposta a doar temporariamente o seu útero.
No Brasil, assim como em outros países do mundo, não há legislação
específica sobre as técnicas de reprodução humana assistida e gestação de
substituição. Em um claro exemplo de fragmentação do direito, onde as normas
são produzidas por meio não estatal, a única regulação existente é a Resolução
nº 2.013/2013 criada pelo Conselho Federal de Medicina. Nesta, encontra-se os
princípios gerais que cercam a reprodução humana assistida, destinatários,
limites de faixa etária e consanguinidade, bem como direitos e obrigações das
partes envolvidas (pacientes, médicos e clínicas). É inadmissível que após mais
de trinta anos da primeira experiência brasileira de sucesso no uso destas
técnicas e do crescente registro de casos, o Estado não tenha se debruçado
sobre o tema com o fim de regulamentá-lo.
Os casos Bebê Gammy, Fábrica de Bebês e Roger Abdelmassih
(apresentados no final dos capítulos 2 e 3) possuem características em comum:
os três são resultados dos impactos negativos da fragmentação e
desregulamentação do comércio da maternidade de substituição e da reprodução
assistida em geral inseridos em um ambiente de sociedade do consumo. Gammy,
o bebê com síndrome de down, foi tratado como mercadoria pelos autores do
projeto parental, que o rejeitaram tal qual se faz com um produto com defeito,
buscando reparação à agência supostamente “culpada” pelo “inconveniente”. Aqui
se percebe claramente o intuito comercial do contrato de barriga de aluguel: o
casal australiano pagou pelos “produtos” (bebês gêmeos) que desejava adquirir e,
ao recebê-los, um era “defeituoso” (bebê com síndrome de down), por isso levou
para casa apenas o produto “satisfatório” (bebê saudável).
943
A lógica da sociedade do consumo e o sistema capitalista atrelado a este
modelo necessitam do consumo em excesso. Entretanto, o que dizer do japonês
Shigeta que desejava ter cerca de 10 a 15 bebês por ano utilizando-se da
gestação de substituição? Certamente não é um caso típico do livre exercício da
autonomia da vontade. No mesmo sentido, o possível uso de material genético de
outrem em procedimentos de fertilização sem a autorização dos autores do
projeto parental, como ocorreu no caso do médico Abdelmassih, não só contraria
a ética médica, mas as máximas da boa-fé objetiva que impõe uma relação de
transparência entre as partes contratantes.
Uma melhor regulação entre os direitos e deveres de todas as partes
envolvidas, o papel do contrato assinado pelos doadores a título gratuito, as
estratégias de fiscalização deste serviço médico em expansão e extremamente
lucrativo e as possíveis sanções para o descumprimento da norma permanecem
no vácuo do contexto brasileiro, clamando pela necessidade de maior atenção à
matéria.
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946
NANOTECNOLOGIAS E O DIREITO DO CONSUMIDOR: COMO EQUACIONAR OS RISCOS E AS INFORMAÇÕES.
Raquel von Hohendorff,
Wilson Engelmann,
Paulo Junior Trindade dos Santos,
RESUMO: As nanotecnologias são um novo e revolucionário conjunto de tecnologias, que trabalham na bilionésima parte do metro, elaborando produtos novos, com características físico-químicas desconhecidas, submetendo o consumidor a riscos incalculáveis. Estes produtos são lançados no mercado todos os dias e apenas uma pequena parcela dos consumidores possui algum tipo de informação. A sociedade tem o direito fundamental de saber a composição dos produtos do mercado, e este é um pré-requisito para o exercício do direito de escolher o que consumir. Será utilizado o método de abordagem fenomenológico-hermenêutico e como métodos de procedimento o histórico e o comparativo, além da pesquisa bibliográfica e legislativa e textos normativos de diversos organismos internacionais. Como apenas a lei não mais dará conta de produzir as respostas necessárias, incita-se, a partir do pluralismo jurídico, a ideia do diálogo entre as fontes do Direito, aproximando as respostas jurídicas dos demais Sistemas Sociais, buscando alternativas para o delineamento do jurídico de modo mais flexível e adaptável à realidade nanotecnológica. A valorização das diferentes fontes do Direito provocará uma mudança estrutural, renovando a sintonia do Direito com a realidade social e o diálogo entre as fontes do Direito, sem mais a hierarquia obrigatória da lei, permitirá um maior cuidado com a responsabilidade atual e futura dos riscos, ainda pouco conhecidos, oriundos das nanotecnologias. PALAVRAS CHAVE: nanotecnologia, consumidor, direito à informação, diálogo entre as fontes.
1 INTRODUÇÃO
Muito se fala sobre as nanotecnologias. No entanto, cabe perguntar: o que
são as nanotecnologias e quem será atingido pela sua emergência? O termo
“nano” representa uma medida e equivale à bilionésima parte de um metro, isto é,
ao se dividir um metro por um bilhão de vezes, chegamos ao nanômetro. Esta
medida também poderá ser representada pela notação científica de 10-9.
947
Embora neste momento, os benefícios da nanotecnologia dominam o
nosso pensamento, o potencial desta tecnologia para resultados indesejáveis na
saúde humana e no meio ambiente não deve ser menosprezado. Como as
nanopartículas são muito pequenas, medindo menos de um centésimo de
bilionésimo de metro, são regidos por leis físicas muito diferentes daquelas com
as quais a ciência está acostumada. Existem probabilidades de que as
nanopartículas apresentem grau de toxicidade maior do que as partículas em
tamanhos normais, podendo assim ocasionar riscos à saúde e segurança de
pesquisadores, trabalhadores e consumidores.
Os produtos com nanotecnologia já estão no mercado, sendo amplamente
consumidos, sem que existam maiores informações acerca de seus riscos. A
sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do
experimento, no qual os consumidores não possuem o direito de informação
preservado e assim acabando por não poder exercer o direito de opção do que
consumir.
Desta forma, o artigo tem como pretensão demonstrar que somente a lei,
de origem unicamente Estatal, não poderá produzir as respostas necessárias à
realidade nanotecnológica atualmente vivida. Assim, a alternativa passa pelo
pluralismo jurídico, através do diálogo entre as fontes do Direito, que permitirá a
aproximação desta ciência com os diferentes sistemas sociais.
As diferentes fontes do Direito, originárias de diferentes esferas estatais e
não estatais, nacionais e internacionais, deverão ser conjugadas, sendo aplicadas
de forma simultânea e coordenada, filtradas por um filtro dos controles de
constitucionalidade e convencionalidade de modo a adequar a ciência do Direito
às inovações advindas das nanotecnologias. Desta forma, o desafio das
nanotecnologias para o Direito está lançado e será necessário que os
transformadores do Direito elaborarem novas opções de respostas, utilizando as
diferentes fontes jurídicas.
O método de abordagem a ser utilizado será o fenomenológico-
hermenêutico; como métodos de procedimento se utilizarão o histórico e o
comparativo e as técnicas de pesquisa serão bibliográfica e legislativa e textos
normativos de diversos organismos internacionais. Quanto ao método cabe
948
salientar que o mesmo permite que o pesquisador esteja diretamente implicado,
relacionado com o objeto de estudo, sofrendo inclusive as consequências de seus
resultados. Assim, trata-se de uma investigação não alheia ao pesquisador, eis
que ele está no mundo onde a pesquisa é desenvolvida.
2 APRESENTANDO AS NANOTECNOLOGIAS E SEUS RISCOS
Nano” é um prefixo que significa anão. Por isso, a junção desta palavra
com “tecnologias” corresponde ao conjunto de possibilidades tecnológicas, assim,
a expressão deve ser utilizada no plural, representando as condições de
manipular elementos na escala nanométrica, que equivale à bilionésima parte de
um metro. As tecnologias em ultra-pequena escala com toda uma imensa gama
de benefícios já estão no mercado, sendo amplamente consumidas.
Os mais diferentes setores econômicos utilizam nanotecnologias (variadas
produções tecnológicas na escala nanométrica, representando uma alternativa de
manipular átomos e moléculas na bilionésima parte do metro). Como exemplo
podem ser citados protetores solares, calçados, telefones celulares, tecidos,
cosméticos, automóveis, medicamentos produtos para agricultura, medicamentos
veterinários, produtos para tratamento de água, materiais para a construção civil,
plásticos e polímeros, produtos para uso nas indústrias aeroespacial, naval e
automotora, siderurgia, entre outros. Este rol não está fechado, uma vez que as
nanotecnologias estão em processo de desenvolvimento. Assim, deixam de ser
apenas promessas futurísticas e incorporam-se na rotina diária da sociedade
deste início do século XXI, exigindo, portanto, a atenção por parte do Direito.
