" a falecida" de Nelson Rodrigues
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ELIANE GOUVEIA CORDEIRO SANTANA
A LINGUAGEM COLOQUIAL DE “A FALECIDA” DE NELSON
RODRIGUES: RESISTÊNCIA E/OU RESSIGNIFICAÇÃO NA ATUALIDADE.
BELÉM
2013
Eliane Gouveia Cordeiro Santana
A LINGUAGEM COLOQUIAL DE “A FALECIDA” DE NELSON
RODRIGUES: RESISTÊNCIA E/OU RESSIGNIFICAÇÃO NA
ATUALIDADE.
Dissertação sobre Linguagem coloquial, na linha
de interesse em Linguagem e Análise Discursiva
de Processos Culturais, para obtenção do grau de
Mestre em Comunicação Linguagem e Cultura.
Professora: Dra. Lucilinda Teixeira
BELÉM
2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819
417.2 S232l Santana, Eliane Gouveia Cordeiro. A linguagem coloquial de “A falecida” de Nelson
Rodrigues: resistência e/ou ressignificação na atualidade. / Eliane Gouveia Cordeiro Santana. – Belém, 2013.
89. il.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia, Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagem e Cultura, 2013.
Orientador: Profª. Drª. Lucilinda Teixeira.
1. Linguagem coloquial . 2. Rodrigues, Nelson. 3. Gírias. I. Teixeira, Lucilinda . II.Título.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Presidente: Dra. Lucilinda Teixeira
Instituição: UNAMA - Universidade da Amazônia
______________________________________
Titular: Dr. José Guilherme de Oliveira Castro
Instituição: UNAMA - Universidade da Amazônia
_____________________________________
Titular: Dr. José Ribamar Ferreira Júnior
Instituição: UFMA - Universidade Federal do Maranhão
Belém, 15 de janeiro de 2013.
Ao meu marido Ricardo Santana e aos meus
filhos Naiara e Ângelo.
AGRADECIMENTOS
Ao meu Deus pela misericórdia e pelos milagres sempre presentes na minha vida principalmente
quando pensei em desistir e Ele tornou-se meu braço forte.
À minha querida professora e agora amiga Dr. Lucilinda Teixeira pela paciência, delicadeza,
educação e orações como nunca imaginei e quando mais precisei.
Ao meu amado marido Ricardo Santana por ter acreditado em mim e por ter promovido a
realização deste sonho do início ao fim.
A minha querida mãe Lindomar pelo seu apoio incansável nas horas de escrita deste trabalho, sua
voz amiga jamais será esquecida.
Ao meu irmão Beto pelas tantas vezes que precisei sair para as bibliotecas e ele auxiliou meu
filho sem me pedir nada em troca.
Aos meus filhos Naiara e Ângelo por terem esperado por mim tantas vezes sem entender o que se
passava dentro de mim.
Aos doutores que admiro muito Lucilinda Teixeira, José Guilherme, Amarílis Tupiassú, Rosa
Assis, Ana Laura Corradi, Mariza Morkazel e Paulo Nunes pela competência e sabedoria que me
fizeram amar ainda mais minha profissão.
A minha querida amiga doutoranda Rosângela Quintela pelo apoio, orientações e conversas
depois do susto quando não havia mais ninguém, você foi usada por Deus.
A minha secretária Paula Eremita por me substituir em minhas funções.
Ao meu amigo Ricardo Catete (in memorian) por sua gentileza em me ajudar na descoberta de
material para análise da gíria “até aí morreu o Neves”. Sentirei sua falta.
A minha colega de classe Karol por compartilhar comigo as incertezas, dificuldades e alegrias
nesta jornada que antes para nós era tão difícil, mas agora tão gratificante.
A doutora Ivânia Neves por me dizer que deveria continuar por causa dos meus filhos, suas
palavras não foram esquecidas.
“Se você falar com um homem numa
linguagem que ele compreende, isso entra na
cabeça dele. Se você falar com ele em sua
própria linguagem, você atinge seu coração".
Nelson Mandela
RESUMO
Um estudo sobre a análise de algumas expressões coloquiais e gírias de Nelson Rodrigues na
peça teatral “A falecida”, a 1ª tragédia carioca. Esta dissertação tem a finalidade de verificar se
estas expressões coloquiais ainda fazem parte da linguagem das pessoas na atualidade com o
mesmo significado de outrora ou se já possuem outras ressignificações, com base na teoria sobre
o dialogismo de Bakhtin. Optou-se em trabalhar com este tema com o intuito de contribuir com
uma abordagem científica, pois até então se desconhece um trabalho semelhante a este. Considero
importante ter esses registros organizados como memória, pois dada a mutabilidade da língua, tais
registros podem facilmente se perder na memória coletiva. A problemática desta dissertação se
resume na pergunta: Será que a linguagem coloquial utilizada por Nelson Rodrigues em sua peça
teatral ainda resiste até nossos dias com o mesmo significado de outrora? Para atingir os objetivos
utilizei a pesquisa documental e bibliográfica. Por esses caminhos metodológicos foi realizado
levantamento e coleta de dados. A análise e interpretação desses dados foram efetuadas com base
na teoria e método de produção de conhecimento da hermenêutica filosófica, relacionando esta
abordagem teórico-metodológica com os estudos da linguagem em geral e coloquial. Nesse
sentido percebeu-se que a língua/linguagem não se prende às normas, mas sofre alterações com o
passar dos anos. Considerando tal contexto, referenda-se uma posição contrária daqueles que
supervalorizam a linguagem dita culta em detrimento da linguagem coloquial, por se acreditar
que esta última tem seu valor semiótico que deve ser considerado em nossas relações sociais,
como, por exemplo, nas relações entre professores e alunos.
Palavras-chave: língua, linguagem coloquial, memória, identidades
ABSTRACT
A study about the analysis of a some colloquialisms expressions and slangs by Nelson
Rodrigues in the play "The deceased", the first carioca tragedy. This dissertation aims to verify
that these colloquial expressions are still part of the language of the people today with the same
meaning of yore or if you already have other meanings, based on the theory of the dialogism of
Bakhtin. We decided to work with this theme in order to contribute to a scientific approach,
because until then is a work like this. I think it is important to have these records arranged as
memory, because given the changeability of the tongue, such records can easily get lost in the
collective memory. The problem of this dissertation is summarized in the question: does the
colloquial language used by Nelson Rodrigues in his play still resists until our days with the
same meaning of yore? To achieve the goals I used for documentary and bibliographic research.
By these methodological paths was carried out survey and data collection. The analysis and
interpretation of the data were made based on theory and method of production of knowledge of
philosophical hermeneutics, relating this methodological-theoretical approach to the study of
language in General and colloquial. In this sense it was noticed that the language/language is not
the rules, but changes over the years. Given this context, referenda a position against those who
stress the so-called cultured language at the expense of colloquial language, believing that the
latter has its semiotic value that must be considered in our social relations, such as in the
relationships between teachers and students.
Keywords: language, colloquial language, memory, identities
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1 ARCABOUÇO CONCEITUAL 17
1.1 Língua e Linguagem 17
1.2 Linguagem coloquial 18
1.3 Paródia 18
1.4 Hipotextos 18
1.5 Memória 19
1.6 Gírias 21
1.7 Cultura 25
1.8 Identidade 26
1.9 Dialogismo 27
1.10 Denotação e Conotação 30
2 NELSON RODRIGUES E “A FALECIDA” 32
2.1 Nélson Rodrigues: o bom de bico 32
2.2 Nélson Rodrigues: sua linguagem 33
2.3 A Falecida: até aí morreu o Neves 35
2.4 A Falecida: características da obra 37
2.5 Resumo da obra 37
3 ANÁLISE DAS EXPRESSÕES COLOQUIAIS EM “A FALECIDA” 43
3.1 Até aí morreu o Neves 43
3.2 Você é bom de bico 50
3.3 Cabeça de bagre 53
3.4 Inês é morta 58
3.5 Salvar a pátria 63
3.6 Amigo da onça 67
3.7 Cafundós do Judas 71
3.8 Entrar de sola 74
3.9 É batata! 76
3.10 Hora da onça beber água 77
3.11 Lavar a égua 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS 81
REFERÊNCIAS 85
ANEXOS
INTRODUÇÃO
O presente estudo trata da análise de algumas expressões coloquiais e gírias utilizadas por
Nelson Rodrigues na peça teatral “A falecida”, a 1ª tragédia carioca, com a finalidade de verificar
se estas ainda fazem parte da linguagem das pessoas na atualidade com o mesmo significado de
outrora ou se já possuem outras ressignificações.
Uma das características da peça de estudo é que ela foi escrita em apenas vinte e seis dias
e, encenada pela primeira vez em 8 de junho de 1953, pela Companhia Dramática Nacional, sob a
direção de José Maria Monteiro (RODRIGUES, 2012, p. 211). Em sua primeira encenação teve
um efeito bombástico na sociedade carioca da época, isto porque ela estava acostumada a assistir
peças cujo conteúdo narravam relações amorosas, sentimentais com heróis e heroínas, entretanto
Nelson Rodrigues dessa vez apresenta heróis totalmente diferentes para a época, pessoas capazes
de enganar, frustrar-se, sofrer, perder e muito mais (Ibdem, 2012).
No referido estudo algumas expressões de linguagem coloquial foram destacadas da peça
teatral “A falecida” por retratarem a forma de falar da sociedade da época de Nelson Rodrigues,
assim foram analisadas os seus significados e ressignificados dentro da obra e também foi
pesquisado o contexto histórico-cultural da origem de cada uma em materiais de mídia ou
literatura, no período de 1970 até agora. Por esse caminho foi realizado um exercício acadêmico
para identificar se os significados de tais expressões permaneceram ou não em nossa sociedade
atual.
De certa forma o registro feito por Nelson Rodrigues com relação à forma de falar de uma
sociedade da época contribuiu para se garantir que a linguagem, num período em que as pessoas
buscavam construir e firmar sua identidade, não se perdesse. Portanto, o registro feito por ele
naquele tempo serve agora de ferramenta de pesquisa e revisitação para este estudo agora.
Este trabalho foi se constituindo em uma proposta de dissertação, pautado na ideia de que
a linguagem da gíria é tão espontânea e dinâmica, que a tendência da juventude é criar novos
códigos e atitudes que a mantenha cada vez mais restrita dos demais membros da sociedade,
fazendo desta juventude falante consumidora compulsiva de novas gírias.
Logo, este estudo apresenta Nelson Rodrigues como alguém que se tornou criador de uma
forma de escrita especial e até então inédita no teatro brasileiro (RODRIGUES, 2012). Ele foi
capaz de apresentar, em seus textos, expressões cariocas e gírias que se tornaram marca
registrada do autor como se podem citar três expressões coloquiais que também farão parte deste
estudo: “Até aí morreu o Neves”, “Inês é morta” e “salvar a pátria”.
Nelson Rodrigues a partir de seu relacionamento com a sociedade foi capaz de apresentar
em seus textos, uma forma típica do falar de uma parte do meio em que vive, as expressões
coloquiais, as gírias, que, apesar do desgosto de alguns gramáticos, são marcas da linguagem oral
e, na maioria dos casos, é dotada de vários significados e dependendo do local em que é falada, é
decodificada pela maioria dos integrantes.
Assim que as leituras para esta pesquisa foram feitas, surgiu então a problemática desta
dissertação, será que a linguagem coloquial utilizada por Nelson Rodrigues em sua peça teatral
como marca do linguajar do subúrbio carioca em 1953 ainda resiste até nossos dias com o mesmo
significado de outrora? Passou-se, por conta disto, a levantar hipóteses que nortearam esta
pesquisa.
As hipóteses levantadas são: As expressões coloquiais utilizadas por Nelson Rodrigues em
sua peça teatral “A falecida” ainda são utilizadas na atualidade porque foram eternizadas pela
literatura; As palavras e expressões coloquiais da peça teatral A falecida ainda possuem o mesmo
significado no contexto de outrora; Há material visual, escrito, na mídia ou literatura onde estas
expressões podem ser encontradas na atualidade com o mesmo significado; Há recorrência da
memória na interpretação do significado das palavras e expressões coloquiais presentes na peça; Há
questões socioculturais e de identidades inseridas no processo de utilização delas.
Esta dissertação tem como objetivo geral analisar algumas expressões coloquiais e gírias
utilizadas por Nelson Rodrigues na peça teatral “A falecida” com a finalidade de verificar se estas
ainda fazem parte da linguagem das pessoas na atualidade com o mesmo significado ou com
outras ressignificações.
Os objetivos específicos são: Apresentar material teórico para compreensão do processo
de utilização e conhecimento desta linguagem na sociedade; Identificar as expressões coloquiais
mais utilizadas na peça teatral; Apresentar exemplos de utilização destes em tempos mais atuais;
Abordar a eficácia das expressões gírias como marcadoras de identidade, cultura e revisitação da
memória; Identificar sobre a semelhança de significados das expressões coloquiais do passado
com estas mesmas no presente. Para atingir esses objetivos utilizei a pesquisa documental e
bibliográfica.
A pesquisa documental [...] “é um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para
a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos.” (SÀ-SILVA et al,
2009, p.5 apud OLIVEIRA, 2007, p. 69 )
Tanto a pesquisa documental como a bibliográfica tem o documento com objeto de
investigação e como fonte de pesquisa. Contudo, o documento ultrapassa a ideia de textos
escritos e/ou impressos. [...] “O documento como fonte de pesquisa pode ser escrito e não escrito,
tais como filme, vídeos, slides, fotografias e pôsteres.” (Ibdem)
Sá Silva et al (2009, p.5 apud OLIVEIRA, 2007, p. 69 ) faz uma pertinente distinção entre
esses dois tipos de pesquisa. Para essa autora a pesquisa bibliográfica tem como fonte de pesquisa
livros e correlatos científicos, ou seja, “é um estudo direto em fontes científicas, sem precisar
recorrer diretamente aos fatos/fenômenos da realidade empírica”. Afirma que a finalidade dessa
pesquisa é proporcionar aos pesquisadores contato direto com fontes de domínio científico. A
pesquisa documental, ainda segundo essa mesma autora, [...] “caracteriza-se pela busca de
informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como relatórios,
reportagens em jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, entre outras matérias de
divulgação”. (Ibdem)
Vergara (2005, p.48) entende por pesquisa bibliográfica “o estudo sistematizado
desenvolvido com base em material publicado em livros, revistas, jornais, redes eletrônicas, isto
é, material acessível ao público em geral” e ele diz ainda que “uma investigação documental é a
realizada em documentos conservados no interior de órgãos públicos e privados de qualquer
natureza, ou com pessoas: registros, anais, regulamentos, circulares, ofícios, memorandos,
balancetes, comunicações informais, filmes, microfilmes, fotografias, videoteipe, informações em
disquete, diários, cartas pessoais e outros”.
Por esses caminhos metodológicos foram realizados levantamento e coleta de dados. A
análise e interpretação desses dados foram efetuadas com base na teoria e método de produção de
conhecimento da hermenêutica, relacionando esta abordagem teórico-metodológica aos estudos
da linguagem em geral e coloquial.
Isso foi feito porque a hermenêutica dá conta de um estudo filosófico sobre a arte da
compreensão e interpretação tanto de textos escritos quanto do processo que engloba as estruturas
não verbais da comunicação e nesta perspectiva, obviamente por se tratar de questões referentes à
linguagem e esta dissertação trata de linguagem coloquial, mais especificamente a gíria, ela
também dá conta dos aspectos da semiótica, interpretação, significação, signo e compreensão,
logo, propor um estudo dentro dessa abordagem teórico-metodológica tornou-se a mais adequada.
Para isso, apresenta-se o que disse Gadamer e que dá início ao entendimento da escolha do
método, a saber, “compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros”.
(GADAMER apud BRITTO, 1997, p. 288)
Portanto, o método hermenêutico consiste em analisar textos considerando os mais
variados contextos que englobam o material sugerido para análise e apresentar uma interpretação
coerente e lógica para aquilo, ou seja, uma análise que caiba no entendimento humano e que
esteja relacionado às suas manifestações linguísticas. Na perspectiva filosófica da hermenêutica é
fundamental que se trate unicamente de questões linguísticas, isto quer dizer que onde houvesse
linguagem, haveria compreensão e interpretação. Heidegger diz que:
Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de
‘felizes ideias’ e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua
vista ‘às coisas elas mesmas’ [...] Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa,
através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude
das ideias que lhe ocorrem. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um
projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido
do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a
partir de determinadas expectativas e não perspectiva de um sentido determinado. A
compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto
prévio, que, obviamente tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá
conforme se avança na penetração do sentido. Deixar-se determinar pela própria coisa é a
tarefa primeira, constante e última do interprete. (HEIDEGGER apud BRITTO, 1997,
p.402)
Logo, como a linguagem entra aqui como elemento principal de análise e neste prisma,
mais restritamente falando, a linguagem coloquial por ser o objeto de estudo, a hermenêutica vem
amparar com seu método de análise as interpretações feitas neste trabalho.
O método de análise hermenêutica que abrange a questão da linguagem como objeto de
compreensão e interpretação alcançaria, portanto, desde a linguagem como manifestação do
pensamento e a estreita relação básica que há entre falante e ouvinte até chegar na
intencionalidade do autor na escolha das palavras, por isso Gadamer diz que:
[...] o fato de uma conversação estar sempre presente em toda parte onde algo chega à
fala, seja sobre quê e com quem for, quer se trate de outra pessoa ou de alguma coisa, de
uma palavra, ou de um sinal de fogo – é isso que perfaz a universalidade da experiência
hermenêutica. Somente na conversação, no encontro com pessoas que pensam
diferentemente, podendo habitar em nós mesmos, podemos esperar chegar além da
limitação de nossos eventuais horizontes. (GADAMER apud BRITTO, 1997, p. 207)
A compreensão perpassa pelo entendimento de um signo, entendimento de um conteúdo,
um significado, por isso ela vem primeiro, pois só se é capaz de interpretar algo que se
compreende na sua totalidade.
A semiótica enquanto estudo das várias formas do homem significar o que o rodeia vem
apresentar os signos linguísticos e estes aqui cabem como instrumentos de análise nesta pesquisa.
Para que se compreenda melhor esta questão, apresenta-se o que disse Vilela (2001, p. 17) em
relação aos signos, a saber, “[...] são entidades em que sons ou sequências de sons - ou as suas
correspondências gráficas - estão ligados com significados ou conteúdos. [...] Os signos são assim
instrumentos de comunicação e representação, na medida em que, com eles, configuramos
linguisticamente a realidade e distinguimos os objetos entre si”, em suma, um significante
(sequências de sons ou correspondências gráficas) e um significado (conceito, conteúdo). Há
interesse nesta pesquisa, também, em apresentar o significante, pois como o trabalho se destina a
questão da linguagem falada, as gírias e o significante são passíveis de modificações, por isso a
este tópico é necessário dar atenção.
Neste fio teórico, cabe apresentar a importância da interpretação a partir da leitura de um
texto, ou melhor, apresentar aquilo que se descobriu por intermédio da compreensão do texto e a
interpretação dos possíveis sentidos dele. Como a hermenêutica recorre em seu método tanto a
compreensão (antes) quanto a interpretação (depois), fez-se necessário aqui apresentar estas notas
de esclarecimento.
A opção de pesquisar a linguagem coloquial justifica-se pelo conjunto significativo de
palavras criadas por falantes e reunidas em um acervo específico, teoricamente conhecido por
grupos populares e que por vezes tal linguagem torna-se acessível ao público de um modo geral.
Ainda que se pensasse em desvincular o sentido social das expressões coloquiais, é inegável o
caráter histórico, social e cultural da utilização destas. A escolha por trabalhar com este tema tem
como intuito contribuir com uma abordagem científica, pois até então se desconhece existir sobre a
possível recorrência de significados e utilização na atualidade. Observou-se que é importante ter
esses registros organizados como memória, pois dada a mutabilidade da língua, tais registros podem
facilmente se perder na memória coletiva. Também o estudo em destaque pode ser utilizado em sala
de aula.
No livro Nelson Rodrigues por ele mesmo existe uma preocupação da organizadora, sua
filha Sonia Rodrigues, que bem fala da importância deste estudo em questão, ela diz o seguinte: “O
que mais me incomodou, durante a leitura, foi constatar o quanto estão se perdendo, no país, as
ideias de Nelson Rodrigues, o que ele dizia que era (...)”. (RODRIGUES, Sonia, 2012, p. 6). Nesse
sentido, torna-se importante o registro desta sua forma de falar não apenas como a forma que se
encontra, na maioria das vezes, a saber, nos dicionários, nas gramáticas e nos manuais, mas por meio
de um estudo de significados e resistência, identidades e memórias, ou seja, o registro daquilo que
realmente “ele queria dizer na época” e se e como continuou a ser dito.
