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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra / Setor de Educação Instituto de Educação Josué de Castro Seminário sobre o Ensino de Ciências da Natureza nas Escolas do Campo Veranópolis (IEJC), 10 a 12 de abril 2014. Sistematização dos Estudos e Debates 1 “Nós só conhecemos uma ciência, a ciência da história. A história pode ser vista por dois lados: ela pode ser dividida em história da natureza e história do homem [da sociedade]. Os dois lados, porém, não devem ser vistos como entidades independentes. Desde que o homem existe, a natureza e o homem se influenciam mutuamente”. Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã. “A terra só é para o homem mediante o trabalho, a agricultura”. Karl Marx, Manuscritos Econômico-filosóficos. “Nenhum cientista pensa com fórmulas. Antes que o cientista comece a calcular, deve ter em seu cérebro o desenvolvimento de seus raciocínios. Estes últimos, na maioria dos casos, podem ser expostos com palavras simples. Os cálculos e as fórmulas constituem o passo seguinte”. Albert Einstein. Introdução Este Seminário se insere em um objetivo geral que tem orientado outras atividades do setor de educação do MST e do IEJC, que é o de construir uma orientação coletiva sobre a organização do plano de estudos das escolas das áreas de Reforma Agrária, considerando a análise do período atual, as práticas em andamento, a concepção de educação e a matriz formativa assumidas. Foram objetivos específicos deste Seminário os seguintes: - firmar compreensão de elementos básicos do debate de concepção sobre a Reforma Agrária Popular e suas exigências formativas; - socializar e discutir sobre o que está sendo estudado de Ciências da Natureza (incluída a Matemática) em nossas escolas e quais os parâmetros utilizados atualmente para seleção dos conteúdos; - apropriar-se de alguns pressupostos teóricos e conhecimentos históricos para firmar bases de concepção de ciência e de natureza que orientem o plano de estudos das escolas e a atuação político-pedagógica dos educadores; - formular proposições para o ensino de Ciências da Natureza na perspectiva de um projeto educativo emancipatório e considerando os desafios do período atual; - planejar atividades locais ou estaduais em relação às discussões do seminário. 1 Integraram a equipe de elaboração deste Documento: Adalberto Martins, Diana Daros, Márcio Rolo, Paulo Ricardo Cerioli e Roseli Salete Caldart.

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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra / Setor de Educao

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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra / Setor de Educao

Instituto de Educao Josu de Castro

Seminrio sobre o Ensino de Cincias da Natureza nas Escolas do CampoVeranpolis (IEJC), 10 a 12 de abril 2014.Sistematizao dos Estudos e Debates

Ns s conhecemos uma cincia, a cincia da histria. A histria pode ser vista por dois lados: ela pode ser dividida em histria da natureza e histria do homem [da sociedade]. Os dois lados, porm, no devem ser vistos como entidades independentes. Desde que o homem existe, a natureza e o homem se influenciam mutuamente. Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alem.

A terra s para o homem mediante o trabalho, a agricultura. Karl Marx, Manuscritos Econmico-filosficos.

Nenhum cientista pensa com frmulas. Antes que o cientista comece a calcular, deve ter em seu crebro o desenvolvimento de seus raciocnios. Estes ltimos, na maioria dos casos, podem ser expostos com palavras simples. Os clculos e as frmulas constituem o passo seguinte. Albert Einstein.

Introduo

Este Seminrio se insere em um objetivo geral que tem orientado outras atividades do setor de educao do MST e do IEJC, que o de construir uma orientao coletiva sobre a organizao do plano de estudos das escolas das reas de Reforma Agrria, considerando a anlise do perodo atual, as prticas em andamento, a concepo de educao e a matriz formativa assumidas.

Foram objetivos especficos deste Seminrio os seguintes: - firmar compreenso de elementos bsicos do debate de concepo sobre a Reforma Agrria Popular e suas exigncias formativas; - socializar e discutir sobre o que est sendo estudado de Cincias da Natureza (includa a Matemtica) em nossas escolas e quais os parmetros utilizados atualmente para seleo dos contedos; - apropriar-se de alguns pressupostos tericos e conhecimentos histricos para firmar bases de concepo de cincia e de natureza que orientem o plano de estudos das escolas e a atuao poltico-pedaggica dos educadores; - formular proposies para o ensino de Cincias da Natureza na perspectiva de um projeto educativo emancipatrio e considerando os desafios do perodo atual; - planejar atividades locais ou estaduais em relao s discusses do seminrio.

Participaram do Seminrio professores de Cincias e Matemtica do ensino fundamental e de Biologia, Qumica, Fsica e Matemtica do ensino mdio de escolas de assentamentos e acampamentos da regio sul, de escolas convidadas de outros estados e de centros de formao com cursos na rea da produo com foco na agroecologia; coordenadores pedaggicos, assessores orgnicos de algumas escolas; alguns especialistas da rea de cincias que tm acompanhado o trabalho do setor de educao, dentre eles integrantes da equipe de educadores de cursos de Licenciatura em Educao do Campo; educadores do IEJC; coordenao do setor de educao; convidados de instituies educacionais parceiras. O Seminrio contou tambm com a participao da turma nacional de Licenciatura em Histria, parceria entre o Instituto Tcnico de Capacitao e Pesquisa da Reforma Agrria, Iterra e Universidade Federal Fronteira Sul, UFFS, que estava realizando seu segundo Tempo Escola no IEJC, nesse perodo. Foram ao todo 122 participantes, envolvendo entre educadores, assessores, especialistas da rea, pessoas de 12 estados e de 37 instituies educacionais, entre as quais 28 escolas de educao bsica das reas de Reforma Agrria.

Iniciamos os trabalhos s 8h30 do dia 10 de abril, com um momento de mstica organizado pelo IEJC, seguida de uma breve apresentao dos participantes, dos objetivos e da programao do Seminrio, alm das combinaes necessrias para organizao coletiva do trabalho do grupo de participantes neste perodo. Nessa primeira manh tivemos uma mesa que trouxe elementos do percurso de prticas e debates onde esse Seminrio se insere, atravs de uma exposio feita por Roseli Salete Caldart, MST/IEJC e na sequncia trouxe reflexes em torno da Reforma Agrria Popular, especialmente sobre os desafios formativos do confronto de lgicas de agricultura, o lugar das cincias da natureza na educao dos camponeses e o papel da escola. Essa exposio foi feita por Adalberto Martins, MST/RS. Seguiu-se um momento de debate em plenria.

No dia 10 de abril tarde foram organizados quatro mini-seminrios entre educadores de diferentes escolas e estados para socializao sobre como se desenvolve hoje o ensino das cincias da natureza nas escolas presentes, qual a base de referncia para seleo de contedos, discusses que h na escola sobre esta rea na relao com o conjunto do trabalho educativo, experincias especficas desenvolvidas nas diferentes disciplinas. Um desafio posto aos grupos reunidos foi o de identificar prticas a serem potencializadas, dificuldades encontradas, questes a considerar em atividades de formao de educadores. No final da tarde, em plenria, cada mini-seminrio, atravs de seus relatores, fez a socializao de destaques das discusses e ou de prticas apresentadas em cada grupo.

noite aconteceu uma atividade de lanamento do livro Escola em Movimento: Instituto de Educao Josu de Castro, editora Expresso Popular, com todos os participantes do Seminrio, educadores e convidados do IEJC que se reuniram no salo de atos da escola. A atividade foi preparada e coordenada pela coletividade do IEJC e uma apresentao do livro foi feita por Miguel Enrique Stedile, IEJC, um dos membros da equipe responsvel pela sua produo.

No dia 11 de abril de manh aconteceu a mesa sobre a construo histrica da concepo de cincia, de natureza e de relao ser humano e natureza que hegemoniza a matriz de orientao dos currculos escolares e algumas referncias para pensar uma educao cientfica emancipatria. A exposio foi feita por Mrcio Rolo, EPSJV e teve como debatedor Matheus Mohr, UFFS. Logo aps houve um dilogo em plenria buscando esclarecer os raciocnios desenvolvidos e relacionar os aportes tericos com as discusses anteriores.

Na primeira parte da tarde foi realizada uma mesa sobre a construo do plano de estudos das cincias da natureza nas escolas de educao bsica que est acontecendo a propsito do experimento com os complexos de estudo nas Escolas Itinerantes do MST PR. A exposio foi feita por Marlene Sapelli, Unicentro, que integra a equipe de coordenao pedaggica do experimento.

Na segunda parte da tarde os participantes do Seminrio se reuniram em quatro Grupos de Trabalho, compostos pela atuao no ensino fundamental e no ensino mdio, para anlise da elaborao apresentada considerando os debates anteriores do Seminrio e as discusses sobre contedos e objetivos dessa rea nas escolas presentes. Tambm houve um momento para formulao de proposies em vista de iniciar a construo de uma orientao comum ao ensino das cincias da natureza nas escolas vinculadas ao MST, buscando-se fazer relaes com os aportes das mesas 1 e 2.

Na noite de 11 de abril aconteceram duas atividades simultneas: uma atividade de projeo ou planejamento de aes por estado, em relao aos debates e objetivos desse seminrio; uma reunio entre os responsveis pela coordenao e sistematizao dos debates em cada grupo de trabalho para preparao da mesa do dia seguinte.

No dia 12 de abril pela manh, realizamos uma mesa de sntese das discusses do Seminrio com apresentao do produto dos grupos de trabalho; proposies e desafios de continuidade da elaborao e do debate sobre os planos de estudo das escolas das reas de Reforma Agrria. Foram expositores nessa mesa os responsveis pela sistematizao das discusses em cada grupo de trabalho e Paulo Cerioli, osfs, IEJC, pela coordenao do Seminrio. Seguiu-se um debate em plenria.

Foi realizada em plenria uma avaliao do Seminrio em que se destacou a importncia dessa iniciativa e o desafio de continuar discutindo com os professores qual mesmo o objeto da rea de Cincias da Natureza luz das exigncias formativas da Reforma Agrria Popular. Tambm se afirmou a necessidade de maior participao dos professores dessa rea no conjunto de atividades formativas do Movimento.

Logo aps os participantes assistiram um filme/documentrio apresentado por Mrcio Rolo, EPSJV, Uma primavera na memria, de Ariane Mondo, sobre o tratamento de sade desenvolvido e ministrado por Cuba para os atingidos pelo desastre na usina nuclear de Tchernobyl (URSS, 1986). Foram 23 minutos que tocaram na sensibilidade de todos, integrando o ato de encerramento do Seminrio.