Eric Drexler (1986), primeiro PhD em nanotecnologia do mundo pelo
Massachusetts Institute of Technology (MIT) afirmou se tratar de “[é] uma nova
tecnologia [que] irá lidar com átomos e moléculas individualmente com controle e
precisão; chamada tecnologia molecular. Isso irá mudar nosso mundo de muitas
formas que nós nem podemos imaginar”. Tal tecnologia se nominou
nanotecnologia, sendo que nano no grego significa anão e um nanômetro
equivale a um milionésimo de milímetro, medida tão pequena que são
949
necessários cerca de 400.000 átomos amontoados para atingir a espessura de
um fio de cabelo.
Desde então, muitas pesquisas foram desenvolvidas e se tem aceitado que
as nanotecnologias trabalham com partículas, materiais e produtos que estão
entre 1 e 100 nanômetros aproximadamente, de modo que, “hoje,
nanotecnologia, no uso amplo do termo, refere-se a tecnologias em que produtos
apresentam uma dimensão (in)significante, isto é, menos de 1/10 de mícron, cem
nanômetros ou cem bilionésimos de metro” (DREXLER, 2009, p. 42).
O termo “nanotecnologia” tem despertado controvérsias acerca das
medidas que devem ser consideradas para a categorização de um produto ou
processo que esteja sendo trabalhado na nano escala. Portanto, deve-se partir de
uma padronização e assim, adota-se aqui a definição desenvolvida pela ISO TC
229 (INTERNATIONAL, 2005), onde se verificam duas características
fundamentais: a) produtos ou processos que estejam tipicamente, mas não
exclusivamente, abaixo de 100nm (cem nanômetros); b) nesta escala, as
propriedades físico-químicas devem ser diferentes dos produtos ou processos
que estejam em escalas maiores.
As nanotecnologias são hoje um dos principais focos das atividades de
pesquisa, desenvolvimento e inovação em todos os países industrializados. Os
nanomateriais são utilizados nas mais diversas áreas de atuação humana,
podendo-se destacar as seguintes áreas: cerâmica e revestimentos, plásticos,
agropecuária, cosméticos, siderurgia, cimento e concreto, microeletrônica, e, na
área da saúde, possuem aplicação tanto na odontologia quanto na farmácia
(especialmente em relação à distribuição de medicamentos dentro do organismo),
bem como em inúmeros aparelhos que auxiliam o diagnóstico médico (AGÊNCIA,
2011, p. 11).
As nanotecnologias têm produzido novos materiais e os riscos para a
saúde humana e ambiental ainda não estão suficientemente avaliados. As
reações físico-químicas dos materiais nesta escala apresentam diferenças, pois
pode ter maior condutividade elétrica e um incremento na interação com o meio
ambiente ou o corpo humano. Em suma: quanto menor a superfície, maior a
quantidade de átomos nela encontrados. Com isso, se poderão fabricar produtos
950
mais leves e resistentes, com menor quantidade de materiais e maiores
potencialidades de uso, mas ao mesmo tempo se ampliam as possibilidades de
riscos, justamente em função do comportamento das partículas e de sua
capacidade de ultrapassar barreiras corporais.
O contexto exige uma efetiva preocupação com a gestão dos riscos que
poderão ser gerados pelas nanotecnologias. A ausência de certeza científica
quanto à ocorrência de efeitos negativos impõe uma abordagem precaucional, a
qual representa a espinha dorsal desta forma de gerenciamento do novo e do
desconhecido. A gestão do risco é parte integrante de um programa maior que
inicia pela saúde e segurança ocupacional. Sabe-se que as exposições potenciais
a nanomateriais podem ser controlados em laboratórios de pesquisa através de
um sistema flexível e um programa de gestão adaptativa risco. No entanto, os
riscos não acabam neste nível, eles também poderão ocorrer no processo
produtivo da indústria, na sua comercialização e durante todo o ciclo de vida do
produto que contenha alguma nanopartícula (ENGELMANN, 2015, p. 358).
Embora neste momento, os benefícios da nanotecnologia dominam o
nosso pensamento, o potencial desta tecnologia para resultados indesejáveis na
saúde humana e no meio ambiente não deve ser menosprezado. Como as
nanopartículas são muito pequenas, medindo menos de um centésimo de
bilionésimo de metro, são regidos por leis físicas muito diferentes daquelas com
as quais a ciência está acostumada. Existem probabilidades de que as
nanopartículas apresentem grau de toxicidade maior do que as partículas em
tamanhos normais, podendo assim ocasionar riscos à saúde e segurança de
pesquisadores, trabalhadores e consumidores.
Os avanços tecnológicos existentes na sociedade contemporânea detêm
um reflexo paradoxal; ao mesmo tempo em que acrescem qualidade de vida às
pessoas, estes são capazes de gerar riscos de potenciais altamente nocivos à
saúde e ao meio ambiente. Para que as instâncias de comunicação (Direito,
Economia e Política) possam reagir aos ruídos produzidos por uma nova forma
social pós-industrial (produtora de riscos e indeterminações científicas), estas
devem construir condições estruturais para tomadas de decisão em um contexto
de risco (CARVALHO, 2006, p. 13).
951
Sociedade de risco constitui um termo desenvolvido por Ulrich Beck,
segundo o qual a produção social da riqueza é acompanhada por uma produção
social de risco, ou, uma das consequências da evolução e desenvolvimento da
sociedade é a sua sujeição a riscos (BESSA, 2010, p. 561). A sociedade de risco
é ainda a sociedade industrial com o acréscimo de ciência e tecnologia
avançadas. A constituição desta Sociedade de Risco gera a produção e
distribuição de novas espécies de riscos (BECK, 1992, p.34-38), ou seja, são
riscos invisíveis, imprevisíveis com os quais os instrumentos de controle falham e
são incapazes de prevê-los (LEITE; AYALA, 2004, p.11-12). A sociedade de risco
caracterizada por Beck recebe, a partir das nanotecnologias, um ingrediente
inusitado: a produção de efeitos – negativos e positivos – em escala invisível e
com as propriedades físico-químicas modificadas, um potencial de risco muito
maior.
Os riscos inerentes à Sociedade de Risco (forma pós-industrial da
Sociedade), entre os quais os ambientais, têm como características a
invisibilidade, a globalidade e a transtemporalidade. Quanto à invisibilidade, é
porque fogem à percepção dos sentidos humanos e também há ausência de
conhecimento cientifico seguro acerca de suas possíveis dimensões. Quanto a
estes riscos, uma vez que o conhecimento científico vigente não é suficiente para
determinar a sua previsibilidade, surge a necessidade de formação de critérios
específicos para a tomada de decisões em contextos de incerteza científica.(
(LEITE; AYALA, 2004, p.88). Em relação à transtemporalidade cabe ressaltar a
questão dos riscos retardados, que se desenvolvem lentamente, ao longo de
décadas ou séculos, que levam gerações a se materializar, mas que assumem, a
certa altura, dimensões catastróficas em virtude da extensão e da irreversibilidade
(ARAGÃO, 2008, p.21). No caso das nanotecnologias, como os riscos são
desconhecidos em sua maior parte e como os produtos seguem sendo lançados
no mercado, os riscos talvez sejam perceptíveis somente com o passar dos anos.
Vale dizer, há mais perguntas do que respostas (BUBZY, 2010, p. 530) Os
impactos nocivos e riscos potenciais à saúde humana e animal, ao meio ambiente
e até em relação ao comportamento humano são ainda pouco conhecidos
(AGÊNCIA, 2010, p. 40). Para a avaliação desses aspectos, deverão ser
952
aperfeiçoados e desenvolvidos testes que busquem identificar: “(i) suas
propriedades físico-químicas; (ii) seu potencial de degradação e de acumulação
no meio ambiente; (iii) sua toxicidade ambiental: e (iv) sua toxicidade com relação
aos mamíferos”(AGÊNCIA, 2010, p. 41).
As questões-chaves na área de nanomateriais incluem a falta de dados
sobre os impactos na saúde, o potencial de toxicidade ambiental e uma
incapacidade de continuar a monitorar quaisquer efeitos adversos. A falta de
tecnologias e protocolos para monitoramento ambiental e sanitário, detecção e
remediação é ainda muito grande e deve ser considerada, apesar de alguns
esforços que estão sendo feitos para resolver o problema. No entanto, existe
também uma falta coordenada de informações a disposição do público sobre os
produtos com nanotecnologia, incluindo onde estão sendo produzidos e usados,
bem como sobre os riscos potenciais que podem existir (SENJEN, 2013).
