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    MANA 21(2): 407-423, 2015 – DOI http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p407

    ENTREVISTA

    George Marcus

    George Emmanuel Marcus formou-se em

    Política e Economia pela Universidade de

    Yale e concluiu seus estudos na área de

    Antropologia Social no Queens’ College,

    Cambridge, em 1968-69. Doutorou-se em

    Antropologia pela Universidade de Harvard

    em 1976, com um estudo sobre as elites

    em Tonga. Lecionou na Universidade de

    Rice, onde foi chefe do Departamento de

    Antropologia de 1980 a 2005, recebendomais tarde o título de Professor Emérito.

    Ali escreveu alguns dos livros e textos

    mais lidos e debatidos na Antropologia

    contemporânea, organizando duas

    coletâneas que se tornaram referências

    na disciplina Anthropology as cultural

    critique: An experimental moment in the

    Human Sciences (Chicago University Press,

    1986), em colaboração com M. Fisher, e

    Writing Cultures: The poetics and politicsof ethnography (University of California

    Press, 1986), em colaboração com James

    Clifford. Propõe também uma abordagem

    inovadora em diversos artigos, entre os

    quais destacaríamos a resenha temática

    “Ethnography in the World System: The

    emergence of multi-sited Ethnography”

    (Annual Review of Anthropology, 24:95-117,

    1995), e em diversos livros – enfatizaríamos,

    em especial, Ethnography Through Thick &Thin (Princeton University Press, 1998).

    Foi o editor da coleção Late Edition:

    Cultural Studies for the End of the Century,

    série de publicações anuais iniciadas em

    1990 pela University of Chicago Press, e

    também o fundador da revista Cultural

    Anthropology, da Society for Cultural

    Anthropology, entidade que integra a

    American Anthropological Association

    (AAA). Além de sua etnografia em

    Tonga, desenvolveu pesquisas nos

    Estados Unidos (Galverston, Texas) e em

    Portugal. Atualmente é Chancellor´s

    Professor da Universidade da Califórnia

    em Irvine (UCI), onde fundou em 2006 oCenter for Ethnography, uma tentativa

    bastante original de conjugar o exercício

    da etnografia com os debates teóricos

    contemporâneos, experiência que tem

    resultado em suas publicações mais

    recentes.

    Considerando a inserção da

    antropologia no campo das Ciências Sociais

    e das Humanidades, Marcus empreendeu

    uma reflexão sistemática sobre oscontextos em que a etnografia é realizada,

    problematizando o caráter canônico

    dos paradigmas e indicando os usos e os

    significados que concretamente adquirem.

    É um crítico permanente do pressuposto de

    que as situações pesquisadas se desenrolam

    em comunidades isoladas e fechadas,

    chamando a atenção para a profundidade

    histórica da integração de mercados, a

    diferenciação social e a interação dosnativos com diferentes grupos de referência

    e tecnologias de comunicação. Os processos

    de modernização e inovação tecnológica

    e a interação com mídias eletrônicas

    contribuem para a diversificação dos papéis

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    assumidos pelos atores sociais, apontando a

    necessidade cada vez maior de desenvolver

    práticas de pesquisa multissituadas.

    Com uma forte ênfase na ação social,desmonta a noção de “informante”,

    enfatizando as relações de cumplicidade

    com atores vinculados a práticas

    preestabelecidas e com o próprio terreno no

    qual teorias antropológicas se constituíram.

    Para ele, a reflexividade é um componente

    básico da etnografia e da interpretação

    antropológica, devendo passar pela

    intertextualidade, pela análise das condições

    de produção da intersubjetividade e pela

    crítica cultural.

    Em entrevista concedida em setembro

    de 2013, em Águas de São Pedro (SP),

    durante o 37º. Encontro Nacional da

    Anpocs, no qual participou da Mesa

    Redonda “Crítica Cultural e Reflexividade:

    Alteridade e Etnografia”, coordenada

    por João Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ) e

    integrada também por Priscila Faulhaber

    (MAST) e Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer

    (USP), George Marcus, que veio ao Brasil a

    convite do Museu de Astronomia (MAST),

    nos fala da sua formação acadêmica, de

    pesquisas anteriores e dos trabalhos em que

    está atualmente envolvido no Center for

    Ethnography. Tradução de Stela Oliveira.

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     João Pacheco de Oliveira e Priscila Faul-

     haber – Conte-nos um pouco sobre sua

    trajetória intelectual.

    George Marcus – Minha formação comoantropólogo foi resultado do meu inte-resse pela metodologia de pesquisa decampo. Eu tinha um cunhado, RobertKnox Dentan, que era antropólogo depovos aborígenes da Malásia, e minhairmã o acompanhou em sua viagem aocampo. Durante os dois anos em que

    estiveram entre os Semai, nas selvas daMalásia, ela escreveu cartas à família re-gularmente. Naquela época, eu tinha umcerto interesse juvenil por arqueologia,mas não sabia o que era antropologia –antropologia sociocultural. Em arqueo-logia, eu gostava muito das tecnologiase seus afins (minha primeira publicaçãofoi sobre endrocronologia), mas eu sentiafalta de um espírito de risco interpreta-tivo – isto só apareceu muito mais tardena arqueologia, a partir dos anos 80 nosEUA, talvez um efeito do “momento” dateoria crítica cultural do qual o Writingculture fez parte. Assim, a minha intro-dução à antropologia sociocultural sefez por meio daquelas cartas vindas docampo de pesquisa. O processo de in-vestigação da antropologia me fascinou

    através daquele veículo epistolar.Quando fiz a graduação na Univer-

    sidade de Yale, no período 1964-68, nãoprivilegiei a antropologia. Meu foco deinteresse estava, na ocasião, em políticae economia, o que me deu uma ótima for-mação em ciências sociais clássicas e emciências sociais tal como praticadas nopós-guerra. Os cientistas sociais liberaisestavam particularmente interessados

    no desenvolvimento econômico e socialno chamado “Terceiro Mundo”. A maiorparte dos meus créditos foi em ciênciapolítica e economia, mas eu também fizseminários com alguns dos estudiososque haviam dado forma às organizações

    globais pós-Bretton Woods (como RobertTriffin e o FMI). Nunca planejei seguircarreira nessas arenas, por isso eu manti-ve meu interesse em antropologia sempreem paralelo.