A coordenao das mesas foi feita pelas seguintes duplas, na ordem da programao: Diana Daros, RS, Geronimo Pereira da Silva, RS, Marizete Carvalho da Silva, PR, Edgar Jorge Kolling, RS, Elizabete Witcel, RS e Alessandro Mariano, PR. Integraram a equipe de sistematizao dos mini-seminrios e grupos de trabalho: Jos Maria Tardin, PR, Glucia Moreno, PA, Marlene Sapelli, PR, Amintas Lopes da Silva Junior, PA, Robison Risso, SC, Paula Cerrutti, PR, Paulo Roberto, CE e Camila Munarini, SC. A coordenao dos mini-seminrios e grupos de trabalho contou com os seguintes participantes: Maria, Izabel Grein, PR, Dilceu Plens da Luz, Rejane de Arraujo, SE, Valter Leite, PR, Rita Piovesan, RS, Elodir de Souza, SC, Solange Onay, PR e Valdinar dos Santos, ES.Na sequncia deste documento apresentamos por tpicos a sistematizao das principais ideias estudadas, discutidas e formuladas nos diferentes momentos e atividades que constituram o processo desse Seminrio.Percurso onde esse Seminrio se insere

O objetivo desta exposio inicial situar a realizao do Seminrio: em que prticas e discusses ele se insere, qual seu objeto, o que mesmo pretendemos, porque faz-lo nesse momento, qual o sentido de pensar/discutir a relao entre Reforma Agrria Popular e Ensino de Cincias da Natureza (que para ns inclui a Matemtica).

Nosso objeto a escola de educao bsica e nela o ensino, particularmente o ensino da rea das chamadas Cincias da Natureza. Pretendemos chegar formulao de algumas proposies para o ensino dessa rea na perspectiva do projeto educativo mais amplo que temos construdo nesses 30 anos de MST, em dilogo com inmeras prticas e teoria de educao dos trabalhadores do mundo, do campo e da cidade. Essas proposies, se nossas discusses nos levarem a isso, seriam ideias, orientaes que poderiam ajudar a continuar o debate em cada escola: parmetros para analisar o que tem sido estudado/ensinado nessa rea, porque e para que, de modo a verificarmos necessidades e possibilidades de mudanas.

Por conta desse objetivo que no fomos direto ao debate sobre o que e como ensinar. Porque embora o que fazemos em cada escola seja nosso ponto de partida e nosso objetivo, precisamos nos entender sobre os fundamentos da coisa. Como diz um cantor e compositor de samba de raiz: se a gente no conhece os fundamentos da coisa, no tem como aprofundar nada; no tem como continuar, recriar... ficamos s do dedo pra fora... Sem ter um plano discutido mais coletivamente, sem entender porque fazer de um jeito ou outro, sem ter compreendido os objetivos e os fundamentos, nossa discusso e nosso fazer correm o srio risco de ficar s do dedo pra fora...Para ns os fundamentos da coisa se referem a pelo menos dois grandes pilares: uma compreenso rigorosa (cientfica) da realidade atual, que no Seminrio estudamos desde o foco da Reforma Agrria Popular e suas relaes (sntese que trabalharemos no prximo tpico), e uma concepo de educao, entendida como construo histrica, que inclui concepo de sociedade, de escola, e que viso de mundo e teoria do conhecimento.

No gostaramos que este Seminrio fosse entendido como um evento, uma atividade isolada e que se encerre em si mesmo. Temos afirmado em nossos debates (este o stimo seminrio realizado aqui no IEJC com escolas de Reforma Agrria), que para os objetivos formativos que temos, no tem sentido discutir o ensino em si mesmo e ainda menos sentido isolar a discusso em apenas uma das reas do currculo. Esse Seminrio faz esta focalizao, mas considerando a constituio da parte dentro de uma totalidade maior, que precisamos puxar o tempo todo em nossas discusses, formulaes.

A viso de totalidade nos traz uma facilidade: entendemos melhor o que fazemos quando conseguimos perceber as relaes com outras coisas. Mas nos traz tambm uma dificuldade: parece que nunca d tempo para o enfrentamento especfico de cada parte e a discusso geral no resolve de modo automtico as questes de cada parte: ter apropriao da concepo de educao, por exemplo, fundamental, mas ainda no nos diz como deve ser nossa aula de Biologia amanh de manh. Ao mesmo tempo em que sem ter clara essa concepo, sem ter um projeto educativo que nos oriente, nossas aulas, de qualquer disciplina ou rea, podem ficar s do dedo pra fora. Ou seja, esse movimento de compreenso e de formulaes no pode ser perdido, em nossa formao, em nossa atuao como educadores. Por isso decidimos assumir o foco especfico deste Seminrio, mas com o desafio de sempre ter o todo diante dos nossos olhos, de nosso pensamento.

E por que tratar especificamente dessa rea das Cincias da Natureza? J fizemos debates semelhantes sobre a rea de Linguagens (seminrio em julho de 2013), priorizando as Artes, a propsito dos estudos realizados em um curso de Especializao em Linguagens (parceria entre a Escola Nacional Florestan Fernandes, ENFF e a Universidade de Braslia, UnB, e a rea de Cincias Humanas e Sociais foi discutida em um curso de Especializao respectivo (parceria entre o Iterra e a Universidade Federal de Santa Catarina, Ufsc, concludo em 2011). A rea de Cincias da Natureza comeou a ser objeto de nossa ateno mais coletiva a propsito da primeira turma de Licenciatura em Educao do Campo que realizamos aqui no IEJC (parceria Iterra/UnB, tambm concludo em 2011). Os debates desse curso nos permitiram iniciar uma autocrtica enquanto MST: temos dado pouca ateno coletiva a essa rea; precisamos ouvir, dialogar com os professores de nossas escolas, saber o que esto ensinando, o que esto discutindo, quais as questes que trazem s discusses sobre a escola.

importante destacar que o debate da Reforma Agrria Popular, no seu foco central do confronto de lgicas de agricultura, que traz muito forte a discusso sobre o modo de relao do ser humano com a natureza, hoje nos permite formular novas questes que possivelmente facilitem a discusso com os educadores da rea de Cincias da Natureza. , pois, nesse processo mais amplo de luta e construo que esse Seminrio se insere.

Neste desafio de ter o todo diante dos olhos destacamos em sntese alguns pilares fundamentais da nossa concepo de educao, que nos tm orientado a trilhar os caminhos da transformao da escola, a nosso ver necessria para que contedos de ensino, de todas as reas, possam ser ou se vincular a conhecimentos vivos, que faam sentido na vida dos estudantes e de suas famlias, como tambm dos prprios educadores. Essa uma construo em que estamos envolvidos h 30 anos.

Um primeiro pilar o nosso pressuposto: queremos transformar radicalmente a sociedade (instaurar a hegemonia de outro modo de produo). No aceitamos que no haja alternativas ao capitalismo e sua lgica bsica de relaes de explorao: entre seres humanos, classes sociais, da natureza. Na produo, na educao, na produo da cincia, na escola.

Um segundo pilar o objetivo pelo qual trabalhamos: para haver alternativas preciso cri-las; preciso formar seres humanos cada vez mais plenos, que sejam lutadores e construtores de um outro modo de produo da vida.

Um terceiro pilar de compreenso: a formao do ser humano, a formao de lutadores e construtores vai muito alm da escola. Formao humana mais do que educao; educao mais do que escola. Mas a escola, como lugar de educao, precisa ser convocada a ajudar nessa formao de lutadores e construtores. Entretanto, a escola somente dar conta dessa tarefa de ajudar a construir novas relaes sociais, se ela mesma for transformada: em seus contedos e em sua forma, fundamentalmente nas relaes sociais, nos tempos e espaos que a constituem, ou que constituem o modo capitalista de fazer escola que precisa ser superado. Porque essa forma de escola (que a que mais conhecemos, porque hegemnica), foi montada para ajudar a reproduzir a lgica da sociedade capitalista: no caso dos filhos de trabalhadores, prepar-los para que se tornem objetos de explorao da mais-valia. De um jeito mais tosco e explcito ou mais sofisticado e sutil, todos precisam entrar nas relaes de explorao e convictos de que no existem alternativas. E apenas com a apropriao de conhecimentos que seja instrumental a esse lugar subordinado nas relaes sociais.

E um quarto pilar, desdobrado dos anteriores, o que identifica os aspectos fundamentais (que sustentam a nova construo) da mudana de forma escolar pretendida. Um primeiro aspecto diz respeito ao lugar dos estudantes na escola: de alunos subordinados e passivos (ou somente mal comportados) a sujeitos ativos, coletivamente organizados para participar junto com seus educadores da conduo da escola, do seu processo educativo. Essa mudana implica em alteraes profundas nas relaes hierrquicas e autoritrias que compem a lgica escolar predominante. E estamos falando de participao direta e de auto-organizao dos estudantes e no de falsos ensaios de democracia representativa muitas vezes apresentada como verdadeira mudana.

Um segundo aspecto da mudana da forma escolar se refere relao da escola com o trabalho, que o modo de fazer o vnculo com a vida, nas suas vrias dimenses, sua complexidade e, principalmente, as contradies que a movem. O trabalho a prpria vida humana na sua relao com a natureza, na construo do mundo e de si mesma. Trabalho que produz cultura e produz tambm a classe trabalhadora capaz de se organizar e lutar pelo seu direito ao trabalho e pela superao das condies de alienao que historicamente o caracterizam, participando assim do movimento da histria. Em nossa concepo, vida trabalho, no sentido genrico de atividade humana criativa, que inclui como atividades humanas especficas ou como matrizes formadoras fundamentais: o trabalho, em seu sentido estrito, de produo das condies materiais da existncia da vida humana, a luta social, a organizao coletiva, a cultura e a histria, materializadas em determinado perodo histrico e suas contradies.

A forma escolar capitalista supe a relao com o trabalho explorado, no sentido de assumir a tarefa de preparar mo-de-obra ou o chamado exrcito industrial de reserva. Alterar essa forma escolar implica em derrubar as cercas (ou os muros) que separam a escola da vida real, com as contradies que devem ser examinadas pelos estudantes: entender como funciona o trabalho assalariado, a extrao de mais-valia, entender que sim pode haver outras formas de trabalho, e que o trabalho tem um sentido muito mais amplo e vai muito mais alm da forma histrica que assume na sociedade capitalista.

Um terceiro aspecto, que na verdade implicao do aspecto anterior, se refere concepo de conhecimento a ser assumida pela escola. Na concepo de conhecimento que nos orienta, que a do materialismo histrico-dialtico, a relao entre teoria e prtica inerente ao ato de conhecer. E no tem como se apropriar verdadeiramente dos contedos das cincias e das artes sem essa relao. O ensino de contedos, em si mesmos, no conhecimento, que precisa da referncia dos fenmenos reais que so seu objeto. Mas no se trata de separar mecanicamente: um momento para ensinar contedos e outro para tratar da realidade, como s vezes se faz nas escolas. O desafio de construir um mtodo pedaggico que vincule os contedos compreenso dos fenmenos da realidade, que ajude os estudantes a entender como se produzem e como se transformam, como acontecem as relaes entre ser humano e natureza. No processo educativo no podemos perder nem a prtica nem o conhecimento terico.

Voltando ao foco especfico desse Seminrio, e seu lugar nesse todo, importante frisar uma atitude que precisamos ter durante as discusses desses dias e perante nossa prtica sempre: desnaturalizar a realidade em que vivemos, trabalhamos. Para isso, retomar aquela pergunta simples que costuma mover o ser humano desde que comea a falar: por que isso assim? Por que ensinamos o que ensinamos? Por que foram esses contedos os escolhidos e no outros? Por que nossa escola do jeito que ? Por que discutir sobre Reforma Agrria Popular pode nos ajudar a pensar sobre o que ensinamos em Cincias da Natureza na escola?