Existe uma necessidade premente de se avaliar os riscos que existem
atrelados à manipulação, ao desenvolvimento e à aplicação de novas
nanotecnologias. Mais de duas décadas atrás, estudos toxicológicos indicaram
que seria prudente examinar e abordar as preocupações ambientais e de saúde
humana antes da adoção generalizada da nanotecnologia. Com a exceção de
algumas aplicações médicas da nanotecnologia, os governos, as empresas e até
mesmo as universidades ignoraram este conselho. Como resultado, os governos
permitiram que centenas, talvez mais de mil, produtos de consumo com materiais
nanoengenheirados incorporados, fossem comercializados sem qualquer
avaliação de segurança pré-mercado (SUPAN, 2013).
Os instrumentos fundamentais para uma eficiente organização dos
processos de gestão de risco nas sociedades contemporâneas são a
participação, o desenvolvimento do significado jurídico da precaução e
principalmente, a proteção do direito à informação ambiental de qualidade
(AYALA, 20011, p.25).
953
3 CONSUMIDOR NANOTECNOLÓGICO E O DIREITO À INFORMAÇÃO
Os gastos direcionados pela National Nanotechnology Initiative (NNI), dos
Estados Unidos, para o desenvolvimento de produtos a partir da escala
nanométrica são muito superiores do que os gastos com testes de segurança
(BEHAR; FUGERE; PASSOFF, 2013): em 2011, foram gastos 1,847 bilhões de
dólares com o desenvolvimento de produtos, contra 88 milhões de dólares para
testes de segurança (saúde e segurança ambiental); já em 2012, foram gastos
1,690 bilhões de dólares com o desenvolvimento de produtos, contra 102,7
milhões de dólares para a realização de testes de segurança; para o ano de 2013,
foram propostos os seguintes valores: 1,760 bilhões de dólares para o
desenvolvimento de produtos e 105,4 milhões de dólares para testes de
segurança. Estes números mostram a ampla valorização dos aspectos positivos
(as possibilidades) prospectadas para as nanotecnologias, que acabam
obnubilando os estudos sobre riscos que a manipulação em nano escala poderão
gerar (os aspectos negativos).
Todos acabam sendo consumidores de “nano produtos”. No entanto, uma
pequena parcela destes “todos” sabe alguma coisa sobre as nanotecnologias.
Portanto, aí se desenha um importante espaço para o alinhamento dos contornos
do chamado “direito à informação”. (ENGELMANN, HOHENDORFF, 2014).
A sociedade tem o direito fundamental de saber a composição dos
produtos do mercado, e este é um pré-requisito para o exercício do direito de
escolher o que consumir. Torna-se necessária a discussão acerca do princípio da
informação, corolário do dever de informação que cabe ao produtor, visando à
proteção do consumidor de produtos nanotecnológicos.
O avanço das nanotecnologias, num conjunto crescente de aplicações,
começa a integrar o cotidiano da sociedade brasileira e mundial. Por outro lado,
as pesquisas e os produtos que advirão desta intervenção humana nas forças
naturais exigirão a divulgação das informações ao mercado produtor e
consumidor, pois há, inclusive, previsão constitucional deste direito fundamental,
qual seja, o “direito à informação”, como um direito subjetivo que nasce com o
dever subjetivo do empresário: o “dever de informar”.
954
O direito à informação trata de um direito coletivo da informação ou do
direito da coletividade à informação; o direito de informar, como aspecto da
liberdade de manifestação do pensamento, revela-se um direito individual, mas já
contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformação de meios de
comunicação, de sorte que a caracterização mais moderna do direito de
comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação
social ou de massa. Ao lado do direito individual corrobore-se o direito coletivo
(SILVA, 2005, p. 259). Encontra-se disposto no artigo 5º, incisos IV, XVI e XXXIII
cumulado com os artigos 220 a 224, sendo que “declaram que é assegurado a
todos o acesso à informação. É o interesse geral contraposto ao interesse
individual da manifestação de opinião, ideias e pensamento, veiculador pelos
meios de comunicação social. Daí por que a liberdade de informação deixará de
ser mera função individual para tornar-se função social”. (SILVA, 2005, p. 260).
A sociedade tem o direito fundamental de saber a composição dos
produtos que estão à venda no mercado. É um pré-requisito para o exercício de
outro direito, ou seja, o direito de escolher, de optar. O Código de Defesa do
Consumidor (CDC), por meio do seu art. 318, estabelece uma série de requisitos
que deverão ser observados quando os produtos são colocados em
comercialização. Este dispositivo legal carrega no seu seio uma efetiva
caracterização de elementos necessários para se conhecer o produto comprado.
No entanto, não basta somente isso. A informação deverá vir acompanhada de
educação. É insuficiente colocar uma série de informações no rótulo ou na
propaganda do produto. Será necessário educar o consumidor para ler e
interpretar, conhecer e compreender o seu conteúdo (ENGELMANN, CHERUTTI,
2013). O pleno exercício do direito à informação, que é do consumidor, depende
de um aspecto preliminar: a prática do dever de informação, que é do fabricante e
do comerciante. Assim, se tem uma reciprocidade e complementariedade entre
direito e dever, os quais assumem importância peculiar no caso das
nanotecnologias.
8 “A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidades, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”.
955
No caso do citado art. 31, do CDC, há uma referência expressa à
obrigação de se informar os riscos que o produto possa gerar em relação à saúde
e segurança dos consumidores. Constata-se uma falha na comunicação entre os
Sistemas do Direito, da Economia e da Ciência. Esta última deverá buscar
subsídios para que o Sistema do Direito possa decidir, observando as diretrizes
oriundas do Sistema Econômico. Há uma marcada incerteza em todos os
Sistemas Sociais que são chamados a operar com as nanotecnologias. No caso
do Sistema do Direito esta situação vem caracterizada pela inadequação da
formulação legislativa consumerista relacionada ao direito à informação. Os
produtos contendo nanopartículas estão chegando ao mercado, mas os
consumidores não estão recebendo as informações adequadas, a fim de poderem
exercer democraticamente o exercício de comprar ou não (ENGELMANN,
HOHENDORFF, 2014).
A concretização do direito à informação auxilia na construção de um
ambiente de participação democrática dos cidadãos. A concretização dessa figura
constitucional (possuidora de alta carga democrática) parece ser o modelo capaz
de garantir um poder cidadão, objeto das alienações e descumprimento, por parte
do Poder Público (BONAVIDES, 2001, p. 25).
O “direito de saber” como a estrutura central do “direito à informação”, que
é destinado à sociedade, e do “dever de informação”, dirigido ao pesquisador e
empresário, deverá ser perspectivado desde o trabalho com a matéria-prima, ou
seja, a produção material em estado bruto, onde se terá a exposição direta do
trabalhador, além da emissões industriais. Este conjunto já atinge a população
humana e o meio ambiente. Os produtos manufaturados vão ao mercado
consumidor, onde eles são adquiridos, com a exposição dos consumidores, isto é,
toda a sociedade. A terceira etapa é aquela onde os produtos serão descartados,
incluindo as embalagens, que irão aos grandes espaços de depósito do lixo e
incineração, onde teremos nova exposição dos trabalhadores e,
concomitantemente, a população humana e o meio ambiente. Neste pequeno e
singelo exemplo de ciclo de vida de um produto com nanopartícula mostra as
diversas formas de exposição, onde se exigirá o conhecimento do que se está
manipulando e quais os riscos. (ENGELMANN, 2015, p. 359-360)
956
Assim, “a informação, ao passar conhecimentos, vai ensejar da parte do
informado a criação de novos saberes, através do estudo, da comparação ou da
reflexão.”(MACHADO,2006. p. 27.) O cerne do “direito de saber” é justamente
este conhecimento mínimo sobre os progressos científicos que são gerados nos
laboratórios e, muitas vezes, fomentados pelo próprio Estado, por meio de seus
órgãos de fomento (CAPES, CNPq, FINEP, FAPERGS, entre outros). Em cada
momento do ciclo de vida dos nano produtos deverá ser gerado uma espécie de
conhecimento que seja adequado e compreensível pelos sujeitos envolvidos
(ENGELMANN, 2015, p. 360)
Resta a questão: Qual a alternativa para dar conta desta situação? O
direito à informação não é exercido e o dever de informação tampouco é
estimulado. Um “cuidado” anexo à abordagem precaucional é a informação e o
fomento à participação pública sobre as decisões que envolvam as
nanotecnologias. Não há uma resposta pronta para esta nova realidade que nos
deparamos, mas é fundamental que se dê o primeiro passo e não se esquecer:
“[...] para fazer evoluir a cultura científica importa que o público seja bem
informado e participe, com conhecimento de causa, em debates. Promover a
cultura científica faz parte de uma boa higiene democrática. É indispensável para
permitir ao público compreender a orientar o progresso.” O “direito de saber”, ou o
“direito de ser informado”, integra o planejamento da sociedade inscrito na
essência do Estado Democrático de Direito. (ENGELMANN, 2015, p. 363).