O referido trabalho foi desenvolvido por meio de quatro capítulos. No primeiro capítulo
demonstra-se o referencial teórico que serviu de base para a abordagem do objeto de estudo em
questão, o qual resultou de um levantamento da literatura que trata dos conceitos chaves do
trabalho, os quais são: língua e linguagem, linguagem coloquial, paródia, hipo-textos, memória, gírias,
cultura, identidade, dialogismo, denotação e conotação, portanto apresentam-se neste item as mais
variadas definições dos principais termos utilizados no trabalho. Optou-se por uma abordagem
gramatical e linguística para tratar da linguagem coloquial e abordagens sobre língua e linguagem
como a de Bakhtin (2006 e 2010), Bagno (2000), Basílio (1993), Coseriu (1982), Cuche (2002),
Preti (1984, 1999, 2000), Hall (2006), Pêcheux (1988, 1999) e Nicola (1993), para assim
construir compreensões sobre o assunto em questão e, desse modo, apresentar a relação que a
língua/linguagem tem com a sociedade.
No segundo capítulo apresenta-se o escritor Nelson Rodrigues e sua obra “A falecida”, a
fim de informar o leitor sobre o contexto estudado.
No terceiro capítulo apresentam-se as expressões coloquiais retiradas da peça teatral ‘A
falecida’, assim como seus significados retirados da maior variedade de dicionários de expressões
e gírias. Assim como a origem histórico-cultural das expressões, identificando se há material na
atualidade dentro da literatura ou mídia que comprovem a utilização até os dias atuais de tais
expressões, pontuando se há recorrência da memória, cultura e identidade e se o significado ainda
é o mesmo ou não, a partir do contexto em que são usadas.
E, finalmente, a conclusão mostra que, de modo geral, as expressões coloquiais que foram
selecionadas neste trabalho mostram como algumas gírias se mantiveram firmes quanto ao
significado e outras sofreram ressignificações. Nesse sentido percebe-se que a língua/linguagem
não se prende às normas, mas sofre alterações com o passar dos anos. Desse modo, vê-se que
Nelson Rodrigues usou com destreza as gírias, marcando a forma de falar da sociedade carioca
suburbana do Rio de Janeiro de 1953. De certa forma o registro feito por Nelson Rodrigues com
relação à forma de falar de uma sociedade da época contribuiu para se garantir que a linguagem,
num período em que as pessoas buscavam construir e firmar sua identidade, não se perdesse.
Portanto, o registro feito por ele naquele tempo serviu agora de ferramenta de pesquisa e
revisitação para este estudo.
1 ARCABOUÇO CONCEITUAL
Para que se contextualize este estudo e esclareça possíveis dúvidas do leitor, há a
necessidade de se apresentar os conceitos referentes à linguagem coloquial, gírias, paródia (hipo-
textos), língua, linguagem, cultura e identidade. Portanto, tais conceitos serão apresentados a
seguir.
1.1 Língua e Linguagem
A língua, por seu turno, é um código de que se serve o homem para elaborar mensagens,
para se comunicar. Segundo os gramáticos, como Bagno (2000), existem basicamente duas
modalidades de língua, ou seja, duas línguas funcionais. Uma é a língua funcional de modalidade
culta, língua culta ou língua-padrão, que compreende a língua literária, tem por base a norma
culta, forma linguística utilizada pelo segmento mais culto e influente de uma sociedade. E a
outra modalidade é a linguagem coloquial, aquela falada no dia a dia e sem preocupações com as
normas que constam nas gramáticas.
Para Bagno (2000), a chamada norma culta, forma linguística que todo povo civilizado
possui, é a que assegura a unidade da língua nacional. E justamente em nome dessa unidade, tão
importante do ponto de vista político-cultural, que é ensinada nas escolas e difundida nas
gramáticas.
Nesse sentido, Basílio (1993) revela que o momento neutro é o do uso da língua-padrão,
que é a língua da Nação. Pois ele entende que é a forma que deve ser conhecida e aplicada por
todos, nivelando o conhecimento, isto quer dizer que, aquele que conhece e faz uso da norma
padrão é capaz de decodificar mensagens mesmo que estas venham num código um pouco
diferente. Por isso, como forma de respeito, tomam-se por base aqui as normas estabelecidas na
gramática, ou seja, a norma culta.
Portanto, a sociabilidade passa a ser a qualidade do discurso otimizado para o
desempenho social. Nesse cenário, a linguagem coloquial é tratada nesta pesquisa como palavra
ou construção de uso corrente entre grupos sociais. Neste caso específico as gírias, mais que uma
forma despretensiosa de falar, é uma forma inventiva, criativa de apresentar palavras ou
expressões carregadas de significados, que conforme a construção do significante ainda por sofrer
ressignificações. Sendo assim, as gírias aqui são apresentadas como objeto de estudo
aprofundado que permita perceber a dinâmica que envolve esta forma de linguagem coloquial.
1.2 Linguagem coloquial
A linguagem coloquial, segundo Mello (2009, p. 23), “[...] vem de colloquium, que, em
latim, significa ‘conversa’. Daí ser a linguagem falada, que usamos para conversar, para nos
comunicar no dia a dia, descontraidamente, sem preocupações com a norma culta da língua, não
havendo, portanto, o compromisso ou a obrigação de falar corretamente”. Ou seja, é a linguagem
despretensiosa do cotidiano, sem observações profundas quanto às normas gramaticais.
1.3 Paródia
Para Hutcheon (1989, p. 54), paródia é uma repetição do que foi dito, mas de uma forma
diferente, ou melhor, uma imitação de certa forma crítica que pode acrescentar benefícios e
prejuízos, desdém e reverência ao mesmo tempo por conta da ironia. Segue esse pensamento
Genette (2005, p. 33), quando afirma que: “[...] a palavra paródia é correntemente o lugar de uma
grande confusão, porque a usamos para designar ora a deformação lúdica, ora a transposição
burlesca de um texto, ora a imitação satírica de um estilo”.
1.4 Hipotextos
Para que se compreenda o hipotexto no fragmento de Nelson Rodrigues cabe aqui
apresentar mais uma vez o que disse Genette (Ibdem, p.15), “entendo por hipertextualidade toda
relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente,
chamarei hipotexto)”, o hipotexto desta forma seria um novo texto construído sobre outro, um
novo, mas toda vez que o leitor identifica este hipotexto, automaticamente sua memória faz
menção ao texto anterior (hipertexto) que foi usado como modelo, como padrão. Desta forma há
uma proposição dada pelo próprio autor em “(re)batizar de paródia o desvio de texto pela
transformação mínima” (Ibdem, p. 35).
Fiorin (2008, p. 103) ao fazer menção ao dialogismo de Bakhtin apresenta também um
princípio que justifica a paródia quando diz que “A linguagem é heterogênea, a fala é
heterogênea, a palavra é heterogênea e sob ela há outras palavras, ou seja, o discurso é tecido a
partir do discurso do outro, o que já foi dito sobre o qual qualquer discurso se constrói. O
discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre outros discursos. Todos são, portanto,
atravessados, ocupados, habitados pelo discurso do outro, Authier (apud FIORIN, 2008) já dizia
isso em 1990 e isto tudo sobre a heterogeneidade conceitua precisamente a teoria de Bakhtin
sobre o dialogismo”, ou seja, o dialogismo favorece de certa forma o uso da paródia quando ele
constrói um pensamento sobre outro já existente, claro que não na perspectiva exata do hipo-
texto, mas abre um leque de possibilidades e justificativas do uso deste em ‘A falecida’.
1.5 Memória
Nelson ia sendo criado dentro do clima da época: as vizinhas gordas na janela,
fiscalizando os outros moradores, solteironas ressentidas, viúvas tristes, com as pernas
amarradas com gazes por causa das varizes. Naquela época os nascimentos eram
assistidos por parteiras de confiança e eram feitos em casa. Os velórios também eram
feitos em casa, usava-se escarradeira e o banho era de bacia. Nelson registrava em sua
memória esse cenário. Daí sairiam os personagens de sua obra literária”.(NELSON
RODRIGUES. Disponível em: http://www.releituras.com/nelsonr_bio.asp. Acesso em::
27/11/2012).
Em relação à memória seria importante lembrar o texto de Montenegro (2001, p. 24) ao
fazer menção ao que disse Halbwach e Bartlett a respeito das lembranças: “lembrar não é reviver,
mas refazer, repensar, com imagens e ideias de hoje as experiências do passado”. Portanto o
mecanismo da memória é algo que acompanha o escritor Nelson Rodrigues na elaboração de sua
peça teatral, pois este sabendo do conhecimento, informação e cultura que a sociedade possui, os
hipo-textos acabam funcionando como ferramentas de revisitação do passado. Por isso mais uma
vez cita-se Hutcheon (1989, p. 48), quando diz “que o prazer da ironia da paródia não provém do
humor em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no ‘vaivém intertextual’, quando o
leitor consegue identificá-la com alguma passagem ou evento conhecido”, evento este evocado
pela sua memória.
Há de se compreender que “Todas as partes da língua estão submetidas à mudança; a cada
período corresponde uma evolução mais ou menos considerável” (SAUSSURE, 1975, p.50).
Melhor dizendo, a utilização da linguagem coloquial é de fato uma característica da própria
evolução de uma língua, uma vez que esta não está dentro de uma caixa fechada, mas livre para
que seus usuários a manipulem, e dela faça uso na responsabilidade de que é uma ferramenta para
se compreender o outro e fazer-se compreendido por ele.
Lembre-se que formação da língua portuguesa, no Brasil, passou por diversos processos,
os quais contribuíram para a criação de um acervo bastante amplo de expressões que nos
possibilitam a comunicação diária.
Souza (2003, p. 2), afirma que “ao enunciar, o falante reflete e retrata as suas condições
histórico-sociais, a sua instância de enunciação, por isso todo signo é ideológico". Dito de outra
forma, ao propor sua mensagem o emissor é capaz de imprimir nesta sua cultura, sua forma de
pensar e ver a sociedade, daí o signo poder ser considerado como uma forma de ideologia, uma
vez que o homem é capaz de imprimir características de si mesmo em sua linguagem. Então, se
ele imprime suas características de vida, dada a mutabilidade da língua, ele é capaz de
naturalmente criar novas palavras, dar novos sentidos, entre outras coisas.
A partir disso, Coseriu (1982, p. 116) mostra que “todo falante é, dentro de sua língua
histórica, plurilíngue ou poliglota”, ou seja, é natural que no exercício diário da palavra o ser
humano constantemente atribua a esta formas novas. Preti (1999, p. 223) confirma isso quando
diz que “a perda da condição de signo de grupo faz com que os falantes dos grupos restritos
procurem outros vocábulos que voltem a constituir desafios para a compreensão do falante
comum”.
Para que o ser humano possa viver em sociedade é necessário que ele consiga estabelecer
um mínimo de relacionamento e, para que este relacionamento se estabeleça também há a
necessidade de se dominar pelo menos um código, se este código é possível de ser decodificado
então há a possibilidade de fazer-se entender entre o mínimo de elementos que são o emissor e
receptor, independente do código da maioria. Preti (1984, p. 2) confirma essa ideia dizendo que
“essa linguagem especial serve ao grupo como elemento de auto-afirmação, de verdadeira
realização pessoal, de marca original, ela se transforma em signo de grupo”.
A utilização da linguagem coloquial em textos atuais como resultado da grande prática
oral é algo que vem acontecendo com frequência, este fenômeno tem preocupado alguns
gramáticos e tem deixado felizes publicitários que veem nesta “nova ordem” a possibilidade de
sair de certa mesmice e abraçar um universo de espontaneidade, modernidade e atualidade.
Entretanto, não obstante, o uso desenfreado desta forma, agora de escrever e não mais apenas de
falar, tem deixado aqueles que a tinham como forma marginalizada de expressão de “orelha em
pé”.
É importante mencionar que Fiorin, (2008, p. 105) ao falar sobre o dialogismo de Bakhtin
relaciona isto à memória quando diz que “precisamos ainda nos valer de nossa memória
discursiva, de nosso conhecimento dos textos literários, para entender bem o que o poeta está
refutando”, logo, percebe-se que o dialogismo também está amarrado a questão da memória, isto
porque nossos pensamentos, falas, ações, na verdade estão atravessados por aquilo que já foi dito
e o dialogismo é isso.
É importante pensar que as gírias quando utilizadas por um determinado grupo é
inconscientemente resgatada de sua memória, de suas experiências linguísticas, uma vez que elas,
na maioria das vezes, não partem do nada, mas sim daquilo que o falante já domina e tem como
ferramenta de transmissão de informações.
1.6 Gírias
Para que se contextualize este trabalho há a necessidade de se apresentar os conceitos
referentes a uma modalidade específica da linguagem coloquial, a gíria, e sua articulação entre as
pessoas. Seguem agora tais conceitos.
O gramático Rocha (2011, p. 5), tem um conceito antigo e nem por isso defasado sobre as
gírias, ele diz que é “instrumento de comunicação geral, aceito por todos os componentes de uma
coletividade para assegurar a compreensão da fala.”. Diz também que é “língua especial [...] de
um grupo socialmente organizado”; e com uma [...] “educação idiomática deficiente”– ou seja,
alguém de pouca instrução, ou de pouco conhecimento de sua própria língua (Ibdem, p.4). De
fato, trata-se de uma ferramenta de transmissão de mensagens dentro de um grupo, não mais tão
restrito, pois nos dias atuais por conta das mídias refere-se ao uso de uma grande massa, cuja
função é assegurar a transmissão de informações.
Nicola (1993) afirma que a gíria “É a linguagem típica de um determinado grupo para
enviar mensagens decodificáveis apenas pelo próprio grupo. A gíria sofre um desgaste muito
intenso com o passar do tempo, pois o código torna-se conhecido fora do grupo; daí ser uma
linguagem de época” (Ibdem, 1993, p.111). Nicola (1993, p. 109) ainda justifica a criação e
utilização de novas palavras dada a mutabilidade da língua quando diz que “Uma língua não é
estática, imutável [...] Com o passar do tempo, vão ocorrendo várias transformações fonéticas,
evoluções nas regras gramaticais, mudanças de significação, palavras que desaparecem, outras
que são criadas”.
Como a gíria é marca da oralidade de um grupo, ou seja, sua manifestação falada, pode-se
compreender melhor essa recorrência linguística com as palavras de Nicola (1993, p. 110) que
afirma ser “A língua falada é mais solta, livre, espontânea e emotiva, pois reflete sempre um
contato humano direto”.
Segundo Cardona (1991, p. 159), a gíria é uma “[...] variedade linguística compartilhada
por um grupo restrito (por idade ou por ocupação), que é falada para excluir da comunicação as
pessoas estranhas e para reforçar o sentimento de identidade dos que pertencem ao grupo”.
Com base em Carreter (1974, p. 251), “é a língua especial de um grupo social diferenciado,
usada por seus falantes apenas enquanto membros desse grupo social. Fora deste, falam a língua
geral”.
Cegalla (1985, p. 535), diz que “é a fala espontânea e fluente do povo. Mostra-se quase
sempre rebelde à disciplina gramatical e está eivada de plebeísmos, isto é, de palavras vulgares e
expressões da gíria. É tanto mais incorretas quanto mais incultas as camadas sociais que a falam”.
Em outras palavras, pode-se afirmar que as gírias pertencem às camadas sociais com pouco ou
quase nada de escolaridade, mas também reconhece que se trata de um falar que nasce no
inconsciente do povo, não há regras para a criação de gírias, elas surgem naturalmente. Apesar de
se tratar de uma afirmação produzida em 1985, a espontaneidade e fluência ainda são marcas
desta forma de falar e também de escrever. Cegalla (Ibdem) quanto Rocha (Ibdem) apontam para
a organização e deficiência escolar do grupo social que as falam.
Garcia (1998, p.22) afirma em seu manual que todas as vezes que um termo gírio é
colocado no jornal, ele deve vir grafado em negrito para representar destaque a esta forma de
falar e este mesmo manual diz que “em qualquer outra circunstância não são usados (termos
gírios) no GLOBO”. Visto que os jornais de um modo geral trabalham com a norma culta da
língua e como a maioria das gramáticas as tem como linguagem de sociedade inculta, não razão
para que estes insiram em suas folhas esta forma ainda considerada, segundo o dicionário que
será citado no próximo parágrafo, “malfeita”.
Ferreira (1998, p. 989) apresenta as gírias de forma pejorativa e preconceituosa,
afirmando ser uma “linguagem de malfeitores, malandros etc”; “coisa malfeita e de duração ou
estrutura precária” (Ibdem, p.984). Apesar de se tratar de um conceito relativamente novo, pode-
se dizer que durante muito tempo as gírias foram vistas como sendo de fato a forma de
comunicação de grupos marginalizados, portanto todos que dela se utilizavam imediatamente
eram avaliados como pessoas sem cultura, sem educação, entretanto não mais se pode afirmar
isto dado o alargamento de sua utilização nas escolas, na internet e nas diversas camadas sociais,
funcionando como instrumento de aproximação e não mais de discriminação.
Preti (1999) mostra três características que mais justificam a utilização das gírias na
atualidade que são seu dinamismo, mudança e renovação. Ele apresenta ainda estas como parte
de uma sociedade moderna e que permite aos falantes que a utilizem dadas suas modificações tão
velozes que por vezes esta mesma sociedade não consegue acompanhar, daí a permissão para se
“abandonar as tradições”, como sugerem os estudos sociolinguísticos recentes. Este autor, apesar
de sua citação não ser tão recente, retrata uma forma de pensar mais próxima da atual realidade
quanto ao uso das gírias.
Para Calvet (2002, p. 114), "a gíria dos adolescentes responde parcialmente a uma
vontade de convivência no seio da faixa etária". Ou seja, é uma forma de falar que no grupo
jovem é bem recebida e funcional, visto o desejo deles pela aceitação dos demais membros do
grupo. De fato, pode-se perceber com facilidade que esta camada é a mais criativa no que se
refere a utilização do vocabulário gírio.
Segundo Calvet (2002, p. 112), "não existe razão linguística alguma para considerar a
gíria como uma forma separada da língua". Com base nesta afirmação, percebe-se que o autor
reconhece o uso da gíria como parte integrante da língua e mais ainda, não há motivos para
discriminá-la, posto que esta já foi inserida e, portanto, faz parte do vocabulário de muitas classes
sociais.
A formação da língua portuguesa, no Brasil, passou por diversos processos, os quais
contribuíram para a criação de um acervo bastante amplo de expressões que nos possibilitam a
comunicação diária. Um dos principais grupos de palavras que compõem a nossa língua são as
gírias, objeto deste trabalho.
Ferreira (1998) conceitua gíria como uma linguagem que, nascida num determinado grupo
social, termina estendendo-se, por sua expressividade, à linguagem familiar de todas as camadas
sociais.
Por apresentar uma grande praticidade quando da comunicação informal, a gíria tem
crescido no “falar brasileiro”, chegando ao ponto, segundo pesquisas, de ser a segunda língua do
país (FEIJÓ, 1997).
É Feijó (Ibdem) quem destaca que as gírias circulam por todo o país e surgem nos bares,
shoppings, esquinas, praias e micaretas. Depois, ganham as rádios, os estádios de futebol e
transformam o vocabulário jovem das cidades. Os locutores das FMs funcionam como antenas
dos adolescentes, sempre prontos a aprenderem um novo jargão. Os “novos” termos surgem nas
bocas e descontroladamente se alastram como epidemia.
Para Preti (2000 a), o tema da gíria começa a ganhar projeção no âmbito dos estudos do
léxico da língua, porque é inegável a expansão desse vocabulário, em nossa época, notadamente
no meio urbano. Para o autor, há razões de ordem social que poderiam explicar o fenômeno, que
não é exclusivamente brasileiro, mas que se expandiu muito em razão, também, do
fortalecimento dos regimes democráticos na sociedade moderna, em todo o mundo,
particularmente na América, o que veio a diminuir os preconceitos em relação à linguagem
popular.
O fato de se terem desenvolvido muito, nas últimas décadas, os estudos sobre a língua
falada, em especial com as contribuições da Análise do Discurso, da Análise da Conversação e da
Sociolinguística Interacional, contribuiu decisivamente para aguçar o interesse dos linguistas pelo
estudo da gíria (PRETI, 2000 a).
Apesar desse maior interesse recente, a gíria é um vocabulário de todas as épocas e de
todos os povos, se lhe atribuirmos o sentido de linguagem de um grupo social determinado.