A partir da podemos seguir na formulao de outras questes: que compreenso (concepo) de cincia e de natureza estamos ensinando aos nossos estudantes; que concepo de conhecimento est na base dos contedos que temos trabalhado em aula. E se compartilhamos dos pilares de concepo antes expostos, podemos tambm nos perguntar sobre qual pode ser a contribuio dessa rea especfica para compreender e analisar os fenmenos da natureza, como eles se relacionam com os fenmenos sociais, a dimenso histrica que permeia todo processo de construo do conhecimento, de modo a ajudar na formao de seres humanos mais plenos, lutadores e construtores. E sobre como desde o ensino das Cincias da Natureza podemos ajudar a derrubar as cercas que separam a escola da vida que ali deveria ser estudada. E ainda mais, como as Cincias da Natureza podem ajudar na formao de uma viso materialista, histrica e dialtica de mundo em nossos estudantes e qual a parcela de contribuio dessa rea no aprendizado do conhecimento cientfico da realidade ou de como o enfrentamento das questes da vida cotidiana podem receber um tratamento cientfico que no ignore seus fundamentos.

Finalmente, fiquemos com a questo geral do Seminrio, cuja resposta ser uma construo para alm dele: que orientaes ou parmetros de atuao nessa rea podemos formular coletivamente, entre educadores e organizaes de trabalhadores (no nosso caso aqui, o MST), de modo que nos ajudem a pensar e agir em cada escola, partindo de onde estamos.

O projeto de Reforma Agrria Popular e as Cincias da Natureza

A Reforma Agrria Popular um programa de luta que tem em sua base uma anlise coletivamente construda sobre a realidade atual, especialmente para compreenso do bloqueio que sofrem hoje as polticas, mesmo parciais, de reforma agrria em nosso pas, na relao com o desenvolvimento e crise do capitalismo no mundo.

Para entender nosso projeto de Reforma Agrria Popular preciso retomar a natureza da Reforma Agrria Clssica / Burguesa, que aconteceu no perodo que vai de 1850 a 1960.

Este tipo de reforma se prope a democratizar a propriedade da terra, como um bem da natureza, como um direito republicano, que no mexe nos fundamentos do direito burgus, na lgica da propriedade privada. O objetivo econmico desta reforma o desenvolvimento do mercado interno para a indstria, dotando o campons de renda numa sociedade massivamente rural. Note-se que foi somente em 2010 que a populao mundial urbana (52%) passou a ser maior do que a rural 48%. Esta reforma tambm representa a consolidao de uma aliana poltica entre burguesia industrial e camponeses, contra os grandes proprietrios rurais, produzindo condies polticas para a distribuio de terras. O Estado burgus quem controla o processo de distribuio de terras, as leis que a regulam. Historicamente, nos locais em que o processo se deu pelas mos dos trabalhadores, o Estado interveio para garantir ou para reverter o processo. Estas foram reformas amplas, atingindo todo o territrio e rpidas, feitas em no mximo cinco anos.

No Brasil no houve Reforma Agrria clssica, mas tivemos algumas oportunidades histricas perdidas para faz-la. Uma delas se deu com o fim da escravido, na passagem do capitalismo mercantil para o industrial, mas como no houve um processo revolucionrio dos negros contra os brancos tambm no houve um processo de distribuio de terras, como se deu no Haiti (1804), ou nos Estados Unidos (1862). No Brasil libertamos o trabalho e escravizamos a propriedade da terra (Jos de Souza Martins).

A partir da Revoluo de 1930 houve a consolidao da burguesia industrial como condutora do Estado, mas que no tinha interesse em realizar a reforma agrria, j que a oligarquia cafeeira se transmutou em burguesia industrial, j que a origem do capital industrial ou vinha do lucro da monocultura ou do capital estrangeiro, ou seja, no havia propriamente uma burguesia industrial nacional. Era de se atentar tambm que a oligarquia rural tinha uma funcionalidade para a indstria, j que este capital alimentava a indstria e que era mais importante garantir um exrcito industrial de reserva do que ampliar o mercado interno, posto que o trabalhador do campo se torna operrio.

Outra oportunidade histrica de fazer a Reforma Agrria aconteceu na dcada de 1960, em que o prprio Estado props este processo, atravs de um programa agrrio elaborado por Celso Furtado, mas a nossa burguesia industrial no aceitou esta via e se aliou aos Estados Unidos, com a promessa de abrir mais o pas para o capital estrangeiro. A ditadura militar foi expresso deste processo. E a ltima chance que perdemos foi na dcada de 1980, com nova crise do capital, com um plano do governo de assentar 1 milho e quatrocentas mil famlias em quatro anos, mas que foi rapidamente abortado.

No entanto, nestes dois ltimos perodos (1945-64 e 1984-90) avolumaram-se as lutas camponesas, que de certa forma foram toleradas pela burguesia, j que se tratava do modelo clssico de reforma agrria, sofrendo represso da oligarquia rural. Foram desenvolvidas neste mesmo perodo, fruto destas lutas, grandes polticas de colonizao de terras pblicas ou de assentamentos. Um grande exemplo disso foi a colonizao da Amaznia na dcada de 1970, em plena ditadura militar. No entanto estas aes no podem ser consideradas como Reforma Agrria, inclusive quando se trata de assentamentos, j que a concentrao de terras pode ser ainda mais exacerbada, porque o governo paga ao latifundirio um montante considervel de dinheiro que ser reinvestido em terras.

Agora o capitalismo se encontra em outra fase, no mais hegemonizado pelo capital industrial, mas pelo capital financeiro, integrado num mercado mundial, globalizado, com empresas transnacionais para as quais o desenvolvimento interno do pas no interessa, a concentrao de capitais no se d na fbrica, mas nos juros obtidos no mercado financeiro, nos lucros obtidos pelas dvidas pblicas.

O modelo do agronegcio vem nesta esteira de transfigurao do capital em que o olhar da burguesia sobre o campo se modifica, abandonando o interesse pela Reforma Agrria Clssica. Passam a ser caractersticas deste modelo: - a manuteno da grande propriedade privada, pensando na escala de produo; - monocultura para obteno de uma taxa de lucro mxima; - uso intensivo de agrotxicos e da mecanizao; - sementes transgnicas combinadas ao uso de venenos, transformando a semente em propriedade privada (Lei de patentes 1995/2003); - nova aliana de classe, entre os latifundirios, as empresas transnacionais, o capital financeiro e a mdia burguesa, ampliando-se o leque de inimigos da classe trabalhadora.

Neste sentido que a Reforma Agrria Clssica foi superada, pois ela no mais necessria ao desenvolvimento do capitalismo mundial.

A Reforma Agrria Popular como forma de contraposio ao projeto burgus para o campo composto por diversos elementos que implicam em uma mudana de paradigma:

Democratizao da terra e tambm dos bens da natureza (gua, minrios, subsolo, recursos naturais). A Reforma Agrria ento no a diviso dos lotes entre as pessoas, mas est em pauta a discusso da funo social da terra, que deve estar a servio de toda a sociedade. Portanto, no se trata mais apenas de democratizar a propriedade privada da terra.

Aliana de classe que vai permitir a realizao da Reforma Agrria: no podemos mais contar com o apoio da burguesia industrial, mas o campons no tem fora sozinho para realiz-la e por isso, precisar contar com uma aliana com os trabalhadores da cidade, ou melhor, a Reforma Agrria ser construda pelo povo contra os inimigos identificados com o Agronegcio.

Mudana da matriz produtiva, dentro de uma unidade de produo, que tem sido chamada de agroecologia, em um conceito ampliado que implica no que plantar, em como plantar, nas relaes de trabalho estabelecidas para isso, numa ampliao da conscincia de classe e outros aspectos que diferenciaro esta produo do projeto capitalista de desenvolvimento do campo. No estamos comeando agora essa construo: j h acmulo cientfico-popular suficiente a nos indicar que estamos no caminho certo.

Prioridade produo de alimentos saudveis para toda a sociedade, sendo essa a funo principal da agricultura. Na ideologia camponesa tradicional a produo de alimentos para a subsistncia, mas nesta perspectiva popular mais ampla, a produo de alimentos para o povo, o campons como conscincia de classe proletria.

Soberania sobre as sementes, que so o elemento central em qualquer modelo produtivo, recuperando o controle sobre a produo, inclusive em relao criao de animais.

Controle das agroindstrias atravs de cooperativas, lidando com as contradies do capital produzidas por este processo. Permitindo maior diviso do trabalho, incorporao da juventude, eleva a conscincia e agrega valor de trabalho.

Mecanizao agrcola adequada, no pensando do ponto de vista da agricultura capitalista, mas que facilite a vida do trabalhador do campo, ou seja, mquinas que facilitem o trabalho dirio do agricultor, aumentem sua produtividade e permitam a ele maior tempo livre para desenvolver outras atividades.

Reflorestamento para regenerao das florestas, como fundamental para viabilizar inclusive a agroecologia e ampliar a biodiversidade.

Democratizao do conhecimento, atravs da escola ou de outras formas ou atividades formativas.

Alterao das relaes sociais no campo, no somente na produo, mas nas relaes dentro da famlia, na comunidade, nos princpios e valores que atravessam as diversas prticas sociais.

Uma anlise mais detalhada sobre o processo de desenvolvimento do capitalismo no campo e uma sntese sobre os fundamentos e as propostas do programa de Reforma Agrria Popular do MST podem ser encontradas no Programa Agrrio do MST, editado a propsito da realizao do VI Congresso Nacional do MST em fevereiro de 2014, a partir de um processo de construo iniciado em 2011, mas j sinalizado desde 2007. Recomendamos que o texto desse Programa seja objeto de estudo e discusso em todas as nossas escolas, por todos os nossos educadores, at para que as reflexes feitas nesse Seminrio possam ser compreendidas com mais profundidade.

Uma das centralidades do projeto de Reforma Agrria Popular, e que guarda especial relao com o objeto deste Seminrio, o confronto de lgicas de desenvolvimento da agricultura, vinculado exatamente luta histrica dos trabalhadores pela desconcentrao da propriedade da terra. A exposio que deu origem sntese apresentada a seguir chamou nossa ateno para o lugar das Cincias da Natureza no debate atual sobre Reforma Agrria e visa provocar discusses sobre como a escola de educao bsica pode se relacionar com essas questes, particularmente no ensino especfico das disciplinas que compem essa rea.