    Fiz cursos no Departamento de An-tropologia de Yale, os quais me pare-ceram fracos. Suas figuras notáveis dopassado já haviam se afastado, comoEdward Sapir e George Peter Murdock,e havia remanescentes de outras tendên-cias, como a etnociência. O programa de

    graduação atendia a uma clientela depessoas como George W. Bush, que, aliás,foi meu colega de classe – consta que ocavalheiro fez um curso da professoraMargaret Mead com outros 800 colegase obteve o único B da sua carreira de Cs!Meu cunhado tinha sido anteriormentealuno do departamento na graduação e,enquanto tal, havia feito uma pesquisade campo fascinante em torno do tipo de

    etnolinguística praticada pelo brilhanteFloyd Lounsbury, então vivo e aindaem atividade. Pode-se dizer que meuinteresse por antropologia em Yale foimantido pelo que eu havia aprendidoantes (1961-63) por meio daquelas cartasescritas por minha irmã, diretamentevindas do campo de pesquisa, e depoiscomplementado na fonte – a etnociên-

    cia altamente esotérica que era entãoensinada aos alunos da graduação em Yale. Mas, na verdade, foi tudo muitoindireto para mim como bacharelando,um subtexto bastante pessoal na minhaeducação formal, muito mais do queexplícito e didático.

    Um outro ponto a respeito da minhaformação antropológica em Yale foi, semsombra de dúvida, a Guerra do Vietnã.

    Eu mesmo fui convocado em 1969, umano depois de sair de Yale. Mas aindaem Yale, eu fiz um curso memorável depalestras ministradas pelo historiadorHarry Benda sobre o Sudeste asiático, eoutro do notável acadêmico francês Paul

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    Mus sobre o Camboja e o Vietnã. Ambos,em suas respectivas tradições, possuíamníveis altíssimos de informação nas áreasde antropologia/ etnologia. Benda, emparticular, me apresentou ao trabalhode Clifford Geertz, então galgando oauge da sua fama e influência, tanto emantropologia como em desenvolvimento,o que incluiu sua oferta de consultoriapara o projeto americano de “constru-ção de nação” no Sudeste asiático. Em1966, Geertz apresentou a primeira

    versão do seu artigo “Deep Play”1

      emum simpósio em Yale. Ninguém pareceuentender uma única palavra do que eledizia. Eu, entretanto, li seu texto sobrea Indonésia, voltado para a questão dodesenvolvimento, e achei muito empol-gante se comparado às literaturas deciência política e economia a que vinhasendo exposto até então. O que mais meimpressionou foi sua maneira de escre-

    ver. Com Geertz eu obtive a percepçãoinicial da questão da “representação”,da linguagem descritiva e narrativa comoelemento-chave do método propriamentedito em antropologia.

    Em Yale, ainda bem inexperiente, eufiz três meses de trabalho de campo naGuiana Britânica – na ocasião, recém--proclamada República da Guiana – entre

    trabalhadores indígenas em plantaçõesque haviam sido recentemente transfor-mados em pequenos arrendatários defazendas de arroz. Eu era absolutamenteinocente sobre a guerra racial que haviaprecedido a minha chegada, engendradapor interesses americanos e britânicospara garantir a liderança da Guiana aosafro-guianenses. Politicamente falando,eu não fazia a menor ideia de onde estava

    metido. Mesmo assim, eu adorei a minhaestreia no trabalho de campo, e produziuma monografia, que veio a ser premiada,sobre a transformação de um proletaria-do agrícola em pequenos arrendatáriosrurais. Minhas notas de campo foram

    bem menos ingênuas do que o estudo decaso sobre desenvolvimento econômicoque produzi. Subjacentes a essas notas,surgiam formulações de questões sobreantropologia e interdisciplinaridade, so-bre o que essa disciplina produz de dadosa partir da experiência, e o que produzpelo interesse em outros paradigmas deconhecimento, além do seu próprio.

     Após concluir o bacharelado em Yale, consegui uma bolsa de pesquisade um ano em Cambridge para estudar

    antropologia social. Isso foi entre 1968 emeados de 1969. Meu objetivo era fazer ocurrículo da graduação deles de forma in-tensiva. Meyer Fortes era então professortitular, Jack Goody, professor assistente,e Edmund Leach, reitor acadêmico doKing’s College. Na literatura do cursoalgumas luzes se acenderam para mim.Naven, de Gregory Bateson, se destaca-va na lista, mas, em geral, eu estava tão

    entediado quanto o resto dos estudantes. À exceção de Stanley Tambiah sobreantropologia econômica, e de MalcolmMacLoed sobre os povos Ashanti, aspalestras eram pobres. Todos os grandesnomes da época eram chamados para darpalestras (Evans-Pritchard, Needham,Mair Gluckman), mas vê-los em pessoaera a única inspiração. Reo Fortune vaga-

    va pelos corredores do Museu como umtotem. Andrew Strathern era o jovem aca-dêmico ambicioso. Marilyn Strathern, queeu me lembre, ficava placidamente senta-da a seu lado. A parte mais interessantedaquele ano foi a presença do radicalismono Departamento de Antropologia, trazidopelos estudantes americanos e por outrosestudantes estrangeiros com privilegiadasbolsas de pesquisa, e o efeito provocado

    sobre os estudantes ingleses da graduaçãoem antropologia.

    Havia um esforço interessante e aomesmo tempo mal-educado para se ado-tar um programa alternativo e, com isso,aulas alternativas cuja literatura fugisse

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    das fontes do funcionalismo ortodoxo.Fazia parte do momento, é claro, e eu eramais um observador do que um ator, mas,como em Yale, o que eu via era um outrocentro famoso pelo desenvolvimento daantropologia necessitando urgentementede renovação. Por exemplo, eu achavamaçante o estruturalismo produzido pelaantropologia britânica. Achei interessan-te a escrita discursiva de Leach, na suaapropriação de Lévi-Strauss que, diga--se de passagem, eu nunca lera. Mas as

    discussões resultantes eram áridas, me-ros exercícios formais de classificação edebate técnico. Havia ali uma promessa,só que não instigava ninguém. Eu logopassei a me interessar pela história daantropologia, da qual havia muito poucomaterial. Lembro-me que o jovem GeorgeStocking veio e deu uma palestra bastan-te árida sobre a antropologia americana,que foi acompanhada respeitosamente,

    mas não muito compreendida. Eu queriaentender o contexto no qual a antropo-logia britânica havia se tornado o queera naquele momento, em contraste coma antropologia americana. Foi aí que,muito cedo, cheguei a um entendimentodessas diferentes “tribos” – se me permi-tem – da antropologia.