Como manifestação tipicamente oral, porém, não deixa documentos suficientes para datar seu
exato aparecimento, embora sua existência possa ser vislumbrada em vários povos (Ibdem, 2000
a). Também ressalta Preti (2000 b) que a gíria pode estar ausente dos dicionários de língua
(principalmente dos mais modernos).
Observe a colocação de Gilbert (1969 apud PRETI, 2000 b, p. 20):
Os lexicógrafos que não têm outra medida além de seu sentimento linguístico e sua
cultura concordam que o nível de língua representado pela imprensa cotidiana e semanal,
as revistas especializadas, corresponde muito bem a nível médio da comunidade
linguística. Mas seus critérios são indecisos e subjetivos.
1.7 Cultura
Ao perceber a articulação e a importância da linguagem coloquial na sociedade de Nelson
Rodrigues é preciso apresentar algumas considerações a respeito de cultura, tais considerações
serão feitas a partir de agora.
Pêcheux (1988, p. 160) afirma que o “sentido de uma palavra, expressão, proposição, não
existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas é
determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo-sócio-histórico em que
palavras, expressões, proposições são produzidas”. Logo, a palavra ou expressão criada por um
indivíduo e compartilhada pelo grupo passa a fazer sentido para eles de tal forma que eles veem-
se nesta manifestação linguística parte de sua identidade social. Por isso que Geertz (1978, p. 15),
se utilizando da concepção de cultura de Max Weber, afirma que cultura é essencialmente um
conceito semiótico, por ser [...] “O homem é um animal amarrado a teias de significado que ele
mesmo teceu”.
Mais ainda apresenta-se o que Machado (1995, p.42) diz a respeito do que ela chamou de
vozes culturais, a saber, “A imagem da linguagem que o romance oferece não coincide,
certamente, com o discurso da comunicação, mas exprime possibilidades de tornar presentes as
vozes culturais que o enunciam”, isto quer dizer que ambas possuem “sons distintos”, entretanto
é possível capturar, perceber elementos que representem a cultura de quem fala, de quem escreve,
mesmo que estas linguagens não se assemelhem na imagem ou no discurso que carreguem, pois a
‘voz cultural’ é tão forte que se torna passível de observação.
É importante pensar que as expressões coloquiais quando utilizadas por um determinado
grupo é inconscientemente resgatada sua memória, suas experiências linguísticas, uma vez que
elas na maioria das vezes não partem do nada, mas sim daquilo que o falante já domina e tem
como ferramenta de transmissão de informações. E por conta do “valor depositado em nosso
inconsciente” que o indivíduo é estimulado a evocar sua memória discursiva, que será, no
momento oportuno, conceituada.
1.8 Identidades
O uso da linguagem coloquial não é apenas de ordem cultural, mas também identitário
(que marca a identidade de um grupo), por isso é importante fazer menção a determinados
conceitos de identidade, por exemplo, de acordo com Cuche (2002, p. 184),“A identificação pode
funcionar como afirmação ou como imposição de identidade. A identidade é sempre uma
negociação, uma concessão entre uma ‘auto-identidade’ definida por si mesmo e uma ‘hetero-
identidade’ ou uma ‘exo-identidade’ definida pelos outros”.
Uma das características do homem na sociedade é identificar (nomear) e ser identificado
(nomeado) na orientação sexual, nacionalidade, etnicidade, gênero e classe social (GIDDENS,
2005, p. 568-569), daí a percepção de que todos os seres sociais tem uma gama de palavras que
são capazes de decodificar do mesmo modo que os demais integrantes da mesma sociedade
(VANOYE, 2003, p. 26). Portanto, o indivíduo que faz uso da linguagem coloquial consegue
através dela criar sua forma de expressão e ser reconhecido por esta.
Para Cuche (2002, p. 177), a identidade de uma pessoa está relacionada diretamente ao
grupo social do qual ele faz parte, ou seja, as várias classes em que ela está inserida como faixa
etária, sexo, nacionalidade e outros. Estas classes são capazes de permitir que este indivíduo se
sinta parte de um conjunto devidamente organizado de componentes com características afins,
por isso ele diz que “A identidade permite que o indivíduo se localize em um sistema social e seja
localizado socialmente. [...] Todo grupo é dotado de uma identidade que corresponde à sua
definição social”.
Hall (2006, p.25), diz que “as transformações associadas à modernidade libertaram o
indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”. Umas das características da
juventude é o constante rompimento com o tradicional e a capacidade de se articular ora com seu
grupo, ora com os demais membros da sociedade, adequando seu linguajar às necessidades
pertinentes a cada situação. Mas essa característica, conforme Hall (2006, p.13), não é apenas do
jovem, mas do sujeito contemporâneo de um modo geral:
[...] o sujeito contemporâneo assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas [...] A identidade plenamente
unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
Por isso Cuche (2002, p. 177) afirma que “A identidade permite que o indivíduo se
localize em um sistema social e seja localizado socialmente. [...] Todo grupo é dotado de uma
identidade que corresponde à sua definição social”. Logo, “Não há identidade em si, nem mesmo
unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra. Ou seja, identidade e
alteridade são ligadas e estão em relação dialética. A identificação acompanha a diferenciação”.
(Ibdem,p.183)
Cuche (2002, p.195) afirma ainda que não podemos considerar a existência de uma
identidade fixa ou “pura” [...] “cada um integra, de maneira sincrética, a pluralidade de
referências identificatórias que estão ligadas à sua história”.
Pelos princípios dinâmicos de qualquer língua, segundo Zumthor (1993), justifica-se o
nascimento constante de novas palavras, novas expressões e que por conta desta constante
criação, demoram a serem dicionarizadas, e muitas delas sequer farão parte do dicionário um dia,
a não ser aquelas palavras especiais de gírias, jargões e expressões de uma determinada região.
Para que se comprove melhor o que foi dito anteriormente, há a necessidade de se apresentar
exemplos retirados de fragmentos dos textos de Nelson Rodrigues e que serão analisados os
significados de algumas expressões utilizadas por ele e que marcaram sua forma de escrever,
registraram sua identidade, seu conhecimento e sua cultura. E para isto foram escolhidas algumas
expressões coloquiais e gírias muito utilizadas pela sociedade carioca da época e apropriadas por
Nelson Rodrigues a partir da peça teatral A falecida - Tragédia Carioca em 3 atos, 1953, ou
Farsa Trágica em 3 atos. (RODRIGUES, 2012)
1.9 Dialogismo
Como elemento necessário para a análise do objeto deste estudo, a saber, a linguagem
coloquial da sociedade de Nelson Rodrigues presente na peça teatral A falecida, vê-se a
necessidade de se apresentar também o dialogismo proposto por Bakhtin como ferramenta para
comparação entre os textos (gírias) produzidos pelo autor em questão em 1953 e os textos (gírias)
encontrados hoje e suas possíveis resistências de significados ou ressignificações.
Bakhtin foi o grande descobridor da existência de um relacionamento contínuo entre os
fenômenos do mundo através do diálogo. A esta descoberta científica ele deu o nome de
dialogismo. A mente humana nesta ciência relacional teria a função precípua, básica de construir
a percepção, que segundo Machado (1995, p. 36), com base em Bakhtin, o dialogismo configura
“um modo de sistematização do conhecimento, de ordenação das partes num todo e de construção
da percepção, o dialogismo se fundamenta não só como categoria estética, mas também como um
princípio filosófico que orienta um método de investigação”.
Dentro do diálogo a posição dos falantes é quem determina o foco da percepção de tal
forma que o lugar de quem fala e ouve no tempo e no espaço deve ser levada em consideração
como peça chave para se compreender toda a dinâmica do dialogismo. A isto se pode chamar de
lei do posicionamento, pois o lugar de quem fala, a forma e quando fala, torna-se campo visual e
centro das análises dialógicas, por isso Machado (1995, p. 37) diz que “para Bakhtin, a percepção
humana é comandada por uma lei do posicionamento que determina o prisma do campo visual de
focalização”.
Dito de outra forma, todo o relacionamento estabelecido pela dinâmica do diálogo entre
autor e personagens, personagens e leitor, foi caracterizado por Bakhtin naquilo que ele chamou
de lei do posicionamento, portanto, toda análise dialógica deve ser feita a partir da perspectiva de
tempo e espaço, logo, aquilo que se apresenta como ato de fala deve ser pensado como algo que
levou em consideração o modo como o falante vê e como o ouvinte vê, pois as visões de ambos
são distintas, outro elemento levado em consideração é o lugar de onde se vê, também distinto
para ambos.
Isto quer dizer que, dentro da perspectiva dialógica, a pessoa que fala sempre terá uma
visão distinta daquela que ouve, pois a partir da sua posição no discurso o horizonte concreto dela
jamais vai coincidir com o de outrem. Vemos o que disse Bakhtin (2010, p.38):
[...] quando nos defrontamos com uma pessoa, nossos horizontes concretos não
coincidem. Eu sempre vou ver e saber que o outro, graças a sua posição em relação a
mim, nunca poderá ver, como, por exemplo, as partes do seu corpo inacessíveis a seu
olhar (cabeça, rosto, costas). Quando nos olhamos, dois mundos diferentes se refletem
em nossas pupilas.
Um outro ponto de extrema importância em relação ao dialogismo, senão o mais
importante, diz respeito a constituição do contexto, daquilo que não foi dito, mas está presente no
diálogo, o que Bakhtin chamou de contexto “extraverbal”, acontece simultaneamente ao discurso
verbal, portanto uma relação estreita entre aquilo que é humano e o mundo ao redor, “o
dialogismo reflete sobre as relações humanas e o mundo”. (MACHADO, 1995, p. 39)
Logo, todos os elementos que compõem o ato dialógico, quer sejam verbais ou
extraverbais, entram na análise do todo, inserindo assim o dito e o não dito, a visão do autor e do
personagem em relação aos acontecimentos, assim apresentará todos os pontos de vista, de
tempo, de espaço (lugar) relacionados ao momento, ao ato discursivo. “Este contexto extraverbal
da enunciação é constituído por três aspectos: 1. O horizonte espacial comum dos interlocutores
(a unidade do visível); 2. O conhecimento e a apreensão comum da situação; e 3. A avaliação
comum da situação”. (MACHADO, 1995, p. 40)
Desta forma, pode-se entender que em uma análise da linguagem é importante levar em
consideração o contexto onde aquela fala se desloca, aquilo que já se sabe em relação aquele
diálogo, e todo o histórico de vida que faz o indivíduo ter a capacidade de avaliar uma situação a
partir de sua ótica e experiência, por isso Machado (1995, p.40) diz que “O dito é apenas um dos
elementos do ato comunicativo, onde cabe também o não-dito”, ou seja:
[...] Para que ele seja apreendido na íntegra é necessário considerar também o que está
além do verbal. É na situação global que a palavra adquire valor e é graças à entoação
que se denuncia a presença do interlocutor que nada pronuncia, mas de quem se cria um
certo “retrato sonoro” (M. Holquist, 1990: 61) para quem o falante imagina estar
falando”. Entenda-se, portanto, que a posição dos interlocutores com relação ao evento é
igualmente decisiva para a definição da entoação e do conjunto da enunciação. Por isso,
aprender a falar é, para Bakhtin, aprender a construir enunciações. (Ibdem, 1995, p. 40)
Fiorin (2008, p. 102) também fala sobre o dialogismo da linguagem como “o princípio
unificador da obra de Bakhtin, uma vez que para este a língua tem a propriedade de ser dialógica
em sua ‘totalidade concreta, viva’, pois o diálogo no discurso são posições de sujeitos sociais, são
pontos de vista acerca da realidade”, ou seja, mais uma vez a questão da posição de quem fala e
ouve está em voga, uma vez que a língua tem realmente esta característica de se estabelecer
diálogos entre sujeitos que tem posições, opiniões diferentes em relação a tudo, ora, não se
concorda com tudo o tempo todo, mas cada personagem tem sua vez na fala e “esse dialogismo
mostra-se na bivocalidade, na polifonia, no discurso direto, indireto e indireto livre, [...] as
relações dialógicas estão sempre presentes na linguagem” (Ibdem, p. 103).
Segundo Machado (1995, p. 48), “Bakhtin situa a noção de dialogismo como fenômeno
elementar de toda relação que o homem mantém com o mundo através da linguagem”, ou seja,
toda situação comunicacional entre homem e meio, homem e mundo, homem e o outro, homem e
contexto é dialógica e praticamente não se vive um instante sem ela.
1.10 Denotação e Conotação
Quando um escritor escolhe colocar a linguagem coloquial em seus textos para retratar a
forma de falar de um grupo em específico, certamente aparecerão palavras com sentido
conotativo ou figurado, pois este é o cerne da questão, apresentar sentidos variados de uma
mesma palavra, ou melhor, inserir uma linguagem carregada de sentidos vários, ou para mostrar
uma restrição de grupo social ou uma variedade regional e ainda a variedade linguística própria
da linguagem oral. Dentro deste prisma, seguem manifestações denotativas (sentido real) e
conotativas (sentido figurado) das palavras, este último, porém, apresenta-se como elemento
importante neste estudo, pois uma vez apresentado num texto, certamente aparecerão figuras de
linguagem ou figuras de estilo, estes elementos tem a finalidade de mostrar o quanto a linguagem
coloquial é rica em expressividade e contexto, de sorte que não fossem estes elementos, ficaria
difícil apresentar o modo de falar do dia a dia de um povo.
Por isso é importante saber que a conotação ou sentido conotativo “ocorre quando a
palavra é empregada em sentido figurado, isto é, fora do seu sentido normal [...] e denotação ou
sentido denotativo ocorre quando a palavra é empregada em seu sentido próprio, normal, literal,
ao pé da letra, sem o uso de figuras de linguagem”. (MELLO, 2009, p. 23, 24).
Segundo Botelho (2001, p. 10), “a denotação é aquilo que a palavra significa na sua
totalidade e que mais se aproxima do real e a conotação é a significação polissêmica de uma
mesma palavra”, ou seja, os vários significados, sentidos, que uma mesma palavra pode ter e que
varia de acordo com o contexto.
Dito de outra forma, o sentido denotativo é aquele que é dicionarizado e que tem o
significado principal e o conotativo é essencialmente polissêmico, isto é, constitui-se de um
conjunto de plurissignificações, ou seja, “as conotações por analogia são aquelas em que há uma
semelhança entre o sentido que dela se depreende e o sentido dito denotativo”. (BOTELHO,
2001, p. 10)
Certamente que para se compreender palavras ou expressões com sentido conotativo é
necessário ter intimidade com a língua em questão, pois sem o domínio da linguagem do dia a dia
fica difícil decodificar a mensagem. Nelson Rodrigues não só mostrou intimidade com a
linguagem popular como destreza capaz de articulá-la em diversos momentos do texto.
Os fragmentos dos textos do teatrólogo Nelson Rodrigues seguidos de análise, serão
apresentando adiante, cabendo lembrar que a utilização da linguagem coloquial promove uma
ambientação dos personagens e também lhes atribui veracidade ao jeito de falar carioca da época,
levando à sociedade uma forma criativa de construir frases aplicando expressões daquela
atualidade e sociedade de tal forma que ele foi capaz de propagar a linguagem coloquial que era
conhecida apenas dos moradores do Rio de Janeiro, a eficácia foi tanta que até hoje se ouve falar
e conhece-se o significado destas no meio literário.
2 NELSON RODRIGUES E “A FALECIDA”
2.1 Nelson Rodrigues: o bom de bico
Entende-se que para se compreender os elementos estudados da obra em questão é preciso
apresentar um breve resumo desta, pois, como disse Bakhtin (2010, p. 307),
[...] a oração, assim como a palavra, possui completitude em sua significação,
completitude na sua forma gramatical, mas a completitude de sua significação é de
natureza abstrata, sendo precisamente isso que a deixa tão clara; é a completitude
característica do elemento e não o acabamento do todo. A oração, enquanto unidade da
língua, assim como a palavra, não tem autor; não é de ninguém (como a palavra), sendo
somente quando funciona como enunciado completo que se torna expressão
individualizada da instância locutora, numa situação concreta da comunicação verbal.
Logo, o significado da palavra encontra-se no contexto, em toda a organização do
enunciado e, tratando-se da linguagem coloquial, o enunciado muitas vezes é capaz de produzir o
significado completo das palavras que a princípio seriam uma marca específica de um grupo
apenas, como é o caso das gírias. Então, para que se compreenda a linguagem coloquial contida
nesta obra, faz-se necessário apresentar a autoria de Nelson Rodrigues a partir de suas
características inseridas no linguajar deste material, apresentado não apenas uma expressão
isolada, mas um fragmento “concreto de comunicação verbal” para que o autor possa ser de fato
autor das orações, ou melhor, dos enunciados completos a partir de suas expressões
individualizadas na literatura.
Nelson Rodrigues possuía verdadeira paixão pela língua brasileira, língua esta cheia de
gírias e coloquialismos, tamanho era seu amor que este retirou da sociedade da época e utilizou
muitas delas em seus contos, crônicas, romances e peças teatrais.
Com o uso contínuo de gírias em suas produções literárias, ele foi capaz de eternizá-las de
tal forma que até nossos dias ouve-se falar tais expressões coloquiais com a mesma vivacidade de
outrora e aquelas que pelo desgaste próprio da linguagem não são mais ou tanto ouvidas ainda
podem ser entendidas justamente por conta da nossa memória como é o caso de “entrar de sola”,
“cabeça de bagre”, “bom de bico” e outras apresentadas por ele muitas vezes em forma de
paródias como é o caso de “Inês é morta” e “salvar a pátria”.
Obviamente que quando esta linguagem foi apresentada na época, causou um choque
entre os espectadores acostumados a assistir adaptações e representações de William Shakespeare
que, a propósito, Rodrigues (2012, p. 100), ele diz “Nego a obra de shakespeariana como teatro
puro”, a plateia estranhou muito, dado o inusitado da obra, das falas dos personagens, mas
passado o susto inicial, ele foi reconhecido por seu público que admirava a coluna “A vida como
ela é...” do jornal O Globo onde ele expunha este cotidiano que até certo ponto pode ser visto
como uma grande tragicomédia.
2.2 Nelson Rodrigues: sua linguagem
A linguagem é minha maior contribuição ao teatro brasileiro. Quando levaram A
falecida no Municipal do Rio, eu passava pelo corredor num intervalo e ouvi: ‘Mas falar
de futebol no Municipal?’ Era uma desolação sincera e honesta. Eu estuprara o
Municipal com futebol. Isso era o teatro, a minha linguagem (RODRIGUES, 2012, p.
116).
Bem verdade que Nelson Rodrigues não possuía o menor receio ao escrever seus contos,
suas peças ou suas crônicas, isto porque ele realmente acreditava na sua linguagem, sabia que ela
deveria ser dita daquela forma, naquele momento de vida, ora se o próprio autor diz que sua
linguagem é sua maior contribuição para o teatro brasileiro, ele queria acrescentá-la à história, à
memória, aos registros de sua obra, tinha pela consciência de que ela era diferente e chocante e o
mais ele não se importava.
Na leitura de Rodrigues (2012, p. 7), fazendo menção a Roland Barthes afirma que “o
escrito é absoluto, o falado pode ser contradito, refraseado”. Realmente as palavras ficam soltas
quando ditas, mas quando escritas ele tornam uma espécie de documento, entretanto em relação a
Nelson Rodrigues não se podia afirmar isto, porque segundo Sonia Rodrigues (RODRIGUES,
Sonia, 2012), filha de Nelson Rodrigues, ele “falava como escrevia”, interessante isto, posto que,
a maioria das pessoas diz que fala de um jeito e escrevem de outro.
Para Rodrigues (2012, p. 107), “nenhum limite pode ser imposto ao artista, que é livre –
libérrimo – tratando seja o que for. O artista é sempre inocente. Nunca poderá ser assim,
pornográfico, por mais escabrosas que seja suas histórias”, quer dizer, nestas palavras do próprio
Nelson Rodrigues, ele precisa da liberdade, como todo escritor, justamente para escrever, pois o
que seria de um artista se sua obra fosse a todo instante reprovada, censurada.
Para Rodrigues (2012) o teatro brasileiro ainda estava na pré-história, isto porque ele não
aceitava que os expectadores interferissem na obra, ele entendia que a grande tragédia do teatro
era depender do público.