O exercício do direito à informação pelos seus titulares, provocará a
necessária prática do dever de informação.
Portanto, verifica-se a necessidade da utilização do princípio da informação
para proporcionar ao consumidor a autonomia de escolha dos produtos,
cientificando-os dos riscos que possam ser produzidos pelo consumo destes. É
importante a efetiva aplicação do princípio da informação de modo que a
sociedade possa compreender a dimensão que assume a defesa do consumidor
frente aos possíveis riscos dos produtos nanotecnológicos.
A figura do consumidor final, que ingere alimentos com nanoagroquímicos,
por exemplo, sem conhecimento disto e muito menos dos riscos a que está
exposto traz à lembrança vários outros produtos lançados e consumidos antes do
957
conhecimento de seus prejudiciais efeitos à saúde, como o amianto. Há a
comparação com os transgênicos, pois existe a possibilidade de uma enorme
rejeição por parte dos consumidores, quando souberem dos possíveis riscos,
ressaltando que a tolerância aos riscos quando se trata de drogas e tratamentos
médicos tende a ser muito maior do que em relação aos alimentos. A
possibilidade de não tolerância por parte do consumidor em relação aos alimentos
com produtos nanoagroquímicos é muito grande e real, trazendo à tona também a
questão da responsabilidade do produtor. (HOHENDORFF, ENGELMANN, 2014).
Se o fabricante respeitar todos os ingredientes que se encontram no artigo
31, do CDC, pode-se concluir que as nanotecnologias chegarão ao mercado
consumidor, permitindo-se uma escolha adequada, dentro de um nível humana e
ambientalmente tolerável, a partir de uma relação de responsabilidade
prospectiva entre os pesquisadores, fabricantes e consumidores e uma adequada
gestão dos riscos presentes e futuros. É preciso que as informações decorrentes
do estudo dos riscos tenham ampla divulgação e estejam disponíveis para a
sociedade consumidora, ou seja, para que os atores envolvidos diretamente nas
decisões sobre a limitação ou não do uso das nanotecnologias e a sociedade civil
tenham melhores condições frente aos desafios surgidos com esta nova
tecnologia.
Desta forma, cabe ao Direito, como ciência, possibilitar a criação de
instrumentos jurídicos com objetivo de efetivar medidas de gerenciamento
preventivo do risco, baseado nos princípios da prevenção, da precaução, da
responsabilização, da informação e da sustentabilidade, objetivando sempre o
cuidado com o ser humano e o meio ambiente.
4 O PAPEL DO DIÁLOGO ENTRE AS FONTES DO DIREITO FRENTE AO DESAFIO NANOTECNOLÓGICO E O DIREITO DO CONSUMIDOR
O contexto assim observado se mostra desafiador para o Direito, pois terá
que lidar com os danos futuros, a partir de decisões que deverão ser tomadas no
presente. Vale dizer, o Direito se vê confrontado com uma situação de incerteza e
complexidade, que precisará ser respondida criativamente e por meio de
958
ferramentas diferentes daquelas tradicionalmente fornecidas pelo positivismo
jurídico, especialmente aquele de viés legalista.
Por isso, ao invés daquelas características do positivismo jurídico, busca-
se ampliar a efetividade, a adequação das respostas às perguntas formuladas
pelas novas e nanotecnologias (ENGELMANN, 2013, p. 260). Tais mudanças
profundas no Sistema do Direito se fazem urgentes e necessárias, a fim de
possibilitar o seu diálogo com os demais Sistemas, especialmente o Sistema da
Ciência, com o foco no equacionamento dos eventuais riscos que poderão vir
junto com o aprofundamento da Revolução Nanotecnológica.
Será necessário emitir respostas regulatórias para as incertezas das
nanotecnologias (PORTER et al, 2012). É fundamental equacionar o rápido
avanço no desenvolvimento de produtos à base da nano escala com o incremento
de testes cientificamente aceitáveis e confiáveis sobre os efeitos que as
nanopartículas causam ao ser humano e ao meio ambiente.
O pluralismo de fontes passa a ser uma das alternativas frente à
necessidade de evolução do Direito, para que este possa tratar dos desafios
surgidos com o advento das novas tecnologias, entre elas, as nanotecnologias. A
lei demonstra ser incapaz de prever todos os casos concretos, no entanto, as
situações não previstas seguem exigindo posições e soluções do jurídico. Um dos
desafios é aprender a pluralidade das fontes, vencendo o reducionismo
codificador (FACHIN, 2008, p.4). É necessário que os transformadores do Direito
desfaçam a ideia geral de que a lei pode (deve) resolver qualquer problema, pois
é exatamente essa crença que tem dificultado a evolução do Direito. Afirma-se em
geral, que a lei encerra todo o Direito, mas a concepção dogmática da lei,
imaginada como uma regra universal, editada para o futuro e para sempre, pode
ser inexata (CRUET, 1908, p. 17). A consideração da lei como principal fonte do
Direito precisa ser revista, especialmente porque a lei sempre olha para o
passado, um tempo incompatível com as novas tecnologias. (ENGELMANN,
2011, p. 351).
Tudo leva a crer na fundamentalidade de uma “governança antecipatória”,
com o aproveitamento de experiências externas, o desenvolvimento de pesquisas
inter ou transdisciplinares, considerando o futuro no presente e não simplesmente
959
jogando as questões centrais para o futuro, como algo que ainda esteja por vir.
Dentro deste cenário, os fios de condução deverão ser “[...] os esforços de
avaliação de tecnologia para considerar as implicações de longo prazo das novas
tecnologias para o conceito de governança antecipatória, que inclui um papel
mais substantivo para os atores não-governamentais”. (MICHELSON, 2013, p.
464).
Mas destaca-se que isso não significa o abandono do Estado e do seu
papel regulatório. No entanto, neste momento, dada a premência da remodelação
das suas estruturas normatizadoras, o Estado não estará em condições de
desempenhar este papel.
Assim, o Direito e a produção do jurídico deverão ser guiados pelo diálogo
entre as fontes do Direito, revelando-se novamente o papel deste capítulo da
Teoria Geral do Direito, mediante a harmonização entre os diversos atores
envolvidos, sem a proeminência de um em relação ao outro.
As nanotecnologias passam a exigir um efetivo diálogo entre as fontes do
Direito, sem uma hierarquia, mas com canais de comunicação, onde as fontes
(nacionais/internacionais, de origem estatal ou não, leis, tratados, costumes,
princípios, resoluções, normas técnicas e instruções normativas de agências
reguladoras estatais, normas sobre a saúde e segurança do trabalhador da OIT,
normas e princípios Ambientais) estarão lado a lado, buscando soluções para a
adequada resolução do caso concreto, mas sempre sendo filtradas no arcabouço
normativo-principiológico-axiológico contido na Constituição Federal e pelo
controle de Convencionalidade.
O Diálogo entre as fontes utiliza a aplicação simultânea e coordenada das
diferentes fontes legislativas (leis especiais e leis gerais, de origem nacional e
internacional).
Resta demonstrado que são muitos os modos de produção do Direito
(fontes) e que o centro de produção deslocou-se do Estado (antes único produtor)
para vários outros locus da sociedade nacional e internacional, adequando assim
a ciência do Direito às grandes transformações introduzidas pelas novas
tecnologias, que esperam respostas legais às novas situações surgidas.
Importante destacar que entre os locus atuais produtores das fontes do Direito,
960
estão as organizações, principalmente as empresariais, produtoras de diretrizes e
normas técnicas, adequadas às inovações nanotecnológicas (ENGELMANN,
2012, p. 330).
Será o caso concreto, ou seja, a segurança das pessoas e do meio
ambiente, que deverá conduzir a decisão sobre prosseguir ou não nas pesquisas;
continuar ou não a produção de objetos; aumentar ou recuar a comercialização de
produtos que tenham alguma relação com as nanotecnologias. Este é o desafio
do Direito, como umas das Ciências responsáveis pela avaliação e regulação dos
impactos, neste momento histórico. Percebê-lo, aceitá-lo e buscar soluções serão
as alternativas necessárias para a sua sobrevivência como área de
conhecimento. (ENGELMANN, 2013, p. 311).