    Eu ainda não era um estudante de

    pós-graduação, mas através daquilo tudoeu me interessava por trabalho de campo,pela leitura de relatos de trabalhos decampo, que eram bem poucos ainda. Euestava interessado em aprender sobrecomo uma conclusão, ou como resulta-dos, ou ideias teóricas se desenvolviam apartir da atividade do trabalho de campo. Afinal, era este o assunto das conversasde bar! Ouvir aquilo tudo podia ser fas-

    cinante... Dentre as muitas “simples”histórias, e em meio a todo aquele afãpor fama e reconhecimento, havia tam-bém, na realidade, um tipo de conversamais objetiva sobre experiências e comoas ideias tomavam forma no contexto

    da pesquisa. Nunca em nenhum outrolugar eu tive um contato tão pedagógi-co ou “etnográfico” com o trabalho deantropólogos em pesquisa. Bem, eu che-guei perto de experimentar esse tipo deambiente mais tarde em outros lugaresde colonização britânica – conversas debar na Nova Zelândia e Austrália – masnunca nos Estados Unidos. Assim foique as minhas velhas “cartas vindas docampo” se tornaram “contos de bar”!Esse interesse em trabalho de campo en-

    quanto experiência, enquanto processo, ecomo ele surge como assunto de textos econversas e adentra as “grandes ideias”da antropologia em qualquer períodotem sido o fio condutor de toda a minhacarreira.

    Suponho que o padrão distintivodo meu início de carreira tenha sido oseguinte: sempre como o “estranho noninho”, eu entrei em programas de trei-

    namento em departamentos que tinhamsido dominados por experimentos eminterdisciplinaridade entre as ciênciassociais, e nos quais antropólogos tinhamque se adequar, sempre como um par-ceiro menor, periférico. Isto é verdadeem relação ao meu próprio programaem Yale, e igualmente verdade sobreo Departamento de Relações Sociais

    de Harvard no qual ingressei em 1971,depois de dois anos de serviço militar,durante a Guerra do Vietnã. Por falarnisso, durante a Guerra ensinei, em tem-po parcial, na Universidade da Carolinado Sul e conduzi um trabalho de campoinconclusivo entre os povos falantes degullah da região das Sea Islands, na costada Carolina do Sul.

    O Departamento de Relações Sociais

    tinha sido fundado por Talcott Parsons so-bre um plano funcionalista, no qual a an-tropologia abordava questões de cultura.(A propósito, Geertz havia se graduadopor aquele Departamento e produzidoali seu primeiro trabalho voltado para o

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    desenvolvimento, na Indonésia, nos anos50, através de um projeto interdisciplinarde Harvard). Portanto, uma característicado início da minha carreira é que me vienvolvido em programas interdiscipli-nares nos termos em que a antropologiatinha que se autodefinir e orientar-se.Em Yale, embora eu já estivesse profun-damente interessado em antropologiaem função da minha experiência com asvelhas cartas escritas por minha irmã,lá eu estava integrado nos objetivos de

    economistas e cientistas políticos. EmHarvard, embora eu já tivesse provadoda experiência de trabalho de campona região das Sea Islands e na Guiana,eu estava no histórico Departamento deRelações Sociais, onde a antropologiatinha que se enquadrar nas propostasprioritárias de sociólogos e psicólogos. Ao longo do caminho, fui percebendo queparadigmas clássicos, e anteriormentesólidos, da pesquisa antropológica nosEUA e na Grã-Bretanha pareciam es-gotados. Como se revelou a posteriori, oDepartamento de Relações Sociais emHarvard, quando eu lá cheguei, estavavivendo seus derradeiros anos. Tanto foique, muito embora eu assistisse a pales-tras de Talcott Parsons, Daniel Bell e vá-rios outros luminares, acabei recebendo

    o meu grau de doutor pelo Departamentode Antropologia.

    Paralelamente, o Departamento de Antropologia também estava passandopor uma transição no começo dos anos70. Os grandes projetos colaborativos delongo prazo, que haviam firmado a suareputação – como o projeto Chiapas, noMéxico, o projeto Ge, no Brasil, o projetoBushman, no sul africano – já estavam

    todos envelhecidos; as pesquisas maisinteressantes e importantes já haviamsido feitas. Eu me juntei a um retarda-tário no estilo – o projeto colaborativode longo prazo sobre gerenciamento deconflito, organizado por Klaus-Friedrich

    Koch, quase todo centrado em Fiji. Paraa minha pesquisa de doutorado, eu con-cordei em fazer um estudo na vizinhailha de Tonga. Sobre o quê? Sobre apolítica de monarquia e nobreza, e decomo ela se materializava. Isto fez demim um especialista sério em Polinésia,com conhecimento de todo o instigantetrabalho que estava acontecendo na Me-lanésia, durante os dez primeiros anosda minha carreira como estudante depós-graduação (de 1970 a 1980).

    Como sempre, eu fui um tipo de me-taobservador de tudo, meio à margem,no meu estilo contínuo de “estranhono ninho”, de membro-intruso. Pesso-almente, nunca absorvi quaisquer dosprincipais paradigmas da antropologiaque informasse esse tipo de trabalhoregional – em particular o da história es-truturalista de Marshall Sahlin que veioa dominar completamente, por certo tem-po, os estudos polinésios e a crescenteconexão da antropologia para trabalharem contextos da história social colonial epós-colonial. O “quente” e na moda emantropologia durante os meus últimosanos em Harvard era a sociobiologia,liderada por Edward O. Wilson, RobertTrivers e Irven DeVore, este último daantropologia, famoso por seus seminá-

    rios chamados de “simianos”. Naquelemomento, aquilo tinha mais energia doque quer que estivesse acontecendo emquaisquer dos outros projetos mais anti-gos de antropologia social em Harvard.Eu admirava a energia intelectual domovimento, mas não estava convencido.

    Quando eu assumi o meu primeiroe praticamente único emprego de car-reira (1975-2005), na Universidade de

    Rice, em Houston, Texas, eles tinhamum pequeno, ainda que desconhecido,mas excelente Departamento de An-tropologia. Na época, eu poderia serdescrito como um antropólogo com asseguintes características: alguém com

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    considerável experiência em trabalhode campo, que estava mais interessadoem questões metodológicas/ filosóficas ena natureza do conhecimento antropoló-gico do que nos antigos ou “reinantes”paradigmas de pesquisa propriamenteditos. Por exemplo, eu estava maisinteressado em ler sobre como Boas eMalinowski e Lévi-Strauss executavamseus trabalhos do que nas suas teorias.Ou melhor, eu estava interessado apenasnas ideias que podiam ser rastreadas nas

    suas experiências de pesquisa. Tambémpoderia ser visto como um antropólogosempre sensível às políticas de pesqui-sa, à interdisciplinaridade e às formascolaborativas, assim como às ideologiasatravés das quais a antropologia moldavaa si mesma e era moldada. E quanto aisso, eu tinha um entendimento práticobastante “político”.