Atualmente h o confronto de duas lgicas ou modos de organizar a produo no campo, que fazem a disputa do modelo de desenvolvimento na e da agricultura. H a lgica da agricultura convencional, atualmente hegemnica, e a lgica da produo agrcola agroecolgica ou a lgica da agroecologia. Vejamos cada uma delas:

Lgica da agricultura convencional capitalista

Por estarmos sob o domnio das relaes do capital, o funcionamento da economia visa a valorizao do capital, a rentabilidade, o lucro. Logo a economia no est centrada na satisfao das necessidades das pessoas ou da sociedade, mas sim na reproduo do capital. O capitalismo transformou a agricultura num ramo de aplicao do capital, assim como tinha feito com a indstria. A agricultura deve gerar uma taxa de lucro similar aos demais setores da sociedade. Assim a agricultura e indstria deixam de ter diferena entre si, assumindo a mesma lgica, pois ambas buscam uma determinada taxa mdia de lucro. A agricultura passa a ser tratada como um ramo da indstria capitalista. Mas, h um limite na rotao do capital na agricultura em virtude dos fatores biolgico e ambiental. O fator biolgico (tempo de crescimento) impe um tempo diferente de produo, pois as plantas e animais tm o seu ciclo natural de desenvolvimento. Para aproximar o tempo de trabalho com o tempo de produo, passou-se a encurtar o tempo de produo, mexendo na gentica das plantas e dos animais, levando a surgir sementes de plantas com ciclos cada vez mais curtos ou precoces, por exemplo.

Ao mesmo tempo, o capitalismo, deparou-se com o meio ambiente, com a natureza. Na medida em que uniformizou os plantios, em grandes reas de um nico cultivo (monocultura), buscando ganhar produtividade atravs da mecanizao, adubao qumico-sinttica, deparou-se com a fragilizao deste sistema produtivo (incidncia de pragas e doenas). O fator ambiental torna necessrio pr-fabricar as condies naturais: se no h chuva se utiliza irrigao; se no h fertilidade no solo se utiliza adubos qumico-sintticos; se no h controle natural, utiliza-se inseticida.

Ciclos menores, controlados pela irrigao e por determinados produtos qumicos, levam a mais de uma safra por ano. Esta melhoria, com escala, visando uma maior produtividade, e com gerenciamento de mquinas, matrias-primas, insumos, mo de obra, levam a um aumento da produo de mercadorias que permite uma maior rotao do capital e isto implica em maior taxa de lucro. O objetivo final da agricultura no mais produzir alimentos para satisfazer as necessidades da populao, mas criar as condies para que o capitalista que investir na agricultura tenha uma remunerao prxima dos demais capitalistas que atuam em outros setores.

Chegamos assim a uma agricultura que tem como modelo ou referncia a fbrica: as plantas e os animais so uma linha de montagem onde se converte matrias-primas em carboidratos e protena (produtos-mercadorias), gerando subprodutos e resduos. Sua base tcnico-cientfica da segunda Revoluo Industrial, que tem como fonte de energia o petrleo. O desenvolvimento da Qumica (Liebig) levou fabricao de combustvel (primeiramente o Diesel) e a fabricao de adubos sintticos (NPK, Uria), em 1860, pois as plantas se alimentam de macros e micronutrientes e no de compostos orgnicos. Desde a Fsica, via mecnica, chegou-se ao desenvolvimento do motor a exploso ou combusto interna movido a petrleo, em 1883. E desde a Biologia chegou-se ao melhoramento gentico possibilitando as sementes hbridas, a partir da dcada de 1920.

Mas para aplicao destes elementos qumicos, genticos e mecnicos na agricultura foi necessrio articular tudo isto em uma metodologia elaborada, no ps-guerra (1945) pela Fundao Rockfeller: um pacote tecnolgico que foi chamado de Revoluo Verde. A agricultura capitalista, industrial segue uma lgica cartesiana, atua nas partes sem recompor a totalidade; seu modelo produtivista e introduz uma alta diviso social do trabalho (DST) na agricultura (um ou dois produtos, por agricultor que se especializa), alm da diviso tcnica do trabalho (DTT) em um modelo taylorista de trabalho assalariado. Este modelo foi entrando nos diferentes pases via programas de extenso rural, comeando no Brasil em Minas gerais, na dcada de 1950, e depois se espalhando por todo o pas.

Atualmente, este modelo est implementando um novo salto com o apoio da biotecnologia (transgenia), da informtica (controle gerencial e agricultura de preciso), da irrigao com mtodos cada vez mais sofisticados para melhor aproveitamento da gua e da produo de alimentos via extrao de carbono de resduos de eucaliptos. Isto torna cada vez mais a vida artificial e traz consequncias vida orgnica.

Lgica da agricultura agroecolgica (agroecologia)

Ela nasce como contraponto lgica anterior. Entendemos por agroecologia determinadas prticas sociais na relao pessoa-natureza e nas relaes scio-econmicas; ela mais do que conhecimentos teis ou prticas ou manejos ecolgicos na agricultura. Como cincia, a agroecologia pretende compreender as prticas sociais de pessoas transformando a natureza ou relaes sociais de produo. Trata-se, portanto, de uma economia poltica do ambiente. As experincias agroecolgicas resultam de enfrentamentos polticos fortes.

Se na agricultura convencional o modelo a fbrica, na agroecologia a referncia a natureza, sua lgica, seu funcionamento. Na natureza nada est isolado, tudo se relaciona: nela no existe insumo, matria-prima, subproduto, resduo, uma vez que todos os produtos podem ser tanto o fim como o comeo: um insumo de determinado processo produto de outros processos. O mtodo cientfico aqui tem que ser sistmico, pois todas as partes se relacionam formando uma teia de mltiplas determinaes (mtodo da totalidade).

A agricultura sempre ser a ao do ser humano na natureza, logo, uma artificializao da natureza. A agroecologia busca aproximar a agricultura da natureza e para isto o agricultor precisa compreender ecologia, bioqumica, termodinmica, fisiologia, gentica, biologia,... mas todos estes fatores interagindo dentro de uma totalidade: eles determinam e mantm a biodiversidade de um ecossistema que estruturalmente condicionada por fatores abiticos (no vivos) como: luz, temperatura, umidade, ventos, e, por fatores biticos (organismo vivo, sua populao, suas comunidades, ecossistema). No mesmo ecossistema, em sua funo-dinmica, h um movimento de energia solar convertendo-se em energia qumica atravs da fotossntese que flui da biomassa e h a circulao/ciclagem de nutrientes (ciclos biogeoquimicos). Implica em saber atuar em um agroecossistema percebendo-o em relao (interao dinmica): percebendo as propriedades emergentes, isto , o resultado da sinergia das diferentes partes que compem o ecossistema (logo no apenas a somatria das partes); o nome dado a estas propriedades emergentes sustentabilidade.

Os ecossistemas no se desenvolvem em direo estabilidade, mas esto em constante estado de mudana dinmica (organismos surgem/morrem; populaes aumentam/encolhem; o arranjo espacial dos organismos desloca-se). Eles permanecem dinmicos e flexveis (transformaes dinmicas) e, ao mesmo tempo, so notadamente estveis em suas estruturas e funcionamento geral (estabilidade geral), gerando o que denominamos de equilbrio dinmico, que implica na capacidade de se recompor.

A unidade de anlise que permite estabelecer um enfoque comum s vrias disciplinas cientficas o agroecossistema. Ele o local da produo agrcola compreendida como um ecossistema e implica numa relao que busca alter-lo, para promover o nvel adequado de bens e retorno econmico da famlia; altera-se, mas mantm um estado de equilibro dinmico geral, buscando a produtividade do sistema ao longo do tempo. O enfoque tcnico-cientfico convencional v o solo como suporte fsico e as plantas como cultivo; ele no enxerga o solo como organismo vivo e dinmico, as interaes ecolgicas e muito menos as socioeconmicas que acontecem. Tambm separa produo agrcola de pecuria. Na abordagem agroecolgica a centralidade est no trabalho da famlia camponesa, pois ela quem desenha e maneja o agroecossistema. A produtividade entendida como capacidade de promover nveis adequados de bens e retornos econmicos s famlias, com estabilidade e equilbrio dinmico; com equidade de relaes e autonomia dos trabalhadores, no processo produtivo e na poltica.

Papel da Escola

A escola no pode ficar alienada da situao atual e ficar fora dos desafios centrais de luta e construo, que no se referem somente aos Sem Terra ou mesmo ao conjunto dos trabalhadores, mas sim se vinculam ao prprio futuro da humanidade, do planeta. Nesta disputa de lgicas, onde visamos criar outro tipo de agricultura, as escolas, principalmente as que esto nos assentamentos, tm o papel de: compreender a necessidade da democratizao da terra e da renda; aprofundar o debate e a reflexo sobre a funo social da terra: o que produz? (produo de alimentos saudveis), como produz? (via agroecologia), para quem produz? (para o povo ter sade); quebrar a naturalizao do arrendamento, do trabalho sazonal,...; promover os conhecimentos: ciclos biolgicos / naturais (relao pessoa natureza); desvendar os mistrios das relaes dentro do ecossistema; ajudar as famlias agricultoras a se compreenderem como camponesas e no como massa sobrante que precisa ir para a cidade ou disputar a terra dos indgenas nas novas fronteiras agrcolas; aprender os princpios que regem as relaes sociais, entender como acontece a explorao e ajudar a juventude e as famlias a transformar esta sociedade.

Fundamentos do Ensino de Cincias da Natureza: concepo de natureza, de trabalho e de cinciaEsta exposio buscou abordar a questo do ensino das Cincias da Natureza na perspectiva politcnica da educao, tratando de refletir sobre seus princpios e como eles incidem sobre prticas em sala de aula. A abordagem teve como referncia o artigo distribudo aos participantes do Seminrio: A natureza como uma relao humana, uma categoria social, de autoria de Mrcio Rolo, da Escola Politcnica de Sade, que abordou o tema da construo histrica da concepo de Cincias da Natureza que hegemoniza a atual matriz de orientao dos currculos da Educao Bsica. Recomendamos o estudo desse artigo pelo conjunto dos educadores das nossas escolas. Ele seguir em arquivo anexo a este documento.A educao politcnica tem por base filosfica e pedaggica o materialismo histrico-dialtico (MHD), um mtodo de conhecimento focado na investigao do trabalho humano em suas relaes com a totalidade social. Essa importncia que o trabalho assume como categoria terica central do MHD no difcil de se perceber: o trabalho uma necessidade natural eterna que medeia o metabolismo entre homem e natureza e, portanto, a prpria vida humana. Como falou Marx: Toda a assim denominada histria mundial nada mais do que o engendramento do homem mediante o trabalho humano .

Dada a sua importncia para a vida humana, o trabalho tomado, pois, como o princpio formativo de um projeto educacional que tem como meta apoiar a construo de uma nova sociabilidade humana tendo por fundamento a sociedade sem classes. Como categoria educativa central, o trabalho possibilita uma compreenso crtica e unitria de toda a dinmica da vida social, das relaes de fora que submetem hoje a classe trabalhadora a um regime de explorao de seu trabalho, do papel contraditrio da cincia, da tecnologia e da cultura no interior dessa dinmica produtiva, ao mesmo tempo em que fornece, como decorrncia dessa compreenso, os meios de se forjarem no interior da luta da classe trabalhadora novas histrias humanas, histrias de vida plenas pautadas em novas formas de organizao do trabalho.