De alguma forma é possível afirmar que os juristas, em sua maioria, estão
sempre a contemplar um normativo que já não mais corresponde ao presente,
ademais, por vezes, relutam em admitir que as necessidades do presente e as
projeções futuras reclamam por inovação e persistem em “ver o que passou e não
ver ainda o que já existe” (MOLINARO, SARLET, 2015, p. 86).
A falta de certeza e a necessidade do Direito ter de aprender a lidar com
isso e de ser capaz de fornecer as respostas necessárias à nova realidade
também fortalecem o diálogo entre as fontes como alternativa possível. Desta
forma, a produção do Direito não mais estará centralizada e focada no Estado e
no Poder Legislativo, mas sim nas mais diferentes fontes, nacionais e
internacionais, de origem no Estado e em outros atores, para que o Direito
consiga tratar adequadamente as demandas provenientes desta nova revolução
tecnocientífica, não permanecendo estagnado à espera de um marco regulatório
tradicional, fortemente vinculado e embasado na lei, com conceitos fixos e
inadequados à velocidade de transformação e ampliação dos conhecimentos nas
áreas das ciências duras, especialmente em relação às nanotecnologias.
Deste modo, se faz necessária a inovação do Direito, para que não fique à
margem da revolução nanotecnológica que vem acontecendo e possa criar
respostas jurídicas flexíveis (inclusive precaucionais, antecipando-se aos
possíveis riscos) que respeitem tanto o ser humano quanto o meio ambiente, em
consonância com as reais necessidades da sociedade.
961
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A utilização da escala nanométrica impacta os processos de produção não
apenas pelo tamanho das partículas utilizadas, mas também pelas características
físico-químicas que agregam aos produtos. Mas, são estas mesmas propriedades
físico-químicas que acendem um alerta: a saúde humana e ambiental pode estar
sendo colocada em risco. Assim, as nanotecnologias marcam a Sociedade de
Risco, impactando as diversas áreas do conhecimento de modo que a economia,
a política, o Direito, e tantos outros sistemas sofrerão mudanças com as estas
novas tecnologias.
O desafio da nanotecnologia na atualidade, para o Direito, é como a
sociedade poderá colher os benefícios da produção em nano escala e,
concomitantemente não sofrer os danos associados com a saúde humana e
riscos ambientais que podem advir juntamente com esta tecnologia. Não há hoje,
conhecimento disponível para definir todos os possíveis riscos associados aos
nanomateriais, e assim, se torna necessária e imprescindível a gestão dos riscos
para que as decisões possam objetivar a redução deles.
Neste sentido, o direto do consumidor também sofre impactos,
especialmente no tocante ao direito de informação, que permitirá ao consumidor
poder realmente fazer uma opção de consumo. Ainda, concomitantemente a este
direito surge para o empreendedor o dever de informação.
Frente à necessidade de criar formas de operacionalizar a aplicação do
Direito diante dos riscos das nanotecnologias, obedecendo sempre ao preceito
constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana, o diálogo entre as
fontes torna-se uma opção muito palpável.
A possibilidade de uso de diferentes fontes do Direito, sempre as passando
pelo controle de constitucionalidade (através da filtragem no arcabouço
normativo-principiológico-normativo contido na Constituição Federal) e de
convencionalidade, parece ser uma resposta adequada (e possível para este
momento) à questão das nanotecnologias e seus riscos, especialmente pela
possibilidade de usar fontes dos diferentes ramos do direito que se entrelaçam,
cada uma contribuindo com seus conhecimentos específicos. Por este modelo,
962
onde as fontes (nacionais e internacionais) estarão uma ao lado da outra,
podendo conjugar contribuições para a adequada resolução do caso concreto, o
que se pretende é o trabalho conjunto das fontes do Direito, movimentando-se
horizontalmente, com caminho de passagem obrigatório pelo centro, onde estará
a Constituição da República.
Somente assim o Direito poderá produzir respostas às demandas surgidas
em função da nova realidade gerada pelo uso e impactos das nanotecnologias,
conjugando o respeito ao ser humano e ao meio ambiente com a inovação e
ampliação do conhecimento nas áreas das ciências duras. É preciso um Direito
crítico, capaz de fazer leituras da realidade e apto a provocar as mudanças
necessárias nesta realidade, sob pena de restar isolado das outras áreas do
conhecimento, que se utilizarão dos espaços vazios deixados pelo Direito, para
atuarem, inclusive em questões regulatórias.
REFERÊNCIAS:
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965
O TRANSPORTE AQUAVIÁRIO NA BAÍA DE GUANABARA E A PRECARIEDADE DA ESCUTA AOS USUÁRIOS-PASSAGEIROS
Edson Alvisi Neves9
Fernanda Pontes Pimentel10
Armando Luiz Gomes Fernandes11
RESUMO: Este estudo visa analisar o transporte aquaviário realizado na Baía de Guanabara e a ausência de canais adequados para a oitiva do consumidor-passageiro. Analisa o conceito de usuário-consumidor e sua potencial vulnerabilidade, bem como a aplicação do Código de Defesa do Consumidor no estabelecimento de ferramentas adequadas para atender ao transportado. A partir da análise dos relatórios da agência reguladora competente a fiscalizar essa atividade, verifica-se a insuficiência dos mecanismos de atenção e escuta ao consumidor-usuário. Assim, identifica-se que as ferramentas de escuta existentes são desenvolvidas de maneira a prejudicar a natureza paritária dos contratos, reforçando-se uma desigualdade fática entre as partes negociantes, embora seja preservada a autonomia da vontade negocial e criando um contexto de vulnerabilidade ao consumidor aderente. PALAVRAS-CHAVE: consumidor-passageiro; transporte aquaviário, ouvidoria.
1 INTRODUÇÃO
O transporte aquaviário na Baía de Guanabara é responsável pelo
deslocamento de expressiva parcela da população trabalhadora do Grande Rio,
especialmente dos municípios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí12, locais
9 Professor titular e Diretor do Curso de Direito da Univerdade Federal Fluminense. Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Linha de Pesquisa: Acesso à justiça (PPGSD/UFF);
10 Professora e chefe do departamento de direito privado da Universidade Federal Fluminense (SDV/UFF). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Linha de pesquisa: Acesso à justiça (PPGSD/UFF);
11 Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do Grupo de Pesquisa “Empresa, Direito e Sociedade Contemporânea”.
12 Esses três municípios somam 1.754.541 segundo dados do IBGE no ano de 2014. Assim, vislumbra-se o volume de usuários do transporte aquaviário, que somou no mesmo período 29 milhões de passageiros. Disponível em http://cidades.ibge.gov.br/xtras/uf.php?lang=&coduf=33&search=rio-de-janeiro, acesso em 04 de abril de 2015.
966
densamente povoados e grandes fornecedores de mão-de-obra para as
atividades econômicas desenvolvidas na Capital do Estado. Segundo dados da
Concessionária exploradora do serviço de transporte – CCR Barcas, em 2014
foram 29 milhões de usuários, nas seis linhas mantidas pela Companhia13.
Esse serviço é oriundo de uma concessão pública, firmada em 12 de
fevereiro de 1998 entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e consórcio de
empresas privadas14 que constituiu a Barcas S.A., hoje conduzida pelo Grupo
CCR mediante aquisição do controle acionário da sociedade concessionária.
Como concessão pública, a exploração do transporte aquaviário se
estabelece em relação ao usuário-passageiro como um contrato prestação de
serviços firmado sob as regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor e
pela atuação de agências reguladoras da atividade desenvolvida, no caso em
questão, a AGETRANSP – Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos
de Transportes Aquaviários, Ferroviários e Metroviários e de Rodovias do Estado
do Rio de Janeiro, cuja atuação deve promover uma “regulação social”, levando
ao consumidor segurança, transparência e informações adequadas, permitindo-
lhe uma escuta que garanta a efetivação de direitos dos envolvidos, sejam os
consumidores, as empresas reguladas e os representantes políticos (IDEC, 2013,
p. 15).