    Outra característica minha, naque-la época, era a de ser um antropólogocom muita leitura sobre a ascensão dopensamento francês pós-estruturalista(Foucault, Derrida etc.), dos primór-dios do feminismo, e da teoria críticada pós-Escola de Frankfurt, muito lidapelos alunos de Harvard no meu tempo,durante o declínio das Relações Sociaise da letargia na Antropologia Social.

    Em suma, tendo passado por famososDepartamentos de Antropologia anglo--americanos em decadência, eu erabasicamente autodidata e influenciadopelo que estivesse “no ar” na culturaestudantil, por assim dizer, e motivadopor preocupações pessoais, diretas ebibliograficamente sustentadas, com ahistória e a prática do método modernoda antropologia – e, igualmente, como

    esse método poderia ser moldado pordiferentes experiências de parceriasinterdisciplinares ao longo da trajetóriahistórica dessas parcerias até o presente.

    Em razão de uma oportunidade es-pecialíssima em Rice, um colega mais

    velho, Stephen Tyler (a propósito, sobreStephen Tyler, à época, ele já era umlinguista reconhecido, mas em iníciode carreira na antropologia cognitiva.Stephen assumiu riscos e eventualmentetornou-se diretamente envolvido com omomento pós-moderno, nos seus altos ebaixos) e eu conseguimos reerguer umdepartamento, que havia sido reduzidoa duas unidades por volta de 1980, etrazê-lo, com o tempo, à condição deum departamento com dez escolas,

    todas em antropologia sociocultural, re-presentativas dos nossos gostos e sensode direção para onde a antropologiaestava caminhando. Minha educaçãoreal e profunda em antropologia se deunesse processo de recrutamento, e nasassociações e redes que foram criadas. A“conversa de bar”, em certa medida, foisubstituída pelas entrevistas de trabalhoe visitas que patrocinamos ao longo dosanos, incluindo aí o recrutamento dealunos da pós-graduação compatíveiscom nossos propósitos – por ano, qua-tro novos alunos, saídos de um grandegrupo de candidatos talentosos pré--selecionados.

    O momento Rice em antropologiadurou, eu diria, do início dos anos 80até o final do século XX. Quando eu me

    mudei para Rice, a moda de conversa-ção e interesse interdisciplinar já haviatransitado das ciências sociais para ashumanidades, por causa do que hoje éconhecido como movimento pós-estrutu-ralista, de intenso interesse em repensaras teorias de cultura, língua e literaturano mundo de falantes do inglês, e talvezalém. Durante aquele período – digamos,do final dos anos 70 passando pelos anos

    80, indo até o começo dos anos 90 – osestudos literários demonstravam grandeinteresse pelas questões da antropologiae nutriam muito interesse pela naturezade outras culturas. Havia muitos tiposinteressantes de movimentos interdis-

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    ciplinares, como o novo historicismo de[Stephen] Greenblatt, que combinavaum tipo de estudo cultural com estudoliterário e história. O eixo principal eraformado por história e literatura, comum interesse (sempre) periférico emantropologia. Esse deslocamento dasciências sociais para as humanidades mefoi muito simpático no meu modo inicialde pensar a antropologia. Mas eu aindame sentia constantemente na obrigaçãode explicar a antropologia para aqueles

    que não eram da antropologia, mas quese interessavam por ela. O entendimentonão especialista da antropologia como oestudo do exótico, do irracional e baseadonas raças ainda permanece um risco atéos dias de hoje.

    Durante o meu período na Rice foiquando eu realmente aprendi antropo-logia pela primeira vez, trabalhando,através dos colegas e outros, em todas

    as perspectivas que me fizeram faltanos programas decadentes pelos quais já havia passado. Havia muitas matériasda minha formação que eu não sabia bem(linguística, semiótica, estruturalismo) eque eu realmente aprendi ensinando naminha primeira turma.

     Alguns poderiam dizer que eupassei a minha carreira inteira na Rice

    (30 anos) antes de me transferir paraa Universidade da Califórnia, Irvine,minha atual posição, onde já estou há10 anos. Dos meus 30 anos na Rice,fui chefe de departamento por 25 anos.Minha principal realização na carreirafoi ter criado um “departamento buti-que” que era, ao mesmo tempo, umaespécie de local coletivo de pesquisa– diria sem exagero, a mais gratificante

    antropologia universitária em todos ostempos e lugares na sua história. Erauma universidade pequena, muito rica,com um pequeno e seleto programa depós-graduação, em um momento inte-lectual único de mudança disciplinar,

    pelo menos nos EUA. Por isso, o depar-tamento tinha uma invulgar coerênciae nenhum conflito interno. A edição doWriting culture foi o maior fenômeno – aidentidade da antropologia no “movi-mento” da teoria literária/cultural.2 Riceera um lugar onde se jogava para valer!Por isso também eu posso dizer que arealização principal da minha carreirafoi como um construtor de departamen-to, ou de gerente de um “laboratóriocoletivo” de ideias-chave de um dado

    momento. Meu próprio pensamento edesenvolvimento em antropologia erabastante dependente dessa coletividade,embora eu tivesse minha própria pes-quisa sobre as elites, o mundo das artes,sobre as variadas formas e significadosda riqueza, a respeito do início do pen-samento antropológico sobre a naturezado capital financeiro – do que podemosfalar, se vocês quiserem.

     Assim, tenho grande apreço pelodesenvolvimento do conhecimento emambientes colaborativos. Dou muitovalor ao pensamento independente nosespaços entre as disciplinas, mas os re-sultados devem ser frutos das parcerias edos coletivos – lembrando que não foramas questões originais da antropologiaque me trouxeram para esta disciplina.

    Há vários anos venho produzindo todasas minhas publicações importantes emdiversos tipos de coletâneas e coautorias.Depois de vir para a UC Irvine, fundeium Centro para Etnografia (2005), ondeo tema colaboração tem sido exploradocomo um dos principais e mais consis-tentes. Não só porque a colaboração setornou especialmente popular e ficouna moda como a ideologia de trabalho

    administrativo de todos os tipos nestenovo século altamente tecnológico (oque não é exatamente uma coisa boa),mas também porque eu sempre fui par-cial em relação a ela na minha própriaexperiência profissional.

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     JPO e PF – Como o senhor distingue a

    crítica cultural em antropologia da inter-

     pretação geertziana de cultura?