Por conta da centralidade do trabalho no projeto educacional politcnico, deve-se precisar melhor o que se entende por esta categoria, seu sentido na proposio do trabalho como princpio educativo, e a forma como ela se articula com as demais categorias da educao como a cincia, a tecnologia, a arte e a filosofia distinguindo ento a proposta politcnica de outras fundadas igualmente no trabalho. De modo explcito ou no, uma viso determinada de trabalho sempre est colocada no centro de todos os projetos educacionais, embora os objetivos pretendidos por eles variem em funo dos interesses da classe social que delineia uma dada perspectiva de formao.

Para a politecnia, a relao entre educao e trabalho de natureza tico-poltica e tem por fundamento uma crtica ao modo como a riqueza aqui entendida em seu sentido amplo como campo de possibilidades da existncia humana produzida e apropriada socialmente. O materialismo histrico-dialtico, nascido no sculo XIX no interior da luta dos trabalhadores contra o capitalismo, demonstrou, contrariando outras teorias econmicas, que o trabalho humano o agente nico que aciona a produo de valor e riqueza, ou seja, que no h criao de riqueza se no h trabalho humano envolvido no processo de produo.

Assim que os processos naturais relacionados terra s adquirem valor (sentidos humanos, no vocabulrio de Marx) no interior das relaes sociais e como decorrncia delas. O que quer dizer, em outras palavras, que a terra jamais cria riqueza por si s. Tomados em si, os processos naturais nada mais so que cadeias de causalidades biolgicas, qumicas e fsicas totalmente alheias aos homens e s sociedades. Isto levou Marx a afirmar que a terra s para o homem mediante o trabalho, a agricultura (Manuscritos econmico-filosficos, p. 101).

O que foi afirmado acima no contexto do trabalho da agricultura, pode ser estendido indiferentemente a todos os demais setores da atividade econmica: produo industrial, seja ela urbana ou rural, ao setor de servios, produo cientfica, tecnolgica e cultural, levando-nos compreenso fundamental de que o trabalho em geral a essncia da riqueza (idem, p. 101).

A compreenso por parte do materialismo histrico-dialtico do papel do trabalho humano na criao de riqueza esclarece a contradio, presente em toda a histria da humanidade at aqui, entre as foras produtivas e as relaes sociais de produo. Por meio de uma investigao das leis da histria, Marx mostrou que em certo estgio de seu desenvolvimento as foras produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relaes de produo existentes dentro das quais at ento funcionaram, o que leva a um colapso necessrio de um modo de produo e sua substituio por um outro. Para o MHD, a histria humana pode ser contada como uma sucesso dos diversos modos de produo onde, em cada um deles, acha-se configurada a contradio fundamental entre duas classes sociais: a dos trabalhadores, majoritria, que produz a riqueza social, e a dos proprietrios dos meios de produo, minoritria, que, atravs da fora ou da persuaso ideolgica, expropria a primeira do seu trabalho.

A contradio entre as foras produtivas e as relaes sociais de produo chegou a um paroxismo com a emergncia e a consolidao do capitalismo a partir do sculo XVI, um modo de produo no qual a mais fundamental das relaes a propriedade que a burguesia tem dos meios de produo ao passo que o proletariado possui apenas sua fora de trabalho. No entanto esta nova forma de organizao do trabalho no evoluiu naturalmente. Como Marx mostrou ao estudar a lei geral da acumulao primitiva, para que a propriedade privada dos meios de produo se consolidasse como uma relao social, passando a ser a relao fundante da vida econmica, foi preciso antes um longo esforo de uma classe social para torn-la possvel um esforo que incluiu o roubo sistemtico de terra dos camponeses, o uso coercitivo da fora contra a populao, a escravizao e a introduo de uma legislao sanguinria o terrorismo legalizado para tornar a terra e a fora de trabalho em mero artigo de comrcio. Ironizando a tentativa da ideologia burguesa de fazer passar por natural o processo violentssimo que resultou na acumulao primitiva do capital, Marx falou: Com to imenso custo, estabeleceram-se as eternas leis naturais do modo capitalista de produo, completou-se o processo de dissociao entre os trabalhadores e suas condies de trabalho, os meios sociais de produo e de subsistncia se transformam em capital, num plo, e, no plo oposto, a massa da populao se converteu em assalariados livres, em pobres que trabalham, essa obra-prima da indstria moderna.A mercantilizao da terra e da fora de trabalho humano, coisa que para o senso comum aparece como natural, resultou de um processo histrico que criou as condies de possibilidade do capitalismo. Entretanto, as mesmas leis histricas que presidem um determinado modo de produo criam dialeticamente as condies para que ele possa ser superado. O modo de produo capitalista carrega em seu interior o germe de sua destruio. Este processo se materializa por meio da luta dos trabalhadores e regido por uma dinmica de que falaremos a seguir.

Com a mercantilizao da vida econmica e a venda da fora de trabalho humano acha-se dado o quadro instvel e conflituoso da produo e isto por um desenvolvimento necessrio. O aprofundamento da diviso social e tcnica do trabalho faz com que a produo se torne cada vez mais especializada e, por consequncia, socializada, enquanto que a apropriao da riqueza cada vez mais individualizada ou corporativizada. Um abismo se abre entre o capital e o trabalho levando finalmente crise. Com a crise capitalista tem-se, de um lado, superproduo de mercadorias, e do outro, uma classe de trabalhadores desempregados ou com o poder de compra muito reduzido para manter em funcionamento a circulao do capital. Baseados em registros histricos, recentes estudos econmicos mostraram que o capitalismo tende a criar um crculo vicioso de desigualdade extrema, pois, no longo prazo, a taxa de retorno sobre os investimentos maior que o ritmo do crescimento econmico, o que tem acarretado uma concentrao cada vez maior de riquezas nos pases centrais do capitalismo. A escola parte deste problema.

Ao contrrio do que ocorria nas formaes sociais escravistas e servis, onde a qualificao da fora de trabalho se dava no prprio local de trabalho, com o desenvolvimento das foras produtivas esta qualificao acabou por exigir instncias e instituies prprias fora da produo, mas articuladas com ela. assim que a escola veio a assumir uma funo estratgica no processo de reproduo do capital, ela faz parte de um trabalho intensivo do capital de colocar em funcionamento sua prpria atividade motora. Pois para que uma formao social sobreviva no tempo preciso que ela conjugue simultaneamente duas formas distintas de produo: a produo da vida societria e suas prprias condies de produo. A condio ltima da produo a reproduo das condies de produo . A escola, de acordo com a organizao social, pode ser mais ou menos mediada por um conjunto de processos culturais, mas sua funo precpua vincular o trabalho educao.Como uma via de apoio construo de uma nova forma de sociabilidade humana a sociedade sem classes a concepo politcnica de educao estabelece uma crtica aos fundamentos dessa escola que se tornou hegemnica no decorrer do desenvolvimento capitalista, criticando a funo que ela veio a assumir no interior dessa dinmica: a de formar o aluno para ser capital humano, isto , somente um elo a mais da engrenagem da produo econmica alienada. No sistema escolar capitalista, a educao cientfica e cultural desenhada segundo esta exigncia de formao instrumental do aluno.

Quando se trata, pois, de estabelecer orientaes curriculares para o ensino da cincia em uma nova perspectiva tico-poltica preciso partir de uma crtica prpria funo do currculo na escola tal como ela se configurou desde o advento do capitalismo, desvelando a concepo de mundo que subjaz a de modo irrefletido ou inconsciente e que d sustentao s suas diretrizes. no contexto da contradio entre capital e trabalho que se desvela a funo ideolgica do currculo de cincias como estratgia de adaptao do aluno produo alienada. A ideologia do capital reflete-se no currculo na forma de duas dimenses estruturantes elas promovem a adaptao do aluno ao modelo hegemnico. So elas: 1) o imediatismo dos objetivos curriculares; 2) a pulverizao, ou a fragmentao, dos objetivos curriculares. A seguir esclareceremos o que vm a ser estas dimenses redutivas do currculo.

O imediatismo dos objetivos curriculares. Como se sabe, desde a promulgao da Lei de Diretrizes e Base da Educao, em 1996, a Educao Bsica foi investida de uma nova finalidade: dar sentido imediato ao aprendizado do aluno, contrariando assim aquela que prevaleceu na antiga formao bsica que tinha a insero do aluno na universidade como seu objetivo principal ou exclusivo. Argumentando que a cincia deve ser um instrumento efetivo de qualificao da vida humana, que esta qualificao no pode ficar merc de programas educacionais de longa durao pouco realistas para as condies brasileiras, mas que ela deveria, antes, ser tanto pragmtica quanto imediata em seus efeitos, a reforma passou a responsabilizar diretamente a escola pela aplicabilidade da cincia ministrada em seus bancos escolares. Como se l nas Diretrizes Educacionais, a escola dever olhar para o seu entorno, fazer o diagnstico da situao social de seus alunos e formular um plano de estudos adequado que os prepare para o enfrentamento de seus problemas. Para dar conta desta nova orientao, uma reestruturao curricular de fundo foi proposta, na qual se abandonou o princpio estrutural baseado na lgica interna dos conceitos, e o imediato, o entorno e o territrio (tomado como uma entidade particular e fragmentada) passam a ser o eixo de integrao. Ora, em que pese o diagnstico correto da LDB a respeito da ineficcia da antiga educao cientfica, salta vista da anlise dos documentos que regulamentam a reforma DCNS, PCNS, diversos Pareceres, etc. o que se perde nesta formulao: a compreenso do papel da totalidade social na conformao da vida do aluno e a esterilidade das solues cientficas para dar conta dos problemas sociais.A pulverizao dos objetivos curriculares. O imediatismo como dimenso estruturante do currculo leva pulverizao dos seus objetivos. Focado no entorno, no particular, em outras palavras, de costas para o universal, para o que se acha fora do territrio, mas que exerce uma determinao fundamental sobre tudo o que lhe diz respeito, o currculo fragmenta-se em um nmero indeterminado de problemas, como se cada comunidade escolar, cada contexto especfico, fosse constitudo por um amontoado de problemas sem quase nenhuma relao entre si. A falta de compreenso do modo como a totalidade social, ditada pela contradio capital/trabalho, determina as singularidades sociais leva pulverizao dos objetivos curriculares, j que no se tem claro quais so as leis bsicas do desenvolvimento da sociedade humana e, por consequncia, as formas de eliminar a sociedade classista. Assim que o problema de gua enfrentado por uma comunidade parece nada ter a ver com o mesmo problema enfrentado pela comunidade vizinha, ou que a fome que afeta a populao de um pas capitalista perifrico no guarda relao alguma com o preo das aes das bolsas de Tquio ou Londres. Esta mesma impossibilidade de por em relao coisas aparentemente dspares, de pensar o mundo humano a partir do ponto de vista da totalidade, pode ser detectada, por exemplo, na difuso de uma sensibilidade artstica hoje muito cultivada pela indstria cultural, como a linguagem visual fragmentada dos clipes musicais a chamada linguagem MTV. Sob o invlucro desta novidade relacionada ao ensino da cincia trazida pela LDB de inspirao ps-moderna salta vista a velha ideologia burguesa que trata de impedir toda viso unitria de mundo.