A ousadia de Nelson Rodrigues fazia-o entender que “o autor não está preso, amarrado,
limitado” (RODRIGUES, 2012, p.101), interessante observar que o autor rompe com os
preconceitos, pois em determinado momento ele escreve “O teatro ainda não nasceu. É um
gênero atrasado de algumas centenas de anos asfixiado por mil preconceitos, que castram
irremediavelmente o ímpeto criador do dramaturgo” (Ibdem, p. 100), ou seja, ele fala sobre
preconceito, castração, mas não se submete aos padrões pré-estabelecidos pelo teatro, antes,
porém, cita que:
Seria o cúmulo do absurdo, seria um escândalo de ousadia, pôr em cena uma tragédia,
um personagem defecando, com toda a dignidade. O autor que ousasse tanto, ainda que
obedecendo à necessidade genuína de sua criação, seria apedrejado. (RODRIGUES,
2012, p. 101)
Entretanto ele mostra que não tem o menor receio de inventar, criar, inovar, pois a própria
peça teatral em destaque, A falecida, é um exemplo disso se observarmos o seguinte fragmento
(Ibdem, p. 14 -15):
[...] Os três (simultâneos) – Que foi, que foi?
Tuninho – Aquele pastel que eu comi, parece que me fez mal. Chi! Vou chispando pra
casa! Bye, bye!
(Oromar apanha um jornal)
Os três (uma voz única) – Olha o jornal!
(Foco no centro da cena. Zulmira vai entrando com um banquinho e dirigindo-se para o
foco. Todos deixam a cena. Luz sobre Zulmira, que se senta no banco e põe a mão no
queixo, numa atitude de “O Pensador”, de Rodin. Entra Tuninho com o jornal na cabeça
e aflito. Está diante do imaginário banheiro. Torce o trinco invisível).
Tuninho – Tem gente?
Zulmira – Tem.
(Tuninho anda de um lado para outro)
Tuninho (baixo) – Espeto!
(Hesita e decide-se)
Tuninho – Vai demorar?
Zulmira – Muito, não.
(Tuninho passa as costas da mão no suor da testa).
Tuninho – Vê se anda!
Zulmira – Que pressa!
(Sai Zulmira. Ao cruzar com Tuninho, resmunga).
Zulmira – Pronto! Pronto!
(Entra Tuninho. Senta-se no mesmo banquinho e na mesma posição do “Pensador”, de
Rodin. Uma mão segurando o queixo e a outra o jornal).
Vê-se a importância desta obra, uma vez que o autor Nelson Rodrigues não teve medo de
ser “apedrejado”, rompeu com o paradigma do teatro da época e lançou uma espécie de teatro de
vanguarda, percebe-se ainda que nas rubricas da peça há justamente uma referência ao ato de
defecar, com isso, o escritor queria mesmo romper com as normas apresentando um sujeito no
palco, sentado no banco na mesma posição da escultura francesa “O pensador” do escultor
famoso Auguste Rodin.
2.3 A falecida: até aí morreu o Neves
A peça teatral “A falecida” apresentada por Nelson Rodrigues como a 1ª tragédia carioca,
foi para o autor um estopim diante da sociedade, isto porque ele com sua larga experiência na
coluna de contos do jornal do qual ele fazia parte, foi capaz de se aperfeiçoar nos dilemas vividos
pela sociedade da época, tendo coerência ao retratar a linguagem do subúrbio carioca de 1953
como ninguém. (RODRIGUES, 2012)
Os lugares e cenários apresentados na peça, bem como o comportamento e linguajar
retratam com riqueza de detalhes e perfeição a dinâmica da sociedade suburbana do Rio de
Janeiro da época de Nelson Rodrigues, o qual afirma que:
A falecida não vai morrer nunca. Eu sou um autor que gosta de todas as minhas peças,
jamais desprezei uma única. Mas A falecida é a que mais gosto. Quando a vi pela
primeira vez no palco, disse que era uma das peças do meu coração e pouco a pouco fui
me convencendo de que, se ocorresse uma catástrofe e desaparecessem todos os meus
textos teatrais, ficaria satisfeito se apenas A falecida sobrevivesse, pois assim não teria
vivido inutilmente. (RODRIGUES, 2012, p. 76)
Os personagens são apresentados por ele com todas as dificuldades e dramas provocados
e sofridos pela população de um modo geral, isto quer dizer que ele não estereotipou
personagens, mas deu vida a eles, uma vida “verdadeira”, com aquilo que todos são, se não a
maioria, são capazes de dizer, fazer, sofrer. O interesse do autor era realmente retratar as nuances
da vida humana, ele na verdade havia sido vítima de um drama desses, e pode-se dizer que a peça
teatral “A falecida” tem um pouco destas experiências e outras tantas vividas por ele e por
aqueles que o rodeavam e por aqueles de quem ele tinha notícias trabalhando na redação de um
jornal. Sobre isso Rodrigues (2012, p. 42) diz: “O assassínio de meu irmão marcou a minha obra
de ficção, de dramaturgo, de cronista, assim como a minha obra de ser humano. E esse
assassinato está marcado no meu teatro, nos meus romances, nos meus contos”.
Melhor dizendo, retratou a alma brasileira, o cotidiano nosso de cada dia com suas
mulheres que enganam e são enganadas, crianças que “pintam o sete”, homens apaixonados por
futebol e mulheres, picaretas, espertalhões e outros mais, sua escrita, na verdade, era feita a partir
das marcas de sua vida, por isso ele diz: “A minha vida não faz graça para ninguém. Tive tudo,
sofri tudo” (Ibdem, p. 48), logo toda sua produção esta enraizada nesta memória, quer dizer que
sua obra é baseada em suas experiências de vida, portanto pode se dizer que ela era sua vida
parodiada e, segundo ele mesmo: ”O que acontece na minha obra são variações infinitas do que
aconteceu na minha vida”. (Ibdem, 2012, p. 50)
A peça teatral “A falecida” foi criada e escrita em apenas 26 dias e em 1953 ela foi
encenada pela primeira vez pela Companhia Dramática Nacional sob a direção de José Maria
Monteiro e como não se pode afirmar que esta seja uma verdadeiramente tragédia ou farsa ou
comédia, dada a originalidade e porque não dizer exclusividade das ideias e organização da obra,
Nelson Rodrigues apenas categorizou como uma tragédia carioca, pois se há motivos para rir com
os “absurdos” relatados em alguns momentos, ela provoca mais reflexão, tristeza e choro que
outro sentimento, logo é mais prudente seguir a orientação do autor e caracterizá-la como farsa
trágica em 3 atos. (RODRIGUES, Nelson. A falecida. Disponível em: http: //www. Objetivo
prudente.com.br/pictures/biblioteca/biblioteca-20-04-12-9-01-11.pdf.Acesso em: 12/10/2012).
Por isso mesmo ele diz:
Nunca falsifiquei nas minhas peças. Graças a muito sofrimento, a toda uma experiência
de vida tenebrosa, sobretudo em tragédia familiares, eu aprendi a ser o máximo possível
de mim mesmo, porque as pessoas falsificam pra burro. (RODRIGUES, 2012, p. 97)
A grande surpresa na peça para aqueles que frequentaram o teatro nos anos 50 foi a
ausência de mocinhos, mocinhas, heróis, heroínas, ou seja, um personagem principal com todas
aquelas características humanas perfeitas e admiradas pelas sociedades e, segundo Rodrigues
(2012, p. 98), “A classe média tem mais heroísmo. Conforme for o caso ela chega lá e mata com
muito mais fidelidade, e eu admiro o homem que, a certa altura, acorda com uma brutal nostalgia
de morte”.
Mas encontraram personagens doentes, frágeis, mentirosos, infelizes, adúlteros,
trambiqueiros, ou melhor, personagens muito mais parecidos com o público em geral que com
uma minoria da sociedade que se esforça para alcançar patamares mais elevados de
comportamento humano, isto quer dizer que o público mais se identificava de tal sorte que a
princípio houve repúdio à obra, entretanto tamanha rejeição acabou sendo transformada em fama
e, esta, em sucesso de público.
Segundo Rodrigues (2012, p. 98):
Meu teatro é de pouquíssimos grã-finos. O que eu gosto, e o que me fascina, ou é a
classe muito baixa ou então a classe média. A classe média é formidável. Quando
escrevo sobre ela, me debruço sobre ela nas minhas varandas, vejo como é humana,
como é interessante. É classe que mata e se mata.
2.4 A falecida: características da obra
O material, obviamente por se tratar de uma peça, é rico em rubricas e apresenta cenários
fictícios, imaginados. Os atos que se desenrolam em ambientes imaginários e variados, estes
contam três. Apresenta ainda um contexto social rico e típico do falar carioca da época,
exatamente o subúrbio carioca apresentado na peça com toda a linguagem coloquial que ambienta
a situação que a peça aborda e se encaixa, a saber, no dia a dia do povo brasileiro, em especial do
povo carioca, dos amigos, o diálogo despretensioso entre marido e mulher, trabalhadores,
apostadores, bicheiros, espertalhões, familiares, torcedores, exatamente na periferia onde
desenrola toda a trama.
Esta manifestação da linguagem popular tem como objetivo evidenciar a fala cotidiana,
rica em gírias e expressões coloquiais da época, pois se há na escrita da peça tons debochados e
irônicos, nada como usar a linguagem coloquial para marcar isto.
As falas na peça retratam o cotidiano, sem preocupações com as normas, riquíssimo em
gírias e linguagem coloquial, tratando de temas simples como doenças, inveja, futebol, ou seja,
assuntos do dia a dia de qualquer pessoa da sociedade. Não fossem as gírias e expressões que já
se encontram desgastadas, dir-se-ia que não existe um material se quer que indique o tempo para
nós, em outras palavras, ainda em nossos dias a leitura desta peça torna-se atual, pois as intrigas e
os problemas da sociedade ainda são os mesmos, logo não haveria como definir a passagem do
tempo nesta obra, mas como ela está cheia de coloquialismos e linguagens gírias, a partir do
desgaste delas é que se percebe que fora escrita há anos atrás. (RODRIGUES, 2012)
2.5 Resumo da obra
Para que o leitor se ambiente a este estudo há a necessidade de se apresentar um breve
resumo da peça teatral “A falecida” de Nelson Rodrigues, portanto é o que será feito a seguir:
Após consultar uma cartomante, Zulmira desconfia da infidelidade de seu marido,
Tuninho, com sua prima, Glorinha. Resolve então aderir a uma Igreja Teofilista e não se
entrega a mais nenhum homem. Zulmira assume os preparativos da própria morte,
visando causar inveja em Glorinha e em todas as outras mulheres da cidade com o luxo
de seu enterro. Ela manda o marido ao encontro de um sujeito chamado Pimentel, o que
desencadeia revelações surpreendentes, (RODRIGUES, 2012, p. 211).
A seguir apresento duas imagens, a primeira é a capa da peça teatral estudada nesta
dissertação e já numa versão atualizada, longe da versão e a segunda imagem trata da fotografia
tirada nas primeiras encenações da peça.
Figura 1: Capa do Livro “A falecida”
Fonte: RODRIGUES, Nelson. A falecida: tragédia carioca em três atos. 4. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012.
Figura 2 - Foto da Peça “A falecida”
Fonte: Foto de Carlos Cedoc / Arquivo Funarte - Os atores Sonia Oiticica (Zulmira) Sergio Cardoso (Tuninho) e
Leonardo Villar (Pimentel) em montagem de A falecida, em 1953.
A peça teatral “A falecida” de Nelson Rodrigues, é do gênero farsa-trágica, mais tragédia
que farsa, foi apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez em 8 de junho
de 1953 e está dividida em 3 atos (RODRIGUES, 2012, p. 211). No primeiro ato a obra trata de
uma esposa chamada Zulmira que desde o princípio da trama apresenta características de
enfermidade pulmonar, é uma mulher sem perspectiva de vida, dada sua condição de saúde, é
pobre, mas deseja ter um ofício fúnebre de luxo, esta procura uma cartomante para consultar
sobre sua sorte. Ela ao saber da cartomante que há uma figura loira em sua vida e que deve ter
cuidado com ela, Zulmira passa então a atribuir à loira (acredita ser sua prima Glorinha) a razão
do seu mal e direciona a esta uma raiva absurda.
Nelson Rodrigues resume:
A falecida é a história de uma mulher de classe média que, um belo dia, se convence de
que é um fracasso como esposa, amante e em todos os sentidos. E começa a pensar, vai
nascendo dentro dela, elaborado lentamente, que o ideal seria morrer para ter, num
enterro de luxo, tudo aquilo que a vida não lhe deu. (RODRIGUES, 2012, p. 75)
Tuninho é o marido de Zulmira, um desempregado que sofre com sua indiferença, posto
que ela decidiu se converter a uma igreja teofilista, ele queixa-se com a família, mas não encontra
solução, pois Zulmira teima em ignorar seu afeto. Com os amigos Tuninho mostra-se um
apostador e torcedor fanático do time do Vasco.
Sem que o marido saiba e para fazer média com a prima Glorinha, Zulmira encomenda
um ofício fúnebre de primeira, sem ter condições de pagar. Ela mostra-se ainda uma pessoa fácil
de ser conquistada, pois quando um dos funcionários da funerária se encanta com ela,
simplesmente aceita o cortejo.
No segundo ato, Tuninho faz uma reunião com a família para explicar o que está
acontecendo, pois Zulmira recusa-se a corresponder o afeto do marido, mas apesar das
orientações de todos, Zulmira não dá trégua ao esposo que decide então levá-la a um médico
velho amigo seu chamado Dr. Borborema que ao examiná-la nada diagnostica. Zulmira sai do
consultório aborrecida com o fato do médico nada ter encontrado em seu pulmão. Ela avisa ao
marido e a mãe que está morrendo, que tem pouco tempo de vida. Mais tarde decide ligar
novamente para funerária e confirmar a encomenda do caixão. Logo depois, no final do segundo
ato vem o pedido absurdo e surpreendente de Zulmira, ela faz o marido prometer que irá dar-lhe
o enterro que merece, de primeira categoria, e que não vai medir esforços para isto. Zulmira, sem
dar explicações maiores, pede que Tuninho, após a morte dela, procure um determinado homem
milionário chamado Pimentel, e diz que este será capaz de dar ao marido trinta e cinco mil contos
para pagar o enterro de luxo. Zulmira faz o marido prometer que fará isso e diante da moribunda
jura tudo o que ela lhe pede e para sua surpresa de todos Zulmira morre cuspindo sangue.
No terceiro e último ato vem o desdobramento de toda a trama, pois Tuninho procura o
homem a quem Zulmira disse que daria ao esposo trinta e seis mil cruzeiros, e o marido
inocentemente procura a tal pessoa, mas percebe que sua esposa não era tão inocente quanto ele
imaginava. Quando Tuninho chega à mansão, ele descobre que sua mulher teve um caso com o
dito homem e que ele era rico a ponto de temer um escândalo, o amante narra então o
envolvimento e a traição tão rápida em um banheiro de uma lanchonete justamente enquanto o
marido a esperava na mesa, Pimentel por temer um escândalo, contrariado dá-lhe o valor pedido
debaixo de ameaça, enquanto isso a vizinhança se aglomera na porta da casa de Zulmira para
assistir a morta ser despida e vestida com a mortalha preparada pela defunta de antemão. O
marido ao conseguir o dinheiro, contrata o caixão mais simples da funerária e vai para o estádio
do Maracanã assistir ao jogo de Fluminense x Vasco onde numa atitude de aparente desespero,
joga para cima as cédulas e grita. Fim do resumo.
3 ANÁLISE DAS EXPRESSÕES COLOQUIAIS EM “A FALECIDA”
Há ainda um outro ponto fundamental e necessário para que se compreenda a necessidade
de se apresentar os exemplos abaixo explicados que se justifica com a presença do contexto, pois
se não houver conhecimento prévio, não há como compreender as expressões apresentadas por
Nelson Rodrigues.
Adiante seguem os fragmentos dos textos do teatrólogo Nelson Rodrigues seguidos de
análise, cabendo lembrar que a utilização de tais expressões promove uma ambientação dos
personagens e também lhes atribui veracidade ao jeito de falar carioca da época, levando à
sociedade uma forma criativa de construir frases aplicando expressões daquela atualidade e
sociedade de tal forma que ele foi capaz de propagar a linguagem coloquial que era conhecida
apenas dos moradores do Rio de Janeiro, a eficácia foi tanta que até hoje se ouve falar e conhece-
se o significado no meio literário, mas antes se apresenta uma menção de Andrade, 1967,
engraçada até, mas apropriada para o tema em questão que, apesar do passar do tempo, ainda
pode ser considerada atual dada a dinâmica da língua, a saber: “Há um desgaste mais doloroso
que o da roupa, e é o da linguagem, mesmo porque sem recuperação. Certa moça dizia-me de seu
admirador entrado em anos, homem que brilhava no Rio de Machado de Assis e Alcindo
Guanabara:
- Ele é tão velho, mas tão velho, que me encontrando à porta de uma perfumaria disse:
Boa ideia, vou te oferecer um vidro de cheiro!”.
Ora, como é possível manter a perfeição gramatical, linguística se a língua estimula uma
“atualização”, ou melhor, como é possível sujeitos em 2012 falarem da mesma forma que há
cinquenta anos, por exemplo? Apesar disso Nelson Rodrigues foi capaz de eternizar sua
linguagem, pois há quase 60 anos ainda se ouve falar com tal linguagem.
3.1 Até aí morreu o Neves
As expressões foram escolhidas a partir do que se tinham maiores informações de sua
origem e significado. Tais expressões não estão em ordem alfabética, mas aleatória.
A primeira expressão coloquial a ser analisado o significado e sua marca será “Até aí,
morreu o Neves!” presente na peça teatral “A falecida” (RODRIGUES, 1953, p.14). Segue o
fragmento:
[...] OROMAR – Cento e cinquenta mil!
PARCEIRO no 1 – Menos! Menos!
PARCEIRO no 2 – Mais! Mais!
TUNINHO - Seja cento e cinquenta ou duzentas mil pessoas. Não importa. Aí morreu o
Neves. Pois eu, se tivesse o dinheiro, dinheiro meu, no bolso, eu sozinho, apostava com
duzentas mil pessoas no Vasco. Havia de esfregar a gaita assim, na cara de duzentas mil
pessoas, desacatando: Seus cabeças-de-bagre! Dois de vantagem e sou Vasco! Te juro
que ia fazer a minha independência, que ia lavar a égua! (Súbito, todos estacam,
entreolham-se).
Os três (simultâneos) – Que foi, que foi?
TUNINHO– Aquele pastel que eu comi, parece que me fez mal. Chi! Vou chispando pra
casa! Bye, bye!
(Oromar apanha um jornal).
Os três (uma voz única) – Olha o jornal![...]
Quando o autor cita a expressão coloquial "até aí morreu o Neves", ou ainda “até aí,
nada”, “até aí é o que já se sabe”, significa que até o momento não se tem novidade alguma,
segundo Mello (2009, p. 76), “diz-se para quem afirma o óbvio ou dá notícias já conhecidas”, ele
queria dizer através de seu personagem que isso não faz diferença, não significa nada naquele
momento, ou melhor, já era conhecido e naquele instante não estava acrescentando nada à
informação. Na verdade Nelson Rodrigues lançou mão de um recurso da paródia chamado de
hipo-texto e que já foi explicado anteriormente no início deste trabalho cujo objetivo aqui, além
do significado do contexto é o de fazer menção a “o histórico desta expressão que conta que
Joaquim Pereira Neves, assessor do Padre Feijó, teve uma morte horrível, sendo decapitado por
índios. Não se falava mais nada na Capital a não ser na morte do Neves. Esta repetição da
informação aborreceu tanto a população que as pessoas começaram a dizer: ‘até ai morreu o
Neves’”, ou seja, isto eu já sei, agora quero novidades. (PRATA, Mario. Mas será o Benedito?
Disponível em: http://www.marioprataonline.com.br/obra/literatura/adulto/benedito/verbetes/
ate_ai_morreu_o_neves.htm. Acesso em: 10/01/12).
Adiciona-se a isto o que disse Bakhtin (apud BARBOSA, 2012, p. 61), “a paródia traz os
elementos intemporais ou remotos para a esfera do cotidiano e da atualidade”, quer dizer, esta
menção na verdade é própria do recurso da paródia para que algo que se deu e fez sentido no
passado para a sociedade, neste caso, seja relembrado não da mesma forma, mas de uma forma a
refletir sobre o assunto, a trazer a tona um sentido a mais que não o primeiro. Logo, não é a morte
do Neves que ‘importa’, mas o significado dado a expressão que se refere a ele, a saber: ‘não me
traga notícias já conhecidas, traga-me novidades’.
Dito de outra forma, apesar de se estar diante de um fato terrível (a morte do Neves), ele
(o Neves) não traz nenhuma novidade àquela conversa, sendo até mesmo desnecessária aquela
informação, logo há necessidade de se ouvir novidades, notícias frescas.