    GM – A ideia de antropologia em si nãofoi desafiada pela obra Writing culture. O que foi questionado foram as suasformas típicas de expressão, não só suaescrita, mas alguns dos seus conceitosfundamentais, como cultura, e todoaparato que a elaborou – o tradicio-nal, parentesco, mito, ritual etc. Estas

    questões continuaram sendo assuntosimportantes, naturalmente, mas foi aba-lada a confiança no modo como foramdesenvolvidos na antropologia comorepresentações e como fatos (sugiro queessa confiança fazia tempo tinha sidoprejudicada, na verdade, por moderni-dades do pós-guerra, mas esta percepçãopermaneceu como uma atitude ou “es-trutura de sentimento” na antropologia,até então inarticulada). O Writing culture,assim, forneceu os meios para uma críticainterna criativa do que poderia ser ditoem discussões e análises antropológicas,do que seria o “assunto” da antropologiano ato da pesquisa. Eu acho que nós re-gistramos três áreas problemáticas quevinham crescendo pelos anos 50 e 60.Uma era o problema com o modo pelo

    qual o conceito de cultura era usado naprodução de etnografia, ou seja, o con-ceito holístico, funcionalista de culturaque isolava os povos da história. Assim,este era um tipo de problema teórico quehavia sido abordado por vários outros,mas não com um instrumento crítico tãopoderoso, qual seja, explorar as questõesem torno da representação.

    Depois, havia o problema da política

    da antropologia, que ao que parece foicontestada e debatida durante os anos 60em livros como Repensando a antropolo-gia, de Dell Hymes. O contexto políticoda antropologia não se tornou de repenteum novo tema, mas já não estava mais

    no centro da discussão, pelo menos nosEUA, entre os anos 70 e 80. Assim, nosmais silenciosos e politicamente maisconservadores anos 70 e além, a críticada representação etnográfica trouxe devolta a crítica política da antropologiacomo cúmplice do colonialismo. Natu-ralmente, em outros lugares, esse tipode crítica política nunca andou separadada ideia de antropologia. Nos EUA, temsido episódico. Além disso, seria possí-vel creditar às feministas estarem lá em

    peso antes da crítica do Writing culture,mas elas tinham objetivos bem maioresdo que criticar uma disciplina e seusconceitos centrais.

    Em terceiro lugar, veio o impactoda teoria pós-estruturalista através daliteratura, tentando se reestruturar comouma forma mais abrangente de estudosculturais, de estudos literários. Então, aliteratura levantou a questão da repre-sentação, e focou no gênero fundamentalda expressão antropológica: a etnografia.E metodologicamente legitimou uma for-ma bastante elaborada de reflexividadeque nunca tinha sido tão aprovada nacondução de trabalho de campo.

    Desse modo, estas três dimensõesconstituíram um paradigma críticodistintivo, pelo menos na antropologia

    norte-americana, além de terem sidoinfluentes em outros lugares. O livro An-tropologia como crítica cultural (1986), deminha autoria e de Michael Fisher, refi-nou, especificamente para antropólogos,esse paradigma crítico que o Wrintingculture levou para além da disciplina daantropologia. A obra absorveu a impor-tância da crítica da representação e da re-flexividade no método, mas focou prefe-

    rencialmente na função crítica há temposincorporada à pesquisa antropológica, etornou isso óbvio pelo alinhamento dessacrítica com certos movimentos ocidentaisclássicos de crítica cultural, tais como aEscola de Frankfurt, entre outros. A obra

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    também foi escrita bem de acordo com atradição da antropologia interpretativa,muito influente na época, e da qual Cli-fford Geertz era inquestionavelmente oprotagonista.

     Agora, quanto à sua pergunta especí-fica sobre a diferença entre o argumentoda crítica cultural e Geertz: em váriasfases de sua carreira, Geertz foi realmen-te a última grande expressão do tipo deteoria cultural que era tão característicada antropologia americana boasiana. A

    longa fase final foi, é claro, marcada porseu livro  A interpretação das culturas (1973). Partindo de um interesse anteriorem análise e teoria simbólicas, a obra deGeertz foi uma exploração das fontes deteoria fenomenológica e hermenêuticapara fixar a análise cultural antropoló-gica contemporânea em fundamentosfilosóficos mais sólidos e profundos. Emtermos da forma dos até então debates,

    estava em oposição quase natural aomaterialismo e às perspectivas marxistascorrentes e dominantes nos anos 60 e 70na antropologia americana. A propostada “crítica cultural” atraiu uma geraçãomais jovem para escapar completamentedas condições de dois campos opostos emtorno dos quais muito da antropologiaamericana parecia se organizar, e assim

    o fez em favor de atentar para como aanálise cultural estava se abrindo parao pós-estruturalismo e diversos outrosmovimentos, dos quais o mais importanteera o feminismo.

    Um novo interesse em movimentosanteriores de crítica cultural baseadosem métodos documentais se mescloucom os debates da época sobre repre-sentação para definir um objetivo para a

    pesquisa antropológica sobre as mudan-ças emergentes na vida contemporâneafora da colocação dogmática das estru-turas históricas mundiais ou das teoriasda história. O próprio Geertz, acho eu,estava de acordo com o movimento em

    direção à crítica cultural – isto resultariaem inúmeros trabalhos etnográficos so-bre o “saber local” de qualquer natureza,pesquisados a fundo, imparciais e histori-camente contextualizados. Escaparia darotina das determinações materialistase dos paradigmas ultrapassados sobre odesenvolvimento do “Terceiro Mundo”,em cujos termos os antropólogos elencamseus estudos sobre a vida contemporâneae a modernidade em geral. Ele foi muitomais crítico daquilo que se tornou a ide-

    ologia da “virada literária” no Writingculture.

    Para nós, uma geração mais jovemde antropólogos, a “crítica cultural”tornou-se uma oportunidade de abrir aantropologia para novas questões e áre-as de pesquisa – estudos da ciência, damídia, dos novos movimentos culturais esociais – livre dos velhos debates e cate-gorias. A antropologia, naturalmente, já

    vinha desenvolvendo subcampos sobremuitos desses fenômenos contemporâ-neos – vida urbana, desenvolvimento etc. A crítica cultural foi um convite para nosapropriarmos desses interesses atravésdo reestabelecimento de uma lógica parapersegui-los como perguntas de pesquisano núcleo da própria disciplina.

     JPO e PF – O senhor poderia nos falarsobre a teoria da crítica cultural?