Toda essa ideologia curricular da LDB pode ser resumida em um s termo: engenharia social gradativa. Criada pelo filsofo Karl Popper, esta noo advoga com base na concepo de que a sociedade funciona como uma mquina, e que, portanto, os problemas sociais so devidos a uma disfuno relacionada a uma de suas partes que a principal tarefa do poder poltico deva ser eliminar fontes especficas de sofrimento atravs de solues tcnico-cientficas ou gerenciais: Ainda que possa acalentar ideais que dizem respeito sociedade como um todo o bem-estar geral, talvez o engenheiro social gradativo no se fia no mtodo de replanej-la em sua totalidade. Sejam quais forem seus objetivos, ele procura alcan-los por meio de pequenos ajustes e reajustes que possam ser continuamente aprimorados. Assumida pela ideologia escolar, o papel do professor nesta proposta de ensino em nada difere do de um engenheiro ou de um gerente administrativo. Na verdade, esta ideologia educacional nada tem de nova, seus pressupostos acham-se j formulados em essncia pelo menos desde a dcada de 1920 na concepo curricular de John Dewey.

Contrariando o carter fragmentrio e imediatista sob o qual se pensa o trabalho na ideologia do capital, a educao politcnica busca restaurar a relao dialtica universal-particular como princpio integrador do currculo, definindo um percurso terico que leva o estudante a reconhecer seu pertencimento a uma classe social. O materialismo histrico-dialtico compara a sociedade a um organismo vivo, assemelhando o curso dela a um processo evolutivo: o processo dialtico. Se a sociedade uma totalidade orgnica, se cada uma de suas partes s tem sentido mediante o todo como o corao ou o pulmo de um homem no interior do organismo do qual ele parte o currculo deve ser estruturado a partir de um princpio que reflita esta organicidade e sua forma de evoluo e da se percebe a importncia do tempo histrico como agente curricular integrador. O conhecimento das leis histricas permite elevar a conscincia dos alunos da particularidade universalidade, da necessidade liberdade, e neste sentido ele deve ser trazido como um elemento permanente da pedagogia crtica. assim que o ensino da cincia s se compreende no contexto de uma formao slida dos determinantes histricos e sociais que concorreram para a consolidao de um determinado campo do conhecimento. Na politecnia, as respostas para os problemas sociais no so dadas no nvel da engenharia ou do gerenciamento dos processos, mas no nvel do poltico o elemento cientfico somente um dos momentos deste processo. Somente situando-se como agente poltico pode a classe trabalhadora enfrentar diretamente as questes cientficas relacionadas sua emancipao.

Podemos ento perceber como se d a disputa pelo sentido do termo integrao curricular por parte das duas concepes de educao. De que se trata quando falamos em integrao curricular? Da perspectiva da engenharia social gradativa, h a concepo de que o mundo um conjunto mecnico de partes e neste sentido integrar significa combinar diferentes fatores, ou aspectos curriculares, com vistas a se atingir determinado fim. Estes ajustes, percebe-se, tm por finalidade manter ou restaurar o sistema de relaes sociais j dado, exercendo uma funo eminentemente adaptativa. Da perspectiva do materialismo histrico-dialtico, integrar significa instituir estratgias pedaggicas capazes de levar os educandos compreenso de quais so as leis bsicas do desenvolvimento da sociedade humana, contribuindo para a formao de uma conscincia poltica que leve a classe trabalhadora a superar suas divises corporativistas e tornar-se classe dirigente e hegemnica. Neste sentido, o ensino da cincia na perspectiva politcnica de formao um momento eminentemente poltico de esclarecimento da classe trabalhadora. Ancorado em um grau de conscincia capaz de incidir sobre a universalidade do conjunto das relaes sociais, a educao cientfica tem por finalidade fazer com que a classe trabalhadora ultrapasse a conscincia imediata, refm de preconceitos e distores ideolgicas, e assuma uma conscincia unitria e ativa da vida.

No contexto do antagonismo entre duas lgicas de produo, o agronegcio e a agroecologia, um dos objetos de estudo desse Seminrio, estas relaes so explicitadas no quadro abaixo.

Agronegcio

- Uma agricultura que tem como base

tcnica de produo a fbrica;

- Uma noo de sociedade como soma simples

de fatores;

-Produo cientfica realizada por

mega-corporaes e orquestrada de acordo com

os interesses do capital;

- Uma noo mecnica de solo: o solo a soma

simples de fatores bioqumicos;

- Currculo: ideologia da engenharia social

gradativa.

Agroecologia

- Uma agricultura que tem como base tcnica

de produo a natureza;

- Uma noo de sociedade como um organismo

vivo;

- Produo cientfica organizada sob formas

diversas e definida a partir dos interesses

da classe trabalhadora;

- Uma noo dinmica de solo: o solo maior do

que a soma das partes;

- Currculo crtico: trabalho como

princpio educativo.

Criticar a prpria concepo de mundo significa torn-la unitria e coerente e elev-la at o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoludo, diz Antonio Gramsci. Para que se efetue esta passagem preciso que a classe trabalhadora supere o momento corporativo, egostico-passional, caracterizado por uma prxis particularista e repetitiva que mantm a conscincia do trabalhador no nvel da passividade frente necessidade social, e consolide o momento tico-poltico, no qual ela superou suas divises corporativas passando a atuar como classe dirigente e hegemnica. A este processo Gramsci d o nome de catarse .

Na politecnia, o movimento catrtico gramsciano orienta o trajeto formativo e fornece o sentido integrao curricular. Ele faz a passagem entre duas formas de ver o mundo. Enquanto no momento egostico a sociedade pensada como resultado do somatrio das partes, um feixe de determinaes que no se sintetizam em uma lei coerente e unitria, no momento tico-poltico o todo social pensado como aquilo que constitui as partes e, por conseguinte, o que promove a conexo entre os fenmenos. Ao fundar as bases metodolgicas do materialismo histrico-dialtico, Marx no se cansava de alertar que a cincia tem que apurar a conexo interna dos fenmenos.

A catarse gramsciana se faz atravs do movimento prprio de uma dialtica que se efetua em trs etapas: conscincia de classe em si conscincia de classe para si conscincia de classe de si. Sobre esta questo falaremos a seguir, e para isto utilizaremos um esquema, ou um modelo terico, que nos ajudar a abordar as bases metodolgicas do materialismo histrico-dialtico.

Nosso modelo terico acha-se disposto na sequncia: a tora de madeira a roda a imagem de crculo o conceito de crculo a equao do crculo. Pode-se entrever nela uma cadeia de conhecimentos cientficos e tecnolgicos construdos pela humanidade em seu desenvolvimento histrico e social na qual cada elo que a constitui, cada momento, foi superado por outro, perfazendo um movimento contnuo ao cabo do qual resulta uma articulao lgica e unitria . Importa notar os termos desta articulao:a) A sequncia inicia-se com um elemento material, o mais material e concreto dentre todos eles: a tora de madeira, que , por sua vez, sucedido por outro menos material, mas mais complexo cientifica e tecnologicamente: a roda. O mesmo acontece na sucesso dos outros elos: a imagem do crculo menos material, mas mais complexa do ponto de vista cientfico e tecnolgico que a roda e esta dinmica se desenvolve at o ltimo elo da cadeia. b) Cada elo da cadeia engloba o anterior em uma forma mais alta: a roda engloba todas as toras, a imagem de crculo todas as rodas, o conceito de crculo todas as imagens de crculo,...c) No decorrer destas passagens percebe-se a perda de contedo material de um momento para o outro ao mesmo tempo que o aumento de contedo reflexivo (pensamento) da cadeia como um todo. A equao do crculo o ponto culminante desta sucesso, ela j no tem quase materialidade alguma seno a materialidade de sua prpria representao no pensamento, e no entanto ela retm a concretude da tora de madeira, sua verdade matemtica, na forma de uma lei. Em resumo, cada elo da cadeia retm a verdade do seu anterior, mas numa forma superior de reflexo, e por isto Hegel insistir que somente o pensamento pode conquistar o concreto.

d) No vocabulrio filosfico, dizemos que os elos desta cadeia so os diversos momentos do desenvolvimento dialtico. J ao movimento de negar o momento anterior conservando-o d-se o nome de supra-suno dialtica. Assim se diz, por exemplo, que a adolescncia supra-sume a infncia: com a mudana de idade o adolescente nega a criana que um dia ele foi, mas a conserva dentro de si (j que ele no deixa de ser a mesma pessoa). Ou que o adulto supra-sume o adolescente. O movimento dialtico avana na forma de permanentes negaes e negao da negao.e) Na supra-suno dialtica h posio, supresso e superao das contradies, ou seja, o processo dialtico de negao de um ente no sua destruio, mas o movimento de sua realizao verdadeira.f) Dizemos que o ltimo elo da cadeia no nosso exemplo a equao do crculo retm a verdade ltima de toda a cadeia, e de cada um de seus momentos, na forma de uma lei. A lei a expresso unificada dos diversos momentos contraditrios do desenvolvimento dialtico. Por meio dela as diferenas postas como independentes passam imediatamente sua unidade. Por isto Hegel nos d a definio de lei como a imagem constante do fenmeno sempre instvel. E o movimento que ela gera o que se chama de fora.De posse do esquema acima, podemos compreender as bases do movimento dialtico hegeliano, um trajeto composto de trs momentos:

1) Certeza sensvel: momento no qual temos o objeto em sua concretude material, mas quase nenhum conhecimento sobre ele. Hegel dir que este momento ao mesmo tempo a forma mais rica e mais pobre de conhecimento. Transposto para o marxismo, este o momento da conscincia de classe em si, uma conscincia cega e sem profundidade histrica.2) Percepo: momento no qual a conscincia decompe a coisa em suas mltiplas facetas, mas ainda as mantm desintegradas, como uma combinao simples de determinaes. Enquanto a certeza sensvel a apreenso no conceitual do concreto sensvel, a percepo o aceita como coisa dotada de propriedades universais. A possibilidade de confrontar esta forma de conscincia mais analtica com a anterior faz com que a conscincia se apreenda como ser que percebe. Quando traduzido para o marxismo, trata-se do momento em que a classe trabalhadora toma conscincia de si como classe, ela se torna conscincia de classe para si. Mas ainda h um caminho a percorrer neste processo.3) Entendimento: momento no qual a conscincia apura a conexo interna dos fenmenos, isto , ela os unifica em uma sntese. O entendimento, diz Hegel, descobre o elemento da verdade no fundo das coisas, na lei, que se ope manifestao fenomnica (Fenomenologia do Esprito, p. 139). Tendo se apropriado do entendimento, a conscincia retorna ao incio da cadeia, ao objeto sensvel que uma vez se nos apresentou como certeza cega: neste retorno, o concreto se torna concreto pensado. Trata-se no marxismo do momento da conscincia da classe trabalhadora como conscincia de classe de si.

