The Voice of Google

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C10 Cidades/Metrópole DOMINGO, 2 DE OUTUBRO DE 2011 O ESTADO DE S. PAULO

O português entrou na lista de lín-guas “faladas” pelo Google Tradu-tor em maio do ano passado. Nessaépoca, o serviço ganhou, de umavez, mais 27 idiomas no Text-to-Speech – hoje são mais de 30. Isso éa metade dos 63 idiomas que o sitetraduz. Para passar as palavras, fra-ses ou documentos inteiros de umalíngua para outra, o Google usa umprocesso que eles chamam de tradu-ção estatística. Um programa anali-sa e compara milhões de documen-tos que já haviam sido traduzidospor pessoas e, por meio dessa leitu-ra, são detectados automaticamentepadrões de linguagem. Ou seja, amáquina “aprende” aos poucos atraduzir melhor.

A o lado de discutíveis vanta-gens, morrer tem seus in-convenientes – e um deles éficar exposto a uma sublite-

ratura em mais de um sentido fúne-bre. Você pode argumentar que àque-la altura – ou fundura – já não seria ocaso de se preocupar com questõesestilísticas. Inês estando morta, tan-to faz alguém gravar na pedra uma“saudade imorredoura”, quando a ex-tinta criatura gostaria mesmo é queimorredoura fosse ela, não a saudade.Pode ser. Pra que tanta pose, doutor,pra que esse orgulho?, questionouem samba Billy Blanco, por sinal jáchegado a esse estágio em que “todomundo é igual quando a vida terminacom terra em cima e na horizontal”.

Ainda assim, peço licença para vol-

tar a uma questão que me parece grave –inclusive no sentido que tem, na línguainglesa, a palavra grave.

Você bate as botas e alguém mandagravar na lápide um texto que o fariamorrer de vergonha, se morto já não es-tivesse. A morte é também isso. Porque, então, não cuidar do texto antes dafatal batida de botas? Como fez a escrito-ra Dorothy Parker, ao imaginar letrasminúsculas sobre uma vasta superfíciede pedra: “Se você conseguiu ler aqui, éporque já chegou perto demais!” Tam-bém é dela este aqui: “Desculpe o pó...”

Confesso que para uso próprio aindanão aprontei algo brilhante, ou mesmofosco, a ser lido pelos pósteros ao pé deminha campa. Já pensei em recorrer àdramática secura de uma inscrição queli no cemitério de Havana, verdadeiro

grito gravado no mármore: ¡Irene Ma-nuela! Mas talvez não mereça a cargaemotiva dos pontos de exclamação arre-vesados – assim como não me julgo, emmeus piores momentos, merecedor dealgo com que me deparei ao perambularpor um cemitério de defuntos finos deSão Paulo em busca de artes funeráriasde Victor Brecheret. Lá está, sob o nomede um fulano, numa lápide de granitonegro: “A Bosta”. Sim, nem toda pá é decal, e tudo vira pó, inclusive aquilo.

O fato de ser autor de um dicionáriode lugares-comuns e frases feitas mecriaria constrangimento se quisesse in-cidir na “saudade de seus entes queri-dos”. Mais coerente seria buscar inspira-ção num pocket book que já começa a sercurioso por ter a forma de uma daquelaslápides de cemitério inglês, com uma

corcova no alto. Chama-se A small bookof grave humour. Nele, certo Fritz Spieglrecolheu velhos epitáfios, mais hilarian-tes que lacrimogêneos.

Esta inscrição, por exemplo, tratacom mortal franqueza a memória de umdefunto humilde: “Aqui jaz JohnTaggart, homem honesto, baixo de esta-tura e manco de uma perna. Estava satis-feito com uma pequena participaçãoque tinha numa lojinha em Wigtown, eisso era tudo.” Outra, ao reverenciar asvirtudes morais da falecida, lança enxo-

fre sobre a honra de suas conterrâneas:“Aquijaz apobre Charlotte,quenão mor-reu rameira, e sim virgem, aos 19 anos,algo raro de se ver nas vizinhanças.”

Dois epitáfios são obras-primas de hu-mor nonsense:

“Aqui jazem pai, mãe, irmã e eu. To-dos foram enterrados em Wimble, me-nos eu, que estou enterrado aqui.”

“Aqui jaz John Higley, cujos pais mor-reram num naufrágio. Se tivessem so-brevivido, os dois estariam enterradosaqui.”

No túmulo de um líder mórmon, afa-

mado por dotes não exatamente espi-rituais, o Fritz anotou: “Homem demuita coragem e de soberbo equipa-mento.”