    GM – Bem, eu acho que o “jogo” mudoucompletamente desde a era da críticacultural, e a antropologia, talvez mais doque qualquer outra ciência social, estálutando de forma bastante entusiasmadapara redefinir suas tradições de estudo.Como tradição e campo de estudo, a

    antropologia tem sido imensamente aju-dada pela emergência da autoconsciênciaglobal de que esta é a era da “antropo-cena” – um sentimento compartilhadoglobalmente de crise climática/ambientalna qual as questões históricas básicas da

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    antropologia sobre a natureza do humanosão preocupações centrais da própria hu-manidade. Entretanto, de forma alguma aantropologia está se reinventando recor-rendo ou esperando pela “grande teoria”.“Antropologia”, neste sentido, é agorauma aposta explícita de toda ciênciahumana. Minha preferência, entretanto,por consistência com a minha afinidadebiográfica pela antropologia como umaopção de carreira, que já expliquei, é en-tender como seus métodos consagrados,

    construídos sobre pesquisa etnográfica etrabalho de campo estão mudando.

    Fazendo uma retrospectiva do que achamada “crise da representação” fez àantropologia durante e depois dos anos80, juntamente com a poderosa críticapós-colonial da história na qual estavainserida, nós poderíamos dizer que seestabeleceu uma condição limite paraenquadrar e afirmar antigas questões

    e projetos antropológicos, e que se deulicença a jovens acadêmicos para percor-rerem novas direções. Os velhos temas –os mundos da alteridade e as condiçõesdos povos indígenas, para os quais o mé-todo etnográfico foi historicamente ide-alizado para estudar em profundidade –têm mantido uma bússola ideológicacentral enquanto muitos outros tópicos

    e assuntos têm se espalhado. Como aetnografia tem sido ao menos repensadacomo modelo da pesquisa – ou críticacultural, para usar o jargão das décadasde 1980-1990 – neste universo mais eclé-tico e diversificado de questionamentos?

    1) Por um momento, durante e apósa década de 80, os etnógrafos incorpora-ram suas práticas a contextos definidospela pesquisa histórica mundial, social e

    colonial. Eles mudaram para permane-cerem os mesmos.

    2) Cada vez mais, à medida que osetnógrafos abordam problemas contem-porâneos e emergentes, eles investemmais profundamente em suas preocu-

    pações públicas e ativistas de sempre,e se justificam mais explicitamentenesses termos. A mudança e as múltiplasgradações de expressão dos públicos dequestões contemporâneas definem ostópicos das pesquisas para as quais oantropólogo contribui de forma pontualenquanto durarem as tendências.

    3) Eles se voltam para dentro, tor-nam-se hiperteóricos e arquivistas, ereinventam a relevância de problemasclássicos e os seus termos para a an-

    tropologia atual. Esta é a proposta deum ensaio de “tomada de posição” deTimothy Ingold, intitulado “Anthropo-logy is definitely not ethnography”.Esta proposta reflete também o desejode refazer a antropologia nas bases deseus programas ambiciosos mais re-centes, historicamente falando, como oestruturalismo, e isto ocorre em lugaresonde a reputação da antropologia se

    assentava em determinadas conquistasetnológicas – seu extraordinário arquivohistórico e contemporâneo expressandoas condições dos povos indígenas. Deacordo com o polêmico comentário deTerence Turner, por exemplo, esta é aantropologia corrente na Amazônia,numa fase de “estruturalismo tardio”,que imediata e ambiciosamente cria para

    si ideologias de teoria como “ontologia”sobre as quais debates antropológicospodem ser organizados.

    4) Etnógrafos absorvem suas novascolaborações tanto dentro como fora daacademia ou do museu e criam com elasnovos recursos e formas de pesquisaspara si próprios. Aqui, métodos estabe-lecidos se tornam fontes importantes deinovação que requerem novas parcerias.

    Método é muito mais do que simples-mente método, e etnografia se transformaem terreno reforçado de experimentaçãocom as técnicas clássicas e a ideologia detrabalho de campo. Aqui, a etnografia dealguma forma se junta às colaborações

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    globais às vezes variadas, outras vezessistematizadas, e faz delas seu próprio“trabalho de campo”.

    Estas quatro tendências não sãomutuamente excludentes na prática con-temporânea, mas alinhado com meuspróprios interesses desde a década de90, estou mais interessado pela quarta.Esta opção aparece mais obviamentepara abordar questões de método, masnão é apenas isso. Nela há o interessede ir até a fonte no processo de pesquisa

    no qual as ideias antropológicas são arti-culadas, pensadas, induzindo um tipo deetnografia, ou seja, uma etnografia que écompartilhada tanto no nível intelectualelevado como no nível prático aplicadoem conjunto com sujeitos e parceiros napesquisa. Uma expressão desse conhe-cimento – textual, ou não – é igualmenteum produto especializado e um meio depesquisa antropológica. O que é exclusivo

    da etnografia, creio eu, é a construção desuas ideias – e seus conceitos e teorias –a partir daquelas dos sujeitos e parceirosencontrados no trabalho de campo. Nessesentido, a teoria é a forma primitiva dosdados – não o seu resultado – mas comotal deve ser localizada nos sítios e nassituações do trabalho de campo. Isto re-quer formas dialógicas de recepção que

    o antropólogo tem que produzir, encenar,projetar e incorporar às noções clássicasde trabalho de campo e à produção detextos etnográficos provenientes delas.Como tudo isso pode ser encenado, me-diado e circulado em um projeto “padrão”de pesquisa antropológica contempo-rânea é assunto de profundo interessepara mim, como já enfatizado em escritosrecentes, e que tenho tentado submeter à

    experimentação em um modesto Centropara Etnografia que criei na minha uni-versidade assim que cheguei, em 2005(Cf: www.etnography.uci).

     Assim, meu impulso é trazer de voltaa produção da etnografia – os textos

    publicados – para dentro da experiênciacontemporânea de construir o campo dotrabalho de campo. E para isso é precisoque haja formas e normas para corrigir asformas textuais que já temos, tornando-asperformativas e, em parte, mais ativa-mente intervencionistas, além de redi-mensionar os próprios ideais regulatóriosclássicos do método etnográfico. Destamaneira, o que procuro são formas deatuação, colocação e textualização dentroe ao longo do trabalho de campo. Apare-

    cendo para tornar-se teatro, atuação, ouexperimental no sentido estético, por umlado, ou trabalho de estúdio de designers,por outro, sugiro que essas alianças criamas formas de atingir os fins respectiva-mente históricos, analíticos e teóricosda pesquisa antropológica conforme suaevolução desde a década de 1980.

