texto do Percival Brito

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  © 2006. Artmed Editora S.A. Todos

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Ano VI - Nº 20 - Oralidade, alfabetização e letramento - Julho Capa

Leituras de infância e formação cultural Luiz Percival Leme Britto

Ensinar a escrita é mais do que ensinar a escrever. É ensinar um valor e um modo de poder ser e pensar a si e o mundo

Crianças pequenas não sabem ler. Não sabem, mas vivem em um mundo cercado e administrado pelo escrito. Seus espaços de circulação, os cuidados pessoais, as formas de convivências, as regras de comportamento, a ocupação e a distribuição dos

espaços, as horas do dia, as permissões e interdições, os nomes das coisas, os brinquedos e as brincadeiras, os recipientes e embalagens - tudo isso, na sociedade urbano industrial, tem relação direta com o modo de ser da cultura escrita.

Crianças pequenas têm de aprender a ler quando crescem. O que é isso? O que é aprender a ler neste mundo? E quando começar a ensinar a leitura? Com que finalidades? Essas perguntas parecem tão banais, de respostas tão claras, que sequer precisam ser feitas. Ainda mais em se tratando da educação infantil. Contudo, a indeterminação das respostas a essas simples perguntas tem

impedido uma educação consistente e formativa da criança, do jovem e do adulto. Vale a pena fazer avançar essa reflexão.

Aprender a ler e a escrever - e a usar a escrita para fazer coisas (letramento) - é objetivamente um imperativo, não dependendo da vontade de ninguém. Isso acontece porque, na vida prática, lê-se e (ainda que em menor medida) escreve-se para a realização de tarefas muito simples, como assear-se, cozinhar, deslocar-se, comerciar, divertir-se, informar-se, etc. Já não há como aprender

a ser apenas sendo. A isso podemos chamar de cotidiano complexo.

A cotidianidade moderna tem uma complexidade tal, que os próprios referenciais da vida prática são mediados por uma normatividade vertical. Atividades cotidianas, para serem devidamente realizadas, precisam ser mediadas, em diferentes níveis

de complexidade, por ordenações escritas. Isso supõe que os indivíduos que tenham algum conhecimento dos artefatos e procedimentos modernos (mesmo que limitado a um nível operacional) assumem comportamentos de acordo as circunstâncias e

a padronização da vida prática.

Há, de fato, uma esfera de uso da escrita relacionada com a reprodução da vida no espaço cotidiano. Esse uso supõe aprendizagens automatizáveis que superam a experiência imediata com os pares, ocorrendo graças às mediações de meios

sofisticados de comunicação e formação. A essa dimensão associam-se textos de interpretação referenciados no senso comum.

Para além do saber cotidiano, encontra-se outra esfera de produção cultural relacionada com a escrita. Trata-se dos modos de produção de conhecimentos e valores formais, relacionados com a instrução e o estudo. Por essa esfera circulam textos cuja

forma e cujos conteúdos transcendem o imediatismo e o pragmatismo, pois tendem a ser autorreferenciados, descontextualizados, e supõem um maior nível de metacognição. Nessa esfera, encontram-se as produções que se operam nas

ciências, na literatura, na filosofia, enfim, as produções intelectuais humanas mais orgânicas e sofisticadas.

Ao se afirmar que pouco se lê e poucos são os leitores, é razoável supor que se está considerando, mesmo que imprecisamente, apenas essa segunda dimensão. A leitura dessas produções intelectuais implica uma ação intelectual tal, que o sujeito interage

com objetos culturais complexos, agenciando referências de sistemas interpretativos distintos daqueles que se adquirem na experiência cotidiana.

A leitura de um livro de literatura, por exemplo, demanda uma vivência considerável com a história, a sociologia, a filosofia e a psicologia. O mesmo ocorre na leitura de uma obra de sociologia política, de física moderna ou de psicanálise. É essa vivência que

garante ao leitor a possibilidade de fazer a sua leitura, não como mera autoprojeção sobre o texto, mas como realização de articulações inusitadas e verossímeis sobre o mundo tratado no texto.

Mas o que isso tem a ver com a formação do leitor infantil? Qual a relação entre essa complexa teoria da leitura com a vida de uma criança que quer brincar, jogar, pular? E o que isso tem a ver com educação infantil, cujo sentido primeiro não está em

alfabetizar ninguém?