2 DO FERRY-BOAT AO CATAMARÃ CHINÊS – UMA TRAJETÓRIA DE TROPEÇOS
A ligação aquaviária entre Niterói e a cidade do Rio de Janeiro, à época
denominada Corte, era realizada de forma irregular e por embarcações de
pequeno porte mais voltadas ao transporte de carga para os portos do fundo da
13 “A CCR Barcas, por sua vez, foi responsável pelo transporte de 29 milhões de passageiros nas
seis linhas que opera no Estado do Rio de Janeiro. Esse total representa um decréscimo de 4,2% em relação a 2013, devido a fatores como maior número de dias úteis na comparação com o período anterior (diminuindo o fluxo turístico) e o fechamento de via localizada próximo à Praça XV, que concentrava pontos de ônibus de diversas linhas municipais e intermunicipais com integração às Barcas das linhas Rio-Niterói, em razão das obras na região”. Disponível em http://www.grupoccr.com.br/ri2014/desempenho.html, acesso em 08 de abril de 2015.
14 Disponível em http://www.agetransp.rj.gov.br/agetransp/index.php/aquaviario/barcas-sa/89-contratos, acesso em 08 de abril de 2015.
967
baía. Em 1835, as primeiras linhas regulares entre as duas cidades foram criadas
pela empresa Sociedade de Navegação de Nichteroy que operava três
embarcações com capacidade para 250 pessoas. Os trajetos eram de hora em
hora e tornou o deslocamento entre a Capital do Império e a Capital da Província
Fluminense efetivo. Em 1840, foi criada a Companhia Inhomirim para transporte
de carga e passageiros entre a Corte e os portos da Estrela (atual Magé), das
Caixas (Itaboraí) e Niterói, tendo se fundido com a Sociedade de Navegação de
Nichteroy e criada uma rota até Botafogo (NUNES, 2000:29).
A Companhia Ferry, de propriedade do norte-americano Cliton Von Tuyl,
foi criada através do Decreto 2184 de 5 de junho de 1858, e sua operação efetiva
a partir de 29 de agosto de 1862 causou a falência das duas empresas em
atividade em 1865.
Já a empresa Barcas Fluminense operou entre 1870 e 1878, cujo
proprietário era Carlos Fleiuss, não resistiu a concorrência com Companhia Ferry
e terminou por ser incorporada. Em 1889, a Companhia Ferry se fundiu com a
Empresa de Obras Públicas do Brasil que explorava o serviço de distribuição de
água e serviços de carris (ônibus elétricos) de Niterói. Dessa fusão surgiu a
Companhia Cantareira e Viação Fluminense que com a eliminação da
concorrência apresentou forte desenvolvimento econômico e, a partir de 1903,
expandiu suas viagens à Ilha de Paquetá e para a Ilha do Governador.
A Cantareira, como a empresa era mais conhecida, associada em 1909 à
Leopoldina Railways operou até 1959 quando foi estatizada diante de seus
problemas econômicos. Aconteceram duas mudanças de controle acionário: em
1945 o controle foi adquirido pela Frota Carioca S.A.; em 1953 pela Frota Barreto
S. A., de propriedade do Grupo Carreteiro. A estatização ocorreu após o episódio
conhecido como a “Revolta das Barcas” em 22 de maio 1959. Nesta data, os
usuários insatisfeitos com o péssimo serviço prestado e diante da estação das
barcas de Niterói fechada devido à greve dos marinheiros, invadiram o local e o
destruíram, seguindo depois para a residência da família Carreteiro e a
depredaram. A “Revolta das Barcas” foi o último ato de uma série de
acontecimentos. Em fevereiro do mesmo ano o Grupo Carreteiro ameaçara
968
paralisar a travessia caso não houvesse aumento nas tarifas de embarque ou um
maior subsídio do governo estadual.
Diante do insucesso de seus pleitos, no mês seguinte o Grupo Carreteiro
retirou de circulação diversas embarcações que faziam a travessia e deixou de
pagar os salários dos trabalhadores alegando falta de verba, resultando na greve
do dia 22 de maio que originou a Revolta. Os conflitos na estação as barcas
foram extremamente violentos vez que o local estava protegido por policiais e por
fuzileiros navais. Diante de mais de três mil pessoas depredando o local, os
fuzileiros navais efetuaram diversos disparos de metralhadora deixando como
saldo seis mortos e 125 feridos. Em face do ocorrido, o Governo Federal estatiza
a Companhia Cantareira e o transporte aquaviário passa ser realizado de forma
precária, inclusive com embarcações cedidas pela Marinha (NUNES, 2000).
Em 1967 o Governo Federal criou a STBG – Serviços de Transportes da
Baía de Guanabara, uma sociedade de economia mista com o monopólio do
transporte aquaviário entre o Rio de Janeiro e Niterói. A STBG passou ao controle
do governo estadual em 1971 que a nomeou CONERJ – Companhia de
Navegação do Estado do Rio de Janeiro em 1973.
Em 1998, por meio de licitação pública foi concedida a exploração da
concessão por 25 anos do transporte aquaviário de passageiros a um consórcio
de empresas privadas, cujo controlador era o Grupo JCA de empresas de ônibus,
sendo criada a empresa Barcas S. A. Transportes Marítimos. O contrato firmado
prevê a possibilidade de extensão da concessão por mais 25 anos com término
previsto para fevereiro de 2023. Com projeto da estação do arquiteto Oscar
Niemeyer, em 2004 foi criada a linha seletiva Rio – Charitas com embarcações
menores e mais velozes (PACIFICO, 2010).
Em julho de 2012, o Grupo CCR, empresa paulista detentora de diversas
concessões de rodovias, adquire o controle acionário da companhia que passa a
ser denominada CCR Barcas em atividade até a presente data. Segundo dados
da companhia, em julho de 2012 operava cinco linhas regulares: Rio-Niterói, Rio-
Paquetá, Rio-Ilha do Governador, Angra dos Reis-Ilha Grande e Ilha Grande-
Mangaratiba, além da seletiva Rio-Charitas. A frota se compõe de vinte
embarcações: seis catamarãs seletivos (227 passageiros); cinco catamarãs
969
sociais (1.300); nove barcas tradicionais (2.000) que transportaram em 2011 por
volta de 29 milhões de passageiros em 81 mil viagens15.
Contudo, a insatisfação dos usuários quanto ao serviço se manteve nos
moldes do Século XX, gerando ações ao longo dos anos de 2012 e 2013 contra o
aumento indiscriminado da tarifa e a precariedade das embarcações, a exemplo
da convocação para o “Pulaço”, objeto de Ação de Interdito Proibitório julgado
pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 31 de Julho de 2012,
onde a ineficiência da prestação do serviço é lembrada pela desembargadora
relatora ao reconhecer que O exercício pacífico do direito de manifestação é não apenas garantido constitucionalmente como deve ser incentivado como forma de exercício dos direitos inerentes à democracia, notadamente quando se voltam contra serviços públicos concedidos e que não vêm sendo prestados de forma a corresponder as expectativas da sociedade16.
Tal descontentamento foi recrudescido ao longo do período da “Copa das
Confederações” e da “Copa do Mundo”, levando à uma mobilização popular por
um maior número de embarcações, celeridade no serviço e redução do valor das
passagens, o que levou novamente a CCR Barcas a propor Ação de Interdito
Proibitório, que também foi julgada improcedente pelo Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro17.
15 Disponível em http://www.grupoccr.com.br/Media/PressRelease_conclusao_barcas_pdf, acesso
em 10 de abril de 2015.
16 Agravo de Instrumento nº 0013583-33.2012.8.19.0000, julgado pela 11ª Câmara Cível do TJ/RJ e teve como relatora a Des. Marilene Melo Alves. Disponível em http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw, acesso em 10 de abril de 2015.
17 “Apelação. Interdito proibitório. Manifestação convocada pela internet contra o aumento do preço da passagem das barcas. Demanda proposta pela prestadora de serviços sob a alegação de que o movimento possui grande potencial de risco à integridade de seus usuários, funcionários, instalações e embarcações. Não comprovação pela autora de que o réu seja organizador do movimento, tampouco que haja nexo causal entre qualquer conduta que ele tenha praticado e o potencial risco de danos narrado na inicial. Direito de manifestação constitucionalmente garantido. Movimento pacífico que não representa ameaça a qualquer direito da autora. Veja-se, que o exercício pacífico do direito de manifestação, garantido constitucionalmente, ao contrário do que pretende a recorrente, deve ser incentivado como prática inerente à democracia, notadamente quando se volta contra serviços públicos concedidos que não vêm sendo prestados de forma a corresponder as expectativas da sociedade. Agravo retido. Manutenção da decisão que rejeitou a impugnação ao valor da causa. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 557, CAPUT, DO CPC”. Relator: DES. CLAUDIO DELL ORTO - Julgamento: 31/03/2015 - Decima Oitava Câmara Cível. Disponível em http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw, acesso em 10 de abril de 2015.