     JPO e PF – Gostaríamos de ouvi-lo falar

    um pouco mais sobre esse Centro para

    Etnografia na UCI.

    Organizar um centro para etnografiadepois da minha mudança para a Uni-versidade da Califórnia, Irvine, em2005, proporcionou a mim e a outros aoportunidade de refletir e modestamentetestar essas formas de produção etnográ-

    fica dentro e ao lado das políticas e dosdilemas de estabelecer locais e condiçõessegundo o espírito clássico de trabalhode campo, no qual a observação partici-pativa contínua, as ações dialógicas e osrelacionamentos sérios e significativospara a pesquisa possam ser cultivados.Estes são os meios para experimentara textualização da etnografia no temporeal do trabalho de campo. O Centro

    tem oferecido uma oportunidade depensar sobre formas que trouxessem oprocesso da escrita etnográfica de voltapara os problemas práticos, reais de cons-tituir o trabalho de campo em universosdiversamente construídos desde a base.

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    Pessoalmente, venho pensando sobre essasformas desde a década de 90, quando meinteressei pelo surgimento de uma “etno-grafia multissituada”, com sua metáforade “seguir”, como a condição de produziresse tipo de pesquisa – semelhante aoutros imaginários de pesquisa e teoriasobre processos móveis ou circulantes deconstrução de conhecimento, muito emvoga naquela década – sendo a mais in-fluente a teoria ator-rede, ainda em voga.

    Entretanto, hoje em dia, aquela visão

    da vida social do método etnográfico estábastante solitária. Sugiro que ela deveriaser reimaginada e desafiada a abordarnovamente o problema de situar as virtu-des e os efeitos do trabalho etnográfico demicroescala num mundo interconectadoe globalizado no qual colaboração veioa ser a palavra-chave, quase expressãonormativa universal de relações sociaisdesejáveis. A etnografia permanece

    multissituada, mas sua composição nãopode ser compreendida seguindo-se eexplicando-se os processos que são au-toritária e esteticamente percebidos nosrelatos resultantes. Um problema capitalé que a evocação da etnografia multis-situada veio a ser entendida de formaliteral como a reprodução e a multiplica-ção de sítios de pesquisa individual onde

    modos e padrões de pesquisa aplicáveis aum seriam produzidos em cada um deles.Naturalmente, esta questão estava abertaa óbvias críticas de viabilidade, que eu já previra no ensaio original. O que maisme interessava pessoalmente era comoo trabalho em um lugar suscitava rotasfrequentemente ocultas para outros, pre-cisamente através do trabalho teórico ouconceitual que o etnógrafo pudesse fazer

    com assuntos específicos e não outros,ou seja, o informante-chave tornando--se o parceiro epistêmico em relaçõesde cumplicidade – um construto com oqual eu já trabalhara na década de 1990.Esta é também a forma como múltiplas

    escalas e caminhos de consequênciasnão intencionais foram evocados no ma-gistral trabalho de Anna Tsing, de 2005,Frictions, por exemplo.

    Nesta trajetória, eu realmente vi oconstruto multissituado tornar-se algocomo as conectividades emergentes, ecaminhos de recursão gerados por ideiascaracterísticas da etnografia produzidasde forma colaborativa surgirem nas ce-nas de trabalho de campo – como umatecnologia de fazer perguntas que dava

    início a uma trajetória de fato multissi-tuada. O que faltava era pensar sobreas formas literais que pudessem entãomaterializar esse sentido de processode trabalho de campo. Mudanças namaneira como o mundo se apresenta aetnógrafos para projetos de trabalho decampo, e mudanças extraordinárias namídia e nas tecnologias de comunicaçãofinalmente tornaram explícita e urgente a

    questão de fazer coisas de forma diferen-te com o método clássico. Na formulaçãomultissituada original, esta questão nãoestava aprofundada, mas só se tornougradualmente mas nunca claramentedizível em tempos recentes. Estas têmsido as maiores preocupações e experi-mentações com forma que têm surgidono Centro em UCI até agora:

    1) Colaboração: a colaboração foio primeiro e talvez óbvio interesse daconsideração do Centro, e assim tem per-manecido. Muito embora a colaboração,na prática, seja um componente mais oumenos explícito de projetos etnográficosindividualmente escritos desde o iníciodo método, a colaboração é em todaparte agora um padrão e uma expressãonormativa de associação. É um “bem”

    universal a ser fomentado com muitopoucas sombras. É, por isso, o meio deacesso prático, formal e realista parase constituir o trabalho de campo entregrupos, projetos grandes e pequenos,locações, sítios e lugares. É tanto o éter

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    como o casulo de projetos de pesquisaconcebidos individualmente, e que setornam colaborativos em toda parte,por tração ou empurrão. Em suma, ascolaborações não são uma escolha notrabalho de campo, são a condição para asua constituição. Experimentos dentro decolaborações e suas políticas de relaçõesde pesquisa definem o grau de liberdadeque os etnógrafos podem reservar parafazerem suas próprias perguntas.

    2) Experimentos pedagógicos: os

    tipos de alunos que se tornam antropó-logos atualmente, e que passam peloprocesso de iniciação da etnografia, sãodistintos por quase sempre terem estadoonde querem chegar (como jornalistasou trabalhando em ONGs de variadascausas e tamanhos), tendo experiênciae sabendo línguas relevantes para aalteridade antes definidora do lugar doobjeto etnográfico.

    Eles chegam e são recrutados combase nos compromissos, e curiosidadesque já possuem sobre os problemas paraos quais se tornaram antropólogos irãoajudá-los a conhecê-los de novo ou maisprofundamente. Assim, normas regu-latórias do método clássico curvam-sepragmaticamente para se ajustaremao que é trazido pelos novos alunos. O

    impulso é levar a produção de etnografiade volta para a experiência de campo,mas torna-se necessária uma pedagogiapara fazê-lo. Os ideais regulatórios deMalinowski constituem ainda as basesdo treinamento teórico e metodológicoantes da aventura no literalmente des-conhecido. Em vez disso, experimentoscom forma etnográfica – no estúdio ouna sessão colaborativa de planejamento

    (charrette) – expandem a imaginaçãopara projetos para os quais os alunos jávêm comprometidos. As possibilidadesexperimentais aumentam consideravel-mente em revisões de dissertações depós-doutorado, e nos imaginários para

    um segundo projeto, quando os antro-pólogos recém-formados estão sozinhos.Trabalhos de pós-dissertação e projetosposteriores não são mais tão malino- wskianos. Mas o primeiro trabalho decampo é confuso, especialmente se emmeio a envolvimentos em rede de pro- jetos colaborativos grandes e pequenos,preexistentes, altamente reflexivos e àsvezes até para etnográficos na aparên-cia. Formas e expedientes alternativospoderiam ajudar, se ao menos eles

    fossem incentivados pela experiênciapedagógica.