Por isso Souza (2006, p. 127) diz que “Nelson não apenas se apropria de palavras e
expressões corriqueiras, mas as incorpora tão insistentemente a seus diálogos, que elas passam a
ser identificadas com o autor”. E uma vez incorporadas tornam-se marca de sua identidade.
Vale lembrar que esta expressão, uma vez que foi amplamente divulgada nesta obra,
tornou-se conhecida e empregada por muitos, como diz Souza (2003) em sua tese de doutorado:
“O emprego repetido de algumas dessas expressões cria um grau de previsibilidade e de
redundância nos textos do escritor, o que é um fator que estabelece empatia com o
leitor/ouvinte”. A linguagem popular apresentada por Nelson Rodrigues ganhou notoriedade uma
vez que o público se identificava com o drama e a linguagem.
Ao pesquisar o que se tem na atualidade sobre esta expressão coloquial, foi encontrada a
produção do Long Play de Wilson das Neves chamada exatamente ‘Até aí morreu o Neves’
datada de 1970, cujo álbum era chamado Samba Tropi, o interessante é que justamente esta
expressão deu nome à capa. A utilização da expressão brincou com o nome do instrumentista
Wilson das Neves, pois a expressão não dá nome à música alguma do LP, apenas dá nome a ele,
Para se comprovar isto, pode-se perceber o exemplo do trocadilho feito com a gíria “do cacete!”
que, segundo Mello (2009, p. 192) significa o mesmo que a gíria “do barulho”, a saber,
“extraordinário, excepcional, ótimo, sensacional”, este trocadilho serviu para apresentar o slogan
da campanha que estimulava viagens para o Caribe, criado por Lew’Lara e veiculado no Brasil
em 2008 pela Aruba Tourism Authority, surgiu então “Aruba é do Caribe!”, daí para o bom
entendedor queria dizer: “Aruba é do cacete!”, ou como a própria gíria queria dizer em seu
significado: “é excelente”, “muito boa”, lembrando a semelhança Cacete com Caribe, a
similaridade dos sons /k/ fazem vingar o trocadilho e no caso da brincadeira com o LP houve o
trocadilho com o nome “Neves” dada a semelhança com a expressão em estudo.
Sandmann (2002, p. 47), afirma que na técnica publicitária, “quanto mais forem violadas
as normas comunicacionais adquiridas, mais o anúncio atrairá a atenção do leitor”. Quer dizer, é
justamente o que provoca estranheza que persuade o leitor, é justamente o inusitado, o criativo, o
impensado que seduz o público. Logo brincar com a “morte” de um instrumentista vivo é no
mínimo lembrar aos fãs uma espécie de profecia de mau presságio, para os mais desavisados
ficam as perguntas: Morreu? Não morreu? Está doente? Vai morrer? O que está acontecendo? E
para os mais informados basta saber que significa: até aí já se sabe, ou melhor, não há novidades.
A capa de um LP é uma campanha publicitária dele, é uma forma de interagir com o
público, de induzir à compra, de convencer.
Por isso que Maingueneau (2002, p. 79) em sua análise de textos afirma que:
[...] a comunicação realizada através de meios de massa é indireta, ou seja, emissor e
receptor não se encontram no mesmo espaço físico. Este tipo de comunicação indireta,
pensada à luz da relação entre estes dois elementos da comunicação, não permite
interação, não permite resposta direta de nenhum tipo entre os interlocutores. Se a
propaganda, que tem a missão primeira de chamar a atenção e depois de convencer e
induzir à ação de compra, não puder lançar mão de um recurso persuasivo forte, não terá
espaço na competição entre as milhares de mensagens publicitárias que nos impactam
diariamente. Na comunicação oral, os interlocutores partilham o mesmo ambiente.
Portanto, Sandmann e Maingueneau combinam quando afirmam que há a necessidade de,
na publicidade, apresentar elementos, recursos persuasivos fortes capazes de atrair a atenção do
leitor fazendo com que estas mensagens publicitárias tenham espaço na mente dele.
Wolf (1995, p. 34), afirma que “persuadir os destinatários é um objetivo possível, se a
forma e a organização da mensagem forem adequadas aos fatores pessoais que o destinatário
ativa quando interpreta a própria mensagem”.
A seguir apresento a capa do Long Play de Wilson das Neves.
Figura 3– Capa do Long Play de Wilson das Neves
Fonte: Título: NEVES, Wilson das. O som sagrado. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/blog/passarela/tag/samba-tropi-ate-ai-morreu-neves/. Acesso em: 10/08/2012.
Há outro Long Play cantado por Elis Regina também do ano de 1970, que realmente há
uma música com este nome, o mais importante aqui neste trabalho é identificar o significado no
contexto, se este mudou ou se permanece o mesmo e, analisando tanto a capa quanto a letra da
música percebe-se que o significado permaneceu o mesmo, apesar da brincadeira com a capa do
primeiro LP. Segue a capa do disco de vinil da época e a letra da música cantada por Elis Regina:
Figura 4 –Capa de Long Play de Elis Regina
Fonte: REGINA, Elis. 1970 em pleno verão. Disponível em:
http://arquivodosambarock.blogspot.com.br/2012_04_01_archive.html. Acesso em: 10/08/2012.
Até aí Morreu Neves - Elis Regina
Pa, pa, pa, rapapapapaparapapapara
Se segura malandro pois malandro que é malandro
Não se estoura
Se segura malandro
Pois um dia há de chegar a sua hora
Vai cantar vai brincar sem fantasia
Você vai chorar de alegria pois ela vai voltar
Pra alegrar o seu coração
Malandro que é malandro não se estoura não
Papaparapapapapaparapapapara
Pois um dia há de chegar a sua hora
Vai cantar vai brincar sem fantasia
Você vai chorar de alegria pois ela vai voltar
Prá alegrar o seu coração
Malandro que é malandro não se estoura não
Porque até aí morreu Neves, até aí morreu Neves até aí morreu Neves
Até aí morreu Neves Devagar malandro devagar cuidado
Afobado come crú devagar se vai ao longe
Devagar se vai ao longe devagar também é pressa
Afobado come crú
Devagar se vai ao longe
O que se percebe exatamente nesta letra é que até o momento se sabe que ‘o malandro não
se estoura’ e que ‘um dia há de chegar a sua hora’ lembrando bastante o fragmento do conto “A
hora e a vez de Augusto Matraga”, presente no livro Sagarana de Guimarães Rosa, quando por
vezes o personagem faz menção a esta fala: “Largaram à noite, porque o começo da viagem teria
de ser uma verdadeira escapada. E, ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu
os braços em cruz, e jurou: — Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a
minha vez há de chegar”. Ainda observando a letra da música, vê-se que as informações quanto
ao malandro dizendo que na hora dele, ele ‘Vai cantar vai brincar sem fantasia, Você vai chorar
de alegria, pois ela vai voltar pra alegrar o seu coração’, mais um pouco e a letra diz que “até aí
morreu Neves”, ou seja, já se sabe, então qual seria a novidade, e a novidade segue com o
restante da música dizendo que o malandro deve ter cuidado e ir devagar, apresentando conselhos
que façam do malandro um vencedor.
Por isso diz-se que:
[...] as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a comunicação
e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala
evoluem em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se,
enfim, na mudança das formas da língua. (BAKHTIN, 2006, p. 114).
Melhor dizendo, a mutabilidade da língua é que promove a interação verbal, ela é quem
possibilita que as palavras sofram transformações capazes de adequarem-se as mais variadas
formas de se dizer a mesma coisa, sendo capazes de variar toda vez que os sujeitos envolvidos
nas relações sociais mudarem por qualquer motivo, quer seja de ordem etária, social, e/ou outros,
desta forma ora percebe-se a fala de Tuninho, ora Zulmira, ora Matraga, ora o leitor nem sempre
passivo, algumas vezes atuante, como é o caso da sociedade inspiradora de Nelson Rodrigues.
Logo, é notório que o significado da expressão permaneceu o mesmo e para se perceber
isto se deve observar toda a letra da música, pois como disse Bakhtin (2006, p.102), “não é a
atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a
atividade mental, que a modela e determina sua orientação”, isto é, a expressão representa o todo
e a atividade mental deve adequar-se a ela. Neste exemplo, a letra da música deve girar em torno
da expressão que a resume, simboliza, caracteriza, a saber: “até aí morreu o Neves”.
3.2 Você é bom de bico
Outro exemplo aqui apresentado é o da expressão gíria “Você é bom de bico” que pode
ser encontrada na peça teatral “A falecida”, a qual faz parte da organização Tragédia Carioca I,
de 1953 e este fragmento está aqui selecionado. (RODRIGUES, 2012, p. 14)
[..] Parceiro no 1 – Uns pernas-de-pau!
Tuninho - Casado?
Oromar – Casadíssimo!
Parceiro no 2 (gingando) – Porque eu sou é homem!
(Consumada a aposta, Tuninho exulta).
Tuninho – Vou te dizer mais: estou desempregado e outros bichos. Quer dizer, na
última lona. Mas estou tão certo, tão certo, que vai ser uma barbada daquelas, que te
juro, sob minha palavra de honra, que se eu tivesse dinheiro, sabes o que eu fazia, no
domingo, queres saber?
Oromar – Você é bom de bico!
(Tuninho está numa verdadeira euforia).
Tuninho – Espera, ouve o resto, seu zebu! Eu entrava no Maracanã. Muito bem.
Vamos dar, de barato, que umas cem mil pessoas assistam ao jogo.
Oromar – Cento e cinquenta mil!
Parceiro no 1 – Menos! Menos! [...]
A expressão é "bom de bico" é o mesmo que “bom de papo” e que segundo Mello (2009,
p. 94) significa “indivíduo de conversa agradável”, ou ainda segundo o mesmo autor pode ser
“papo dez”, a saber, “conversa muito boa, coisa muito boa, pessoa de boa conversa”, sujeito que
através de conversa é capaz de convencer alguém sobre qualquer coisa. O adjetivo “bom” diz-se
daquilo que tem qualidades, aptidão, requisitos necessários, perfeito, indulgente, afetuoso, que
traz vantagem, utilidade. O “bico”, ainda segundo Mello (2009, p. 88), “refere-se a boca humana;
tipo de fisionomia da boca humana”, por isso que a gíria “bom de bico” é entendida pela
sociedade como sendo alguém que é bom na conversa, galanteador, que traz vantagem, sujeito
que tem astúcia, que gosta de iludir e de conseguir favores, boa conversa, falastrão.
Neste pensamento Cuche (2002, p. 28) faz menção à concepção alemã sobre cultura
afirmando ser “um conjunto de características artísticas, intelectuais e morais que constituem o
patrimônio de uma nação, considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua
unidade”. Logo, uma vez apresentada uma parte para o todo, este se apropria e torna-o parte
integrante de sua linguagem, portanto “patrimônio da nação”.
Nelson Rodrigues a partir de seu relacionamento com a sociedade foi capaz de apresentar
em seus textos, como estes que foram selecionados, uma forma típica do falar de uma parte do
meio em que vive, as gírias, apesar do desgosto de alguns gramáticos, são marcas da linguagem
oral que, na maioria dos casos, é dotada de vários significados e dependendo do local em que é
falada, é decodificada pela maioria dos integrantes.
A forma de falar de um povo é um registro de sua identidade e esta concepção também
vale para as obras de Nelson Rodrigues, pois ele utiliza as gírias em seus textos como um modo
de organizar e estabelecer uma troca de identidades entre os mais variados grupos sociais,
portanto o autor não inventa um traço cultural, até porque, como disse Alves (2012, p. 6) “para
definir a identidade de um grupo, o importante não é inventariar seus traços culturais distintivos,
mas localizar aqueles que são utilizados pelos membros do grupo para afirmar e manter uma
distinção cultural”, portanto ele usa as gírias como marcadoras de sua própria identidade,
estabelecendo uma relação distinta com outros escritores, como bem disse Cuche (2002) “cada
criatura é dotada de uma série de identidades, ou provida de referências mais ou menos estáveis,
que ela ativa sucessiva ou simultaneamente, dependendo dos contextos”, porém, com elas
(gírias), ele fica mais próximo de seus leitores.
Em 2005 foi lançado um filme aqui no Brasil chamado “Penetras bons de bico”, este filme
apresenta no plural a expressão coloquial ‘bom de bico’, cujo significado já foi bastante
apresentado anteriormente. Na verdade trata-se de um filme centrado em dois amigos que tinham
muita facilidade para conquistar pessoas apenas na conversa, usavam seu poder de persuasão para
frequentar festas, em especial de casamento, que não tinham sido convidados, gostavam de entrar
como penetras em casamentos com o objetivo de conhecer pessoas novas, em especial mulheres
que estivessem disponíveis para relacionarem-se com elas sexualmente. Interessante perceber que
apesar desta gíria ter sido usada pela sociedade carioca do Rio de Janeiro há anos atrás ainda
assim pode se perceber que o significado não mudou, pois a versão do título escolhida para o
português representa exatamente o significado do comportamento dos personagens principais
estabelecendo um diálogo com o público alvo. Adiante se expõe o cartaz do citado filme.
Figura 5: Cartaz do Filme Penetras – bons de bico
Fonte: FILME ONLINE PENETRAS BONS DE BICO – DUBLADO. Disponível em:
:http://www.zonafilmes.net/2012/08/filme-online-penetras-bons-de-bico.html#.UN0Wj-SABek.Acesso em:
10/08/2012
Segundo Bakhtin (2006, p. 113), o diálogo não deve ser entendido como uma forma
simples e conhecida de interação verbal, aquela posta face a face, mas num sentido bem mais
amplo o diálogo é considerado todo e qualquer tipo de interação verbal, seja ela de que natureza
for. Devem-se levar em consideração todas as ferramentas que a palavra é capaz de se
transformar para fazer-se compreender, entende-se que apesar de não haver menção a linguagem
gíria em questão, tanto o cartaz do filme, quanto a tradução/versão produzida no filme, “Wedding
Cashers” (Os fura-casamentos) foram capazes de transmitir através do contexto apresentado a
informação referente ao significado da expressão “bom de bico”, que não difere em nada daquela
utilizada por Nelson Rodrigues em sua peça teatral, pois assim como os dois personagens
mostrados logo acima eram capazes de persuadir as pessoas, Tuninho da peça também era capaz
de convencer seus amigos a participar das apostas. O que justifica a versão é que se fosse
apresentado a tradução original não faria sentido no Brasil.
3.3 Cabeça de bagre
Outro exemplo também tirado da peça teatral “A falecida”, a qual faz parte da
organização Tragédia Carioca I. (RODRIGUES, 2012, p. 14)
[...] TUNINHO - Vou te dizer mais: estou desempregado e outros bichos. Quer dizer, na
última lona. Mas estou tão certo, tão certo, que vai ser uma barbada daquelas, que te
juro, sob minha palavra de honra, que se eu tivesse dinheiro, sabes o que eu fazia, no
domingo, queres saber?
OROMAR - Você é bom de bico!
(Tuninho está numa verdadeira euforia)
TUNINHO - Espera, ouve o resto, seu zebu! Eu entrava no Maracanã. Muito bem.
Vamos dar, de barato, que umas 100 mil pessoas assistam ao jogo. [...]
TUNINHO - Seja 150 ou 200 mil pessoas. Não importa. Até aí morreu o Neves. Pois eu,
se tivesse o dinheiro meu, no bolso, eu, sozinho, apostava com 200 mil pessoas no
Vasco. Havia de esfregar a gaita assim, na cara das 200 mil pessoas, desacatando: 'Seus
cabeças-de-bagre! Dois de vantagem e sou Vasco!' Te juro que ia fazer a minha
independência, que ia lavar a égua![...]
Para que se compreenda perfeitamente a gíria utilizada por ele, segue a análise do
primeiro exemplo.
Cabeças-de-bagre é o mesmo que “cabeça oca” e segundo Mello (2009, p. 106), é ainda
um “indivíduo sem juízo”, “sem inteligência ou instrução”, sujeito que não pensa e faz bobagem,
ou ainda um idiota, bobo, cabeça dura, tolo, sem juízo, tapado, sem noção, trata-se de um
substantivo masculino. Segundo o Dicionário informal corresponde a uma “metáfora
caracterizada por perífrase, dá a ideia do significado devido ao conteúdo de valor depositado em
nosso inconsciente, pessoa sem juízo, sem critério, tresloucada”. Também é uma gíria utilizada
nos presídios e significa “novato que diz conhecer todo o esquema do presídio” (FUSARO, 2001,
p. 90). A palavra “cabeça” é um substantivo feminino e representa uma parte do corpo humano
onde se localiza o cérebro, o rosto, é ainda um substantivo comum de dois gêneros posto que
também pode significar “chefe”, “mentor”, “líder”, portanto, pessoa que lidera algo, logo,
segundo a apresentação deste fragmento, “cabeças-de-bagre” diz-se de pessoas que lideram uma
grande bobagem.
Para Chevalier (1997, p. 51) em seu dicionário de símbolos “a cabeça geralmente
simboliza o ardor do princípio ativo. Abrange a autoridade de governar, ordenar, instruir.
Simboliza, igualmente, o espírito manifestado, em relação ao corpo, que é uma manifestação da
matéria”.
Neste mesmo dicionário de símbolos ainda há uma menção muito interessante relacionada
à mitologia, dizendo que “todas fazem alusão a seres policéfalos: animais, homens, gênios,
deuses e deusas. Cada uma dessas cabeças é uma das manifestações particulares do ser”. (Ibdem,
p. 152)
A palavra “bagre” aqui está relacionada a um animal da classe dos peixes, de “hábito de
vida noturno, nada próximo ao fundo em águas escuras e pouco profundas, alimentam-se de
outros peixes, artrópodes e vermes” (BAGRE. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bagre.
Acesso em: 10/08/2012), daí a ideia de alguém que fica no fundo e não assume liderança por falta
de capacidade (verme). Há ainda outras expressões que também são utilizadas da mesma forma,
com significado similar, a saber: “cabeça de boi”, “cabeça de burro”, “cabeça de camarão”,
“cabeça oca”, “cabeça de vento”, todos estes fazem menção a um sujeito que não tem nada na
cabeça.
Aqui se refere às gírias do futebol, tem-se a ideia de alguém, neste caso um jogador, que
fica no fundo do campo, não assume liderança por falta de capacidade e técnica, tem-se ainda a
palavra com grafia semelhante que é o “cabeça de área”, são jogadores volantes que ficam na
frente da zaga, promovendo uma certa contenção, estes algumas vezes são chamados de cabeça
de bagre devido a falta de habilidade no jogo, e ainda o “cabeça de chave” que é o primeiro e
melhor time de um determinado grupo que irá compor uma chave, apesar da grafia ser
semelhante o significado desta última é distinto.
E por conta deste “valor depositado em nosso inconsciente” que o indivíduo é estimulado
a evocar sua memória discursiva, conceituada por Pêcheux (1988, p.52) como “aquilo que, em
face de um texto, que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer
dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.)” para poder entender e fazer-se entendido.
Dito de outra forma, o leitor de Nelson Rodrigues é incentivado através dos discursos
vários a buscar em suas experiências diárias, e falas outras absorvidas os elementos necessários
para decodificar a mensagem transmitida e isto não é difícil, pois os leitores de Nelson Rodrigues
se identificam com sua obra, possuem uma mesma identidade social que o autor. Segundo Cuche
(2002, p. 177):
Mas identidade social não diz respeito unicamente a indivíduos. Todo grupo é dotado de
uma identidade que corresponde à sua definição social, definição que permite situá-lo no
conjunto social. A identidade social é ao mesmo tempo inclusão e exclusão: ela
identifica o grupo (são membros do grupo os que são idênticos sob certo ponto de vista)
e o distingue dos outros grupos (cujos membros são diferentes dos primeiros sob um
mesmo ponto de vista). Nesta perspectiva, a identidade cultural aparece como uma
modalidade de caracterização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural.
Certamente que o objetivo do autor ao inserir tal gíria foi a de dar a obra uma linguagem
mais suburbana e típica da oralidade da época e, uma vez marcado o contexto, fica mais fácil
determinar a sociedade a qual o personagem se encaixa culturalmente, por conta disso cabe aqui
citar Botelho (2001, p.2) que diz que a cultura “é uma produção elaborada com a intenção
explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de
meios específicos de expressão”.