Ora, essa é justamente a questão. Ocorre que inserir a pessoa num mundo de cultura mediado pela escrita, especialmente numa perspectiva formativa, não se faz depois, mais tarde, quando ela já é grande. Ensinar a escrita é mais do que ensinar a escrever - como se fosse um objeto neutro. É ensinar um valor e um modo de poder ser e pensar a si e o mundo. É permitir que as pessoas, desde cedo, tenham a possibilidade de conviver com objetos cuja intelecção seja feita com referenciais que transcendam tanto a

experiência imediata quanto os modos de ser e pensar da vida cotidiana e do senso comum.

Não se trata de desconsiderar o real nem de negar a necessidade de desenvolver o conhecimento do lugar em que está e das formas de organização da sociedade. Não participar da cultura escrita, não ter acesso aos produtos intelectuais que circulam por meio dos textos, numa sociedade que se impõe pela escrita, é estar alijado do espaço real de existência e de legitimidade (penso

nas pessoas que, não estando inscritas na ordem da cultura, porque não têm certidão de nascimento, não podem ser na sociedade, não podem sequer ser enterradas!). Portanto, aprender a ler e escrever e fazer coisas com isso é uma imposição

social, uma necessidade individual. Porém, que desde logo fique claro: submeter-se apenas à lógica da escrita que se oferece no imediato da cultura de massa é uma forma perversa de alienação.

Não há nada de errado em alfabetizar as crianças. É mais do que justo que elas sejam bem-alfabetizadas, com modelos pedagógicos consistentes e organizados. Porém, é preciso ter consciência de que alfabetizar não é formar alguém no domínio de uma pessoa, e sim inseri-lo no mundo da escrita, de modo que possa transitar pelos discursos da escrita, ter condições de operar

criticamente com os modos de pensar e produzir da sociedade em que vive.

Por isso, ler é mais do que enunciar um texto em silêncio ou em voz alta, decifrando o escrito que representa o fluxo verbal. Uma criança pequena que ainda não faz isso ou que o faz balbuciando as palavras pode participar da leitura e de assuntos muito complexos. Não há que se idiotizar a infância com o argumento de que são criaturas inocentes. Ao contrário, há que se lhe

oferecer o vasto mundo de Raimundo, com ou sem suas rimas. Há que lhe emprestar a voz do verbo que lhe abre o mundo das narrativas que fizeram e fazem a humanidade.

Quando uma criança de 3 anos toma emprestada a voz do outro - a mãe, o pai, a professora, a amiga mais velha - e interage com o texto através dessa voz emprestada, ela está lendo e participando da cultura. Está lendo com os ouvidos, assim como outros

leem com os olhos ou com as mãos. Na primeira infância, ler com os ouvidos e ter histórias que introduzam a criança num universo amplo e diversificado é mais importante do que ler com os olhos pequenos textos singelos e óbvios. Ao participar dessa

prática cultural, a criança está imersa em uma experiência intelectual mediada por uma fala organizada em uma sintaxe, um léxico e uma prosódia diferentes das que experimenta em outras interlocuções, começando a compreender as modulações de

vida viabilizadas pelo texto escrito.

A criança experimenta a voz escrita e o mundo que ela encerra. Por isso, há que se povoar a escola da infância com textos densos e vivos, que apresentam histórias bonitas, mas não banais. O ingresso progressivo e constante no mundo da cultura não se faz pelo conhecimento da técnica de codificar e decodificar mensagens - haverá tempo para isso. O princípio orientador da ação

educativa infantil deve ser operar com signos e significados em um terreno repleto de valores e sentidos historicamente produzidos e socialmente marcados.

Uma perspectiva educativa como a que se anuncia supõe a valorização objetiva da cultura local realizada simultaneamente ao reconhecimento de ritmos e formas de desenvolvimento humano e do conhecimento formal. Alguém poderia argumentar que,

com tal raciocínio, se está querendo antecipar a vida adulta quando ela ainda não se fez. Não é nada disso. O que se quer é que as crianças pequenas não se tornem adultos intelectualmente infantilizados, incapazes de ler e de pensar o mundo.

Luiz Percival Leme Britto é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba.

luis.britto@prof.uniso.br

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