    3) Terceiros espaços, estúdios, paras-sítios e formas intermediárias de trabalho

    conceitual dentro do trabalho de campo e

    em paralelo com ele: os terceiros espaçosforam evocados no trabalho recente deMichael Fischer no esforço de imaginaruma antropologia distinta da ciência eda tecnologia. Eles surgem em momen-

    tos “platôs” do trabalho de campo, quesão oportunidades dialógicas para osantropólogos, quando questões éticassão debatidas e articuladas pelos atoressociais no processo. Sua emergênciasugere estratégias alternativas e per-formativas de levantamento etnográfico.Parassítios evocam experimentos com aencenação real desses eventos de tercei-

    ro espaço, mais no espírito de estúdiosdo que de seminários, em meio ao tra-balho de campo ou em paralelo com ele,como um modo de desenvolver linhasde pensamento ou trabalho conceitualentre as partes relevantes e cooperativas.“Terceiros espaços” e “parassítios” sãoexpressões específicas de ou protótipospara as formas intermediárias que tenhoem mente.

    4) Plataformas e experimentos digi-tais com composição, comentário, rela-

    cionamento, recepção, micropúblicos e

    textualidades: plataformas digitais são,em sua concepção e manutenção, naverdade, terceiros espaços que estão se

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    tornando formas primárias do gêneropara a etnografia – elas aglutinam textose trabalho de campo. Elas prometemainda condensar muitas das funções queeu imagino como formas intermediáriaspara realçar, se não deslocar, a produ-ção tradicional de textos etnográficosdo trabalho de campo. Entretanto, sãograndes empreendimentos coletivos,envolvendo coordenação considerável,devotado trabalho de gerenciamento ecuradoria, além da luta por recursos,

    quando estes não são provenientes defontes externas. O Centro não patrocinaou produz nenhuma delas, mas se inte-ressa por projetos em andamento. Nósestamos, por exemplo, especialmenteinteressados em acompanhar os Arqui-vos da Asma, plataforma concebida emantida há vários anos por Kim e MikeFortun, que têm escrito em detalhe sobrea derivação do projeto da sua plataforma

    da linhagem do Writing culture e, maisgenericamente, do fermento da teoriacultural durante as décadas de 80 e 90. Algumas plataformas permanecem pe-quenas e lutam produtivamente. Outrascomeçam no interior de ou são assimi-ladas por enormes e bem financiadosprojetos filantropo-capitalistas.

    5) Expedientes contemporâneos, em

    geral: nidações, cimbramentos, recursões, recepções e micropúblicos: experimentose projetos digitais para pesquisa e es-crita etnográficas são tipos especiais deexpedientes, improvisações com a formaclássica de etnografia segundo as restri-ções e as possibilidades das tecnologiasmidiáticas. Eu pessoalmente estou maisenvolvido com um tipo de expediente quetrabalha com as formas clássicas, tecno-

    logicamente mais primitivas da etnogra-fia (observação participante, anotaçõesdurante a imersão no campo, escrita feita

     in loco etc.). Eles são experimentos empesquisa contextualizada e pensada emcontextos naturais com parceiros encon-

    trados e colaboradores, embora tenhamdesenvolvimento complexo, abordandoas questões de gradação e circulação queo meu interesse original no surgimentoda etnografia multissituada na décadade 1990 começou a abordar. Esses ex-perimentos têm caminhos muitas vezesinesperados e disjuntivos, ou trajetóriasque surgem no trabalho de campo, masque têm uma coerência de ideia ou umproblema que os define.

    Isto implica uma espécie de refor-

    mulação do quadro multissituado emque a ideia de mover-se entre sítios in-tensamente investigados de trabalho decampo foi imaginada como processos deseguimento. Expedientes significam umredimensionamento da função desse es-tilo de pesquisa multissituada saídos deprocessos de seguimento intensamenteinvestigados, em sítios apropriados eencontrados, em direção à ideia de cons-

    truir e montar micropúblicos e recepçõespara as ideias e as percepções criadascomo tentativas nas arenas iniciais deinvestigação, e transformadas em ar-gumento, em dados etnográficos, emteoria à medida que se deslocam. Comovou argumentar, este é o movimento domodesto projeto de pesquisa etnográficaem direção a um eventual “encaixe” ou

    limite de autoridade, mas não ao chegar,com a apresentação de um modelo, umaexplicação ou uma descrição analíticasimplesmente, ou principalmente comoponto final ou produto, mas com umoutro apelo para recepção, em meio ahistória alheia, por um caminho recur-sivo de circulação, que pode ser umcaso decisivo, ou talvez limitador – dotipo que é articulado na linguagem dos

    modelos, consequências, resultados econhecimento por avaliadores do projetona academia ou alhures.

    Em certo sentido, isto é uma chamadapara a preservação e o progressivo refi-namento de protótipos enquanto núcleo

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    que um projeto etnográfico inserido podeevocar para seus próprios propósitos.Um bom exemplo seria como as repre-

    sentações midiáticas, as campanhas dedefesa e as respostas legais contribuemrepetidamente para transformar um in-cidente em evento, e como a etnografiacria paralelamente suas próprias recep-ções, provas de conceito e similares.Nós pretendemos com os projetos doCentro o mesmo tipo de inserção par-cial e calculada da pesquisa etnográfica

    em outras práticas relevantes, mas, nonosso caso, os parceiros inspiradores,ou referentes, têm sido a concepção dedesigns e métodos, por um lado, e certosmovimentos de arte contemporânea (artede área específica e participativa e seuspredecessores), por outro.

    Para a etnografia, essas esferas alter-nativas prometem oferecer alguma ima-ginação, inventividade e alguns “truques

    do ofício” para as normas e as formas comas quais nós conduzimos experimentos.Portanto, na minha carreira recente, eu“fecho o círculo” permanecendo fiel àminha fascinação por aquelas cartasque chegavam do campo de pesquisaenviadas por minha irmã das selvas daMalásia há muitos e muitos anos...

    Notas

    1  Traduzido em português como“Um jogo absorvente: notas sobre a bri-ga de galo balinesa”. 1989. In: CliffordGeertz, A interpretação das culturas. Riode Janeiro: LTC.

    2 Nota dos entrevistadores: Na en-trevista, George Marcus utilizou o termo“revolution” para se referir a essa questão.