970
Em Março de 2015, a CCR Barcas iniciou a operação de uma nova
embarcação vinda da China denominada “Pão de Açúcar” para a travessia Praça
XV – Araribóia que reduzirá o tempo do percurso dos atuais 22 minutos para 15.
A embarcação é parte de uma encomenda do governo estadual de um total de
nove e entre em operação cercada de polêmicas sobre o custo e sua
inadequação à estrutura física dos atracadouros de Niterói e da Praça XV no
Centro do Rio de Janeiro18.
Diante desse cenário, percebe-se a existência de uma permanente tensão
entre os exploradores do serviço de transporte aquaviário, os usuários e o Poder
Público na atual atividade de fiscalização da atividade desenvolvida.
3 A CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE DO USUÁRIO-CONSUMIDOR NOS
CONTRATOS DE TRANSPORTE DE MASSA
O fenômeno de massificação dos contratos, modelo prevalecente nas
sociedades de consumo, faz com que negócios jurídicos que se configurariam
como atos individuais de vontade sejam transmutados em declarações coletivas,
trazendo incidência de normas específicas para coibir abusos e proteção dos
considerados hipossuficientes. Dessa forma, os contratos de transporte de massa
subtraem de seus usuários o poder de autorregulamentação de seus interesses,
na medida em que se configuram como contratos de adesão, compostos por
cláusulas previamente estabelecidas, caracterizando-se contratos coativos ou
necessários, prejudicando a natureza paritária dos pactos. Assim, estabelece-se
uma desigualdade fática entre as partes negociantes (MARQUES, 2002:743). Assim, prejudicando a natureza paritária dos contratos, estabelece-se uma
desigualdade fática entre as partes negociantes, embora seja preservada a
autonomia da vontade negocial (MARQUES, 2002:743) e se cria um contexto de
vulnerabilidade19 ao consumidor aderente, obrigado a contratar um serviço
18 Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/03/pezao-inaugura-nova-barca-que-
fara-o-trajeto-niteroi-rio.html, acesso em 10 de abril de 2015. 19 Para Cláudia Lima Marques, a vulnerabilidade é um estado inerente de risco ou um “sinal de
confrontação excessiva de interesses identificado no mercado, é uma situação permanente ou
971
prestado por um único contratante ou ainda, na existência de diversos
contratantes prestadores do serviço, as condições contratuais são idênticas, o
que acaba por tolher a liberdade de escolha.
Esta vulnerabilidade se consolida também pela necessidade de construção
de uma relação de confiança do consumidor-passageiro no sistema de transporte
público como um “sistema perito20”, em um estado de permanente presunção de
boa-fé e idoneidade da prestação de serviços. Nas relações negociais confiar
pressupõe depositar crédito em uma prática ou comportamento a despeito de não
se dominar todas as etapas do processo negocial ou de produção. Há o confiar
quando se acredita em algo a despeito de não se ter todo o conjunto de
informações adequado para a tomada de determinadas decisões ou não ter
outros caminhos para a decisão.
Há a convicção de que a confiança está vinculada a resultados
contingentes, sejam relacionados à ação de indivíduos ou à operação de
determinados sistemas, estabelecendo-se que “toda confiança é num certo
sentido confiança cega”, pois são depositadas uma série de expectativas e
presunções em relação ao outro. O sujeito se condiciona a acreditar em
mecanismos e engrenagens de um sistema abstrato viabilizadores da vida social
moderna, em um “distanciamento tempo-espaço” e das grandes áreas de
segurança da vida cotidiana (GIDDENS 1991:44, 153).
Migrou-se da crença no outro para uma segurança ontológica21 em
condições de modernidade que se constitui através de rotinas preestabelecidas
com a finalidade propiciarem conforto e confiança. Para ARAÚJO, essa confiança provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação. [...] É a noção instrumental que guia e ilumina a aplicação destas normas protetivas e reequilibradoras, à procura do fundamento da igualdade e da justiça equitativa”. A autora aponta ainda para a proteção aos hipervulneráveis, entendida como uma “presunção funcional” em favor daqueles aqueles que, para além da condição técnica ou jurídica de vulnerabilidade ainda possuem algum elemento que os fragiliza, tais como as crianças, idosos ou enfermos mentais, estabelecida como uma situação social fática e objetiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora (2014:318, 321-324).
20 Compreendidos como “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. [...] mas os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos influenciam muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua”, pois há uma confiança estabelecida sobre o funcionamento desses sistemas (GIDDENS, 1991:38).
21 Como segurança ontológica pode se identificar a confiança básica constituída em circunstâncias estáveis de autoidentidade e ambiente circundante (GIDDENS, 1991:127).
972
é hoje a “mola impulsora” da vontade contratual e fundada sobre uma expectativa
de contratos que se aperfeiçoem e sejam eficientes (2008, p. 118).
Além dos aspectos gerais que conduzem à vulnerabilidade do consumidor-
passageiro, no caso específico do transporte público no Rio de Janeiro, cabe
destacar a assimetria da linguagem utilizada na redação das normas regulatórias
e dos relatórios divulgados pelas agências reguladoras – no caso a AGETRANSP
- pois há uma elevada carga de tecnicidade que prejudica a sua compreensão
pelo consumidor comum (2013:49). Essa dificuldade de acesso à informação e
compreensão das normas e procedimentos das agências pode ser exemplificada
pela busca do Regimento Interno da AGETRANSP na internet22. Após identificar o
“link” para o acesso ao documento em questão, o consumidor-usuário se depara
com uma cópia digitalizada do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro,
cabendo-lhe decifrar a localização do texto pretendido e ainda, compreender suas
expressões dotadas de tecnicidade, o que viola a transparência e a informação
adequada pertinentes à relação do Consumidor.
O Instituto Defesa do Consumidor – IDEC propõe uma integração entre as
agências e o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, de modo que possam
ser desenvolvidas políticas de prevenção às práticas nefastas às relações
contratuais firmadas e que garantam o exercício adequado das relações de
consumo (IDEC, 2013, p. 43), partindo-se da concepção de que na perspectiva
destas relações, pessoa digna não é apenas a que possui liberdade, mas que é
dotada de igualdade sob o ponto de vista formal e material, o que somente se
alcança a partir da real positivação dos direitos humanos, “com o reconhecimento
das desigualdades estruturais existentes e, a par disso, no desenvolvimento de
uma proteção específica para os vulneráveis, seja do ponto de vista técnico,
informacional, jurídico ou fático” (SCHWARTZ, 2014:16).
4 DA ESCUTA AO USUÁRIO-PASSAGEIRO E O DEVER DE INFORMAÇÃO ADEQUADA.
22 <http://www.agetransp.rj.gov.br/agetransp/index.php/agetransp/regimento-interno>, acesso em 28 de outubro de 2014.
973
A escuta às demandas dos usuários carecem de uma reformulação das
políticas de gestão do serviço, tanto na Ouvidoria quanto na própria relação dos
prestadores de serviço com os seus destinatários. A deficiência de canais
adequados de comunicação se reflete em todas as instâncias dos serviços, como
se pode depreender de relatos do acidente ocorrido em 27 de Novembro de 2014,
quando a embarcação “Vital Brasil” ficou à deriva por aproximadamente quarenta
minutos a partir das sete horas e quarenta e cinco minutos e os passageiros só
foram avisados das causas do problema às oito horas e vinte minutos, gerando
um estado de ansiedade e pânico23 que desencadeou várias ações judiciais24.
Reforçando essa desigualdade no caso do transporte na Baía de
Guanabara e diferentemente de sua competência estabelecida em seu Regimento
Interno, o papel da AGETRANSP25 tem se limitado a ações propositivas, com uma
verdadeira ausência de uma política regulatória que priorize os interesses dos
consumidores e traga uma efetiva prevenção dos conflitos potencialmente
existentes. As ouvidorias, tanto da agência reguladora quanto da CCR Barcas
limitam-se ao registro dos relatos dos consumidores-usuários, que na maior parte
das vezes continuam a se valerem do Poder Judiciário para a “solução” de
conflitos surgidos durante a prestação de serviços de transporte26.
23 Segundo relato do analista de sistemas Vinícius Andrade, 40 anos, os passageiros só foram
avisados da quebra do leme da embarcação mais de 30 minutos após o surgimento do problema e a mudança de rumo da embarcação. Disponível em http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,barca-fica-a-deriva-por-40-minutos-na-aia-de-guanabara,1598833, acesso em 10 de abril de 2015.