Não faltam ao livro umas tantas re-clamações póstumas:

“Ó morte cruel, como pôde vocêser tão desapiedada, levando-o antese me deixando para trás. Em vez dis-so, você deveria ter levado os dois, oque teria sido mais agradável para osobrevivente.”

“Aqui jaz o corpo de Molly Dickie,a esposa de Hall Dickie Taylor. Comdois grandes médicos, meu adoradomarido tentou, em vão, curar meusmales. Por fim arranjou um terceiro,e aí eu morri.”

“Em memória de Charles Ward, fi-lho zeloso, irmão amoroso e maridoafetuoso. Nota: Este túmulo não foimandado erigir por sua mulher, Su-san. Ela erigiu um túmulo para JohnSalter, seu segundo marido, esque-cendo o afeto de Charles Ward.”

Como não me serve nenhuma dasfórmulas reunidas pelo Fritz Spiegl,eu talvez acabe plagiando o poeta Má-rio Quintana, que, inconformadocom a iminência de seu passamento,quis epitáfio nestes termos: “Eu nãoestou aqui.” Pois também eu preten-do não estar.

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Regina dá voz ao Google Tradutor, queé usado em brincadeiras no YouTube

@metropole_oesp

A MULHERQUE PASSATROTES SEMQUERER

PARA ENTENDER

HÉLVIO ROMERO/AE

Daniel Trielli

R egina Bittar fica sem sabero que dizer quando ouve asbarbaridades que ela mes-ma fala. Ela já foi flagrada

passando trotes para pizzarias, bri-gando com crianças e até xingando,pelo telefone, apresentadores de pro-gramas de televisão ao vivo. Mas Regi-na não é mal-educada. Ela é a voz bra-sileira do Google Tradutor (translate.google.com.br). Como a ferramenta,que oferece as traduções em som, écompletamente editável, as palavrascom o timbre de Regina são monta-das por qualquer usuário do site. Enão demorou muito para todo tipode brincadeira surgir no YouTube.

“Essa mistura de máquina com vozativa a imaginação das pessoas. Exis-te algum fetiche, alguma magia da má-quina falar e ter uma voz especial”,diz a locutora, apresentadora e mes-tre de cerimônias. “Essa coisa da vozvem da época do rádio. É que nem lerum livro. A sua imaginação é que vaifazer o personagem. Se ele é loiro,moreno, alto, baixo... E o áudio tam-bém funciona assim.”

Antes de ser a voz do Google Tradu-tor, Regina, de 49 anos, já era a mu-lher que avisa qual programa vai pas-sar em seguida no canal Fox. Tam-bém é locutora de vários comerciaise deu sua voz a atendentes automáti-cos de telefone – aqueles que falamqual é o seu saldo bancário ou paraaguardar na linha que um funcioná-rio estará disponível em poucos ins-tantes. Isso sem contar as palestras,cerimônias e vídeos corporativos.

Regina conta que os truques da pro-fissão são úteis não só no trabalho,mas em qualquer situação. “Se eu es-tou em uma reunião de condomínioe quero ter mais força na voz, uso detodos os artifícios. Porque eu sei usare sei o efeito que causa. Qualquer umfaz isso, mas sem perceber e sem ocontrole. O profissional sabe armar edesarmar”, conta. “Um dia, fui fazerum boletim de ocorrência e estavaimpaciente. E o cara que estava aten-

dendo na delegacia parecia bravo. Deuum tempo, ele me chamou e eu pensei:‘bom, vou levar bronca’. Até que ele diz:‘eu estou vendo aqui que você é locuto-ra. Como é que é? Fala alguma coisa pa-ra eu ouvir’... Todo mundo quer umapalhinha.”

Voz à máquina. A ferramenta de tradu-ção não é a primeira máquina para aqual Regina deu sua voz. Ela tambémparticipou do Mediz, um serviço lança-do em 2001 pela Gradiente. Os usuáriosde celular do começo da década ligavampara o número, pediam algum tipo deinformação e ouviam Regina dizer o ho-róscopo, a previsão de tempo ou as notí-cias. “Foi o primeiro contato que tivecom esse tipo de coisa, com a voz roboti-zada, de uma máquina. E as pessoas queligavam se envolveram bastante no ser-viço. Teve o caso de uma mulher queligou desesperada porque o namoradoestava apaixonado por outra e ela nãosabia o que fazer. Virou uma espécie deCVV (Centro de Valorização da Vida).”