De acordo com Cuche (2002, p. 177), a identidade de uma pessoa está relacionada
diretamente ao grupo social do qual ele faz parte, ou seja, as várias classes em que ela está
inserida como faixa etária, sexo, nacionalidade e outros. Estas classes são capazes de permitir que
este indivíduo se sinta parte de um conjunto devidamente organizado de componentes com
características afins, por isso ele diz que “A identidade permite que o indivíduo se localize em um
sistema social e seja localizado socialmente. [...] Todo grupo é dotado de uma identidade que
corresponde à sua definição social”. Assim, ele afirma ainda que:
A identificação pode funcionar como afirmação ou como imposição de identidade. A
identidade é sempre uma negociação, uma concessão entre uma ‘auto-identidade’
definida por si mesmo e uma ‘hetero-identidade’ ou uma ‘exo-identidade’ definida pelos
outros (CUCHE, 2002, p. 184).
Vale lembrar que esta expressão, uma vez que foi amplamente divulgada nesta obra,
tornou-se conhecida e empregada por muitos, como diz Souza (2006, p.125) em sua tese de
doutorado: “O emprego repetido de algumas dessas expressões cria um grau de previsibilidade e
de redundância nos textos do escritor, o que é um fator que estabelece empatia com o
leitor/ouvinte”. A linguagem popular apresentada por Nelson Rodrigues ganhou notoriedade uma
vez que o público se identificava com o drama e a linguagem.
A agência belga Germaineem junho de 2008 criou um cartaz interessante para a WWF
(World Wide Found for Nature) for a living planet, Greenpeace, que apesar de não mencionar a
gíria cabeça de bagre ela apresentou a imagem de um homem com a cabeça de peixe, o cartaz
traz uma mensagem que alerta às pessoas para o risco da mudança climática. O texto em inglês
diz: “Stop climate change before it changesyou”, em português seria: ‘Pare com a mudança
climática antes que ela mude você’, o mais interessante é que se subentende que a mudança
ocorrerá com pessoas que ignoram o risco, que não estão se importando com o perigo, ignoram o
perigo iminente, ou seja, pessoas, como diria Nelson Rodrigues, cabeças de bagre, o significado
desta gíria já foi apresentado anteriormente, segue o cartaz para compreensão.
Figura 6 –Cartaz do Greenpeace
Fonte: Stop Climate Change Before it changes you (fish). Disponível em: http://www. coloribus
.comadsarchive/prints/global-warming-awareness-stop-climate-change-before-it-changes-you-fish-12086055/.
Acesso em: 10/08/2012
Bom é evidente que este cartaz chama a atenção das pessoas para o risco das mudanças
climáticas de forma criativa e apelativa, ele utiliza cores escuras, verde escuro como
representação do fundo das águas, lugar de morada e alimentação dos bagres, na verdade todo o
cartaz tem tom esverdeado, este tom dá a sensação de se estar num aquário grande com um
animal mutante, no caso o homem, isto é que sugere o cartaz, este material sugere ainda um clima
de total tristeza ao observar a aparência do “homem animal” com os olhos tristes e caídos
sugerindo insatisfação, arrependimento, frustração, como se tivesse já chegado à culminância de
seus tantos atos antes não pensados, uma imagem realmente tensa de se ver, ou seja, o ser
humano chegou a este ponto por não olhar ao redor do mundo e ver o que ele próprio está
fazendo consigo mesmo e com sua gente, como consequência surge uma geração de mutantes que
fica nadando no fundo, no escuro, como os bagres fazem.
A mensagem que fica é de que se deve observar agora tudo o que se tem feito contra a
natureza para que ela pare de pedir socorro e possa conviver em harmonia com todos, pois o
futuro depende daquilo que se promove no presente, o meio ambiente pede ajuda, isto é o que a
empresa publicitária quis apresentar para as sociedades de todo o mundo, a apresentação de um
ser metamorfoseado foi chocante e polêmico neste contexto. A mensagem tenta sensibilizar as
pessoas com a possível imagem delas no futuro, pois se elas não se sensibilizaram com tantas
outras de crianças afro descendentes, terra, água, natureza, quer dizer, sem mostrando o outro, a
agência decidiu então apostar na mutação/adequação/adaptação do próprio homem ao meio em
que “viverá”, caso não escolha por parar com a agressão ao meio ambiente.
Segundo Mourin (1993, p. 51), “a corrente média triunfa e nivela, mistura e
homogeneíza” e diz mais, “ela está ligada ao seu meio natural de formação, a sociedade na qual
se desenvolve uma humanidade média, de níveis de vida médios, de tipo de vida médio”. Logo,
percebe-se que se as gírias são consideradas como um falar aceito pelos integrantes de uma
sociedade de tal forma que se consiga transmitir a mensagem de forma efetiva, como bem disse o
gramático Lima (1972) anteriormente. Em outras palavras, se a corrente média da sociedade
triunfa, conclui-se que o vocabulário gírio pertencente a esta classe triunfa também, tornando-se
uma forma de falar da grande massa.
Zumthor (1993, p. 18) classifica as formas de oralidade e diz que:
a propaganda apresenta a segunda oralidade, na qual toda expressão é marcada mais ou
menos pela presença da escrita. O anúncio apresenta a língua na sua forma escrita, e
mais do que isto, usa os discursos coloquial e da norma culta, pois além de trazerem, de
forma geral, as gírias e as alterações sintáticas, semânticas e/ou lexicais, está inserido em
veículos de comunicação que usam a normal culta.
Cabendo aí dizer que de fato há a presença predominante da linguagem escrita
vigente, a norma culta, mas também há, e isso não se pode negar, a presença marcante de
elementos que representam a oralidade, o coloquial, uma vez que estes representam uma forma
dominada pela maioria da sociedade, pois a maioria está entre o coloquial e o culto, pode-se até
dizer que mais coloquial, uma vez que se fala mais que se escreve. Para Bakhtin (2010, p. 321),
deve-se levar em conta "o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos
especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções,
seus preconceitos (de meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias, etc.", pois tudo isto
influencia de forma determinante na hora da escolha da forma de manifestação linguística, quer
seja oral ou escrita. Por isso que a linguagem pode ser apresentada como algo intencional,
expressivo, característico da identidade humana "e esse todo intencional, construído por nós, é
sempre expressivo". (Ibdem, 2006, p. 311)
Ainda segundo o autor a utilização das gírias na mídia aumentam as diferenças fazendo
com que estas sejam incorporadas a outros grupos sociais, resultando no aparecimento de novas
gírias, Zumthor (1993). Ou seja, a mídia se apropria de uma determinada gíria conhecida de uma
sociedade, vincula em suas campanhas e a partir daí torna-se conhecida da grande massa que
dado o “dinamismo da língua”, (PRETI, 1999), funde-se criando um novo vocábulo gírio.
3.4 Inês é morta
Outro exemplo aqui apresentado é o da expressão “Inês é morta!” que pode ser
encontrada na peça teatral “A falecida”, a qual faz parte da organização Tragédia Carioca I, de
1953 e este fragmento está aqui selecionado:
[...] ZULMIRA (cínica) - ...porque eu sou casada!
PIMENTEL – Mas já aconteceu o máximo entre nós! Tudo!
ZULMIRA – Seu mascarado!
PIMENTEL (eufórico) – Agora é tarde e Inês é morta! (Zulmira já faz o bico de beijo.)
ZULMIRA – Mas, então, um só! (Cena do beijo. Tuninho grita.)
TUNINHO – E o marido? O que é que ela dizia do marido?!
(Pimentel, sai da zona da luz azul. Vem beber um pouco de uísque. Põe o copo, outra
vez, no chão. Vem passando por Tuninho.)
PIMENTEL – No dia seguinte, fomos ao apartamento... Ah, foi uma tarde fabulosa!...
(De novo Pimentel e Zulmira sob a luz espectral. Os dois ficam de joelhos, de frente um
para o outro). [...]
Segundo Mello (2009, p. 274), o significado da expressão coloquial ‘Inês é morta’
“refere-se a ações que, por terem sido praticadas tardiamente, não conseguem reverter
determinadas situações”, ou seja, não preciso mais de você, você chegou tarde demais, já resolvi
meu problema, não adianta mais nada, agora é tarde, agora é inútil, agora é tarde para esta
providência, agora é tarde e não tem mais conserto, fato consumado, irremediável, nada a fazer,
chegou atrasado, veio tarde demais, não adianta mais, não dá mais tempo.
A origem da expressão é portuguesa, entretanto é muito mais usada entre nós que entre
seus criadores, segundo Mello (2009, p. 38):
[...] diz respeito à Inês de Castro (1320-1355), que foi amante do príncipe dom Pedro
(1320-1367), com quem teve três filhos. Por não concordar com o romance, dom Afonso
IV mandou decapitá-la. Ao se tornar o oitavo rei de Portugal, dom Pedro concedeu-lhe o
título de rainha, homenagem tardia e inútil, pois há muito tempo Inês já estava morta.
Daí a expressão significar a ‘inutilidade de ações feitas tardiamente’. Dois séculos mais
tarde, a personagem foi celebrada no episódio “Inês de Castro” do poema épico “Os
Lusíadas”, de Luís de Camões (1524-1580)”.
Cita-se a seguir um fragmento de Camões em Os Lusíadas, que relata assim e comprova a
origem da expressão coloquial:
Episódio de Dona Inês de Castro
(Os Lusíadas, Canto III, 118 a 135)
Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e Preti da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
Ora, certamente para que o leitor da peça teatral de Nelson Rodrigues compreenda esta
expressão coloquial ‘Inês é morta’ na íntegra e saber a quê faz citação quanto hipo-texto que é, é
preciso que este tenha conhecimento razoável, neste pensamento Cuche (2002, p. 28) faz menção
à concepção alemã sobre cultura afirmando ser “um conjunto de características artísticas,
intelectuais e morais que constituem o patrimônio de uma nação, considerado como adquirido
definitivamente e fundador de sua unidade”. Logo, uma vez apresentada uma parte para o todo,
este se apropria e torna-o parte integrante de sua linguagem, portanto “patrimônio da nação”,
cabendo aqui também afirmar o que disse Bakhtin (2006, p. 21): “só a localização histórica e
social torna um homem real e determina o conteúdo de sua criação pessoal e cultural”.
Entretanto, não há necessidade que o leitor saiba o que aconteceu com Inês de Castro de
fato para que esta expressão lhe faça sentido, ao leitor cabe conhecer o significado semântico da
expressão parodiada e não necessariamente o ocorrido de fato à Inês, lê o que disse Bakhtin (apud
BARBOSA, 2001, p. 60): “o enunciado de caráter paródico utiliza a linguagem parodiada de
forma a desmascará-la [...] o autor fala a linguagem do outro, mas reveste-se de uma orientação
semântica oposta à que o outro lhe dera”.
Tanto a expressão “Até aí morreu o Neves” quanto à mencionada agora, a saber, “Inês é
morta”, fazem menção à ‘morte’, vê-se nelas: ‘morreu’ e ‘morta’, cabe, portanto, citar, e isto
vale, obviamente, para ambas, o que apresenta Chevalier (1997, p. 621) sobre o simbolismo que
esta palavra carrega, para ele,
A morte designa o fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser humano, um
animal, uma planta, uma amizade, uma aliança, a paz, uma época. [...] Enquanto
símbolo, a morte é o aspecto perecível e destrutível da existência. Ela indica aquilo que
desaparece na evolução irreversível das coisas. [...] Ela é revelação e introdução. Todas
as iniciações atravessam uma fase de morte, antes de abrir um acesso a uma vida nova.
Nesse sentido ela tem um valor psicológico: ela liberta das forças negativas e
regressivas, ela desmaterializa e libera as forças de ascensão do espírito.
Visto desta forma, então, pode-se dizer que o fim de Inês de Castro designa a morte de
algo que era positivo, pelo menos em relação ao seu amante, posto que o amor, ainda que
proibido, é visto como algo bom e bonito, e introdutório na mente das pessoas, pois inseriu nestas
uma espécie de espírito vingativo pós-morte, a saber sua coroação quando dom Pedro nada mais
poderia fazer a não ser, vingar-se e garantir-lhe um direito que ele provavelmente almejava para
ela, coroar-lhe rainha. Por isso que o autor diz que a morte “liberta e libera as forças do espírito”.
Em relação a outra expressão já apresentada (Até aí morreu o Neves), vale dizer que a
palavra referente a morte (morreu) abre espaço para o novo, a nova informação, a próxima
notícia, sua carga psicológica induz os ouvintes imediatamente acrescentarem novidades, sua
carga semântica abre espaço para um diálogo mais reforçado, pois sempre haverá alguém
estimulado a obter novos fatos, a prender a atenção do interlocutor.
Para exemplificar melhor a expressão acima mencionada, apresenta-se o cartaz de duas
peças teatrais, a primeira foi produzida pelo grupo de teatro de vanguarda “Arte Carioca” do
curso de Artes Cênicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que apresentaram no
enredo da peça o significado exatamente da expressão em questão, pois a solução para os
problemas da vida só aparecem quando “Inês já é morta”. Para que se comprove que é conhecida
a mensagem coloquial aqui tratada, vê-se que a data da exibição da peça é de um cartaz que
indica até o dia 29 de novembro de 2009. Em relação ao contexto, é necessário assistir a toda a
peça para se compreender nuances que compõem todo o significado da expressão, ou seja, a
partir momento em que o espectador decide assistir a peça ele percebe na íntegra o significado de
“Inês é morta”. Eis primeiro cartaz a seguir:
Figura 7–Cartaz da peça teatral Inês é morta
Fonte: INÊS É MORTA. Disponível em: http://www.dimprio.com/2009_11_01_archive.html. Acesso em: 05/08/12.
A segunda peça teatral foi nomeada de “Quem disse que Inês é morta?!”, que se
apresentou na Livraria da Vila no Shopping Higienópolis, em São Paulo. Esta apresentou em seu
roteiro as várias possibilidades de desfecho da história contada pelos Lusíadas no episódio de
Inês de Castro que foi coroada depois de morta, a peça tenta através do canto, dança e
interpretação mostrar o drama em outra perspectiva, onde a própria atriz principal atua sete
papéis diferentes na mesma peça incluindo o de Chernês de Castro e Dom Peixe I, um contexto
nunca antes apresentado, na verdade a peça inteira brinca com este contexto, possivelmente de
todos os exemplos aqui representados este é o que melhor mostra a questão do contexto, posto
que na recorrência das histórias que compõem a peça, a expressão fica amplamente
diagnosticada. Esta peça teatral pôde ser vista em setembro de 2011. Eis o segundo cartaz a
seguir:
Figura 8– Cartaz da peça Teatral Quem disse que Inês é Morta?
Fonte: Peixe Urbano - explore a cidade. Disponível em:http://www.peixeurbano.com.br/sao-paulo-so/ofertas/quem-
disse-que-inescktxat. Acesso: 07/08/2012.
A apresentação desta expressão neste estudo é uma das coisas mais extraordinárias que se
pode ver, pois há a manifestação da literatura apoiando a permanência dela no vocabulário até os
dias atuais, extraordinária no tocante ao tempo de produção da obra de Camões, o percurso que
ela atravessou, desde 1556, período que provavelmente a produção escrita foi encerrada, 1572
quando foi publicada pela primeira vez, passou-se mais ou menos 460 se levar em conta a escrita
e 440 se levar em conta a publicação. O fato importante é que para o Brasil com exceção
daqueles que tem, ou melhor, tiveram acesso às grandes obras da literatura, tem-se um bom
tempo decorrido de conhecimento das histórias e informações que puderam chegar até a
população de um modo geral, como é o caso da morte de Inês de Castro, entretanto tais
expressões que precisam de um apoio externo (historias reais ou fabulosas) também tem um
tempo de vida, como é o caso da maioria das gírias, entretanto dentro de um contexto literário vê-
se que ela se perpetuou, pois há mais de 50 anos sendo levado em consideração, quer dizer que o
a palavra é capaz de enfrentar o desgaste do tempo desde que haja sempre a intenção do outro em
usá-la, por isso que Bakhtin (2006, p.113), fala que “a palavra é uma espécie de ponte lançada
entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra, apoia-se sobre
meu interlocutor”.
Nelson Rodrigues ao usar em sua peça esta linguagem coloquial em especial “Inês é
morta” teve, embora diga ser uma manifestação linguística da época, participação ativa na
construção deste discurso, uma vez que fazia parte desta mesma sociedade retratada por ele,
inserindo assim sua própria forma ideológica, sua forma pessoal de ver a sociedade, para que
comprove isto lê-se o que disse Bakhtin (2006, p. 113), “O discurso escrito é de certa maneira
parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa,
refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc”. Daí este
discurso escrito ser parte da identidade e cultura do próprio autor, uma vez que o escritor tem a
possibilidade de inserir partes de sua personalidade na construção do texto.
3.5 Salvar a pátria
Outro exemplo importante a ser apresentado é o da expressão “a pátria está salva!” ou,
como é mais conhecida: “Salvar a pátria!” que também está presente na peça teatral “A falecida”.
Segue o fragmento (RODRIGUES, 2012, p. 18):
[...] FUNCIONÁRIO – Alão
TIMBIRA – Eu estou! Eu estou!
(Pula o funcionário no telefone)
FUNCIONÁRIO – Qual Anacleto? O bicheiro? No duro? E agora? Oba! Agüenta a mão
que vamos soltar o Timbira! Já sei, pode ficar descansado! (Precipita-se o funcionário
para o Timbira)
FUNCIONÁRIO - Parece que a pátria está salva.
TIMBIRA - Desembucha!
FUNCIONÁRIO - O negócio é seguinte: tu conheces o Anacleto?
TIMBIRA - O bicheiro?
FUNCIONÁRIO - O bicheiro. Tem uma filha única, de 16 anos, aliás um biju. Pois bem,
a garota saiu do colégio, atravessou a rua e foi esmagada entre um bonde e um ônibus.
Sanduíche autêntico!
TIMBIRA - Morreu?
FUNCIONÁRIO - Se morreu?! Está feito uma papa! Sabes o que é papa? papinha? [...]
Para que se compreenda perfeitamente o hipo-texto utilizado por ele a partir de um valor
já antes depositado em nosso inconsciente que segue a análise. “A pátria está salva” é o mesmo
que “salvar a pátria” e “salvo pelo gongo” (cujo significado é o mesmo, mas a origem é diferente)
e segundo Mello (2009, p. 434): “diz-se de pessoa, coisa ou ocorrência que chega no momento
propício; último recurso para resolver uma situação aflitiva”, ou ainda como disse Rangel (2010,
p. 180) “livrar-se de um perigo ou situação constrangedora no último instante”. E por conta deste
“valor depositado em nosso inconsciente” que o indivíduo é estimulado a evocar sua memória
discursiva, conceituada por Pêcheux (1999, p.52) como “aquilo que, em face de um texto, que
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente,
os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.)” para poder
entender e fazer-se entendido.
Um fato interessante acontecido na vida de Nelson Rodrigues quando ainda era escritor do
jornal “A Manhã” talvez justifique a utilização desta expressão em sua peça, pois foi um tempo
em que o autor desgostava Rui Barbosa, menção a isto se diz o seguinte,
Seu lado monstro só apareceu na crônica de 16 de março, "O rato..." (com as famosas
reticências), em que ele conta como viu um rato morto, achatado por um carro, defronte
à Biblioteca Nacional. Para desespero de seu pai, começa a "bater" em Ruy Barbosa. No
segundo artigo em que esculhambava o "Águia de Haia", antevendo o que
aconteceria, Nelson achou que se safaria de seu pai se saísse bem cedo de casa, antes
que o "velho" lesse o jornal. Enganou-se. O castigo foi mais duro do que ele imaginava:
foi rebaixado, saindo da página três e retornando à seção de polícia, onde trabalhou nos
cinco meses seguintes. (RODRIGUES, Nelson. Disponível em:
http://www.releituras.com/nelsonr_bio.asp. Acesso em: 10/08/2012)
Dito de outra forma, o leitor de Nelson Rodrigues é incentivado através dos discursos
vários a buscar em suas experiências diárias, e falas outras absorvidas os elementos necessários
para decodificar a mensagem transmitida e isto não é difícil, pois os leitores de Nelson Rodrigues
se identificam com sua obra, possuem uma mesma identidade social que o autor, daí apresenta-se
o que disse Cuche (2002, p. 177):
Mas identidade social não diz respeito unicamente a indivíduos. Todo grupo é dotado de
uma identidade que corresponde à sua definição social, definição que permite situá-lo no
conjunto social. A identidade social é ao mesmo tempo inclusão e exclusão: ela
identifica o grupo (são membros do grupo os que são idênticos sob certo ponto de vista)
e o distingue dos outros grupos (cujos membros são diferentes dos primeiros sob um
mesmo ponto de vista). Nesta perspectiva, a identidade cultural aparece como uma
modalidade de caracterização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural.