Estes trs momentos materializam o processo que a conscincia faz para conquistar o concreto: esta conquista, como se viu, se faz por meio do desenvolvimento dialtico onde a perda de contedo material da passagem de um momento para o outro acompanhada do aumento de contedo reflexivo (pensamento) da cadeia como um todo e do retorno do pensamento ao concreto. Para a agenda de luta dos trabalhadores, importa assinalar a importncia de se conquistar o concreto.

Ao cabo desta exposio temos alguns elementos para perceber o que aproxima e o que distingue a dialtica hegeliana da dialtica marxista. Para Hegel, o desenvolvimento da histria o auto-desenvolvimento do conceito: Hegel um idealista e por isto ele se preocupa em perceber como o germe do pensamento se desenvolve dialeticamente e, por meio deste movimento, engendra a histria. J Marx parte das condies concretas da sociedade tratando de detectar como as categorias societrias como o trabalho, o valor, o regime de propriedade dos meios de produo, a cincia, etc. se desenvolvem dialeticamente engendrando assim o movimento da histria. Para Marx, quanto mais concretamente se desenvolve uma categoria na histria mais ela aparece em sua abstrao. o caso, por exemplo, da categoria trabalho: foi preciso uma longa histria relacionada ao aprofundamento da diviso social e tcnica do trabalho para que esta categoria aparecesse em toda sua nitidez. o caso tambm da cincia, que se abre nossa compreenso somente quando tomada como categoria histrica. Assim, a formulao metodolgica central do MHD pode ser apreendida na clebre afirmao de Marx feita em seu livro Contribuio crtica da economia poltica: O concreto aparece no pensamento como processo de sntese, como resultado, no como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida da intuio e da representao.

Esta abordagem geral da dialtica marxista nos situa no corao da questo da cincia deixando vrias perguntas em aberto. Estas perguntas devem ser objeto de uma investigao cuidadosa por parte de quem se engaja em um projeto emancipatrio de educao. No artigo divulgado por ocasio do Seminrio: A natureza como uma relao humana, uma relao histrica, o autor investiga como a categoria natureza, predicado do termo cincias da natureza, se constituiu no decorrer da histria humana a partir da relao que subsiste entre o processo histrico que possibilitou a propriedade dos meios de produo, a venda da fora de trabalho humano e o desenvolvimento cientfico. Atualizado para os dias de hoje, este processo nos ajuda a entender como o capital impe agora uma nova forma de cercamento, no mais apenas das terras, mas do mapa gentico, fazendo com que o conhecimento cientfico sobre um aspecto determinado da natureza de uma semente, por exemplo possa ser apropriado por um indivduo ou uma corporao de indivduos dando origem a uma nova forma de opresso social. A classe trabalhadora deve refletir sobre como a questo cientfica deve aparecer em sua agenda de luta.

Escolas da Reforma Agrria e ensino de Cincias da Natureza

Elementos de diagnstico da situao atual identificados no SeminrioH aspectos (dificuldades e potencialidades) que so gerais da escola e, portanto, tambm afetam o ensino nessa rea. Os aspectos mais recorrentes nas discusses foram os seguintes: - precarizao das condies de trabalho e rotatividade dos professores dificultam qualquer iniciativa que rompa ou vise romper com a forma escolar instituda; - no h laboratrios de cincias em muitas escolas, as bibliotecas so precrias e os professores tm pouco preparo para utilizar o meio natural como laboratrio vivo para estudo de determinados contedos, embora se tenha identificado vrias iniciativas na direo de buscar fontes educativas do entorno, de realizao de inventrios ou levantamentos de aspectos da realidade, que podem ser qualificadas na relao com o ensino em cada rea; - mas a constatao que se costuma sair pouco da sala de aula (at mesmo pela presso dos tempos de cada aula, onde isso ainda no foi alterado), e quando se sai h dificuldades de intencionalizar tanto prticas como visitas de campo na direo da apropriao ou produo de conhecimento; - nem sempre os processos de formao continuada, onde existem, respondem a questes como as abordadas nesse Seminrio; - fragilidade no planejamento coletivo entre educadores, na rea ou em outra forma de organizao do trabalho docente; - dvidas em relao ao uso de livros didticos e poucas referncias ou materiais para trabalhar questes que costumam ser levantadas em estudos feitos com o Movimento; - falta de educadores com experincia e conhecimento tcnico na produo agrcola.

Tambm constatamos que h diferenas entre os estados em relao aos referenciais curriculares, de contedos de ensino: a maioria das escolas tem uma referncia externa de lista de contedos, algumas com a obrigatoriedade de seguir as referncias dadas pelas secretarias de educao e outras com maior liberdade de seleo, que acaba sendo feita pelo professor de cada disciplina, geralmente seguindo o que tradicionalmente se ensina. H algumas experincias de discusso de bases de contedos feita entre escolas que realizam planejamento pedaggico em comum. Discutimos o aumento do controle dos rgos de Estado sobre as escolas e a influncia da poltica de testes na discusso de prioridades de contedos nas escolas.

Algumas constataes importantes foram relacionadas rea em questo, na interface com o conjunto das prticas curriculares ou a lgica de organizao do plano de estudos das escolas. Uma constatao principal de que no algo dado ou pensado pelos professores, embora isso tenha causado certo espanto em alguns participantes do Seminrio, que a natureza seja o objeto de estudo dessa rea, e menos ainda nas relaes com o ser humano, com a sociedade. E tambm que o conceito de natureza no natural e sim uma construo histrica, como todos os conceitos, de todas as reas. Discutimos que essa constatao tem a ver com o tipo de formao inicial especfica que a maioria dos professores teve. As Licenciaturas, de modo geral, trabalham contedos fragmentados, quase nada de fundamentos de filosofia e histria da cincia e pouco de concepo de educao e de escola. E nossos esforos noutra direo, parece que ainda no conseguiram a densidade material necessria para incidir mais significativamente nas escolas em que atuamos. Mas discutimos como nos deve incomodar (e ocupar) o fato de que muitos professores no sabem porque ensinam os contedos que ensinam.

Outra constatao importante que temos diversas iniciativas de buscar romper com essa lgica fragmentada, pelo vnculo dos contedos com aspectos da realidade, seja em forma de situaes que acontecem no entorno da escola ou de prticas, em alguns casos buscando desenvolver o trabalho socialmente necessrio (conceito de Shulgin, 2013), ou mesmo pela mediao de temas que visam dar conta de abordar questes mais amplas. O Seminrio identificou a necessidade de avanarmos na sistematizao dessas prticas curriculares, visando investigar com mais rigor a potencialidade dessas relaes especificamente no que se refere ao tratamento e mesmo seleo de contedos que elas permitem ou exigem. No experimento dos complexos de estudo nas Escolas Itinerantes do MST PR, apresentado durante o Seminrio, h uma construo curricular que se tenta desenhar no planejamento coletivo de uma rede de escolas e em cada escola a partir das conexes estabelecidas entre os diferentes elementos que devem constituir o plano de estudos: objetivos formativos, uma base de contedos e de objetivos de ensino para cada etapa da educao bsica; trabalho socialmente necessrio, fontes educativas do entorno da escola, auto-organizao dos estudantes e mtodos e tempos especficos para as diferentes atividades.

Uma preocupao levantada nas discusses foi nossa fragilidade para identificar a concepo de conhecimento que est na base tanto das referncias de contedos de ensino assumidas pelas escolas, como das prprias tentativas pedaggicas de vincular ensino e realidade. Uma hiptese levantada que talvez esse limite justifique alguns problemas percebidos em nossas prticas. Um deles o da tematizao da realidade, ou mesmo da simples ilustrao de contedos confundidas com o conhecimento dos fenmenos reais, que o que afinal buscamos. O outro problema o imediatismo que s vezes passa a predominar quando se tenta vincular a escola soluo de problemas locais, do acampamento ou assentamento, saltando a fase de anlise da realidade, essencial ao conhecimento. Em muitas das nossas escolas j descobrimos ento que o estudo frio, desistoricizado e fragmentado de contedos no leva ao conhecimento, no ajuda a formar lutadores e construtores, mas a construo metodolgica do vnculo entre ensino e realidade, entre teoria e prtica, entre particular e universal, desde a concepo de conhecimento que temos como referncia, segue como desafio. Discutimos que no basta trocar o imediatismo do capital pelo imediatismo do trabalho (ou da Reforma Agrria), porque a realidade que buscamos ajudar a transformar por demais complexa e exigente de conhecimentos mais profundos e de uma viso unitria de mundo. Precisamos aprender a compor unidades orgnicas tambm na forma de organizao do nosso plano de estudos: vimos como essas unidades so necessrias na prpria concepo e prtica da agricultura camponesa de matriz agroecolgica que estamos ajudando a construir.

Ideias-fora afirmadas pelo SeminrioDiscutimos no Seminrio o objetivo de construir, entre escolas e MST, orientaes curriculares para o trabalho pedaggico com a rea de Cincias da Natureza nas escolas de educao bsica. Essa construo coletiva ficou como desafio da continuidade do Seminrio, a partir de algumas ideias-fora que conseguimos firmar como pressupostos:1. O conceito de natureza no natural, mas histrico. Constitui-se como objeto ideolgico na interface da natureza e da sociedade. E com este objeto que os professores da rea de Cincias da Natureza lidam em sala de aula, seja para reafirm-lo ou refut-lo atravs de sua prtica educativa, e muitas vezes sem mesmo dar-se conta disso. assim que uma determinada viso de cincia e de natureza, funcional ao objetivo poltico de que tudo permanea como est, acaba sendo naturalizada e passa a hegemonizar a formao das novas geraes. Assumindo objetivos formativos que visam transformar o mundo, precisamos afirmar a natureza, sua dinmica vital e os fenmenos que a constituem, como objeto de estudo da escola, particularmente das Cincias da Natureza, intencionalizando o trabalho pedaggico nessa direo, como rea ou na especificidade de cada disciplina que a compe. Integra essa compreenso a viso de que a Matemtica tambm uma cincia da natureza, que foi inclusive constituda historicamente como lgica dominante de compreenso dos fenmenos naturais e sociais. Mas assumir esse objeto implica em alterar os pressupostos que orientam tradicionalmente o ensino nessa rea.

2. O Materialismo Histrico-Dialtico (MHD), nossa referncia de viso de mundo e de teoria do conhecimento, reconhece o princpio educativo do trabalho, ou seja, sua fora material determinante na constituio do ser humano, ou de como cada ser humano . Isso tambm quer dizer que o trabalho um determinante essencial na produo cientfica: a concretude das relaes sociais de produo responde no s pelo pensamento dos indivduos, mas tambm pelo modo como este pensamento se materializa em prticas. o caso do laboratrio cientfico que nada mais que uma forma de materializao prtico-terica das relaes sociais no interior das quais a cincia produzida, ou seja, o laboratrio especializado uma forma social, histrica e poltica de se fazer cincia. H um modo capitalista de fazer cincia, tanto quanto de fazer agricultura, de fazer educao, de fazer escola. Estudar as Cincias da Natureza desde esse pressuposto significa romper com a viso idealista de cincia e incluir essa prpria discusso de concepo como objeto de estudo, nas escolas e nos cursos de formao dos professores.