24 Neste sentido, cabe consulta a http://www4.tjrj.jus.br/ejud/consultaprocesso nas Apelações Cíveis nº 0177204-77.2010.8.19.000 e 0039042-68.2011.8.19.0001 e nos recursos às Turmas Recursais, a exemplo dos feitos de nº 0082705-67.2011.8.19.0001, 1002594-76.2011.8.19.0002, 0066250-27.2011.8.19.0001 e 0066140-96.2009.8.19.0001, dentre outros.
25RESOLUÇÃO AGETRANSP Nº 16 DE 07 DE JANEIRO DE 2014 - Regimento Interno da AGETRANSP, art. 2º, Parágrafo Único - Sem prejuízo do disposto no art. 4º da Lei nº 4.555, de 06 de junho de 2005, compete à AGETRANSP, no âmbito de suas atribuições e responsabilidades, observadas as disposições legais e pactuais pertinentes: I - Assegurar a prestação de serviços adequados, assim entendidos aqueles que satisfazem as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade nas suas tarifas zelando pelo fiel e rigoroso cumprimento das normas aplicáveis e dos contratos de concessão e termos de permissão dos serviços públicos; II- Garantir a harmonia entre os interesses dos usuários, concessionários e permissionários dos serviços públicos estaduais regulados, [...]XIII - Promover programas de educação e informação aos usuários dos serviços regulados.
26 Neste sentido, cite-se trecho do voto proferido pelo Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho na Apelação Cível nº 0039042-68.2011.8.19.001 da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferido em 21 de Março de 2014: “Com efeito, demonstrou
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No item I da Cláusula 4ª do Contrato de Concessão de Serviços Públicos
de Transporte Aquaviário de Passageiros, Cargas e Veículos no Estado do Rio de
Janeiro27 admite-se a renovação por mais 25 (vinte e cinco) anos do pacto
firmado desde que o serviço tenha sido prestado adequadamente, possibilitando o pleno atendimento dos usuários e satisfazendo as condições de eficiência, regularidade, continuidade, segurança, atualidade tecnológica, modicidade da tarifa, generalidade e cortesia na sua prestação, durante o prazo de duração do contrato.
A prestação adequada do serviço em relação à oitiva dos usuários fica
minudenciada na Cláusula 10, parágrafo 6º28, onde se que a concessionária
deverá “manter os registros das solicitações e reclamações dos usuários”,
fazendo constar as “providências adotadas para o atendimento e sua
comunicação ao interessado”.
Nesse sentido, não se pretende atribuir à CCR Barcas nem tampouco à
AGETRANSP um papel de núcleo de solução extrajudicial de conflitos ou de
instancias julgadoras, mas sim, de prestar um adequado atendimento ao
consumidor individual em suas demandas para que haja uma “identificação de
problemas sistêmicos”, funcionando inclusive como fonte para elaboração dos
atos regulatórios e o aprimoramento da prestação de serviços. Para além e
especialmente, as agências reguladoras devem aprimorar as atividades
fiscalizatórias e desenvolver uma conduta ativa na proteção ao consumidor, na
medida em que defender é “um ato ativo de efetiva proteção a um sujeito que foi
institucionalmente reconhecido como o elo mais fraco e, portanto, benemérito de
especial e necessária guarida” (SCHWARTZ, 2014, p. 22).
Contudo, a ineficácia dessa escuta salta aos olhos. Na investigação do
papel da agência reguladora da atividade de transporte público no Rio de Janeiro,
a Autora que é consumidora assídua dos serviços oferecidos pela Ré (fls. 22/24), que apresentou reclamação aos sérvios de atendimento ao cliente em relação aos fatos relatados na petição inicial – aí incluídos atrasos frequentes, superlotação, defeito apresentado em embarcação que deixou todos à deriva, entre outros – (fls. 20/21), bem como notícia veiculada na impresa acerca desses fatos, que por sua vez, diante da revelia da Ré, da ausência de produção de prova em sentido contrário (art. 333, II, CPC), e da verossimilhança dos argumentos autorais, devem ser presumidos como verdadeiro (art. 319, CPC)”. Disponível em http://www4.tjrj.jus.br/ejud/consultaprocesso. aspx?N=201300172020&CNJ=0039042-68.2011.8.19.0001.
27 Disponível em http://www.agetransp.rj.gov.br/agetransp/index.php/aquaviario/barcas-sa/89-contratos, acesso em 10 de abril de 2015.
28 Idem.
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em 29 de Maio de 2013 o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro emitiu
nota e parecer no sentido de que a situação encontrada na CCR Barcas
demonstra um acompanhamento precário do serviço de transporte, vez que em função da inexistência de parâmetros objetivos, índices e/ou indicadores, passa a atuar na maior parte do tempo por demandas decorrentes da baixa qualidade dos serviços (acidentes, reclamações) e não de maneira preventiva com base num exame empírico da qualidade dos serviços, o que seria possível pro meio da verificação sistemática do descompasso entre a atuação do concessionário e os parâmetros objetivos de qualidade estabelecidos para o serviço. Somente assim seria possível demonstrar o nexo causal entre a baixa qualidade do seriço e a atuação do concessionário, uma vez que a percepção do usuário acerca do serviço é algo subjetivo, servindo apenas como alerta de que a prestação de serviços não está satisfatória, mas não servindo, por si só, como prova jurídica para fins de aplicação de penalidades29 (grifou-se).
Importante destacar que no processo em questão, houve adoção de
medidas para sanar uma série irregularidades na atuação da agência reguladora
junto à CCR Barcas30, mas em relação ao acompanhamento do serviço
identificado no “Achado de auditoria nº 04” o TCE/RJ determinou que se
estabelecesse, no prazo de 120 dias, parâmetros objetivos de qualidade, índices e outros elementos que possam aferir a qualidade dos serviços de transporte aquaviário conforme o dispostos no inciso XV do artigo 4º da lei Estadual nº 4555/05 c/c inciso II do artigo 30 do Regimento Interno31 da AGETRANSP.
Tal determinação não resultou em nenhuma ação transformadora dos
modelos de escuta até então praticados, mantendo-se os canais de ouvidoria
apenas como um veículo de desabafo do consumidor insatisfeito, sem gerar
resultados práticos.
29 Achado de auditoria nº 04. “A AGETRANSP não dispõe de parâmetros objetivos, índices ou indicadores que permitam avaliar a qualidade dos serviços”. Processo administrativo nº 108.045-8/13, fls. 270, julgado pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro.
30 A titulo de exemplo, no Achado de Auditoria nº 01, identificou-se a “Baixa eficácia do acompanhamento das receitas operacionais (fls. 248/249v) e ainda, no Achado de Auditoria nº 03, verificou-se que a “A atuação da AGETRANSP não garante a atualidade tecnológica na prestação de serviços (fls. 250/252v), dentre outras irregularidades.
31 Art. 30 - Compete à Auditoria de Controle Interno: II - Analisar e avaliar a execução orçamentária quanto à conformidade, os limites e as destinações estabelecidas na legislação pertinente.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos contratos de massa há uma nítida comunhão entre o interesse público
e o interesse privado para que se efetive a proteção da pessoa humana, abrindo-
se espaço para uma superposição entre os espaços públicos e privados na
previsão normativa atual, no que LORENZETTI (1998:225). aponta como um
movimento de “privatização” do público, através da coexistência crescente entre o
Estado e iniciativa privada, bem como pela diminuição do ius imperium¸ seja pelos
limites impostos pela norma constitucional ou pela assunção do papel de
mediador entre interesses setoriais integrantes da sociedade, em uma
permanente revisão do que é o interesse público.
Esse interesse público deve ser a tônica da atividade das concessionárias
de serviço público e da atuação das agências reguladoras, o que, especialmente
no caso da exploração do transporte aquaviário na Baía de Guanabara, verifica-
se a insuficiência dos mecanismos de atenção e escuta ao consumidor-usuário. É
possível identificar nas ferramentas de escuta existentes um prejuízo à natureza
paritária dos contratos, reforçando-se uma desigualdade fática entre as partes
negociantes, embora seja preservada a autonomia da vontade negocial
(MARQUES, 2002:743) e criando um contexto cada vez maior de vulnerabilidade
ao consumidor aderente.
Assim, identifica-se a necessidade de canais de comunicação das
entidades sob análise com o destinatário final do serviço de maneira que se
estabeleça adequadamente um fluxo de informações e escuta que possibilite
questionamentos e respostas que realmente consagrem o exercício de
consciência cidadã de todos os atores envolvidos nesse processo com vistas a
garantir um convívio equitativo, autônomo e baseado no respeito mútuo.
REFERÊNCIAS
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