Certamente que o objetivo do autor ao inserir tal linguagem foi a de dar a obra uma
característica mais suburbana e típica da oralidade da época e, uma vez marcado o contexto, fica
mais fácil determinar a sociedade a qual o personagem se encaixa culturalmente, por conta disso
cabe aqui citar Botelho (2001, p.2) que diz que a cultura “é uma produção elaborada com a
intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através
de meios específicos de expressão”.
Interessante observar que a expressão “a pátria está salva” neste caso como uma catarse
que libertou os funcionários de uma possível falência ou, como se diz no mercado, fecha o mês
no vermelho, garantindo a provisão necessária para aquele mês. Importante ressaltar que a
expressão aqui é reconhecida semanticamente pelos personagens e é aceita por estes, dada a
necessidade da ocasião ela foi muito bem empregada. Este discurso coloquial promovido por
Nelson Rodrigues é típico de textos dramáticos, cujos personagens, no calor da discussão tem a
tendência ao descontrole, a falta de cuidados com o linguajar, marcando exatamente com isso a
proximidade do discurso oral e com a camada mais popular da sociedade.
A expressão “salvar a pátria” tem sua provável origem na campanha presidencial de Rui
Barbosa em 1918 cujo slogan era "Dar voto a Ruy Barbosa é salvar a Pátria" que, segundo o site
www. riodejaneiroaqui.com, “certamente tenha sido despretensioso, apenas aludindo à virtude do
candidato”.
Ora, talvez a maioria não se dê conta desta origem, até porque na paródia isto não
importa, o que vale na verdade é que “a orientação paródica seja notada pela audiência ou pelo
leitor, é necessário que a palavra do outro seja reconhecida com facilidade e que a ação
deformadora da segunda voz sobre a primeira seja percebida”, Bakhtin (apud BARBOSA, 2001,
p. 61), quer dizer, sabe-se que se trata de algo referido importante, mas não necessário para a
compreensão da expressão em si, logo, dizer ‘a pátria está salva’ é dizer, em outras palavras, que
esta expressão faz menção a algo dado no passado e que foi notório, entretanto por hora basta
saber que algo ou alguém conseguiu resolver a situação na hora certa, no momento final.
Vê-se, portanto, nesta expressão que o significado está vinculado a solução de problemas,
solução aguardada por alguém, um herói épico e que está além dos feitos humanos, alguém que
certamente ama a pátria, a história daquele povo e o próprio povo. Como a expressão em questão
trata-se de um hipo-texto, e este resgata necessariamente uma memória, apresenta-se aqui o que
disse Bakhtin (2010, p.373)
Estamos convencidos de que não havia literalmente um só gênero direto estrito, nem um
só tipo de discurso direto – literário, retórico, filosófico, religioso, popular – que não
tivesse o seu duplo paródico-travestizante, sua contra parte cômico irônica, ademais,
estes duplos paródicos e os reflexos cômicos do discurso direto em alguns casos eram
tão consagrados e canonizados pela tradição quanto seus protótipos elevados.
Mais uma vez para que se comprove o uso da expressão coloquial ‘Salvar a pátria’ e o
conhecimento de seu significado apresenta-se uma telenovela que foi exibida em janeiro de 1989
pela Rede Globo, escrita por Lauro César Muniz, chamada Salvador da Pátria, a história se
passava na cidade fictícia de Tangará e Ouro Verde, ambas eram mostradas como passagem do
narcotráfico, a trama girava em torno de um personagem chamado Sassá Mutema (papel
interpretado pelo o ator Lima Duarte) que era um boia fria e tinha sido comprado por um outro
personagem chamado Severo Blanco que intencionava camuflar seu relacionamento com a
amante Marlene e para isso convence Sassá Mutema a casar-se com ela, entretanto a amante é
assassinada junto com outro personagem da trama chamado Juca Pirama, Sassá é convencido a
assumir o homicídio e obviamente levar toda a culpa como um bode expiatório, alguém que
assume a culpa e livra o outro, na verdade ele entra como um verdadeiro salvador da pátria, pois
surge na trama para resolver um problema criado por outros, entretanto o tiro sai pela culatra e
ele torna-se famoso e consegue com a fama eleger-se prefeito para desgosto dos traficantes da
região. Sassá Mutema torna-se um prefeito extremamente influente, mas ainda influenciável, no
final os envolvidos no esquema de narcotráfico e nos assassinatos é descoberto e Sassá livre das
acusações. A seguir apresenta-se a chamada da novela.
Figura 9– Chamada da Novela O Salvador da Pátria
Fonte: O Salvador da Pátria. Disponível em:http://telaglobal.blogspot.com.br/2010/11/o-salvador-da-patria.html.
Acesso: 01/08/2012.
Segundo Bakhtin (2006, p. 37), todo signo é ideológico, portanto, configura elementos
identitários e culturais de quem fala ou escreve, isto significa dizer que toda manifestação
linguística recorre a gama de informações, modos de pensar e ver o mundo do sujeito que está
fazendo uso da linguagem, isto é muito mais que uma simples troca de informação, é na verdade
inserir na linguagem e no outro sua visão de mundo e para ele a:
[...] única maneira de fazer com que o método sociológico marxista dê conta de todas as
profundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas 'imanentes' consiste em
partir da filosofia da linguagem concebida como filosofia do signo ideológico. A palavra
ao contrário é neutra, isto significa dizer que é neutra em relação a qualquer função
ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética,
científica, moral, religiosa. (Ibdem, p. 35)
Ou seja, funciona como uma espécie de ferramenta de representação ideológica, cabendo
ao indivíduo fazer uso dela e dar o valor que este intenciona. Por isso Bakhtin diz ainda que “a
existência do signo nada mais é do que a materialização dessa comunicação”. (Ibdem, p. 34)
3.6. Amigo da onça
Outro fragmento retirado da peça foi “amiga da onça”, este recorte pode ser encontrado na
página 51 da peça teatral “A falecida”:
[...] TIMBIRA – e se for palpite do médico?
ZULMIRA – Desta vez, não. Desta vez, é batata. Olha as alças de bronze,
percebeu?
TIMBIRA – E o nos..so encontro?
ZULMIRA – Já, não.
TIMBIRA – Amiga da onça!
ZULMIRA – Já, não posso!
TIMBIRA – Então, quando? [...]
A expressão coloquial “amigo da onça” é uma versão do “amigo urso” da fábula Os
Dois Viajantes e o Urso de Esopo1, apresento a referida fábula a seguir:
Dois homens viajavam juntos através de uma densa floresta, quando, de repente, sem
que nenhum deles esperasse, um enorme urso surgiu do meio da vegetação, à frente
deles. Um dos viajantes, de olho em sua própria segurança, não pensou duas vezes,
correu e subiu numa árvore. Ao outro, incapaz de enfrentar aquela enorme fera sozinho,
restou deitar-se no chão e permanecer imóvel, fingindo-se de morto. Ele já escutara que
um Urso, e outros animais, não tocam em corpos de mortos. Isso pareceu ser verdadeiro,
pois o Urso se aproximou dele, cheirou sua cabeça de cima para baixo e então,
aparentemente satisfeito e convencido que ele estava de fato morto, foi embora
tranquilamente. O Homem que estava em cima da árvore então desceu. Curioso com a
cena que viu lá de cima, ele perguntou: “Me parece que o Urso estava sussurrando
alguma coisa em seu ouvido. Ele lhe disse sim! Respondeu o outro, “Disse que não é
nada sábio e sensato de minha parte, andar na companhia de um amigo, que no primeiro
momento de aflição me deixa na mão!” (FÁBULA OS DOIS VIAJANTES. Disponível
em: http://sitededicas.ne10.uol.com.br/fabula_os_dois_viajantes.htm. Acesso em:
02/01/2013)
1Fabulista grego, nascido pelo ano de 620 a. C. Ignora-se o lugar de seu nascimento; alguns dizem ter sido Samos ou
Sardes, enquanto Aristófanes o supôs filho de Atenas. Segundo o historiador Heródoto, Esopo teria nascido na Frígia
e trabalhava como escravo numa casa. há ainda alguns detalhes atribuídos à biografia de Esopo, cuja veracidade não
se pode comprovar: seria corcunda e gago, protegido do rei Creso. (ESOPO. Disponível em:
http://www.contandohistoria.com/esopo.htm. Acesso em: 02.12.2012)
A expressão coloquial “amigo da onça” significa, portanto, um amigo que é falso, infiel,
alguém que age como se não fosse amigo, hipócrita, alguém em quem não se deve confiar, aquele
que coloca o amigo em situações difíceis, constrangedoras. A carga significativa que esta palavra
traz é que faz dela “o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 2006, p. 34), pois o
contexto semântico inserido nesta expressão configura aquilo que representa o pensamento de um
alguém para o outro, um significado convencionado por um grupo e utilizado a palavra como
uma espécie de ferramenta de transporte de informações.
Em outro momento Bakhtin (2006, p.35) fala perfeitamente sobre isto e diz assim,
Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o
primeiro meio da consciência individual. Embora a realidade da palavra, como a de
qualquer signo, resulte do consenso entre os indivíduos, uma palavra é, ao mesmo
tempo, produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a
uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extra corporal. Isso
determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência
(discurso interior).
Em relação à fábula acredita-se que Esopo viveu na Grécia, mas não se tem provas de que
ele realmente tenha escrito fábulas, entretanto as fábulas supostamente escritas por ele trazem
sempre uma alegoria, uma moral para a história, algo a se refletir, a se pensar, normalmente elas
personificam os animais e estes falam e agem como pessoas, garantindo ainda a capacidade deles
cometerem erros e acertos.
A expressão “amigo da onça” é de origem brasileira e faz menção a uma piada contada
nos anos 40 relatando a experiência de duas pessoas conversavam e uma delas passa a fazer
perguntas sobre uma determinada situação, se o amigo estivesse diante de uma onça na selva, o
que ele faria, o amigo responde que dava um tiro, mas o outro reage e pergunta novamente: _ e se
a arma falhasse? Segue aí uma sequência de perguntas e possibilidades (balas acabaram, perdeu a
faca, etc) que deixaram o caçador em apuros até que ele se aborrece e pergunta: _ Afinal, você é
meu amigo ou amigo da onça? Utilizando esta anedota como inspiração, o cartunista da revista O
Cruzeiro, Péricles de Andrade Maranhão, em 23 de outubro de 1943, criou juntamente com seu
diretor, Leão Godim de Oliveira, o personagem “amigo da onça” e semanalmente figurava na
revista episódios que representavam, no contexto, o significado desta piada. Segundo Rangel
(2010, p. 38), “O Cruzeiro chegou a vender 750 mil exemplares, com uma edição internacional
em língua espanhola que circulava até no sul dos Estados Unidos. Pouco antes da morte de seu
criador, quando foi feita uma pesquisa de opinião pública para saber qual a seção mais lida em O
Cruzeiro, o “Amigo da Onça” ganhou disparado. A seguir apresento o referido personagem
“amigo da onça”:
Figura 10-O “amigo da onça”
Fonte: O Amigo da Onça. Disponível em: http://odiabonomeiodarua.blogspot.com.br/2012/07/o-amigo-da-
onca.html. Acesso em: 07/08/2012.
Acima se apresenta o personagem criado por Péricles Maranhão e adiante uma de suas
páginas da revista O Cruzeiro onde o personagem amigo da onça diz o seguinte: “_ Agora conta
pra sua mãe a piada do papagaio que você contou pra mim”. A cena mostra o casal (amigo da
onça e a namorada) sentado no sofá da sala da namorada, o amigo da onça falando com ar
natural, na verdade ele coloca a namorada numa situação constrangedora diante da mãe, pois leva
a entender que uma piada de papagaio não é algo que uma moça educada conte para o namorado,
e mais em frente aos dois está a mãe de pé com um ar de desconfiança e indagação olhando para
a filha. O conjunto da peça leva a crer que o personagem principal foi realmente “amigo da onça”
da namorada, pois foi capaz de submetê-la a uma situação constrangedora diante da mãe.
Figura 11 – Cena do “amigo da onça” na Revista O Cruzeiro
Fonte: O Amigo da Onça.Disponível em:http://clubedosentasdecatanduva.blogspot.com.br/2011/06/o-amigo-da-
onca.html. Acesso em: 01/08/2012.
Esta expressão até aos dias de hoje ainda é bastante popular, percebe-se que a expressão
coloquial se popularizou em 1943 com o cartum que foi publicado até 1972, mesmo depois da
morte do cartunista, em 1953, ela foi utilizada por Nelson Rodrigues na peça porque era de amplo
conhecimento da sociedade da época e na atualidade existe inclusive uma brincadeira muito
executada na época do Natal que tem por nome “Amigo da onça” que consiste em ganhar o
presente como amigo oculto, mas o presenteado decide se fica com ele ou se troca por outro que
esteja nas mãos de um de seus amigos.
Há ainda uma canção que encerra estes exemplos comprobatórios chamada “Amigo da
Onça” cantada por George Henrique e Rodrigo cuja letra é a seguinte:
Amigo, olha quem tá ali
A gatinha manhosa
Que eu falei que tinha
beijado
E tinha deixado de me
atender
Agora sei porque ela não
me atende
Tá com um cara que
dizia ser amigo da gente
Ê fura olho você nunca
me enganou
Então toda mulher que
chega eu pegar
Então toda gatinha que
você pegar eu vou chegar
Já que não teve respeito,
eu vou moer no que é seu
Eu vou botar no 12, não
se assunte amigo meu
Amigo da onça, depois
não se espanta
Mexeu com a pessoa
errada agora vai ter que
aprender
Amigo da onça, o dia da
caça passou
Não se apavore, cale,
escute
Hoje é do caçador
3. 7 Cafundós do Judas
Outra expressão que será aqui apresentada é “cafundó do Judas” ou “onde Judas
perdeu as botas” que pode ser encontrada no fragmento abaixo na página 19,
pertencente à peça tratada neste estudo.
[...] TUNINHO - Ora, não amola!
ZULMIRA (com maus modos) - Claro!
TUNINHO - Então, você me sai de casa debaixo desse toró, larga-se para os
cafundós do Judas, atrás de uma cretina?
ZULMIRA - Mas, criatura, presta atenção! Escuta!
TUNINHO - Você enche!
ZULMIRA - Quem será essa loura, minha Nossa Senhora?
TUNINHO - Perguntaste, ao menos, à imbecil dessa cartomante se eu ia
melhorar de situação e outros bichos?[...]
Cafundó do Judas significa um lugar muito distante e muito difícil de ser
encontrado, de difícil acesso, lugar difícil de localizar, longínquo, morada distante e
indefinido ou como muitos dizem: “Lugar onde Judas perdeu as botas”, nos confins do
mundo, lugar ermo e distante.
Esta expressão é de origem europeia e refere-se às trinta moedas de prata que
Judas Iscariotes recebeu para trair Jesus, depois disso ele retirou-se e foi se enforcar.
Vê-se o que diz a Bíblia, em Mateus 27: 3-5
Então Judas, o que o traíra, vendo que fora condenado, trouxe, arrependido,
as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos,
Dizendo: Pequei, traindo o sangue inocente. Eles, porém, disseram: Que nos
importa? Isso é contigo.
E ele, atirando para o templo as moedas de prata, retirou-se e foi-se enforcar.
Dizem que ele ao se enforcar estava sem as botas e sem o dinheiro, então se
supõe que o dinheiro estava dentro das botas, como não há menção de que as botas
foram encontradas ou não está marcada aí a indefinição que a expressão carrega
(RANGEL, 2010, p. 149). Que o dinheiro não estava nos bolsos dele é possível se dizer,
mas dizer que ele perdeu as botas aí é difícil até porque não se tem informações de que
na época de Jesus os homens calçavam botas, mas sim sandálias, provavelmente se
atribua o “perder as botas” ao fato de que algumas pessoas quando condenadas à forca,
também eram condenadas a ficar sem seus próprios sapatos, como foi o caso de
Tiradentes que no dia 21 de abril de 1792 foi condenado à forca e dirigiu-se a ela no
Largo da Lampadosa no Rio de Janeiro, descalço, cabeça e barba raspadas, vestido
numa túnica branca. Esta provável junção de informações e a criação do algo novo
mostra a capacidade do homem de se apropriar de histórias, reinventá-las, recriá-las e
reinterpretá-las.
Logo para que se compreenda o significado de uma palavra, certamente ela não
pode ser isoladamente, mas no conjunto, no contexto do material, obviamente que este
conjunto deva fazer parte de um grupo social organizado, portanto, aquilo que a
expressão significa para este grupo social composto de pelo menos dois indivíduos. De
toda a forma dizer “cafundó do Judas” e “onde Judas perdeu as botas” possuem o
mesmo significado, ambos falam de distância e lugar difícil de ser encontrado.
Com relação a isto Bakhtin (2006, p.33) afirma que:
Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. [...] É
fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que
formam um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode
constituir-se. A consciência individual não só pode ser explicada, mas, ao
contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social.
Foi encontrado um livro chamado “Cafundó do Judas: Sociedade quase perfeita”
do escritor Milton Duarte de Araújo, o livro é de 2001 da editora Scortecci. No livro o
autor cria uma sociedade envolvida num contexto satírico com direito a citar
características de caráter do ser humano como a hipocrisia, aliás a sátira está presente no
significado que a própria expressão, carrega.
Figura 12 – Capa do Livro “Cafundó do Judas: Sociedade quase
perfeita”
Fonte: Cafundó do Judas: Sociedade quase perfeita. Disponível: http://www.skoob.com.br/livro/148811.
Acesso em:07/08/2012.
Há um site chamado geraçãox2.com.br que produz tirinhas como esta
apresentada logo abaixo que data de 31 de agosto de 2012, segundo o criador deste site,
ele define a geração x2 como aquela que “nasceu depois de 1960 e antes de 1983”, que
nasceram usando jogos analógicos, mas foram capazes de “incluir a palavra google em
seu vocabulário”.
Algumas tirinhas deste site fazem uma crítica às pessoas e prefeituras que se
recusam a atualizar e modernizar seus equipamentos, na verdade se recusam a
acompanhar a tecnologia, estão perdidos em algum lugar no passado e desprezam o
presente. O título das tirinhas criadas pelo responsável do site faz alusão à expressão
coloquial “cafundó do Judas”, ou seja, um lugar tão distante que a tecnologia já chega lá
atrasada, estão ainda usando máquinas de escrever e quando decidem substituí-las ainda
é por um computador usado nos anos 90.
Figura 13 – Tirinha do site geraçãox2
Fonte: Sempre funcionou assim, vai querer mudar agora?Disponível
em:http://geracaox2.com.br/category/cartoons-by-marreco-e-outros-bacaninhas/prefeitura-municipal-de-
cafundo-dos-judas/. Acesso em: 08/10/2012.
3.8. Entrar de sola
Outra palavra que será apresentada é a gíria “entrar de sola” também encontrada
na peça teatral “A falecida” na página 17, segue o fragmento:
[...] Timbira – Ninguém. Fui o primeiro. A mulher tinha acabado de morrer.
O embaixador estava na sala, fumando de piteira, o animal! Então calculei:
bem, esse cara aqui é diplomata. Tem dinheiro pra chuchu e vai querer pra
esposa um enterro alinhado.
Funcionário – Desconfio que bobeaste!
(Exalta-se Timbira).
Timbira – Espera lá! Ouve o resto! Tu pensas que eu fui à outra pessoa da
família? Não senhor! Entrei direto e de sola no próprio viúvo. Mas quando
eu falei num caixão bacana, de dez contos, o sujeito quase me comeu vivo.
Pra encurtar conversa: encomendou um de oitocentos cruzeiros e olha lá!
Caixão micha!
Funcionário – Só?
Timbira – E assim mesmo porque eu cantei aquela besta que só vendo!
Fracassei miseravelmente! Esses cartolas enchem!
(Bate o telefone) [...]
Segundo Gadelha (2010, p. 63), “entrar de sola” no futebol “significa disputar a
bola de forma desleal”, ou ainda, “falar direto e sem rodeios”. Entrar no adversário com
disposição indevida com a perna estendida e a sola da chuteira voltada para ele,
manobra arriscada para o adversário que pode ter a perna quebrada dada a agressividade
do outro jogador. Diz-se também de alguém que é agressivo em suas palavras ou que na
conversa entrar imediatamente no assunto que deseja sem rodeios ou meias palavras.
É uma gíria ainda hoje muito usada quer seja no futebol quer seja na conversa do
dia a dia, não está identificada a origem desta expressão, mas o significado dela é fácil
de compreender, principalmente quanto gíria no futebol, pois está quase na íntegra.