Então quando uma empresa europeiafez uma seleção para um trabalho deText-to-Speech (“texto para voz”, ouna sigla em inglês, TTS), Regina já sabiao que a esperava. Algumas cláusulas deconfidencialidade não permitem queela diga como foi feita a gravação nemqual é a empresa, mas ela conta que agravação também foi usada em outrosserviços, como GPS. “Essa tecnologia(TTS) já existe há bastante tempo. Ogrande diferencial é o Google, que a po-pularizou. Esse usuário comum tevecontato com uma tecnologia que, paraele, é novidade.”

A voz de Regina entrou no tradutorno ano passado. Algum tempo depois,surgiram os primeiros vídeos no YouTu-be. “Faz uns quatro meses que fiqueisabendo das brincadeiras. Fazer o quê?O que cai na rede não dá para saber noque vai dar. Acho que ninguém imagi-nou que isso ia acontecer.”

A locutora admite que quando desco-briu a ferramenta, até ela fez umas brin-cadeiras. “Às vezes, estou conversandocom alguns amigos e um deles pega umlaptop e faz minha voz falar algum pala-

vrão. Já participei de uma reunião emuma produtora e tinha um cara que nin-guém gosta. Até que alguém digitouumas palavras e de repente ‘eu’ falo: ‘Fu-lano de tal, vai tomar no...’.”

O vídeo preferido dela é da criança de3 anos que briga com a voz do Googleque manda ela dormir (www.youtube.com/watch?v=JvKJbtdn2cU). “É tão bo-nitinha... ‘Está na hora de você dor-mir’”, imita-se. “Tem gente que pedepizza com a minha voz. Eu acho que se apessoa que passa o trote paga pela pizzadepois, tudo bem.”

‘Caiçara’. Regina demorou para ga-nhar a vida com a voz. Ela não começoua carreira no áudio, mas no texto. Nocomeço dos anos 1980, ela ainda estavaem sua cidade natal, Santos. Com pou-co menos de 20 anos, trabalhava comocontato publicitário na Cinemas de San-tos, uma empresa que tinha salas de exi-bição e uma casa noturna, a Heavy Me-tal. Isso a levou a ter contato direto como jornal A Tribuna e não demoraria mui-to para ela ser convidada para fazer umarevista de moda e comportamento, cha-mada Nossa Moda. “Foi a primeira revis-ta colorida de Santos, com papel cuchê,uma inovação muito grande.”

Alguns anos depois, o diretor artísti-co da rádio 89 FM, Sinésio Bernardo,descobriu a vocação de Regina. “Ele dis-

se: ‘Você é locutora, tem um baita tim-bre’. E me convidou para fazer uma pro-paganda na rádio, para a Ótica Mar-tins.” O primeiro trabalho de locutorafoi tão bom que Bernardo quis fazer a

revista de Regina na rádio, em um pro-grama chamado Rádio Revista. “Erauma liberdade muito grande. Eu fa-zia umas coisas que não sabia que nãopodia. Ficava lendo poesias, falandoumas coisas meio nada a ver. Mas osouvintes elogiavam! É isso que eu fa-lo: o poder da voz é muito grande.”

Na virada para a década de 1990, omarido engenheiro, Rodolfo, estavacansado de subir e descer a Serra doMar para trabalhar em Santo André,no ABC paulista. E a família, agoracom duas crianças – Rhassan, hojecom 23 anos, e Rhaissa, com 22 –, su-biu para a capital. “Não queria vir pa-ra São Paulo. Eu era bem bairrista,bem caiçara. Meu negócio era praia”,admite. “Mas caí de boca. Me apaixo-nei pela cidade. Hoje, me sinto umapaulista que vai para Santos de vezem quando, respirar o ar da praia.”

Mesmo assim, ela gosta de morarem um lugar menos cinza da metró-pole. A família vive em um prédio an-tigo, de 52 anos, em um condomíniomuito arborizado na Aclimação, re-gião central da capital. Para ela, asárvores e a arquitetura lembram a or-la santista. “Esse é o meu cantinho deSantos em São Paulo.” Em um doscômodos, ela tem a própria cabine degravação, para que continue dandosua voz a muitas outras máquinas.

PAULISTÂNIAUMA CIDADE E SUA GENTE

HUMBERTOWERNECK

Literatura terminal

Máquina ‘aprende’a traduzir melhor

Truques. ‘Se eu estou em uma reunião de condomínio e quero ter mais força na voz, uso alguns artifícios’

estadão.com.br

Você bate as botas e alguémgrava na lápide um textoque o faria morrer de vergonha