3. O estudo que visa compreenso materialista e dialtica da vida, ser humano social, natureza, somente acontecer na escola se for superada a perspectiva dominante de tratamento dos contedos de ensino: descritiva, classificatria, desistoricizada e fragmentada (dessa rea como de outras). Mas importante ter presente na construo de nossas intencionalidades que a concepo de conhecimento que est dominantemente na escola a concepo hegemnica na sociedade e sua superao no acontecer fora de processos que visem superar as relaes sociais de produo que a instituram como dominante, atuando sobre suas contradies histricas.

4. O trabalho para superao da concepo positivista de conhecimento na escola necessita do vnculo das prticas pedaggicas com processos vivos: a materialidade e as conexes entre os fenmenos reais que pode determinar outro rumo forma atual de trabalho com os contedos, que embora seja uma forma histrica se apresenta a todos como dada, sem alternativas. H uma potencialidade imensa (que as escolas do campo tm mais condies de aproveitar) na relao direta com o meio natural para desenvolver a apropriao de contedos importantes da rea e mesmo para descobrir ausncias significativas nas listas tradicionais de contedos que costumamos ter como referncia. importante frisar que no se tem como chegar ao conhecimento materialista e dialtico da natureza ficando presos a atividades restritas de sala de aula. E essa relao entre estudo e vida real pode ajudar na desalienao das pessoas em relao natureza, assim como na necessria desmistificao da cincia ou de formas histricas de construo do conhecimento cientfico.5. As relaes entre prticas curriculares e concepo de conhecimento so fundamentais para conduo de processos que busquem vincular o ensino com o trabalho, seja na forma de insero dos estudantes em prticas concretas seja na considerao temtica de aspectos ou fenmenos da realidade (natureza e sociedade). Isso para que na busca de transformar o ensino no se acabe assumindo uma viso pragmtica e instrumental da cincia. Negligenciar o papel da interpretao terica incoerente com os objetivos formativos que temos. Mas confundir teoria com estudo de contedos de ensino sem nenhuma referncia realidade erro igualmente grave.6. Desde a concepo geral que assumimos, o conhecimento entendido como uma produo do pensamento que surge da atividade humana e visa uma interpretao da realidade que permita ao ser humano transform-la. O conhecimento cientfico, que uma das formas de conhecimento que deve ser priorizada na tarefa educativa da escola, aquele capaz de compreender a realidade para alm de sua aparncia, que percebe que nada existe de forma isolada, que apreende as conexes (internas e externas) e a historicidade capaz de explicar como se produzem e como se transformam os fenmenos naturais e sociais. Conhecer algo, afinal, saber como ele surgiu ou produziu-se, como se movimenta, como se transforma. 7. Nessa concepo, o conhecimento no se constitui sem a relao teoria e prtica, sem o vnculo de uma atividade terica com o prprio fenmeno real que precisa ser compreendido, em uma construo metodolgica que permita a conquista do concreto, pelo movimento dialtico entre particular e universal, entre concreto, abstrato e concreto pensado. Na educao escolar preciso articular apropriao de contedos e construo de conhecimento ou interpretao terica de fenmenos reais, prticos, exatamente porque no so a mesma coisa. Um elemento importante dessa construo saber distinguir conceitos e categorias tericas de fenmenos da realidade, alm de saber e trabalhar que todo conceito tem uma histria e se move na histria, vinculado ao movimento dos fenmenos da realidade que expressa. Um passo importante garantir (em todas as disciplinas e reas) uma abordagem histrica dos contedos.

8. fundamental desenvolver atividades formativas em que os educadores possam discutir suas prticas de modo a se darem conta (apropriar-se) das concepes epistemolgicas presentes nos contedos e mtodos de ensino. Do mesmo modo que permitam perceber qual a concepo de cincia e de natureza que esto ajudando a construir como parte da viso de mundo de seus estudantes e suas famlias. Os educadores da rea de Cincias da Natureza precisam sim estudar bastante o contedo especfico de suas disciplinas de ensino, mas devem se ocupar tambm de compreender a origem e o valor de uso dos conhecimentos envolvidos nos contedos que ensinam ou devem ensinar. Estudos de histria e de filosofia podem ajudar nisso. E os professores precisam ser formados (a intencionalidade dos cursos de licenciatura deveria contemplar) em vista de uma compreenso integrada dos diferentes contedos com os quais trabalham e como podem ser ferramentas no conhecimento efetivo dos fenmenos naturais e sociais.9. As lutas dos movimentos sociais camponeses e o debate atual sobre a Reforma Agrria Popular nos permitem uma chave de observao (e depois de anlise) do entorno da escola visando materializar a relao escola e vida, escola e trabalho. Podemos prestar ateno a aspectos que deveriam ser estudados na escola ou que podem ajudar a melhor ensinar contedos que j sabemos ser importantes. Alm disso, a centralidade do debate sobre o confronto de lgicas de agricultura nos permite identificar novos contedos formativos e a pensar uma vez mais sobre a potencialidade do vnculo da escola com a produo. A escola deve estudar amplamente a vida e, portanto, tambm as disciplinas da rea de Cincias da Natureza precisam abarcar tudo o que a ela se refere, a comear pela vida da natureza. Por isso mesmo no se trata de defender que somente os processos de trabalho produtivo orientem a abordagem dos contedos. Mas inegvel a potencialidade da relao com a produo e, particularmente, com a produo agrcola para levantar questes e contedos no apenas voltados a ela, mas sim ao conjunto das relaes entre ser humano e natureza. O aprofundamento da perspectiva politcnica de educao pode nos ajudar nessa construo.10. Algumas questes que nos podem remeter a contedos que devem ser trabalhados em nossas escolas e que se referem sim s Cincias da Natureza, mas em abordagem necessariamente articulada s Cincias Humanas e Sociais, exatamente porque se referem a fenmenos da realidade, sempre constituda como totalidade: o que biodiversidade? O que um ecossistema? O que um agroecossistema? Por que a biodiversidade precisa ser preservada, cultivada? Qual a sua relao com o desenvolvimento saudvel do ser humano? Por que monoculturas destroem a biodiversidade? Por que monoculturas precisam do uso de venenos e outros insumos artificiais para produzir? Por que alimentos produzidos com agrotxicos e adubos sintticos fazem mal sade? Por que produzir alimentos que prejudicam a sade e o ambiente? Como possvel produzir de outra forma? Como se pode aumentar a fertilidade do solo sem a adio de fertilizantes artificiais que quebram o ciclo vital da natureza? Como o ser humano se relaciona com a natureza: ele est fora da natureza ou parte dela e quais as implicaes disso? Como garantir que todas as pessoas (em qualquer lugar do mundo, em cada regio, em cada local) tenham acesso aos alimentos de que precisam para viver com sade? Como produzir alimentos para o conjunto da humanidade sem destruir a natureza, o ser humano, garantindo uma co-produo entre ser humano e natureza? Que lies podemos aprender das experincias histricas das comunidades tradicionais (indgenas, quilombolas, ribeirinhas,...) nessa direo? Qual o uso que devemos dar terra, gua, ao conjunto dos recursos naturais? O que deixaremos como herana para nossos filhos e netos? Qual a principal finalidade da agricultura? Quem deve controlar a produo agrcola de um pas?...

11. Um esforo importante rea identificar em meio a questes como essas indicadas quais remetem ou identificam conceitos com fora de ferramentas de anlise, quais so contedos de ensino especficos e quais so perguntas sobre a realidade. No Seminrio foi recorrentemente destacado o conceito de agroecossistema como detentor de uma unidade orgnica que nos ajuda a entender o que a agricultura e o confronto de lgicas discutidas pela Reforma Agrria Popular, mas tambm que potencializa a compreenso mais ampla das relaes entre ser humano e natureza. E pode articular o estudo de vrios contedos geralmente ensinados de modo solto, fragmentado. Na relao com esse conceito h outros conceitos como o da prpria agroecologia, agrobiodiversidade, ecossistema, ambiente,... A identificao de outros conceitos desse tipo talvez seja uma das tarefas da continuidade de nossas discusses em vista de compor unidades orgnicas de conhecimentos a serem trabalhados pela rea de Cincias da Natureza, na interface com o conjunto das reas do currculo, e no vnculo necessrio com fenmenos vivos da realidade em que as escolas se inserem.

ProposiesForam aes destacadas no Seminrio em vista de continuar a formulao coletiva de orientaes curriculares:1. Fortalecer prticas que j esto sendo desenvolvidas em nossas escolas, buscando potencializar a insero da rea de Cincias da Natureza. Foram especialmente reafirmadas nesse Seminrio como prticas significativas na direo dos objetivos formativos que temos:- Realizao pela escola de inventrios da realidade do seu entorno e ou do conjunto das comunidades que a escola atende. Inventariar quer dizer fazer um levantamento e uma descrio minuciosa do que existe: em nosso caso, interessa escola saber com que recursos naturais conta, quais as caractersticas do bioma em que est localizada, que processos de trabalho, que organizaes sociais, que lutas, que prticas culturais, que fontes histricas existem no meio, para depois se chegar a analisar que contradies movem o lugar e como ele se insere na realidade econmica, social e poltica da regio, na totalidade da sociedade. importante ter um roteiro bsico para realizao dos inventrios.- Visitas s famlias e outras atividades com as comunidades a propsito da realizao dos inventrios e tambm para discutir as propostas de trabalho da escola.- Estudos e discusses sobre questes da produo da vida no campo, sobre as contradies entre lgicas contrapostas de agricultura que so realizadas nas escolas que tm potencializado a presena de militantes de organizaes camponesas que atualmente fazem esse debate.- Iniciativas de envolvimento dos estudantes em processos de trabalho (dentro e fora da escola, como trabalho socialmente necessrio) e em processos de gesto da escola ou pelo menos de tomada de decises sobre atividades a serem realizadas.- Reorganizao dos tempos educativos da escola que garantem mais tempo s diferentes atividades pedaggicas e alterem a lgica dos perodos fragmentados.

- Atividades de pesquisa (iniciao cientfica) que envolvem professores e estudantes para alm de uma disciplina especfica e se possvel para alm dos interesses da escola, ajudando nos desafios dos assentamentos, acampamentos.- Prticas curriculares que buscam relacionar ensino, trabalho e auto-organizao dos estudantes.

- Planejamento pedaggico coletivo e grupos de estudo entre os educadores, com momentos gerais e momentos especficos por rea.

- Atividades de formao continuada que acompanhem processos de reconstruo curricular e onde possvel envolvendo parcerias com instituies de educao superior que trabalhem com formao inicial de professores.- Lutas por melhores condies de infraestrutura das escolas e pela permanncia dos professores nas escolas para que possam ajudar a construir processos; problematizar editais junto a secretarias municipais e estaduais de educao e redefinir critrios de distribuio de aulas.

- Discusses coletivas de contedo e forma da escola de tempo integral e de outras polticas ou programas das secretarias de educao que incidem nas escolas.

- Ajuda