Obviamente que no sentido figurado da palavra, no que tange a entrar numa conversa
sem rodeios e a partir do contexto não é difícil entender. Há um bordão muito usado até
os dias atuais que foi apresentado na telenovela ‘O bem-amado’ exibida em 1973, de
Dias Gomes que é “Vamos deixar de lado os entretantos e ir direto aos finalmentes”,
Paulo Gracindo protagonizava esta novela e foi o lançador deste e de outros bordões que
ficaram na memória dos telespectadores, mais tarde, entretanto, pela lei do menor
esforço, ouve-se: “Vamos aos finalmentes”, cujo significado permanece o mesmo.
Ao optar pelo uso da linguagem coloquial, o indivíduo apoia-se na realidade que
cerca a ele e ao seu interlocutor, pois o signo linguístico é capaz de representar muitas
esferas, para que a comunicação ocorra de acordo com o esperado é preciso que haja
compreensão do conjunto de informações necessárias para isto e as possibilidades de
articulações que um mesmo signo pode carregar, como afirma Bakhtin (2006, p. 31):
No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças
profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação, do
símbolo religioso, da fórmula científica e da forma jurídica etc. Cada campo
da criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a
realidade e refrata a realidade à sua maneira. Cada campo dispõe de sua
própria função no conjunto da vida social.
Há a letra da música de Luiz Henrique e Cassiano chamada “Entrou de sola” que
apresenta o significado exato da expressão usada por Nelson Rodrigues no fragmento
acima, ou seja, entrar direto na conversa, sem rodeios, assumindo as consequências.
Entrou de Sola
Luiz Henrique e Cassiano
Hoje eu te vi novamente aqui passou
Corrrendo e como sempre não me viu nem me notou
Até que ponto vale a pena viver um amor assim
Se você nem olha mais pra mim.
O sentimento ainda flora, essa paixão marcou
Eu te ligo a cada meia hora mas você já não diz alô.
(Refrão)
Entra de sola, me derruba com palavras
Esse meu choro pra você não vale nada
Joga na cara as vezes que eu te fiz sofrer
Eu sei que errei me perdoa mas eu amo você.
Os significados só aparecem quando indivíduos resolvem estabelecer entre eles
uma interação verbal, estes fazem uso a partir daí de todas as representações possíveis
de uma mesma palavra, todas as informações guardadas no desenvolvimento constante e
diário do diálogo, a identidade, cultura, grau de disposição para interpelar no outro e ser
interpelado por ele. Segundo Bakhtin (2010, p. 32):
Os signos só emergem, decididamente, no processo de interação entre uma
consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está
repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna
de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no
processo de interação social.
3.9 É batata!
Dentre tantas gírias apresentadas por Nelson Rodrigues em suas obras há uma
que deveria ser considerada uma marca registrada, a saber: “É batata!” (RODRIGUES,
2012, p. 28), cujo significado é aquilo que não falha, com certeza, na certa, diz de
pessoa que age de acordo com o esperado, ênfase dada numa afirmação ou para algo em
que se está de acordo, algo que com certeza vai acontecer. Esta expressão foi uma das
marcas de seu tempo e porque não dizer dele mesmo, pois todo sujeito está ou muito ou
pouco infiltrado no seu tempo, e querendo ou não são estas infiltrações que definem
quem é aquele sujeito, ora dizer que Nelson Rodrigues usava as gírias da sociedade da
época é o mesmo que dizer que ele era um simples apreciador da fala alheia, ou melhor,
de uma sociedade da qual não fazia parte, apenas apreciava, vivia, quando na verdade
ele usava sim as gírias da sua época, pois ele era desse período, certamente destas
expressões fazia uso.
Dentro desta perspectiva Bakhtin (2006, p. 31) afirma:
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade,
mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que
funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como
som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra
coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e,
portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um
signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus
efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social
circundante) aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de suma
importância. No entanto, por mais elementar e evidente que ele possa
parecer, o estudo das ideologias ainda não tirou todas as consequências que
dele decorrem.
A seguir apresento o fragmento da referida peça por conter a gíria Batata!
[...] TUNINHO - Ah, logo vi!
ZULMIRA - Logo viu o quê?
TUNINHO - Já sei quem pôs essas na tua cabeça!
ZULMIRA - Quem?
(Tuninho estaca. Espeta o dedo no peito da mulher.)
TUNINHO - Glorinha!
ZULMIRA - Você é louco?!
TUNINHO - Claro como água! Aqui, nesta rua só quem tem essas ideias é a
Glorinha! E mais ninguém!
ZULMIRA - Tinha graça!
TUNINHO - É imitação, sim! Confessa! É ou não é?
(Zulmira exalta-se. Veemente.)
ZULMIRA - E se fosse? E se eu quisesse imitar a Glorinha?
TUNINHO (sardônico) - Batata!
ZULMIRA - Não dizem que ela é a mulher mais séria do Rio de Janeiro?
Todo mundo diz! E se eu quisesse ser cem por cento, assim, como Glorinha?
Porque eu não gosto dela, mas justiça se lhe faça: tem linha até debaixo
d’água!
TUNINHO - Uma chata!
ZULMIRA - Tu falas assim, agora. Mas não te lembras que já me disseste
bestificado: “Ih Fulana é séria pra chuchu!” Foi, sim! [...]
3.10. Hora da onça beber água
TUNINHO (numa euforia, esfregando as mãos) – Está na hora da onça
beber água! (Muda de tom, feroz) hoje vou tomar dinheiro desses pó-de-
arroz! Nãoentendem bolacha de futebol! Sou Vasco e dou dois gols de
vantagem! (Tuninho vem à boca de cena, numa alucinação. Bate no peito.)
TUNINHO – Tenho dinheiro! Dinheiro!
A expressão coloquial desta vez apresentada é “a hora da onça beber água”,
também utilizada na peça teatral de Nelson Rodrigues na página 84, lembra, como disse
Rangel (2010), um conto de Guimarães Rosa e que está presente em Sagarana chamado
A hora e a vez de Augusto Matraga, que constantemente faz menção a espera de
vingança do personagem principal, ou seja, a hora dele ia chegar, o momento certo,
oportuno, e a expressão usada pelo teatrólogo não difere em nada disso, pois a hora da
onça beber água significa “o melhor momento para se fazer algo”, esta forma de falar
originou-se baseada no animal, onça, que “costuma beber água ao anoitecer, e, segundo
a tradição indígena, esse é o melhor momento para abatê-la” (RANGEL, 2010, p. 113).
Logo, diz-se de alguém que é bom estrategista, arquiteta e alcança seus objetivos na
ocasião correta.
Mello (2009, p. 26) apresenta ainda um significado conotativo interessante e que
complementa o entendimento da expressão acima, a saber, “pessoa muito feia, muito
valente, fortíssima, invencível”, portanto, dizer ‘chegou a hora da onça beber água’ é
mais que simplesmente ‘a hora oportuna’, é ainda dizer que alguém será flagrado,
vingado, vitorioso, vencedor, ou seja, num contexto dialógico, tanto a caça quanto o
caçador terão uma visão diferente da coisa, a caça ou aquele que atacou o tempo todo,
neste momento será pego num momento de fraqueza, numa situação desconfortável,
terá seu ‘calcanhar de Aquiles’ revelado, pois como os personagens são realmente
retratados na peça como humanos, logo, são passíveis de falhas, e no outro lado tem-se
a visão do caçador, aquele que espreita, que aguarda com paciência, que sabe, que
estudou o inimigo, aquele que também pode vir a ser o forte e que não abre mão da
melhor ocasião. Esta mudança de papeis é aguardada nas tramas, o momento da virada.
Por conta disso, a utilização da expressão acima é a melhor para retratar todo este
contexto.
Dizer que alguém é uma onça também pode figurar esta expressão, por exemplo,
só que desta vez no olhar da caça, ‘aquela que não é de confiança’, que parece mansa,
mas na verdade esconde uma fera pronta para o ataque, ou ainda, ‘alguém muito feia’,
mais parecida com a cara que a onça faz para atacar, ou melhor, o terror de um ataque.
Há aqueles que se referem as notas de cinquenta reais também dizendo: “Estou só com
uma onça na carteira até o final do mês’, ou seja, estou sem dinheiro suficiente, estou
apertado de grana, liso, e muito mais, dada a riqueza de significados que esta expressão
pode carregar.
A água desta vez referida no fragmento, mostrada agora como mais do que um
simples “líquido precioso”, segundo o dicionário de símbolos de Chevalier (1997, p. 15-
16) vem como um “meio de purificação, centro de regenerescência”, ela representa a
“infinidade dos possíveis”, as “promessas de desenvolvimento” e “ameaças de
reabsorção”, “carregar-se de novo”, “energia”, “força nova”, “fase progressiva de
reintegração”, “a água é fonte de vida e de morte, criadora e destruidora”, isto quer dizer
que quando se pensa nesta expressão e dela se faz uso a carga semântica dela é passível
de várias interpretações e aí se manifesta a importância do contexto para poder tecer a
compreensão do significante, na verdade a tradução do significante e não do significado.
Há outra forma de dizer “hora da onça beber água”, semelhante no significado e
comum na região do nordeste que é “hora da juriboca piar”, o regionalismo faz com que
muitas destas expressões se assemelhem no contexto dos significados.
Lembre-se ainda que há nesta expressão coloquial uma marca que realmente está
em desacordo com a norma padrão, pois bem, segundo a gramática o sujeito de uma
oração não pode vir preposicionado, mas como trata-se de linguagem oral vemos “a
hora da onça beber água”, quando o gramaticalmente correto seria “a hora de a onça
beber água”.
Momento de perigo, crítico, difícil, decisivo para se tomar uma decisão.
Figura 14 – Desenho de Chico Beto na hora da onça beber água
Fonte: TV KIDS: Chico Bento em A hora da onça beber água. Disponível
em:http://www.redeservidor.com/2011/index.php?menu=noticia&id=6399. Acesso em:06/10/2012.
3.11 Lavar a égua
A última expressão coloquial analisada aqui será “lavar a égua” que, segundo a
sociedade da época de Nelson Rodrigues, “lavar a égua” significava, e ainda significa,
para os bingueiros, ganhar muito dinheiro, promover uma lambança, aproveitar ao
máximo uma situação, se dar bem, “fartar-se”, “ter uma grande satisfação”, divertir-se,
descanso demasiado. Tantos significados para uma mesma expressão vale lembrar
Bakhtin (2006, p. 29) quando diz que “tudo o que é ideológico possui um significado e
remete a algo situado fora de si mesmo”.
A origem desta expressão, segundo Rangel (2010, p. 123), “apareceu no turfe,
significando ‘ganhar muito dinheiro’, porque os proprietários dos animais, quando
faturavam alto num páreo, comemoravam a vitória dando um banho de champanha na
égua”. Há ainda uma segunda e semelhante expressão que se diz “lavar a burra”, cujo
significado é o mesmo, porém, segundo Gadelha (2010, p. 90), diz que esta outra
expressão se origina da mineração, pois “burra é um bloco rochoso cravejado de
diamantes”.
Portanto cabe aqui citar Bakhtin (2006, p. 29), “um produto ideológico faz parte
de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção
ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra
realidade, que lhe é exterior”.
Alcançar vitória por contagem elevada, desfrutar ao máximo de uma situação
vantajosa. Ganhar dinheiro com facilidade, fartar-se. A seguir o fragmento da peça em
destaque com a expressão: lavar a égua!(RODRIGUES, 2012, p. 14):
[...] Tuninho - Seja cento e cinqüenta ou duzentas mil pessoas. Não importa.
Aí
morreu o Neves. Pois eu, se tivesse o dinheiro, dinheiro meu, no bolso, eu
sozinho, apostava com duzentas mil pessoas no Vasco. Havia de esfregar a
gaita assim, na cara de duzentas mil pessoas, desacatando: Seus cabeças-de-
bagre!
Dois de vantagem e sou Vasco! Te juro que ia fazer a minha
independência, que ia lavar a égua!
(Súbito, todos estacam, entreolham-se).
Os três (simultâneos) – Que foi, que foi?
Tuninho – Aquele pastel que eu comi, parece que me fez mal. Chi! Vou
chispando pra casa! Bye, bye!
(Oromar apanha um jornal.)
Os três (uma voz única) – Olha o jornal! [...]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho de pesquisa foi desenvolvido com a finalidade de verificar
se algumas expressões coloquiais e gírias utilizadas por Nelson Rodrigues na peça
teatral “A falecida” ainda fazem parte da linguagem das pessoas na atualidade com o
mesmo significado de outrora ou se já possuem outras ressignificações, assim como
problematizar se a linguagem coloquial utilizada por Nelson Rodrigues em sua peça
teatral como marca do linguajar do subúrbio carioca em 1953 ainda resistia até a
atualidade com o mesmo e/ou novo significado.
Nesse sentido, todas as hipóteses levantadas foram analisadas e comprovadas, a
saber. A primeira supunha que às expressões coloquiais utilizadas por Nelson Rodrigues
em sua peça teatral “A falecida” ainda são utilizadas na atualidade, porque foram
eternizadas pela literatura. Exemplo de comprovação desta hipótese foi a explicação sobre
a expressão “amigo da onça” no desenvolvimento do trabalho, em que é uma versão da
fábula de Esopo Dois Viajantes e o Urso, sendo popularizada na Revista o Cruzeiro.
A segunda supunha que as palavras e expressões coloquiais da peça teatral “A
falecida” ainda possuem o mesmo significado no contexto de outrora. Como exemplo de
confirmação dessa hipótese apresentou-se a expressão gíria “Você é bom de bico”, a
qual foi utilizada em um filme intitulado “Penetras bons de bico”, lançado no Brasil,
em 2005, cujo significado vem permanecendo o mesmo, a saber, refere-se às pessoas
que têm um intenso poder de persuasão apenas na conversa.
A terceira supunha que há material visual, escrito, na mídia ou literatura onde estas
expressões podem ser encontradas na atualidade com o mesmo significado. O tratamento
dado à expressão “Cabeça de bagre” comprova essa suposição, como foi demonstrado
no Cartaz do Greenpeace, onde aparece uma figura humana com uma cabeça
semelhante à de um bagre.
A quarta supunha que há recorrência da memória na interpretação do significado
das palavras e expressões coloquiais presente em peças teatrais. Essa hipótese foi
comprovada por meio do uso da expressão “Inês é morta” na peça teatral “Quem disse
que Inês é morta?!”, que foi apresentada na Livraria da Vila no Shopping
Higienópolis, em São Paulo, até setembro de 2011.
A quinta e última supunha que há questões socioculturais e de identidades inseridas
no processo de utilização delas. É o caso da expressão “A pátria está salva”, que é o
mesmo que “salvar a pátria” e “salvo pelo gongo, a qual se refere à pessoa, coisa ou
ocorrência que chega no momento propício para livrar alguém de um perigo ou situação
constrangedora no último instante. É um discurso coloquial com indicativo de
proximidade do discurso oral com a camada mais popular da sociedade, conforme foi
demonstrada na novela da globo “O Salvador da Pátria”.
Desse modo, pode-se concluir que as expressões coloquiais aqui destacadas são
formas de falar do cotidiano, ou seja, linguagem sem preocupações com as regras
gramaticais. Contudo, não são desprezíveis como as consideram alguns estudiosos da
linguística. Pois podem ser utilizadas como hipo-textos, recursos de paródia, cujo
objetivo é repetir um texto de forma a imitá-lo, sendo que esta imitação se transforma
em uma sátira. Por essa via, a presença destes recursos promove de certa forma uma
busca à memória do leitor, em que essas expressões coloquiais tornam-se marcas de
identidades sociais e concepções éticas/morais de uma sociedade.
Nesse contexto, Nelson Rodrigues utiliza estes hipo-textos na peça “A falecida”
como um recurso de linguagem capaz de permitir uma aproximação com o seu público
alvo. Pode-se também mostrar que as gírias utilizadas por Nelson Rodrigues são
recursos da linguagem oral ou escrita com características de criatividade, dinamismo e
informalidade, cujo objetivo é registrar sua forma de escrever como traços de sua
identidade.
Imediatamente após os exemplos apresentados, é possível perceber que este
assunto no futuro ainda vai obter grande espaço na mídia e, quem sabe, indignação por
parte de alguns gramáticos que ainda apresentam certas expressões coloquiais e gírias
como uma linguagem marginalizada e pertencente a grupos incultos.
Pode-se dizer que Nelson Rodrigues tem, em suas utilizações da linguagem
coloquial, o objetivo de encontrar reforço que ampare sua forma de pensar o mundo e
neste caso sua forma de falar ao mundo. Como os hipo-textos são recursos da paródia
que repetem um outro texto, na verdade uma imitação satirizada e diferente de um texto
anterior, na verdade apresentam características de criatividade, dinamismo e
informalidade por parte do escritor, elementos estes que identificam indivíduos nos
grupos de interesse e identificam Nelson Rodrigues que se mostra um grande utilizador
de expressões da linguagem cotidiana.
O autor da peça “A falecida” viu nesta forma até então “marginalizada” de
produção escrita uma ferramenta de aproximação de outros indivíduos que
compartilham a mesma ideia. A utilização destes recursos marca definitivamente sua
identidade na sociedade.
Certamente há muito mais a se explorar em relação a Nelson Rodrigues e este
trabalho acadêmico não tem a menor intenção de encerrar a análise das expressões
utilizadas por ele como marcas de sua identidade e cultura. A pretensão deste trabalho
foi permitir a percepção da sua criatividade e por que não dizer da sua inventividade
relacionada à audácia que este autor teve ao retratar a fala carioca tão de perto assim.
Há muito ainda a se descobrir em relação à linguagem utilizada por ele. Há ainda
muitos símbolos e significados a serem decodificados por outros pesquisadores. No
entanto, é importante afirmar que Nelson Rodrigues foi um dos mais audaciosos e
criativos autores do teatro brasileiro.
A criação e utilização de gírias no campo da linguagem coloquial estão
diretamente ligadas ao relacionamento com a sociedade em todos os aspectos possíveis.
Isto quer dizer que o falante, quando apresenta sua linguagem ao outro, ele, mesmo que
inconscientemente, mostra sua carga ideológica, sua memória atravessada por outros
discursos, suas práticas sociais, seu conhecimento, tudo isto unicamente na
manifestação de seu diálogo, na construção de seu discurso, discurso este que está
intimamente ligado a tudo aquilo que se tem como experiência de vida, levando em
consideração o contexto e a participação do outro, e a visão deste em relação ao mundo.
Levando-se isto em consideração, observa-se que o falante se utiliza de várias
ferramentas, vários recursos na produção de seu diálogo, aquilo que Bakhtin chamou de
dialogismo, cujo objetivo é manifestar uma fala intimamente ligada a ele, por isso que
se entende que nem sempre é fácil manifestar-se, uma vez que isto configura uma
exposição exacerbada do ser que pensa e fala e que ocupa um lugar na sociedade.
Neste jogo dialógico a escolha lexical contribuiu para um conhecimento prévio
“daquele que falava”, no caso, os personagens da peça, posto que estes representavam
uma parte da sociedade da época de Nelson Rodrigues. Esta escolha também foi um
recurso utilizado para “fazer crer” que por detrás daqueles personagens havia uma vida
real, cotidiana e que figurava a realidade, como um discurso manipulador, na verdade
um retrato da sociedade.
A peça teatral entrou como uma espécie de ferramenta de comunicação, ao dizer
assim assume-se que há formas específicas de representação nesta forma de transmissão
de informações, portanto contém características, recursos estilísticos, significantes que
nos fazem perceber o contexto da situação, aquilo que de fato importou nesta pesquisa.
Logo, a linguagem coloquial aqui apresentada foi recortada no que gramaticalmente se
chama de gírias e analisadas não simplesmente o significado, mas o significante,
preservando assim o estilo “rodrigueano” de escrever, isto quer dizer que a linguagem
não foi vista apenas como um emaranhado de palavras, organizadas de tal forma que se
compreenda, mas, além disso, foi analisada de tal forma a identificar o que naquela
situação em específico aquilo queria dizer, ou seja, não apenas a palavra pela palavra,
mas a palavra pelo contexto significante do fragmento escolhido.
Nesse contexto, assume-se uma posição contrária daqueles que supervalorizam a
linguagem dita culta em detrimento da linguagem coloquial, por acreditar que esta
última tem seu valor semiótico que deve ser considerado em nossas relações sociais,
como, por exemplo, nas relações entre professores e alunos.
Dito isso, o trabalho é finalizado com a certeza de que se deve estudar cada vez
mais esse linguajar cotidiano.
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